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74 A R T I G O S M A R G E M E S Q U E R D A 13 As aventuras de Karl Marx contra a pulverização pós-moderna das resistências ao capital * MARCELO DIAS CARCANHOLO GRASIELA CRISTINA DA CUNHA BARUCO O título deste trabalho é, obviamente, uma paródia baseada na obra de Löwy 1 . Ali, o autor procurava mostrar que todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados ao que ele chama de “grandes visões sociais de mundo”, ou seja, que a pretensa neutralidade ideológica no trato científico – tão cara à tradição positivista – é uma mera ilusão, mistificação. Neste trabalho, o objetivo é analisar criti- camente as bases teóricas do pensamento pós-moderno que levam à defesa de um posicionamento fragmentado e meramente heterogêneo diante da lógica do capital – que, segundo Marx, é, de fato, totalizante e homogeneizadora, ainda que do ponto de vista apenas formal. Na primeira parte, são esboçados alguns elementos do pensamento de Foucault sobre o caráter microdeterminado do poder, o que pode ser identificado como um dos fatores que compõem a gênese da ideia pós-moderna sobre as microcontestações fragmentadas. A segunda visa discutir o caráter dialético dessas microcontestações. Se, por um lado, elas apresentam possibilidades no enfrentamento com a lógica do conteúdo-capital, devido ao fato de que este efetivamente se manifesta nos distintos terrenos da sociedade; por outro, essas lutas fragmentadas possuem limites óbvios ao restringirem-se cada uma * Os autores agradecem os comentários críticos de João Leonardo Medeiros. 1 Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (São Paulo, Busca Vida, 1987). Margem 13 Final.indd 74 Margem 13 Final.indd 74 29/1/2010 11:12:22 29/1/2010 11:12:22

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As aventuras de Karl Marx contra a pulverização pós-moderna das resistências ao capital*

MARCELO DIAS CARCANHOLOGRASIELA CRISTINA DA CUNHA BARUCO

O título deste trabalho é, obviamente, uma paródia baseada na obra de Löwy1. Ali, o autor procurava mostrar que todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados ao que ele chama de “grandes visões sociais de mundo”, ou seja, que a pretensa neutralidade ideológica no trato científi co – tão cara à tradição positivista – é uma mera ilusão, mistifi cação. Neste trabalho, o objetivo é analisar criti-camente as bases teóricas do pensamento pós-moderno que levam à defesa de um posicionamento fragmentado e meramente heterogêneo diante da lógica do capital – que, segundo Marx, é, de fato, totalizante e homogeneizadora, ainda que do ponto de vista apenas formal.

Na primeira parte, são esboçados alguns elementos do pensamento de Foucault sobre o caráter microdeterminado do poder, o que pode ser identifi cado como um dos fatores que compõem a gênese da ideia pós-moderna sobre as microcontestações fragmentadas.

A segunda visa discutir o caráter dialético dessas microcontestações. Se, por um lado, elas apresentam possibilidades no enfrentamento com a lógica do conteúdo-capital, devido ao fato de que este efetivamente se manifesta nos distintos terrenos da sociedade; por outro, essas lutas fragmentadas possuem limites óbvios ao restringirem-se cada uma

* Os autores agradecem os comentários críticos de João Leonardo Medeiros.1 Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (São Paulo, Busca Vida, 1987).

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ao seu terreno, supostamente autônomo e independente, reduzindo assim a própria efetividade de suas contestações.

Na terceira parte, apresenta-se a relação que existe entre essa dialética das microcontestações e a temática das alternativas ao ca-pitalismo, principalmente no que diz respeito ao sujeito social que pode se propor a transformar esse modo de produção, o sujeito revolucionário. Por último, e como consequência, conclui-se com uma apreciação crítica sobre o capitalismo e o socialismo dentro da perspectiva pós-moderna.

Microfísica do poder e microcontestações fragmentadasO pós-modernismo, enquanto pensamento político-ideológico,

parte da premissa de que a sociedade hoje em dia viveria uma época de fragmentação2, em que distintas e múltiplas identidades foram construídas, independentemente de qualquer ordenamento social mais geral. A isso se relaciona a defesa de que a sociedade contemporânea seria pós-industrial, isto é, não teria no processo produtivo a sua lógica fundante, como na época moderna. Estaria muito mais ligada ao crescimento do setor de serviços e à exacer-bação do consumo3.

O individualismo seria, assim, uma de suas características, o que redefi ne uma importância para o que se chama micrologia do coti-diano, isto é, às distintas e heterogêneas microidentidades da vida cotidiana. Esse individualismo teria nascido com o modernismo, mas seria exagerado, de forma narcisista, na realidade pós-moderna.

Dessa forma, cada microidentidade teria como perspectiva política a atuação voltada aos diversos e específi cos modos de opressão e poder que atingem esses distintos e autônomos campos da vida so-cial. A origem da defesa pós-moderna das contestações fragmentadas está no rechaço que essa forma de pensamento promove a qualquer perspectiva totalizante e na defesa que faz da fragmentação da (nova) realidade social.

2 A esse respeito ver Deise Mancebo, “Contemporaneidade e efeitos de subjetivação”, em Ana Mercês Bahia Bock (org.), Psicologia e o compromisso social (São Paulo, Cortez, 2003); e Virgínia Fon-tes, Refl exões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo (Rio de Janeiro, Texto, 2005).3 É exatamente o que fazem Michael Hardt e Antonio Negri, Império (Rio de Janeiro, Record, 2001), cap. 3.4, ao assumirem que a pós-modernidade se caracteriza pela passagem do paradigma industrial para o dos serviços e da informação, no que eles chamam de informatização.

