pro ao contra e contradições em marx

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Pró-ao-contra e as contradições de Marx Ensaio sobre fragmentos de Pascal, Marx e Althusser Razão dos efeitos – Passagem contínua do pró ao contra. [...] Nem a contradição é sinal de mentira, nem a não contradição é sinal de verdade. (§384| 177) É uma contradição, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com a mesma constância, fuja dele. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanto se realiza como se resolve. [...] Essas formas [contradições imanentes] encerram, por isso, a possibilidade, e somente a possibilidade, das crises. O desenvolvimento dessa possibilidade até que se realize exige todo um conjunto de condições. (Livro I, seção I, Capítulo III pág. 227, 236) Busca-se neste trabalho interpretar, no texto de Marx, a operação de um tipo de lógica que aponta para uma reconfiguração epistemológica da própria certeza: mais próxima das postulações da lógica moderna e da psicanálise - que subvertem o campo sólido dos fundamentos e da universalidade da certeza - do que de uma possível lógica

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Texto apresentado ao encontro CEMARX, Campinas.

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Pr-ao-contra e as contradies de MarxEnsaio sobre fragmentos de Pascal, Marx e AlthusserRazo dos efeitos Passagem contnua do pr ao contra. [...] Nem a contradio sinal de mentira, nem a no contradio sinal de verdade. (384|177) uma contradio, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com a mesma constncia, fuja dele. A elipse uma das formas de movimento em que essa contradio tanto se realiza como se resolve. [...]Essas formas [contradies imanentes] encerram, por isso, a possibilidade, e somente a possibilidade, das crises. O desenvolvimento dessa possibilidade at que se realize exige todo um conjunto de condies. (Livro I, seo I, Captulo III pg. 227, 236)

Busca-se neste trabalho interpretar, no texto de Marx, a operao de um tipo de lgica que aponta para uma reconfigurao epistemolgica da prpria certeza: mais prxima das postulaes da lgica moderna e da psicanlise - que subvertem o campo slido dos fundamentos e da universalidade da certeza - do que de uma possvel lgica herdada de Hegel, que segundo alguns teria sido depurada ou liberta do idealismo deste, para afirmar-se mais dialtica ou materialista. A questo ser interpretada atravs da apresentao de ocorrncias do termo contradio em Marx e do destaque para um de seus usos: quando aponta o contrrio [ou oposto, opositor] no contraditrio [onde contraditrio aparece como erro ou nulidade lgica, ou gera excluso do contrrio].Segundo Althusser (5, p.133), Pascal pronunciaou a extraordinria [sic] frase: podemos, sem contradiz-los (aos antigos) afirmar o contrrio do que eles diziam! . Apresentando, assim, a essncia de uma verdadeira teoria da histria, pois pode ver que a verdade dependente e instncia da vida concreta e, justamente por isso, pode revirar-se, do pr ao contra, afirmando verdades contrrias no contraditrias. Ou seja, referenciada no em suas possibilidades, mas em suas condies materiais de existncia histrica.

[] Sem contradiz-los: porque as condies de nossas experincias cientficas mudaram, e j no so as mesmas que a dos antigos. []

Frase, infinitamente mais profunda que tudo o que os filsofos do sculo das luzes puderam dizer (no final muito simples, por teleologia) sobre a histria. (Althusser 5, p.133)

Pascal, de fato, divide as verdades em dois tipos: as demonstrveis e as indemonstrveis (Opsculos, em Resposta ao Pde. Noel, pp. 29s. Do mtodo das demonstraes geomtricas (pp. 82s) . O mais notvel, entretanto, de toda a sesso dedicada demonstrao geomtrica, que tal texto, dirigido a um pblico de gemetras, mais presta-se a criticar a demonstrabilidade de um campo de verdades onde incompatvel pensar por demonstraes ou previses: tenta mesmo desfazer, diante de um pblico de gemetras, teses consagradas que apontam para a demonstrabilidade de tudo, ou que confundem os campos do demonstrvel e no demonstrvel.As demonstrveis so verdades das quais a afirmao de seus contrrios geram contradio: este nmero par mpar, por exemplo. As indemonstrveis so as que no so passveis de demonstrao, ou por impossibilidade ou por no ser o caso: as verdades sensveis, morais ou naturais, por exemplo.

