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  • 7/29/2019 Pesquisa: UM RETRATO DA REINSERO NA SOCIEDADE DE PESSOAS QUE J PASSARAM POR SITUAO DE RUA

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    CENTRO DE COMUNICAO E LETRAS

    COMUNICAO SOCIAL HABILITAO EM JORNALISMO

    ANA ROSAS ALKMIM

    CARINA DINIZ DE LIMA

    FLVIA ALVES DA COSTA

    UM RETRATO DA REINSERO NA SOCIEDADE DE PESSOAS

    QUE J PASSARAM POR SITUAO DE RUA

    LIVRO-REPORTAGEM: CAMINHOS

    So Paulo

    2011

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    CENTRO DE COMUNICAO E LETRAS

    COMUNICAO SOCIAL HABILITAO EM JORNALISMO

    ANA ROSAS ALKMIM

    CARINA DINIZ DE LIMA

    FLVIA ALVES DA COSTA

    UM RETRATO DA REINSERO NA SOCIEDADE DE PESSOAS

    QUE J PASSARAM POR SITUAO DE RUA

    LIVRO-REPORTAGEM: CAMINHOS

    Trabalho de Graduao Interdisciplinarapresentado ao Centro de Comunicao eLetras da Universidade PresbiterianaMackenzie como requisito final para aobteno do grau de Bacharel emComunicao Social Habilitao emJornalismo

    PROFESSOR ORIENTADOR: Ms. Andr Cioli Santoro

    PROFESSORA DE TGI I: Ms. Mrcia Detoni

    PROFESSORA DE TGI II: Ms. Lenize Villaa Cardoso

    So Paulo

    2011

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    DEDICATRIA

    Aos nossos pais, irmos, namorados e

    amigos pelo incentivo e apoio em todos

    os momentos.

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    AGRADECIMENTOS

    minha famlia - Renata Srgio e Miguel - pela ateno e carinho no

    acompanhamento deste trabalho e pelo eterno apoio as minhas decises. s minhas

    amigas, Martha e Letcia, pelo companheirismo no desenvolvimento de projetos

    sociais, experincia esta que me inspirou muito na explorao do tema escolhido

    para este trabalho. Ao Eduardo, meu namorado, pela pacincia, leveza e alegria

    durante este ano de trabalho.

    Ana Alkmim

    A Deus pela vida, graa e bondade de todos os dias. minha famlia,

    Evanildo, Maria, Danilo e Elaine, por inmeras demonstraes de amor, cuidado e

    incentivo aos estudos sempre. Ao meu namorado, Marcos, pela dedicao,

    companhia e interesse em todos os estgios deste trabalho.

    Carina Diniz

    A Deus por sempre me guiar. Aos meus amados pais, Flvio e Iris, fonte defora, determinao e amor incansvel. irm, Letcia, o sopro de alegria da minha

    vida. Ao meu namorado, Fernando, por todo companheirismo, carinho e pacincia. A

    toda minha (grande) famlia, por ser meu porto-seguro. E, finalmente, s minhas

    colegas de projeto, pela amizade, confiana e momentos compartilhados.

    Flvia Costa

    amiga Mariana Exposito, que muito nos ajudou a pensar sobre o tema destetrabalho. Ao prestativo mestre e orientador Andr Santoro, pela dedicao em todas

    as etapas da produo deste trabalho. Aos assistentes sociais Ozeas Alexandria e

    Rosana Fernandez, que colaboraram na escolha dos personagens do livro. Aos

    personagens dos perfis, pela disposio que tiveram em revelar suas trajetrias de

    vida. Ao mestre Renato Essenfelder, que atendeu ao convite para ser o autor do

    texto de orelha do nosso livro e pelas palavras de incentivo. Ao Ilustrador Eduardo

    Barcellos, que com prontido criou as ilustraes e Adriana Santana Ruiz e Evelyn

    Fligeri, que realizaram a reviso do nosso livro.

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    EPGRAFE

    Para buscar a verdade, nada mais temos

    que as palavras. Mas as palavras so

    falhas, insuficientes, imprestveis. O real

    no cabe nas palavras: ele transborda,

    escorre, o principal sempre se perde. No

    entanto, com o que mais podemos contar,

    ns, seres de linguagem? Este resto a

    que chamamos de realidade tudo o que

    temos para viver (Jos Castello).