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Não por acaso, esse tipo de perspectiva parece construir-se, entre outras bases4, a partir de uma leitura específi ca do que seja a ideia da microfísica do poder em Foucault.

A questão do poder passa a ser parte importante do pensamento de Foucault a partir de um determinado momento, fazendo com que a genealogia desse5 se torne o projeto central de sua refl exão. Entre-tanto, não existe, como poderia parecer, uma natureza geral (essência) do poder. O que há são formas heterogêneas, diferentes, múltiplas e dispersas de suas práticas de poder. Esse novo tipo de análise da questão faz parte do que o autor chama de “microfísica do poder”, o que não poderia ser confundido com a mera opressão estatal, uma vez que os poderes são exercidos em esferas e graus de intensidade diferenciados.

Tais poderes estariam relacionados ao que cada sociedade constrói e apresenta como verdade, ou saberes:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de dis-curso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.6

Assim, verdade é poder7, um conjunto de procedimentos intima-mente relacionados a sistemas e efeitos de poder. Para Foucault, esses

4 Alex Callinicos, em seu Contra el postmodernismo: una crítica marxista (Bogotá, El Ancora, 2003), disponível na internet em <http://www.socialismo-o-barbarie.org/actualizaciones_formacion/formacion.htm>, identifi ca na origem desse tipo de pensamento uma mescla entre três fontes: movimento artístico pós-moderno, em contraposição dialética com as bases da arte moderna; fi losofi a pós-estruturalista, principalmente as ideias de Deleuze, Derrida e Foucault; e a noção do que seria uma sociedade pós-industrial.5 “É essa análise do porquê dos saberes que pretende explicar sua existência e suas transfor-mações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará ‘genealogia’.” Cf. Roberto Machado, “Introdução: por uma genealogia do poder”, em Michel Foucault, Microfísica do poder (23. ed., Rio de Janeiro, Graal, 2007), p. X.6 Ibidem, p. 12.7 Ibidem, p. 13: “[...] entendendo-se mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras

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saberes verdadeiros não podem ser entendidos separadamente do poder, ou melhor, dos distintos mecanismos e instrumentos técnicos que legitimam os processos de dominação.

Quem exerceria esse poder? A resposta marxista padrão, segundo Foucault, seria que esse é um exercício de dominação de classe8. Entretan to, para ele, o poder não tem centro; não haveria interesse, em termos analíticos, na restrição ao campo da luta de classes, nem na atuação do Estado, mas sim pelas táticas de governabilidade. O Estado, que não é entendido como um instrumento direto da domina-ção de classe9, não se defi ne pela sua territorialidade; esse é mais um elemento, não necessa ria mente o mais importante. Dessa forma, se o poder não tem centro, trabalha-se com o local, o micro, o corpo, o hábito – e seu exercício se dá em níveis variados, não se situando em nenhum ponto específi co da estrutura social, mas em todos ao mesmo tempo, com distintos graus de incidência, e sem nenhum referente unitário, centralizado, que lhe dê sentido.

Assim, se não há dominação de classe, ao menos de forma direta, na defi nição dos mecanismos de poder quem o exerce? Para Foucault, ele se exerce em todo espaço: ninguém é propriamente dono do po-der, ele é genuinamente difuso; não se sabe ao certo quem o detém, embora se possa saber quem não o detém.

segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos espe-cífi cos de poder’”.8 Isso não signifi ca que o poder e o Estado, para Marx, sejam meras correias de transmissão do domínio de uma classe perante a outra, ainda que essa concepção se apresente, em maior ou menor grau, em algumas interpretações que se pretendem marxistas. De fato, o poder e o Estado, dentro de uma sociedade capitalista, estão inseridos em uma lógica de dominação/exploração de uma classe que vive do seu trabalho por outra que vive do trabalho alheio, mas isso não permite desconsiderar as contradições internas e/ou fracionamentos dentro das próprias classes sociais, da estrutura de poder e do Estado. A sociedade capitalista não é um refl exo perfeito da contradição capital-trabalho em todas as suas instâncias, mas, a partir dessa contradição fundamental do capitalismo, constitui-se como um complexo de comple-xos, obviamente dialéticos. Ver Antonino Infranca, Trabajo, individuo, historia: el concepto de trabajo em Lukács (Caracas, Monte Ávila Editores Latinoamericanos, 2006), cap. IV.9 Desde já é salutar o alerta de que, para uma análise marxista mais robusta e condizente com a dialética marxista, não existe essa interpretação direta e rasteira da determinação linear da estrutura sobre a superestrutura. O que parece, em muitas passagens de Foucault, é que ele está tratando certo tipo de marxismo, realmente reducionista e vulgar, próprio da época em que pensava esse autor, como se fosse o pensamento de Marx e/ou de qualquer perspectiva marxista possível.

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Por tudo isso, a proposta de Foucault não aceita o tratamento tra-dicional de esquemas teóricos totalizantes, unitários. Nesse ponto, o autor é explícito ao se dirigir contra o pensamento freudiano tradicional e o marxismo10. Especifi camente sobre este último:

Se temos uma objeção a fazer ao marxismo é dele poder efetivamente ser uma ciência [...]. Vejo-os atribuindo ao discurso marxista e àqueles que o detêm efeitos de poder que o Ocidente, a partir da Idade Média, atribuiu à ciência e reservou àqueles que formulam um discurso científi co.11

Ou seja, o principal problema de Foucault com o marxismo, se-gundo ele próprio, seria duplo: a consideração da estrutura de poder como algo unitário, centralizado dentro da lógica de opressão do ca-pital diante do trabalho; e a pretensão, inerente a essa teorização, de se constituir como uma forma de poder, no sentido de que ela traria consigo a pretensa única maneira de fazer ciência, isto é, de descobrir a verdade12. Para Foucault, tal tem um sentido de desqualifi cação de tudo aquilo que “não é ciência”, ou seja, de qualquer outro discurso, seja teórico ou não, que não o marxista13.