O sol nascer amanh no pode ser demonstrado, justamente porque a afirmao de seu contrrio, por mais que desafie o bom senso, no contraditria; o sol no nascer amanh uma frase totalmente coerente e compreensvel.

Ocorre que as verdades mais importantes para a vida humana so da categoria das indemonstrveis. Mas tambm, por convenincia de algo em nossa prpria natureza, so, mesmo que indemonstradas, tomadas como verdades muito certas e seguras: so certezas.

Justamente por serem questes imprprias para demonstraes, tais certezas esto passveis dessa passagem do pr ao contra, que acontece atravs da absoro de argumentos e instanciao desses mesmos argumentos ou proposies em escopos mais abrangentes, de tal modo que as antes verdades continuem sendo verdade onde eram, mas o deixem de ser atualmente, sob novas luzes. A no contradio deixa de ser sinal de boa verdade:

A contradio um mau sinal de verdade: muitas coisas certas so contraditas; muitas coisas falsas ficam sem contradio. Nem a contradio sinal de mentira, nem a no contradio sinal de verdade. (384|177)

As verdades em Pascal podem passar ao contrrio sem contradio, pois tais verdades so instanciadas em universos mais ou menos amplos de interpretao. Uma primeira afirmao verdadeira onde est afirmada, mas pode ser negada sem contradizer a sua primeira afirmao onde ela ocorreu, afirmando-a falsa, entretanto, onde ocorre agora. Permitindo assim que se situe a verdade: onde pode ser tomada por verdadeira e onde falsa; mas principalmente entender as razes dos efeitos que podem cambi-la de valor, sem cair em contradio. E isso Althusser identificou como trao permanente em si mesmo:A teoria do hbil e do semi-hbil, a teoria do reconhecimento e do desconhecimento [que] voltaria a encontrar depois em minha prpria teoria da ideologia. (Althusser 5, p.133)Parece existir uma gradao na compreenso do que est em jogo, de forma que a primeira negao de uma verdade tem um escopo maior do que a verdade que nega e ter um escopo menor do que a que a negar.

Razo dos efeitos Graduao. O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hbeis as desprezam, dizendo que o nascimento no uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hbeis as honram, no pelo pensamento do povo, mas pelo pensamento oculto. Os devotos, que tm mais zelo do que cincia, as desprezam, malgrado essa considerao que as faz honrar pelos hbeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes d. Mas os cristos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim, vo-se sucedendo as opinies do pr ao contra, segundo a luz que se tem. (337|90)

Na genealogia do materialismo, Pascal destacado pela intuio [sic] de ter incorporado a discusso do vazio como assunto filosfico. Nesta tradio estariam juntos, numa linhagem bastante original: Pascal, Marx, Lnin, Freud e Wittgenstein.

Podemos compreender tais autores como autores que cada um ao seu modo se insurgem CONTRA o fundamento estabelecido na universalidade, acabam instanciando algo que se sups ter um valor universal e abalando todo o alicerce da certeza material do mundo.

Lnin questionando a democracia universal, atravs de sua famosa pergunta: democracia para quem?. Freud acabando com o mito da universalidade da conscincia e Wittgenstein passando com rio [de Herclito] e tudo sobre o fundamento da prpria certeza.

Os termos contradio (Widerspruch), antagonismo (Gegensatz) e conflito (Konflikt) so frequentemente utilizados como sinnimos, de forma alternada, mas em vrios sentidos diferentes (BHASKAR, 1993). No entanto possvel tentar uma breve amostragem de alguns usos da contradio.

Para um ricardiano radical no estilo de Mill, que v como coisas idnticas compra e venda, oferta e procura, e para quem o dinheiro mera formalidade, o melhor mesmo que na converso da mercadoria em dinheiro (...) se inclua que o vendedor tem de vender a mercadoria abaixo do valor e o comprador, com seu dinheiro, tem de comprar acima do valor. Acaba-se portanto chegando a este absurdo: naquela transao o comprador adquire a mercadoria para revend-la com lucro e por isso o vendedor tem de vender a mercadoria abaixo do valor dela; com isso desaba a teoria toda do valor. Essa segunda tentativa de Mill de resolver uma contradio ricardiana destri a base inteira do sistema e em particular sua superioridade por definir a relao entre capital e trabalho como troca direta entre trabalho acumulado e trabalho imediato, isto , em conceb-la em sua especificidade. (MARX, 1980b, p.1146).Note-se que podemos substituir, sem problemas para a compreenso, contradio ricardiana, por inconsistncia do pensamento ricardeano. Este primeiro exemplo notvel pois afirma que um pensamento cai em contradio [inconsistncia do pensamento, absurdo], justamente por no reconhecer entre a compra e a venda uma contradio:

A anttese, imanente mercadoria, entre valor de uso e valor, de trabalho privado, que ao mesmo tempo tem de representar-se como trabalho diretamente social [...] essa contradio imanente [que] assume nas antteses da metamorfose das mercadorias suas formas desenvolvidas de movimentos. (livro I, secx I, cap III pg. 236) Evidentemente que essa contradio, da forma como figura aqui, no pode ser substituda por algo como uma inconsistncia, pois Marx apresenta um modelo bantante claro na realidade, o modelo que produz a mais valia: o Capitalismo. Que efetivamente incorpora tais contradies na cadeia de produo ou alienao do valor.Ora, segundo as definies de qualquer das lgicas, tudo o que apresenta um modelo consistente, mesmo que o seja trivialmente. Ento a expresso desta contradio, diferentemente da primeira, no implica em perda de consistncia, ou na afirmao de algum absurdo, muito pelo contrrio, apresenta uma contradio real para resolver uma contradio aparente. No entanto, essa contradio que se expressa efetivamente na metamorfose da mercadoria e da gerao da mais valia, vai contra, evidentemente, qualquer observao menos atenta do real, que se apegue apenas nas aparncias.

A forma de circulao, pela qual o dinheiro se revela como capital, contradiz todas as leis anteriormente desenvolvidas sobre a natureza da mercadoria, do valor, do dinheiro e da prpria circulao. O que a distingue da circulao simples de mercadorias a seqncia inversa dos mesmos dois processos contrapostos, venda e compra. E como poderia tal diferena puramente formal mudar por encanto a natureza desses processos? (MARX, 1986a, I, p.131).

No entanto, essa contraposio, que pode ser reconhecida como uma contradio aparente, pode ser resolvida com uma contradio real: to logo a fora de trabalho apresentada como fonte geradora do valor.

Para resolver essa contradio aparente necessitam-se ainda muitos termos OS intermedirios. [...] Embora nunca tenha formulado essa lei, a Economia clssica instintivamente apega-se a ela porque uma consequncia necessria da lei do valor em geral. Procura salv-la mediante abstrao forada das contradies da aparncia. Mais adiante veremos como a escola de Ricardo tropeou nessa pedra. A Economia vulgar que realmente nada tem aprendido insiste aqui, como em tudo, na aparncia, contra a lei que a rege. Em oposio a Espinosa, ela acredita que a ignorncia uma razo suficiente.

Tais recorrncias da contradio nos permitem apresenta-las em dois grandes blocos: as contradies aparentes, e as contradies reais. Estas ltimas, guardam algumas caractersticas notveis: constituem contrrios de oposies reais, inclusivas e codeterminadas, pois seus termos pressupem existencialmente seu oposto. Isso significa subverter uma lgica que se pautasse por uma causalidade linear e pelas aparncias. Por exemplo diante de uma falta de trabalhadores e mo de obra pode conviver, segundo Marx e segundo a mais simples observao da realidade, ao mesmo tempo em que existem trabalhadores famintos precisando de empregos. Tal contradio aparente quando no resolvida, ou seja, quando no pode expressar-se como contradio mas como logos. Mas quando vista como uma contradio real, dissolve-se a contradio aparente e expressa-se a contradio que est na base do modo de produo de forma revolucionria, do pr-ao-contra.Que o acrscimo natural da massa trabalhadora no satisfaa s necessidades de acumulao do capital e, ainda assim, simultaneamente as ultrapasse, uma contradio de seu prprio movimento. Ele precisa de massas maiores de trabalhadores em idade jovem, de massas menores em idade adulta. A contradio no mais gritante do que a outra, a de que haja queixas quando carncia de braos ao mesmo tempo que muitos milhares esto na rua, porque a diviso de trabalho os acorrenta a determinado ramo de atividades. (livro I, sec VII, cap XXIII, pg 271 )

Alm disso, parece que tais contradies tambm tem uma notvel caracterstica temporal: o ciclo. Alm da convivncia contraditria real, tambm os processos evoluem atravs de um movimento do pr-ao-contra.