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    RESUMO

    Esta pesquisa aborda as mudanas da narrativa no jornalismo ao longo dos anos e asua funo na sociedade, tendo como foco a humanizao da reportagemobservada na prtica de dar voz a pessoas annimas. Apresenta e analisa ascaractersticas e possibilidades do livro-reportagem, jornalismo literrio e perfil nabusca por aprofundamento e contextualizao dos fatos. Verifica o contexto atualdas pessoas em situao de rua da cidade de So Paulo, bem como as polticaspblicas de atendimento a essa populao. Conclui apontando uma maneira deretratar exemplos de vida e superao de pessoas que j passaram pela situao derua.

    Palavras-chave: Livro-reportagem. Jornalismo Literrio. Perfil. Pessoas em situaode rua.

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    ABSTRACT

    This research discusses the changes of narrative in journalism over the years and itsfunction in society, focusing on the humanization of reportage observed in thepractice of giving voice to anonymous people. Presents and analyzes the featuresand possibilities of book-report, literary journalism, and profiles in the search fordeepining and contextualization of the facts. Verifies the current context of homelesspeople from the city of So Paulo, as well as the public policies that attends thispopulation. Concludes by pointing a manner to depict examples of life andovercoming of people who have already passed through the streets.

    Keywords: Book-Report. Literary Journalism. Profile. Homeless people.

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    SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................. 8

    2 REFERENCIAL TERICO ............................................................................. 13

    2.1 JORNALISMO LITERRIO ............................................................................ 13

    2.2 PERFIL: HUMANIZAO DA REPORTAGEM .............................................. 18

    2.2.1 Construo do personagem ........................................................................... 23

    2.3 JORNALISMO E SUA FUNO SOCIAL ...................................................... 24

    2.4 O LIVRO-REPORTAGEM COMO VECULO DE COMUNICAO

    JORNALSTICA .............................................................................................. 272.5 CONTEXTO ATUAL DAS PESSOAS EM SITUAO DE RUA .................... 32

    2.5.1 Polticas Pblicas da cidade de So Paulo .................................................... 36

    3 APRESENTAO DA PEA FINAL ............................................................. 39

    3.1 CONCEPO ................................................................................................ 39

    3.2 EXECUO ................................................................................................... 43

    3.3 FINALIZAO ................................................................................................ 45

    4 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................... 485 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................. 49

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    1 INTRODUO

    O jornalismo realizado hoje resultado de diversas modificaes que

    aconteceram ao longo da histria. A inveno dos tipos mveis e o aperfeioamento

    da prensa por Gutenberg no sculo XV um dos marcos na histria da imprensa. Tal

    criao facilitou a reproduo da informao, expandindo o conhecimento a todos, o

    que ia contra os interesses da autoridade estatal da poca, que buscava controlar o

    saber (MCLUHAN, 1962).

    Sculos mais tarde, outro momento da histria aponta mudanas significativaspara a histria da imprensa. A trajetria da opinio pblica estudada por Habermas

    que, segundo ele, antes era resultado do debate entre as autoridades detentoras do

    poder, com a ascenso da burguesia passou a ser discutida de maneira

    descentralizada (HABERMAS, 1984). No sculo XVIII, a imprensa passa a publicar

    notcias como porta-voz e condutora da opinio pblica resultante do debate de

    questes polticas e sociais entre burgueses. Neste cenrio, regulamentaes das

    autoridades foravam a imprensa a atuar como uma empresa sujeita a interdies eproibies polticas (HABERMAS, 1984).

    J no sculo XIX a imprensa sofreu mudanas no seu sistema de informao.

    Segundo Habermas, a venda de espaos para anncios nos jornais se torna uma

    prtica comum, assim como a transferncia de interesses privados esfera pblica.

    Num perodo em que as cidades estavam em contnuo crescimento e a esfera

    pblica em declnio, a imprensa abandonou sua posio polmica e passou a atuar

    como uma empresa que tambm se preocupa com o seu sustento financeiro.(HABERMAS, 1984). Para o autor, com a comercializao da imprensa a notcia se

    tornou manipulvel pelas leis do mercado.