A isso Foucault contrapõe o que chama de genealogia, que seria um projeto para libertar os saberes históricos dessa sujeição e opressão construídas pelos saberes totalizantes e pretensamente científi cos: “a reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a hierarquização científi ca do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de

10 “Foucault rejeita o marxismo como saber inscrito na racionalidade de mundo ocidental e trata de mostrar que este saber constrói um sistema de poder que ele mesmo, Foucault, não pode senão recusar.” Roberto Nigro, “Foucault lecteur et critique de Marx”, em Jacques Bidet e Eustache Kouvélakis (orgs.), Dictionaire Marx contemporain (Paris, PUF, 2001), p. 434.11 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.12 “El poder no es unitario, sostiene, y consiste en una multiplicidad de relaciones que infi ltran la totalidad del cuerpo social. Por ello, es imposible asignar una prioridad causal a la base económica, como lo hace el marxismo. Más aún, el poder es productivo: no opera median-te la represión de los individuos y no circunscribe sus actividades, sino que las constituye. Foucault ilustra lo anterior, primordialmente, en las instituciones ‘disciplinarias’ tales como la prisión, creada a comienzos del siglo XIX. Por último, el poder suscita por necesidad una oposición, una resistencia, si bien tan fragmentaria y descentralizada como las relaciones de poder que combate” (Alex Callinicos, Contra el post modernismo, cit., cap. 3, p. 11). Deve-se destacar o caráter profundamente crítico que Callinicos imprime a esse tipo de pensamento em sua obra.13 É fundamental notar que, nessa passagem, Foucault está endereçando a crítica também, em termos idênticos, para o discurso e a prática psicanalíticos.

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poder, eis o projeto das genealogias desordenadas e fragmentárias”14. Note-se que isso é feito sem ter como referência um sujeito – qualquer que seja – universal, transcendente, mas justamente a multiplicidade dos saberes locais, isto é, ao que se pode chamar de microssujeitos.

Mas, qual é a relação disso com as microcontestações fragmen-tadas tão glorifi cadas pelo pensamento pós-moderno? Harvey a percebe perfeitamente:

É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de tal ataque multifacetado e pluralista às práticas localizadas de repressão que qualquer desafi o global ao capitalismo poderia ser feito sem produzir todas as múlti-plas repressões desse sistema numa nova forma. Suas ideias atraem os vários movimentos sociais surgidos nos anos 1960 (grupos feministas, gays, étnicos e religiosos, autonomistas regionais etc.), bem como os desiludidos com as práticas do comunismo e com as políticas dos partidos comunistas.15

Inicialmente, da forma como colocado por Harvey, pode-se inter-pretar essa relação do pensamento de Foucault com os movimentos sociais fragmentados dos anos 1960 como algo direto do primeiro para os segundos, como se a interpretação teórica do autor surgisse por inspiração iluminada e os movimentos sociais apenas seguissem essa ideia. O próprio Foucault não dá margem a esse tipo de interpretação, quando afi rma que “só se pode começar a fazer esse trabalho [de estudo das formas concretas do poder] depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais fi nas da rede do poder”16.

Se o poder não é centralizado – e, portanto, seus detentores e mecanismos de operação tampouco são unifi cados, mas dispersos e diluídos –, um combate a essas formas de opressão só poderia advir de um confronto também fragmentado, multifacetado, o que coloca o enfrentamento político contra a realidade do poder no terreno das chamadas microcontestações fragmentadas.

Mas e a lógica do conteúdo-capital? Não é, de fato, totalizante, global e unifi cadora, por mais que as diversas formas de poder a ela relacionadas sejam dispersas? Se essas lutas fragmentadas rejeitam

14 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.15 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural (16 ed., São Paulo, Loyola, 2007), p. 51-2.16 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 8.

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deliberadamente qualquer interpretação holística17 – para usar o termo de Harvey – do capitalismo contemporâneo, fi ca aberta a questão de como conseguem construir um confronto realmente progressivo e progressista às contradi ções centrais da lógica do conteúdo-capital. É disso que passamos a tratar.

Dialética das microcontestações fragmentadas18

Não se pode confundir a crítica, necessária, à fragmentação das contestações sociais, pelo fato de que realmente não se contrapõem à totalidade da lógica do capital, com uma negação total das contestações locais, focalizadas, tão necessárias para uma prática revolucionária anticapitalista. Isso defi ne uma dialética das microcontestações, frag-mentadas em relação à lógica totalizante do movimento do capital.

Essa dialética se defi ne, por um lado, pelos limites óbvios colocados à efetividade das lutas fragmentadas, no sentido de que não enfrentam, questionam, opõem-se, à lógica do capital – ou seja, à exploração do trabalho (indiferentes às distintas formas em que este se apresente) e ao estranhamento/fetichismo/alienação próprios da sociedade mercantil-capitalista. Ao contrário, essas lutas fragmentadas adequam-se à lógica do capital. O que se mostra claro para Wood, quando afi rma que

No capitalismo, muita coisa pode acontecer na política e na organização comunitária em todos os níveis sem afetar fundamentalmente os poderes de exploração do capital ou sem alterar fundamentalmente o equilíbrio decisivo do poder social. Lutas nessas arenas continuam a ter importância vital, mas precisam ser organizadas e conduzidas com a noção clara de que o capita-lismo tem notável capacidade de afastar a política democrática dos centros de decisão de poder social e de isentar o poder de apropriação e exploração da responsabilidade democrática.19