A troca de mercadorias as metamorfoses da mercadoria e dinheiro como meio de circulao so processo que encerram elementos contraditrios e mutuamente exclusivos, mas no apenas implicam-se nas metamorfoses e transformaoes, como tambm mudam de papel: toda compra uma venda!Alm disso produzem ciclos em duas formas de compreenso de ciclo: como uma repetio continuada, por exemplo, no processo de transformao da mercadoria, que se repete indefinidamente em ciclos repetitivos de metamorfose.

Mas tambm existe tambm um ciclo de vida onde, cada ciclo de repetio convive com sua autodestruio em dois sentidos: na cumulao de contradies crescentes, que acabam resolvidas por choques de unidades, cada vez mais profundas. Tambm a cada ciclo a mercadoria deve desaparecer e ser substituda por uma nova, pois o trabalho humano, no sendo acumulado diretamente, deve reiniciar, a cada dia, sua jornada de ssifo, nessa ciclicidade que, como num pice de contradies, realiza-se num processo de morte e vida, riqueza e pobreza, ganncia e necessidade, avareza e libertao.Em sua vertente mistificada, diz Marx, a dialtica hegeliana foi moda, pois tornava sublime o existente. No entanto, ela prpria, a dialtica, mesmo a mistificada, definida em termos de contrrios, portanto passvel verte-se do pr-ao-contra: No entendimento positivo do existente [que o torna sublime] ela [a dialtica] inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negao, da sua desapario inevitvel; porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto tambm com seu lado transitrio. (idem pg 141)Ora, mais ou menos trivial que algo que ocorra simultaneamente no implique em contradio no sentido de erro ou impossibilidade lgica, pois mesmo sendo contradies, tais coisas de fato concorrem se analisarmos os efeitos da forma capital.

Tal mtodo, que apelidamos no entanto no um mtodo que deva ser julgado ou aplicado conforme as expectativas convencionais da cincia: capacidade de predio e prognstico. Tambm aqui ocorre uma inverso epistemolgica, anloga inverso da crise dos fundamentos, e a aplicao de tal cincia o da anlise e da simulao. O que caracterizaria uma ruptura marxista est no campo da fundamentao da certeza: h que desmistificar essa certeza.

Ou seja, uma tradio lgica que no se prope a dizer sobre o verdadeiro e o falso, mas sim dizer sobre os efeitos de afirmar o verdadeiro como verdadeiro e o falso como falso: busca a razo dos efeitos.

O mtodo bsico a virada do pr-ao-contra, de forma que um mesmo argumento, fortemente sustentado, possa ser instanciado em novas luzes de razes, e tornar-se falso, onde era verdadeiro, mas continuar verdadeiro, onde era verdadeiro. Que pode ser representada pelo seguinte paradigma: a possibilidade da converso ao contrrio, sem contraditrio, ou seja, de determinadas questes que sob condies histricas diferentes distintas

Resultados contrrios a afirmaes, mas no as contradizemNo partiremos do sculo XX para tentar ver a antecipao, mas justamente do incio da modernidade, quanda da afirmao do pano de funda cartesiano para as certezas e os mtodos, tornando-se hegemnico.

Encontraremos uma vertente que, embora no tenha se tornado hegemnica, acabou por encubar-se desorganizadamente sob uma noo geral de impossibilidade de afirmao de certezas e de fundamentar a prpria validade a partir do interior do mtodo.

Seguiremos aqui, apesar de chegarmos muitas vezes a resultados diferentes, a intuio de Althusser quanto a esse assunto: fundaremos, na modernidade, tal campo epistemolgico do impreciso e da converso ao contrrio em Pascal.

EEm seu artigo A nica tradio materialista, Althusser refere-se a uma tradio, da qual Marx talvez seja o mais importante integrante, se dividisse tal posio no podium com EspinosaNeste trabalho partimos de trs focos, tomados do Capital:

A articulao e funo do termo contradio no discurso lgico vale dizer, caracterizao do tipo de lgica do discurso;

Como articulado o discurso sobre a causalidade em casos de endemias rurais, sade e doena do trabalhador.