    [...] o jornal acaba entrando numa situao em que ele evolui paraum empreendimento capitalista, caindo no campo de interessesestranhos empresa jornalstica e que procuram influenci-la. Desdeque a venda da parte redacional est em correlao com a venda daparte dos anncios, a imprensa, que at ento fora instituio depessoas privadas enquanto pblico, torna-se instituio dedeterminados membros do pblico enquanto pessoas privadas, ouseja, prtico de entrada de privilegiados interesses privados naesfera pblica (HABERMAS, 1984, p.217).

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    Outros fatos que motivaram as mudanas no jornalismo foram os

    aprimoramentos do telgrafo entre o sculo XVIII e meados do sculo XIX, em que

    para a transmisso das informaes os textos passaram a ser breves e objetivos,originando no final do sculo XIX o que ficou conhecido como lead. Um padro de

    jornalismo informativo comea se estabelecer a fim de tornar o texto mais objetivo,

    neutro, imparcial, deixando de lado as opinies e ideologias. A teoria da pirmide

    invertida padronizou o texto, as informaes mais importantes de um fato, tais como,

    o que, como, onde e por qu passaram a ser apresentadas logo no incio do texto,

    prtica comum at hoje.

    dos primeiros 30 anos do sculo XIX na Inglaterra, Frana eEstados Unidos a passagem da imprensa politizante para umaimprensa comercializada. A partir de ento, a objetividade, oumelhor, aquilo que mais tarde ganharia o nome de objetividade,passa a se identificar com uma mistura de estilo direto,imparcialidade, fatualidade, iseno, neutralidade, distanciamento,alheamento em relao a valores e ideologia (AMARAL, 1996, p.26).

    Nessa procura pela iseno do jornalista na notcia, Traquina (2001) aponta a

    importncia das agncias de notcias no sculo XIX, que enviavam as notcias doexterior para a mdia local alargando o conhecimento a respeito do mundo e

    trazendo a ideia do imediatismo. Mais para frente, no incio do sculo XX, tambm

    modificaram o jornalismo as primeiras discusses sobre um cdigo de tica para a

    profisso, com padres, regras de boa conduta e princpios que levaram a existncia

    de uma cultura prpria do jornalismo (TRAQUINA, 2001).

    O jornalismo do incio do sculo XX, influenciado pelo pensamento racional,

    acreditava que a notcia poderia ser o espelho da realidade. Numa busca pela

    verdade dos fatos, credibilidade e fuga do jornalismo tendencioso da poca o termo

    objetividade se tornou comum (NICOLATO, 2006). Mas, as discusses a respeito

    dessa prtica jornalstica tambm se tornaram comuns, como afirma Traquina.

    As notcias so o resultado de processos complexos de interaosocial entre agentes sociais: os jornalistas e as fontes de informao;os jornalistas e a sociedade; os membros da comunidadeprofissional, dentro e fora de sua organizao (TRAQUINA, 2001,

    p.85).

    Segundo Traquina (2001), o processo de produo da notcia passa por

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    diversas variveis. A produo envolve escolha das fontes, das informaes mais

    relevantes, da angulao, das palavras e para isso conta com a participao do

    reprter e toda a sua equipe com seus contextos sociais e ideologias. A objetividade

    da notcia se torna um paradigma e a ideia de espelho da realidade substituda

    pela ideia de construo da realidade.

    Com uma narrativa que se ope a esse jornalismo convencional, o jornalismo

    literrio ganhou fora nas dcadas de 50 e 60 nas redaes dos grandes jornais

    americanos. Uma especializao jornalstica que utiliza as tcnicas e linguagem

    literria para relatar os fatos preservando a apurao e veracidade, tambm

    conhecido como literatura no ficcional ou literatura da realidade, o jornalismo

    literrio foi oficializado com o ensaio de Tom Wolfe, em 1973, intitulado The New

    Journalism. Wolfe constatou que alguns escritores j vinham deixando de lado a

    pirmide invertida e a urgncia, abrindo espao para a pirmide normal e a

    contextualizao dos fatos.

    No se trata apenas de fugir das amarras da redao ou de exercitara veia literria em um livro-reportagem. O conceito muito maisamplo. Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassaros limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar vises amplas

    da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntesburocrticas do lide - a famosa frmula objetiva que prega anecessidade de o texto jornalstico responder s principais perguntasda reportagem ainda no primeiro pargrafo -, evitar os definidoresprimrios e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aosrelatos (PENA, s/d., p.6-7).