17 “No holismo, os indivíduos empíricos são, sobretudo, representados como identidades posicionais, isto é, como identidades cujo valor é dado pelo lugar que ocupam na hierarquia es-tratifi cada da sociedade; no individualismo, forma hegemônica das sociedades ocidentais, o valor da identidade individual é dado, sobretudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao todo.” Cf. Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, em Ana Maria Jacó-Vilela e Deise Mancebo (orgs.), Psicologia social: abordagens sócio-históricas e desafi os contemporâneos (Rio de Janeiro, Eduerj, 1999), p. 36.18 Ellen Meiksins Wood, em seu Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico (São Paulo, Boitempo, 2003), prefere chamá-las de terreno das contestações extra-econômicas.19 Ibidem, p. 236.

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Isso nos leva a outro polo dessa dialética das lutas fragmentadas, o das possibilidades. De fato, justamente porque o conteúdo-capital, em sua lógica totalizante, se manifesta nos distintos terrenos da sociedade, várias formas de manifestação, específi cas, das suas contradições (exploração e estranhamento) são observadas no real-concreto. Assim, as diversas lutas, em diferentes arenas (opressão de gênero, raça, movimentos ecológicos, étnicos etc.) são formas reais de confronto ao capital, enquanto, e desde que, partes de uma totalidade de oposição à sua lógica.

Entretanto, a possibilidade de vitórias das lutas fragmentadas, se não desejam, mesmo com vitórias pontuais, perpetuar-se ad infi ni-tum contra novas formas de manifestação das desigualdades, está relacionada com a possibilidade de uma vitória maior dentro de um confronto anticapitalista, por mais que isso soe incômodo ao ouvido pós-moderno. Isso porque

[...] o capitalismo tem uma tendência estrutural a rejeitar as desigualdades extraeconômicas, mas essa tendência é uma faca de dois gumes. Estrate-gicamente, ela implica que as lutas concebidas em termos exclusivamente extraeconômicos – puramente contra o racismo, ou contra a opressão de gênero, por exemplo – não representam em si um perigo fatal para o capitalismo, que elas podem ser vitoriosas sem desmontar o sistema capitalista, mas que, ao mesmo tempo, terão pouca probabilidade de sair vitoriosas caso se mantenham isoladas da luta anticapitalista.20

De fato, as lutas fragmentadas não têm nenhuma chance de vitória diante do capital enquanto exasperarem a lógica isolacionista de cada uma delas. Por uma razão muito simples: o capitalismo tem a tendência a “identifi car”/igualar as especifi cidades dos indivíduos no momento em que, a partir da expropriação dos meios de produção, cria dois tipos distintos de inserção nessa sociabilidade. Aqueles que não possuem os meios de produção e são, por isso, obrigados a vender sua força de trabalho (manifeste-se ela da forma que for) justamente para aqueles (os proprietários dos meios de produção) que necessitam comprá-la para transformar seu capital-dinheiro na forma capital-produtivo. Não importa o tipo específi co de trabalho material realizado nos distintos ra-mos produtivos. As relações sociais21, no capitalismo, são defi nidas com

20 Ibidem, p. 232.21 “Karl Marx (1818-1883) procura estabelecer um ponto concreto, calcado na vida material, a partir do qual se poderia defi nir o processo histórico. Considera os homens não a partir

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base no fato de que alguns compram para vender (circulação capitalista de mercadorias), enquanto outros são obrigados a vender (sua força de trabalho) para comprar (meios de subsistência)22. Nesse sentido, todos os indivíduos são formalmente iguais, “livres”, para decidir se vendem (ou não) sua força de trabalho no mercado. É a democracia formal burguesa em toda sua fantasmagoria da liberdade, igualdade e fraternidade23.

Essa trindade basilar do liberalismo clássico é meramente formal, aparente, no sentido de que “[...] todo o mundo precisa querê-las, mas elas não podem realizar-se. A única coisa que lhes pode acontecer é que o sistema que as gerou desapareça, assim abolindo os ‘ideais’ juntamente com a própria realidade”24. A identifi cação/igualitarismo dos indivíduos específi cos é meramente formal, aparente, e esconde a real desigualdade entre os proprietários dos meios de produção e os proprietários da força de trabalho, mistifi cando a exploração do trabalho no sistema capitalista.

dos valores aos quais aderem, mas a partir da forma social de produção e reprodução na qual se inserem. É a organização da vida social, o que, para ele, permite explicar a emergência e a generalização de determinados valores, e não o contrário.” Cf. Virgínia Fontes, “História e verdade”, em Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta (orgs.), Teoria e educação no labirinto do capital (Petrópolis, Vozes, 2001), p. 126.22 Essa é a base categorial em Marx para uma teoria das classes sociais, mas está longe de dar conta de toda a complexidade do assunto, especifi camente dos diferentes níveis de mediação entre as distintas frações de classe. O debate marxista acerca do tema é extenso, e se torna ainda mais complexo pelo fato de Marx, no capítulo LII do livro III de O capital, que trata justamente do assunto, terminar a escrita, após algumas pistas, sem fornecer sua resposta. Um bom tratamento da questão pode ser encontrado em Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX) (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999), segunda parte, especialmente o capítulo 4.23 Os discursos que tratam a “sociedade civil”, as ONGs, o “terceiro setor”, como únicas formas de confronto social caem nas mesmas armadilhas porque “[...] oscurecen la profunda división de clases, la explotación y la lucha clasista que polarizan la ‘sociedad civil’ contemporánea. Aunque analíticamente inútil y engañoso, el concepto de ‘sociedad civil’ facilita la colaboración de las or-ganizaciones no gubernamentales con los capitalistas que fi nancian sus instituciones y les permite orientar a sus proyectos y seguidores hacia relaciones subordinadas a los intereses de las grandes empresas a la cabeza de las economías neoliberales.” Cf. James Petras e Henry Veltmeyer, El Imperialismo en el siglo XXI: la globalización desenmascarada (Madri, Popular, 2002), p. 194. Isso não signifi ca que toda ONG seja funcional e esteja a serviço do capitalismo neoliberal; apenas que considerar a luta fragmentada como única forma de confronto ao capital é, primeiro, afi rmá-lo ao invés de negá-lo, e, segundo, justamente esconder as diferenças ideológicas que existem entre os distintos elementos que compõem o “terceiro setor”.24 Fredric Jameson, “O pós-modernismo e o mercado”, em Slavoj Žižek (org.), Um mapa da ideologia (Rio de Janeiro, Contraponto, 1996), p. 281.