Consideraes sobre o uso ou aplicao da teoria.No primeiro caso, vamos interpretar a lgica utilizada no discurso marxista, ou seja, no discurso de Marx, como consistente com uma tradio que nos remete s concepes de Pascal sobre a no demonstrabilidade de determinadas questes, a oscilao entre o verdadeiro e o falso sem implicar contradio, bem como a impossibilidade de prova de coerncia a partir do prprio sistema. Note-se que tradio que se torna hegemnica, at a crise dos mtodos, no sculo XX, representada pelo cartesianismo, ou seja, pela demonstrao linear de causalidades e procedimentos metdicos (fixidez e implicao de causa e efeito; cadeia indutiva do simples ao complexo, ou ao contrrio, neste caso analtica).No segundo caso, tomaremos algumas passagens em que Marx fala sobre a causalidade de determinadas doenas e epidemias entre crianas. Ao articular um discurso lgico para determinar as causas e tentar achar uma soluo para os problemas, o autor surpreende pela atualidade de determinados mtodos de anlise que seriam referenciados pela primeira vez por Freud: a sobredeterminao.

Quanto ao terceiro aspecto, veremos que um dos grandes problemas que surgem a partir das discusses anteriores justamente sobre o aplicao da teoria. Se a teoria marxista parece muito pouco vontade, seno constrangida, se persegue o objetivo da predio, ou da prescrio; fica num campo muito propcio quando trata da anlise e da reflexo para a ao atravs de sua capacidade de simulao.

A tese geral aqui defendida de que uma caracterstica importantssima que uma consequncia da teoria marxista questo da responsabilidade pela construo das verdades do mundo, que no so segundo possibilidades, mas segundo condies histricas concretas. A razo no pode valorizar as coisas, o valor surge das relaes humanas e as verdades no so produtos de teorias, mas decises diante da histria.

O cartesianismo torna-se hegemnico por toda a modernidade, no entanto, no final do sculo XIX comea a expressar-se algumas questes que mechem profundamente com o esprito geomtrico da poca, e que terminam reacessando justamente o campo que at ento mal entrara para a filosofia. Os dois postulados de Goedel so os seguintes: toda teoria, includa a a matemtica, acaba por produzir afirmaes indecidveis; no existe sistema que tenha, dentro de si mesmo, a prova de sua coerncia.

Como paradigma deste campo tomamos alguns pontos levantados por Althusser, mas dando consequncias por vezes diferentes do mestre. Centralmente utilizaremos a concepo de pr-ao-contra de Pascal para entender uma lgica que lida com contrrios no contraditrios. Ao operar em um escopo que pode inclusive conter a no contradio, no opera na anlise do real segundo as possibilidades, mas sim segundo suas condies materiais. A consequncia disso que a possibilidade de que algo ocorra no uma determinao que se possa tentar capturar numa sequncia de causas e feitos, pois lida-se aqui com uma pulverizao de causas e efeitos.Existe aqui um duplo risco: o do aleatorismo e da falta de qualquer tipo de determinao, o que contraria a prpria vida, que planejamos at mesmo ao escovar os dentes; ou a deliberao onisciente e onipresente para a ao, perseguindo estruturas rgidas de sujeitos ideais ou estruturas ideais.

Tentaremos como concluso deste trabalho aplicar

Antonio Herci Ferreira Jnior

[email protected] nos debruamos sobre teorias como o marxismo, interpretadas e reinterpretadas, resultado de diversas leituras, abordagens e crenas, sempre imaginamos que estamos a desvelar certo grau de originalidade ou aproximao com uma suposta pureza de pensamento, e nossa tarefa seja a de aclarar, definir, precisar e decidir sobre termos, guardando a mais estrita e correta equivalncia.Nunca imaginamos algo muito mais simples, e que de fato ocorre: que estejamos, sempre agragando, a um conjunto de axiomas ou afirmaes, outras tantas, seja para aparar determinados significados, ocultar determinados outros, frear ou amplificar certas recorrncias e fixar e definir termos. Mas sempre fazemos isso tudo de forma extensiva, ou seja, agregando a um conjunto inicial um outro, que adequa tal teoria ao uso que queremos dela, seja terico, seja aplicado.

Podemos, quando fazemos tais coisas, agir de duas formas: de forma criativa ou no criativa, tecnicamente falando sobre a construo de teorias. As formas so criativas se, de termos originais, temos que acrescentar outros termos que no existiam antes na teoria. A no criativa utilizarmos definies, atalhos ou agregados de smbolos pr-existentes para definir novos termos, entretanto j concebveis com o universo inicial de termos da teoria que analisamos.