    Tal prtica jornalstica passou a ser publicada em maior nmero em livros por

    editoras como a Companhia das Letras. No Brasil tambm possvel encontrar em

    algumas revistas, alguns programas televisivos e sites. Sobre essa falta de espao

    na grande mdia, em entrevista a Lima, Medina afirma que

    o espao nos meios jornalsticos impressos e eletrnicos vale muitoem relao quilo que subsidia a informao social, que o espaopublicitrio. Valendo-se desse argumento, as empresas jornalsticasapertam ao mximo o espao da informao social, afunilando-o(LIMA, 2009, p.33).

    Este trabalho estuda o jornalismo literrio como prtica que possibilita a

    produo de narrativas ricas tanto no formato como na profundidade do tema, alm

    de dar espao abordagens de temas atemporais. Junto a isso, este trabalho

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    estuda as caratersticas do formato livro-reportagem como meio para a prtica do

    jornalismo literrio. Para Lima, tal formato proveniente da grande reportagem e

    tambm procura aprofundamento nos temas abordados dando ao leitor uma

    compreenso amplificada.

    [...] o livro-reportagem, agora, como no passado, muitas vezes frutoda inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com profundidade, eno encontra espao para faz-lo no seu mbito regular de trabalho,na imprensa cotidiana. Ou fruto disso e (ou) de uma outrainquietude: a de procurar realizar um trabalho que lhe permita utilizartodo o seu potencial de construtor de narrativas da realidade (LIMA,2009, p.34).

    Tendo como base a profundidade do tema, outro ponto estudado neste

    trabalho e apontado por Medina ao analisar o jornalismo convencional a prioridade

    que se d a determinadas fontes e excluir outras, deixando de lado, assim, a

    oportunidade de retratar histrias interessantes que despertam identificaes por

    parte do pblico. Os atuais meios de divulgao acentuam a incomunicao [...]

    Estamos longe da rede de comunicao em que se resgate a presena da pessoa,

    se abram canais para os testemunhos annimos. O dilogo democrtico; o

    monlogo autoritrio (MEDINA, 2008, p.7).

    Medina, nos diferentes livros utilizados neste trabalho, defende o dilogo

    democrtico exercido pelo jornalismo quando ouve e d voz a pessoas annimas.

    Partindo desse conceito, nossa pea jornalstica um livro que aborda trs histrias

    de pessoas que j passaram pela situao de rua tendo como foco as pessoas. O

    livro resultado da prtica de ouvir os entrevistados, evidenciando a capacidade

    humana de viver superaes, bem como a construo da narrativa a partir da

    interao reprter-entrevistado. Para a produo do livro, este trabalho tambm composto por uma pesquisa sobre o contexto recente de pessoas em situao de

    rua da cidade de So Paulo. A partir de Censos desenvolvidos pela Fundao

    Instituto de Pesquisas Econmicas (FIPE), polticas pblicas voltadas para essa

    populao e dissertaes acadmicas a respeito do tema.

    O formato da narrativa escolhido foi o perfil, visto que, segundo autores como

    Lima (2009) e Vilas Boas (2003), seu foco est em contar histrias de vida que

    podem representar determinado grupo social. A pea jornalstica realiza umjornalismo mais humano que abre espao para novas fontes, que d voz pessoas

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    pouco ouvidas, valorizando a funo social do papel do jornalista e acreditando que

    o leitor tambm busca ler textos diferentes e menos engessados que os

    apresentados no jornalismo convencional.

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    2 REFERENCIAL TERICO

    2.1 JORNALISMO LITERRIO

    A data do surgimento do jornalismo literrio ainda um assunto controverso.

    Alguns autores preferem datar seu surgimento juntamente com o movimento do new

    journalism, por volta do final da dcada de 50, enquanto outros preferem traar a

    ligao entre jornalismo e literatura muito antes, com o advento da imprensa,

    alegando que ambos nunca estiveram separados. De qualquer forma h certaconcordncia de que a ligao definitiva entre ambos foi gerada por volta do sculo

    XVIII, com o surgimento de revistas culturais na Europa.