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Note-se que o igualitarismo formal não apaga as diferenças, desi-gualdades, especifi cidades dos diferentes indivíduos, apenas as torna formalmente igualadas, pela participação “igual” de cada um no mercado. Dessa forma, o capitalismo não precisa dessas opressões extraeconômicas – no sentido de Ellen Wood –, mas também as utiliza para seu próprio benefício.

Em primeiro lugar, porque “quando os setores menos privilegiados da classe trabalhadora coincidem com as identidades extraeconômicas como gênero ou raça, como acontece com frequência, pode parecer que a culpa pela existência de tais setores é de causas outras que não a lógica necessária do sistema capitalista”25. Nesse sentido, pode-se defi nir uma primeira razão positiva que a funcionalidade das opres-sões extraeconômicas tem para o sistema capitalista: se as identidades extraeconômicas normalmente se confundem com setores menos pri-vilegiados da força de trabalho, e a lógica do capital prescinde de suas diferenciações econômicas, a razão para tais opressões, nesse terreno, não pode ser a lógica capitalista, que é econômica. O capitalismo se isenta de qualquer responsabilidade nesse terreno.

Segundo, é possível defi nir uma razão negativa para a funciona-lidade. Se pela razão positiva o capital não implica – do (seu) ponto de vista meramente aparente – desigualdades extraeconômicas, estas últimas servem para esconder/mistifi car as contradições estruturais da sociedade capitalista – o que, no plano político, leva à divisão da classe trabalhadora. Divisão esta que ocorre porque cada fragmento da classe, enquanto afi rmado em uma unidade/identidade extraeco-nômica específi ca, pode lutar, por mais radical que seja, apenas em seu microterreno, abrindo mão da luta maior.

Wood resume a ideia dessa forma:

[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e opressões extraeconômicas. Isso quer dizer que, embora o capitalismo não seja capaz de garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça, a conquista dessa emancipação também não garante a erradicação do capitalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma indiferença pelas identidades extraeconômicas torna particularmente efi caz e fl exível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo.26

25 Ellen Meiksins Wood, Democracia contra capitalismo, cit., p. 229.26 Ibidem, p. 241.

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Em adição à refl exão da autora, acrescentaríamos, para concluir esse ponto, que o principal erro da postura pós-moderna, que afi rma as lutas em favor das identidades extraeconômicas, ao mesmo tem-po em que rejeita radicalmente a superação – no sentido dialético, que não pode ser confundido com supressão – dessas lutas em um projeto revolucionário anticapitalista, é a confusão que se faz entre várias formas fragmentadas de manifestação da desigualdade entre seres humanos com o conteúdo capitalista dessas desigualdades, ou seja, o estranhamento/fetichismo e a exploração do trabalho. Pior, a exasperação dessa posição pós-moderna, hipostasiando as formas das desigualdades, separando-as de qualquer conteúdo capitalista – como se cada forma fosse um conteúdo em si –, leva à aceitação do capi-talismo como sistema social indiscutível e à fragmentação da classe trabalhadora, sujeito que tem a possibilidade de ser revolucionário, o que decididamente não pode ser confundido com necessidade de ocorrência histórica.

Classes sociais e sujeito(s) revolucionário(s)Essa discussão nos traz ao tema das alternativas que se colocam

ao capitalismo contemporâneo e dos (novos) sujeitos que teriam, ou não, a capacidade de implementá-las27. A esquerda marxista tradicional costuma falar de um sujeito revolucionário, a classe trabalhadora. Mas isso não faz mais sentido para o pensamento pós-moderno. A negação do sujeito revolucionário ocorre em razão da afi rmação que o pós-modernismo faz da fragmentação, característica basilar da condição pós-moderna atual, assim como da defesa da tese segundo a qual a nova economia informacional e de serviços implica, inexoravelmente, uma transformação na natureza e qualidade do trabalho.

Esse tipo de pensamento conclui pela negação do sujeito revolucio-nário tradicional, marxista, a partir de dois fatores inter-relacionados, além de sua rejeição radical a qualquer perspectiva totalizante: a mudança da sociedade industrial para a pós-industrial, ou de servi-ços, e a emergência de um trabalho imaterial – em contraposição ao material, fabril, da época moderna – que estaria na base da economia

27 Note-se que essa forma de colocar a questão está perfeitamente adequada ao discurso pós-moderno, uma vez que não haveria mais um único sujeito histórico, mas vários, que representam múltiplas e distintas identidades, conformando, portanto, alternativas, ao invés de uma única alter-nativa totalizante. Colocar a questão no plural, e não no singular, não é meramente uma opção discursiva, mas um sintoma da ideologia que está contida no pensamento pós-moderno.