O exempla mais cabvel no momento justamente a relao que pode ser estabelecida entre o que chamado de lgica tradicional e a lgica modal.

As duas respeitam os mesmos algoritmos para as demonstraes e construes de tabelas, no entanto, para operar modalmente, preciso acrescentar criativamente na lgica clssica, os operadores de modalidade: o possvel e o necessrio.

Este trabalho vai em duas direes complementares: de um lado aproxima a lgica discursiva de Marx de um discurso modal, fortemente carregado de retrica, principalmente baseado em entimemas e paradigmas e no para a dialtica (o que no significa que ele no proponha uma dialtica com tal discurso).

Veremos que as demonstraes sempre tendem para a discusso sobre sua possibilidade e necessidade, no para questes de previsibilidade ou prescrio.O segundo ponto sobre o uso de tal teoria. Parece que Marx define e delineia, seno mesmo modela, uma teoria consistente ao ponto de oferecer no apenas modelos, mas paradigmas, e ser capaz de inaugurar uma linha de pesquisa, to importante quanto a fsica moderna de Newton, em termos de revolues cientficas.

No entanto, descataremos aqui um fato no muito citado, mas bastante significativo: o uso de tal teoria no l muito claro, se partirmos do prprio Marx. Ou pelo menos no est to claro para que serviria todo aquele arsenal terico.

Precisemos melhor a questo: a modernidade colocou as teorias e as cincias numa relao de validade com sua boa utilizao na predio de coisas, ou explicao de como funcionam outras, ou soluo concreta de problemas humanos.

Mas e uma cincia que vira de ponta cabea a o prprio postulado do real, e parte de um pressuposto de que a cincia vigente, burguesa, mistificadora na medida em que tenta naturalizar questes arbitrria? Tal teoria, o marxismo, teria o mesmo objetivo da teoria que combate, e deveria servir, como ela, superando-a inclusive em eficincia, na predio ou explicao de fenmenos, e na construo de uma demonstrabilidade emprica para dar conta do que afirma do mundo?

Defendemos aqui que no! A teoria marxista no se presta exatamente para a previsibilidade ou aclaramento, mas para a anlise e simulao. No demonstrativa, descritiva.

Assim, no podendo fazer com que o que justo fosse forte, fez-se com que o que forte fosse justo.

(Pascal 9, 298|103) J havia lido devidamente Pascal no cativeiro.

(Althusser 5, p.133)RESUMO:

No artigo A nica tradio materialista, Althusser (2,4,5) apresenta alguns fundamentos de sua teoria da materialidade da ideologia referenciados explicitamente em Pascal: 1) o pr-ao-contra e a condio material da verdade (que pode tom-la por contrria sem contraditrio); 2) a intuio [sic] do vcuo como assunto filosfico (postulao capaz de negar o substrato para a matria).

Caracteriza a produo ideolgica como um trabalho humano capaz de incorporar as contradies de classe e impregnar diretamente os aparatos ideolgicos e postula a necessidade da formulao de uma doutrina dogmtica, para combater numa arena de dogmticos.

Apresenta-se aqui uma das ferramentas centrais de tal teoria: o aparato dos corpos que tambm tributa a Pascal efetivamente uma forma de expressar a materialidade da ideologia. Palavras-chave: aparato dos corpos; vcuo; materialidade da ideologia.

A forma preo, porm, no s admite a possibilidade de incongruncia quantitativa entre grandeza de valor e preo, isto , entre a grandeza de valor e sua prpria expresso monetria, mas pode encerrar uma contradio qualitativa, de modo que o preo deixa de todo de ser expresso de valor, embora dinheiro seja apenas a forma valor das mercadorias. Coisas que, em si e para si, no so mercadorias, como por exemplo conscincia, honra etc., podem ser postas venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preo, a forma mercadoria. Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um preo, sem ter um valor. A expresso de preo torna-se aqui imaginria, como certas grandezas da Matemtica. Por outro lado, a forma imaginria de preo, como, por exemplo, o preo da terra no cultivada, que no tem valor, pois nela no est objetivado trabalho humano, pode encerrar uma relao real de valor ou uma relao derivada dela. (livro I/sc I/cap III/pg 226)

Viu-se que o processo de troca das mercadorias encerra relaes contraditrias e mutuamente exclusivas. O desenvolvimento da mercadoria no suprime essas contradies, mas gera a forma dentro da qual elas podem mover-se. Esse , em geral, o mtodo com o qual contradies reais se resolvem. uma contradio, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com a mesma constncia, fuja dele. A elipse uma das formas de movimento em que essa contradio tanto se realiza como se resolve. (idem. 2. Meio de circulao a), pg. 227O carter principal da etiologia das neuroses a sobredeterminao de sua gnese; ou seja, para dar nascimento a uma dessas afeces necessrio que vrios fatores concorram. (FREUD, 1973 [1893/5]), p. 142).