    Em ajustada sntese, Francisco Gutirrez Carbajo (1999:23) indica: Arelao entre literatura e jornalismo conhece um primeiro momentode esplendor com a apario das revistas culturais do sculo XVIII,estreita-se ao longo do sculo XIX e constitui um dos captulosfundamentais da cultura do sculo XX (MEDEL In CASTRO;

    GALENO, 2002, p.16).

    Felipe Pena ainda mais objetivo e diz que o jornalismo literrio desponta no

    sc. XVIII, com Daniel Defoe que, numa srie de reportagens policiais feitas a partir

    de 1725, passa a utilizar artifcios literrios em seu trabalho como jornalista (PENA

    apud FONTANA, 2006, p.326). Logo, a partir deste momento, especialmente na

    Europa, que comea a se traar uma ligao entre jornalismo e literatura, que pode

    ser explicada pela presena dos escritores de prestgio nos jornais, quando o

    espao pblico est em alta.

    Estamos falando justamente dos sculos XVIII e XIX, quandoescritores de prestgio tomaram conta dos jornais e descobriram afora do novo espao pblico. No s comandando as redaes,mas, principalmente, determinando a linguagem e o contedo dosjornais. E um de seus principais instrumentos foi o folhetim, um estilodiscursivo que a marca fundamental da confluncia entrejornalismo e literatura (PENA, s/d, p.5).

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    Neste perodo, inclusive no Brasil, diversos autores fizeram sucesso com os

    folhetins, entre eles grandes nomes da literatura brasileira como Machado de Assis,

    Jos de Alencar e Manuel Antnio de Almeida.

    Mas nos Estados Unidos, mais precisamente em 1946, que o jornalismo

    literrio alcana notoriedade. Hiroshima, de John Hersey, ocupando uma edio

    inteira da revista The New Yorker, em 1946, se estabelece como marco do

    jornalismo literrio. (FONTANA, 2006, p.327). A histria sobre a vida de seis

    sobreviventes da bomba nuclear que devastou o territrio japons contada por

    meio de um discurso em parte literrio e em parte jornalstico, adotando a

    perspectiva humana de cada uma das vtimas. Este estilo pioneiro elaborado por

    Hersey marcaria a produo jornalstica e viria a influenciar muitos autores hojerenomados na rea, tais como Truman Capote, Gay Talese e Tom Wolfe.

    Porm, este novo territrio jornalstico no foi prontamente aceito pelos

    crticos da poca.

    A iluso de fico criada por esta nova forma de se fazer jornalismodeu margem para a crtica mais conservadora que, entre outrascoisas, acusou este novo gnero, ou sub-gnero, de ser

    impressionista e muitos lanaram um olhar de desconfiana realidade narrada (FONTANA, 2006, p.328).

    Mais adiante, ainda nos Estados Unidos, no meio da Guerra Fria da dcada

    de 60, Tom Wolfe viria a chamar o movimento de new journalism, o qual ele mesmo

    classificaria como um jornalismo mais audacioso e inovador.

    O que me interessava no era simplesmente a descoberta dapossibilidade de escrever no-fico apurada com tcnicas em geral

    associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era adescoberta de que era possvel na no-fico, no jornalismo, usarqualquer recurso literrio, dos dialogismos tradicionais do ensaio aofluxo de conscincia, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo,ou dentro de um espao relativamente curto [...] para excitar tantointelectual como emocionalmente o leitor (WOLFE, 2005, p.28).

    A classificao do termo jornalismo literrio ainda palco para diversos

    tericos e estudiosos do assunto. Segundo Pena, a definio e classificao deste

    tema sempre geradora de discusses, uma vez que parte da juno de dois

    discursos diferentes, sendo eles o jornalismo e a literatura.

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    Ao longo da histria, vrios tericos tentaram definir essa junocomo um gnero especfico. Entretanto, se o princpio bsico o datransformao e da transitoriedade, a misso torna-se impossvel.Ento, a nica alternativa propor uma aproximao conceitual,identificando subdivises possveis de acordo com o momentohistrico. (PENA, s/d, p.13).