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informacional e de serviços. Hardt e Negri28, por exemplo, distinguem três tipos de trabalho imaterial. O primeiro caracterizaria a própria produção industrial, agora “informacionalizada” e com novas tecno-logias de comunicação. O segundo englobaria as tarefas analíticas e simbólicas que perpassam os distintos setores da nova economia. O último seria aquele que se relaciona com a produção e manipulação de afetos, sensibilidades, em suma, toda aquela gama de característi-cas que defi nem uma microidentidade, que fornece especifi cidade ao sujeito individual, categoria basilar desse tipo de pensamento.

Qual é a relação disso com a negação do sujeito revolucionário tra-dicional, a classe trabalhadora29? Essa relação fi ca clara quando Hardt e Negri afi rmam que, independentemente da sua forma, o trabalho material possui a característica inerente de cooperação, ou seja, esta última não seria o resultado de uma imposição externa, como ocorreria nas formas anteriores de trabalho. Assim, a força de trabalho atual não teria a sua potencialidade efetivada necessariamente por intermédio da imposição da lógica do capital30 – ou seja, não seria mais capital variável. Isso im-plica o rompimento da relação antagônica entre capital e trabalho, pois o resultado do processo de trabalho, em sua cooperação, não lhe seria mais estranhado, a partir da apropriação da mais-valia pelo capital. Se não há mais antagonismo, confl ito, luta entre as classes (capital e traba-lho), a classe trabalhadora não pode ser mais o sujeito revolucionário, no sentido de que teria a possibilidade de se colocar como uma alternativa

28 Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 314-5.29 É fundamental ressaltar já neste ponto a total incompreensão dos pós-modernos – embora isso se estenda para outros tipos de interpretação, inclusive algumas “marxistas” – a respeito do que é capital industrial, força de trabalho, trabalho produtivo e classe trabalhadora. Para esse tipo de pensamento, capital industrial e indústria são sinônimos. Assim, só seria trabalho produtivo aquele que fosse implementado no processo industrial e, portanto, a teoria do valor trabalho e a classe trabalhadora, em Marx, só seria aquela ligada ao setor industrial. O que nem de longe se aproxima do que Marx realmente entendia por essas categorias é algo que basta uma leitura nem tão atenta assim da seção I do livro II de O capital. Ricardo Antunes, em Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afi rmação e a negação do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2003), também trata do tema, ainda que se sinta obrigado a falar da classe-que-vive-do-trabalho para representar a classe trabalhadora na atualidade, quando bastaria, em nosso entendimento, o tratamento correto da categoria trabalho produtivo em Marx.30 “Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os outros de que eles necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo capital e por sua capacidade de orquestrar a produção.” Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 315. Tudo se passa como se alguma(s) micrológica(s) pudesse(m) tornar-se independente(s) do processo de acumulação de capital, ou seja, como se este deixasse de ser totalizante, ainda que em algum grau.

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integralmente anticapitalista. Não há oposição, não há luta, não pode haver revolução; nem, portanto, sujeito revolucionário31!

No que se refere à relação entre a fragmentação e a negação do sujeito revolucionário, Chaui constata que

[...] o pós-modernismo comemora o que designa de “fi m da metanarra-tiva”, ou seja, dos fundamentos do conhecimento moderno, relegando à condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: as ideias de verdade, racionalidade, univer-salidade, o contraponto entre necessidade e contingência, os problemas da relação entre subjetividade e objetividade, a história como dotada de sentido imanente, a diferença entre Natureza e cultura etc. Em seu lugar, afi rma a fragmentação como modo de ser do real, fazendo da ideia de diferença o núcleo provedor de sentido da realidade; preza a superfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaçotemporal; recusa que a linguagem tenha sentido e interioridade.32

Disso, em primeiro lugar, decorre que quaisquer alternativas que advenham para a atual condição pós-moderna só podem provir da diversidade de identidades produzidas pela fragmentação. O posiciona-mento político pós-moderno que advoga a possibilidade/necessidade de construir outro mundo o faz negando as totalidades, as normas centralizadas – seja pelo partido ou sindicato – e afi rmando a diversi-dade de contestações, o despedaçamento e, nos casos mais radicais, a anarquia. Outro mundo é possível, desde que não seja construído a partir de uma identidade unifi cadora e totalizante.

Mas essa não é a única postura política possível a partir da de-fesa da condição pós-moderna. Além dessa postura radical – ainda que desprezando, também radicalmente, qualquer projeto emanci-patório mais geral, como o socialismo –, é possível também uma postura conservadora. Em que sentido? Ao negar qualquer forma de alternativa totalizante, assim como a primeira postura, e já que a realidade pós-moderna signifi ca a fragmentação, o máximo que

31 “Na expressão de suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece, dessa forma, fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar.” Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit. p. 315. Os autores conseguem, com isso, pensar a possibilidade de um comunismo elementar (quase lógico), espontâneo, natural, isto é, a-histórico! Isso sim é uma interpretação mecanicista e determinística da história!32 Marilena Chaui, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas sob o signo do neo-liberalismo (São Paulo, Cortez, 2005), p. 327.

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podemos fazer é resignar-nos, conformar-nos a essa condição. Essa postura política do pós-modernismo é extremamente con-servadora, pois equivale a aceitar que a evolução do capitalismo produziu uma situação tal que é impossível construir qualquer tipo de alternativa(s); é como se o capitalismo tivesse produzido o fi m da história33!