As mediaes das formas irracionais em que determinadas condies econmicas aparecem e praticamente se acoplam no importam nem um pouco aos portadores prticos dessas condies econmicas em sua ao econmica diuturna; e j que eles esto acostumados a se movimentar no meio delas, no ficam nem um pouco chocados com isso. Uma perfeita contradio no tem nada de misterioso para eles. Nas formas fenomnicas que perderam a coerncia interna e que, tomadas em si, so absurdas, eles se sentem to vontade quanto um peixe na gua. Aqui vlido O que Hegel diz em relao a certas frmulas matemticas, ou seja, O que O bom senso considera irracional racional e O que considera racional a prpria irracionalidade. (Livro III, cap. XLVI, pg. 241)Por fim, trabalho - salrio, preo do trabalho, como foi demonstrado no Livro Primeiro,7' uma expresso que, prima acie, contradiz o conceito de valor assim como o de preo, que, de modo geral, ele mesmo apenas uma expresso determinada do valor; e _preo do trabalho_ tambm to irracional quanto um logaritmo amarelo. Mas aqui que o economista vulgar acaba ficando bem satisfeito, j que acabou chegando viso mais profunda do burgus, isto , que ele paga dinheiro pelo trabalho e j que precisamente a contradio entre a frmula e o conceito de valor o dispensa da obrigao de compreender este ltimo. (Livro III, cap. XLVIII/III)

por um lado, o fato praticamente inegvel e,p or outro, a contradiot erica igualmentei negvel; essad ificuldade mais facilmente contornada presumindo que o valor da mercadoria contm s na aparncia, do ponto de vista do capitalista individual, outra parte de valor que difere da parte existente em forma de rendimento.As coisas so bem outras nas colnias. O regime capitalista choca- se l por toda parte contra a barreira do produtor, que como possuidor de suas condies de trabalho enriquece a si mesmo por seu trabalho, em vez de enriquecer ao capitalista. A contradio desses dois sistemas econmicos diametralmente opostos afirma-se aqui praticamente na luta entre eles. Ali onde o capitalista tem atrs de si o poder da metrpole, ele procura eliminar pela fora o modo de produo e apropriao baseado no trabalho prprio. O mesmo interesse, que 383 777 Trata-se aqui das verdadeiras colnias, terra virgem que colonizada por imigrantes livres. Os Estados Unidos so ainda, economicamente falando, colnia da Europa. De resto, cabem aqui tambm aquelas velhas plantaes, em que a abolio da escravido revolucionou completamente as condies. faz o sicofanta do capital, o economista poltico na metrpole, tratar teoricamente o modo de produo capitalista como se fosse seu oposto, esse mesmo interesse impulsiona-o aqui to make a clean breast of it778 e a proclamar bem alto a anttese entre os dois modos de produo. (livro I, sec VII, cap XXV , pg. 382s) Que o momento de tal crise tenha chegado mostra-se assim que a contradio e a oposio entre as relaes de distribuio e, por isso, tambm, por um lado, a configurao historicamente determinada das relaes de produo que lhes correspondem e, por outro, as foras produtivas, a capacidade de produo e o desenvolvimento de seus agentesg, anhe em amplitude e profundidade. Surge, ento, um conflito entre o desenvolvimento material da produo e sua forma social. (Livro III, cap. LI, pg 315)A mistificao que a dialtica sofre nas mos de Hegel no impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. necessrio invert-la, para descobrir o cerne racional dentro do invlucro mstico. (Posfcio segunda edio, 1873, pg 140)

Instncia, aqui utilizado no sentido de um contexto ou escopo de interpretao, que pode ser variado e visto sob novas luzes e pontos de vista (re-instanciado). Instanciar situar uma determinada afirmao ou proposio nesse contexto.

Pr-ao-contra, vcuo e materialidade da ideologia

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