    Ainda a respeito da diviso de gneros, o autor afirma que a linha que separa

    o que jornalismo literrio de outras vertentes, como novo jornalismo e fico

    jornalstica muito tnue e que ele prprio os classifica como subgneros.

    H ainda os que identificam o conceito com o movimento conhecido

    como new journalism, iniciado nas redaes americanas da dcadade 1960. E tambm os que incluem as biografias, os romances-reportagem e a fico jornalstica. Eu considero todas as opesacima. Mas trato- as como subgneros do jornalismo literrio (PENA,s/d, p.14, grifo do autor).

    O Brasil tambm foi influenciado por este movimento, e quando falamos deste

    momento na histria do jornalismo no pas no podemos deixar de citar dois

    importantes veculos que marcaram o gnero literrio, utilizando-se de textos

    extensos, que, segundo Faro (1999) so construdos com a adoo de elementosficcionais, sem perder a veracidade de suas informaes.

    O new journalismresgataria, para essa ltima metade do sculo XX,a tradio do jornalismo literrio e conduzi-lo-ia a uma cirurgiaplstica renovadora sem precedentes. Mesmo no Brasil, possvelconjeturar que o novo jornalismoamericano tenha influenciado doisveculos lanados em 1966 portanto no auge da produo dosnovos jornalistas americanos [...] a revista Realidade, consideradaa nossa grande escola da reportagem moderna, e o Jornal da Tarde(LIMA, 2009, p.191, grifos do autor).

    Neste ponto j se faz necessria uma denominao clara do que viria a ser o

    jornalismo literrio. Esta vertente jornalstica marcada pelo aprofundamento de um

    tema e pela ausncia de caractersticas padro do jornalismo convencional, tais

    como o leade a objetividade.

    Afinal, o que jornalismo literrio? No se trata apenas de fugir das

    amarras da redao ou de exercitar a veia literria em um livro-reportagem. O conceito muito mais amplo. Significa potencializaros recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentoscotidianos, proporcionar vises amplas da realidade, exercer

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    plenamente a cidadania, romper as correntes burocrticas do lide,evitar os definidores primrios e, principalmente, garantir perenidadee profundidade aos relatos (PENA, s/d, p.7).

    A subjetividade , inclusive, um dos pontos mais importantes quando falamosde jornalismo literrio, uma vez que vai contra um dos preceitos primordiais do

    jornalismo convencional, que a objetividade. Porm, com o passar dos anos,

    diversos estudiosos da comunicao chegaram concluso de que a objetividade

    simples e direta, a verdade como espelho, no ocorre de fato, uma vez que a prpria

    escolha das palavras j um fator subjetivo do jornalista.

    H subjetividade em todas as fases do seu trabalho na corrida diriapela notcia: na determinao da pauta, na maneira como v osfatos, na escolha dos testemunhos, na redao da matria (tem queoptar pelo que lhe parece mais importante para o lead e menosimportante para o fim) (AMARAL, 1996, p.51).

    Sendo assim, podemos dizer que a objetividade deixa de ser uma

    preocupao no jornalismo literrio. Nele, o autor ganha a liberdade de colocar sua

    impresso no texto, assim como descrio psicolgica dos personagens,

    ambientao do fato narrado, maior uso da oralidade e grande caracterizao dospersonagens, como vemos neste trecho, de Joseph Mitchell.

    Ele veste roupas usadas que ganha dos amigos. O capote, o terno, acamisa e at os sapatos invariavelmente so grande demais, pormele os usa com uma espcie de garbo desolado. Olhe s para mim,costuma dizer. A nica coisa que me serve direitinho a gravata.Nos dias mais terrveis do inverno, procura proteger-se do friocolocando algumas folhas de jornal entre a camisa e a camiseta.Sou esnobe: s uso oTimes, diz ele. Para cobrir a cabea gosta de

    peas incomuns gorro de esquiador, boina, bon de marinheiro.Numa noite de vero apareceu numa festa com um terno deanarruga, camisa plo, faixa escarlate, sandlias e bon demarinheiro tudo doado. Tem uma piteira preta e comprida e em boaparte do tempo fuma guimbas que cata nas caladas (MITCHELL,2003, p.12-13).

    Alceu Amoroso Lima, em O Jornalismo como Gnero Literrio, publicado em

    1969, ao dar nfase personalidade do jornalista, afirma que o estilo de cada um

    o seu prprio guia.