A negação do sujeito revolucionário unifi cado produz uma segunda consequência. Kohan a resume da seguinte forma:

Si fuese verdad que ya no hay sujetos34, entonces desaparecerían como por arte de magia toda alienación, todo aislamiento obligado, toda soledad impuesta, todo sufrimiento inducido, toda manipulación mediática, todo aplastamiento de las experiencias de rebeldía radical, toda represión de la cultura y la sexualidad, toda prohibición de la cooperación social, toda explotación y, por supuesto, todo fetichismo. ¿Qué resta entonces? Pues tan sólo [...] esquizofrenia, desorden lingüís-tico, descentramiento de la conciencia otorgadora de sentido y ruptura de la cadena signifi cante, predominio del espacio aplanado de la imagen por sobre el tiempo profundo de la historia sobre la cual se estructura la memoria y la identidad (individual y colectiva).35

Ou seja, segundo a forma pós-moderna de pensar, quando não há sujeito enquanto classe, não pode existir a consciência de classe, justamente porque esta última não faz mais sentido. Assim também, a luta de classes perde todo o sentido, pois é impossível uma luta entre algo que não existe mais, ou melhor, que perdeu qualquer unidade,

33 Essa dupla possibilidade de postura política a partir do pós-modernismo relaciona-se a “aquilo que Habermas denomina pós-modernismo anárquico (desconstrucionismo e relativismo em des-taque) e aquilo que ele chama de pós-modernismo conservador, a saber, que ambos despedem-se dos fundamentos autoconscientes da razão que caracterizam o espírito moderno em sua origem, o primeiro lamentando e o segundo aplaudindo a autonomia conseguida pela objetivação social desse espírito.” Cf. Leda Maria Paulani, Modernidade e discurso econômico (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 137. Sobre a tese neoliberal do “fi m da história” (globaritária, nos termos de Milton Santos), ver Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, cit.34 O autor deveria especifi car que não haveria dentro do pós-modernismo sujeitos do ponto de vista do marxismo tradicional, mas uma pulverização das diferentes possibilidades de contradições, ou seja, nesse sentido, não há sujeito, mas uma miríade de sujeitos específi cos e heterogêneos.35 Nestor Kohan, “Desafíos actuales de la teoría critica”, em Anais do II Encontro Nacional de Política Social – IV Seminário de Práticas em Serviço Social (Vitória, Universidade Federal do Espírito Santo, 2007), p. 4-5, disponível na internet em <http://www.lahaine.org/amauta/b2-img/nestor_desa.pdf>.

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esvaecida no processo de fragmentação e construção de microidenti-dades relacionadas a qualquer referente entendido como comum pelos sujeitos que delas fazem parte. Se é assim, que sentido pode ter uma proposta de classe, como o socialismo, se o seu sujeito não existe mais, ou está diluído nas mais diferentes formas de identifi cação dos sujeitos? A única postura política, em um mundo como esse, só pode ser a afi r-mação dessas novas identidades. A conclusão é que o pós-modernismo, pensando dessa forma, é contraditório com qualquer postulação e ação socialista. Renegar qualquer possibilidade de uma sociedade pós-capitalista, quando se nega a luta revolucionária pelo socialismo, por sua vez, é justamente uma forma de afi rmar o capitalismo. E isso por mais radical que seja o primeiro tipo de postura política, o que afi rma a construção de alternativas com base na diversidade de identidades. Outro mundo é possível, desde que não seja o socialismo36!

Pós-modernismo, capitalismo e socialismo: notas para uma conclusãoA negação pós-moderna da alternativa socialista – por mais que

alguns dos seus defensores procurem encobrir essa conclusão – leva ao tratamento da relação entre o pós-modernismo e a revolução, especifi camente a socialista. Por um lado, como visto, o pensamento pós-moderno rechaça qualquer tipo de revolução socialista. Por outro, o fracasso do “socialismo real” contribuiu para a ascensão e a hegemonia do pensamento pós-moderno. Isso porque esse fracasso atestaria o fato de que a proposta socialista não passaria de uma construção de outras formas de poder opressor e, o que é pior, uma repressão totalitária por forçar um igualitarismo entre os indivíduos, o que negaria as multiplicidades de identidades37.

36 Desconsidera-se, obviamente, qualquer validade alternativa para aquilo que Hardt e Negri chamaram de “comunismo espontâneo e elementar”.37 O que é indevido aqui é justamente a associação direta e linear que se faz das experiências do “socialismo real” com o socialismo enquanto projeto emancipatório. Que as experiências históricas tenham construído formas de opressão – distintas das formas do Ocidente capitalista – não se pode concluir que isso seja inerente a uma sociabilidade socialista. Esta última se caracterizaria, entre outras coisas, pelo fato de que as relações sociais seriam diretas e não intermediadas, seja pela troca de mercadorias (nas economias capitalistas), seja pela imposição de um Estado bu-rocratizado (experiências do “socialismo real”). Tal discussão, inclusive, leva ao questionamento do caráter socialista dessas experiências. As referências aqui são muitas, mas pode-se consultar, a título de ilustração, István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).

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De qualquer forma, note-se que não se trata de incluir o socialismo como uma das alternativas possíveis à (e em razão da) condição pós-moderna. Como visto, trata-se de negá-lo como uma das alternativas. Isso produz consequências importantes.

La negación del proyecto emancipatorio es, en defi nitiva, una cuestión central no solo teórica sino práctica, política, ya que descalifi ca la acción, y condena a la impotencia o al callejón sin salida de la desesperación al fundar – ahora sí – la inutilidad de todo intento de transformar radicalmen-te la sociedad presente. Y con este motivo el pensamiento posmoderno echa mano de otras negaciones como las de superación, historia, sujeto, progreso, novedad etc.38

O pós-modernismo nega o projeto emanci patório, o socialismo, justamente por que nega, além de qualquer interpretação (proposta) to-talizante, uma perspectiva verdadeiramente histórica para o ser humano, como se este não fosse o responsável pela criação das condições objeti-vas nas quais vive, inclusive a pós-moderna! No fi nal das contas, trata-se da afi rmação/defesa do presente, isto é, do capitalismo, já que

es, pues, propio del pensamiento posmoderno esta exaltación del presente y negación del futuro que, en verdad, es la conciliación con un presente, el nuestro, conciliación que es siempre la marca del conservadurismo39.

O pós-modernismo é, nesse sentido, uma expressão do pensamento conservador atual.

Negar tal impostura é negar a validade e legitimidade dos distintos movimentos sociais contestatórios? Não necessariamente. Esses con-testam distintas formas de opressão e exploração que dizem respeito também à lógica opressiva do capital. O que não se pode é confundir as distintas formas de manifestação dessa lógica com o seu conteúdo, este sim mais geral, totalizador e globalizante. Como afi rma Antunes, ainda que tratando especifi camente da questão do desemprego, o argumento pode ser facilmente extrapolado para outros campos de luta:

atribuir a elas [associações ou empresas solidárias] a possibilidade de, em se expandindo, substituir, alterar e, no limite, transformar o sistema global de capital parece-nos um equívoco enorme. Como mecanismo minimi-

38 Adolfo Sánchez Vázquez, “Posmodernidad, posmodernismo y socialismo”, Trabajo y Capital, Montevideo, n. 3, 1992, p. 86.39 Ibidem, p. 87.

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zador da barbárie do desemprego estrutural, elas cumprem uma efetiva (ainda que limitadíssima) parcela de ação. Porém, quando concebidas como um momento efetivo de transformação social em profundidade, elas acabam por converter-se em uma nova forma de mistifi cação que pretende, na hipótese mais generosa, “substituir” as formas de transfor-mação radical, profunda e totalizante da lógica societal por mecanismos mais palatáveis e parciais, de algum modo assimiláveis pelo capital. E, na sua versão mais branda e adequada à ordem pretendem em realidade evitar as transformações capazes de eliminar o capital.40

Dessa forma, os distintos movimentos sociais que se confron-tam, em maior ou menor grau, com a lógica do capital, em suas diferentes formas de manifestação, teriam dupla validade. Uma em si, defi nida pela luta nos seus próprios marcos específi cos (movi-mento ecológico, agrário, racial etc.), e outra para além de suas respectivas especifi cidades, dentro de uma luta mais geral contra o conteúdo da lógica do capital. O que o pós-modernismo faz é afi rmar e hipostasiar a primeira validade, como se as formas fossem distintos conteúdos em si. O que uma perspectiva verdadeiramente emancipatória e socialista requer é a aceitação dialética das duas validades. Existe uma autonomia relativa entre ambas, ainda que meramente, pois elas não fazem sentido isoladas, mas dentro de uma perspectiva que procure confrontar o capital em todos seus âmbitos, em sua lógica mais geral, e nas distintas formas em que esta se manifesta. O próprio Foucault, de quem a ideologia pós-moderna parece ter retirado muito de sua fundamentação, reco-nhece que as lutas fragmentadas, enquanto lutas contra o poder, fazem parte do processo revolucionário,

[...] evidentemente como aliado do proletariado, pois, se o poder se exerce como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista [...] as mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais iniciaram uma luta específi ca contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Essas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular.41

40 Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., p. 113-4.41 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 77-8.

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Mesmo rejeitando o marxismo – ou o que ele parece inferir como tal, a partir de um tipo específi co de marxismo vulgar – por ser uma fonte outra de poder totalizante, Foucault também conclui que as distintas formas de lutas fragmentadas não parecem ter sentido se consideradas apenas enquanto fragmentos, mas unicamente enquanto elementos de um processo revolucionário maior. Foucault parece, aqui, ser muito menos pós-moderno do que os seus “discípulos” gostariam.

Existe, porém, um cuidado adicional a ser tomado. Não é porque se aceita que as lutas dos movimentos sociais apresentam essa dupla validade que se pode outorgar o mesmo nível de importância, teórica e política, para os dois. Fazer isso seria pensar que o conteúdo e suas distintas formas de manifestação possuem idêntico status categorial e/ ou que se encontram em igual nível de abstração. Nem todas as lutas frag-mentadas têm potencialidade antissistêmica, apesar do fato de que as diferentes contestações devem fazer parte do projeto emancipatório.

Precisamente por esto, dentro de la alianza hegemónica de fuerzas poten-cialmente anticapitalistas, aunque todas las rebeldías contra la opresión tienen su lugar y su trinchera, el sujeto social colectivo que lucha contra la dominación de clase debe jugar un papel aglutinador de la única lucha que posee la propiedad de ser totalmente generalizable.42

A contradição fundamental do capitalismo, qualquer que seja a sua forma de manifestação histórica, e quaisquer que sejam as con-tradições adicionais que ele crie, continua sendo aquela expressa na própria fundação do capital, a distinta posição que existe na compra da força de trabalho entre os que vendem para comprar e, portanto, vivem do fruto de seu trabalho, e os que compram para vender, vivendo do fruto do trabalho alheio.

Dessa forma, por mais que as lutas fragmentadas tenham sua va-lidade em si, a exploração de classe – confi gurada pela contradição fundamental do capitalismo – tem uma condição histórica diferente, tem uma prioridade constitutiva na luta maior contra o capital e na construção de uma alternativa real, para além da lógica do conteúdo do capital, para o socialismo.

42 Nestor Kohan, “Desafi os actuales de la teoria critica”, cit., p. 25-6.

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