    Se o estilo comum do jornalismo exige certas condies intrnsecas e

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    rigorosas, j o estilo prprio admite, como sempre, a mximaliberdade [...] Essa caracterstica do estilo prprio passa ento a serprpria afirmao da personalidade, aquilo que faz com que umjornalista seja diferente do outro e constitua o seu mundo parte, oseu estilo prprio [...] Se o jornalista, preocupado demais com o estilocomum da profisso, deixar na sombra o seu estilo prprio, terfalhado (LIMA, 1969, p.59-60).

    O jornalismo literrio permanece seguindo as leis jornalsticas, como a

    atualidade e verdade, mas foge do jornalismo padro quando se vale da

    subjetividade ao invs da objetividade. A literatura pode ensinar algo ao jornalismo.

    Em primeiro lugar, a cuidar da forma, a escrever e reescrever. Tambm ensina a

    privilegiar a imaginao mas no demais: realidade realidade, fico fico

    (SCLIAR In CASTRO; GALENO, 2002, p.14).

    Em Jornalismo e literatura:a seduo da palavra os autores organizadores

    do livro, Castro e Galeno, afirmam no prefcio que relacionar os recursos do

    jornalismo e da literatura uma maneira de melhor desvendar o mundo e dar a ele

    sentido. Mas, tal associao enfrenta o obstculo da falta de interesse das Escolas

    de Comunicao em estudar o gnero jornalismo literrio. Com isso, a reportagem,

    a crnica, o perfil, o relato ou a simples matria, aparecem repletas de carncias

    estticas, atravs de uma prosa sem brilho, fria, opaca e pouco emotiva (CASTRO;

    GALENO, 2002, p.9-10).

    Dentre as semelhanas, os autores destacam que escritores e jornalistas

    participam do mesmo universo: o da narrao, pois uma das suas principais

    atividades est em contar e escrever histrias. A aproximao do jornalismo e da

    literatura tambm se d porque ambos sobrevivem do mesmo meio, que a palavra

    e do mesmo fim, que a conquista de leitores (ARAJO In CASTRO; GALENO,

    2002).Para os autores, a relao que existe entre jornalismo e literatura como uma

    contaminao em que no h fronteiras e, sim, um territrio de trnsito, espao de

    contato, lugar se suspenso e negociao de identidades (COSSON In CASTRO;

    GALENO, 2002, p.70).

    Jornalismo e literatura so interdependentes [...] O leitor atual dejornais j no se contenta com o dilogo apressado e superficial

    isso ele pode ter ligado a TV e so cada vez maiores as influnciasdo jornalismo sobre a literatura. Aceitar essa aproximao, fazer delauma via de mo dupla, poder levar a sadas para a crise atual em

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    que se debate o jornalismo (PEIXOTO In CASTRO; GALENO, 2002,p.124).

    2.2 PERFIL: HUMANIZAO DA REPORTAGEM

    Lima (2009) destaca a obra Os Sertes de Euclides da Cunha do final do

    sculo XIX como a pioneira no exerccio da apurao de flego no Brasil. O autor

    afirma que ao retratar do serto baiano para o restante do Brasil a Guerra de

    Canudos, Euclides da Cunha marcou a histria do jornalismo e da literatura no pas.

    Anos mais tarde, em 1920, na The New Yorkeros jornalistas escreviam reportagens

    mais humanas, inclusive no formato de perfis, mas foi na dcada de 1930 que os

    jornais e revistas comearam a dar mais espao para essa prtica.

    No Brasil, a Revista Realidade como tambm O Cruzeiro valorizavam este

    tipo de jornalismo. Na produo da reportagem, os jornalistas podiam gastar dias

    com as fontes. Estava em primeiro plano acompanhar as cenas pessoalmente para

    ento, captar conversas, gestos, expresses faciais e detalhes do ambiente. Na

    narrativa era possvel retratar os bastidores da reportagem, as impresses pessoais

    do autor sobre o personagem, usar dilogos e escrever em primeira pessoa. (VILAS

    BOAS, 2003).

    Mas, tal prtica teve seu declnio com o Ato Institucional nmero 5, usado pelo

    governo para, dentre outras coisas, aumentar o controle dos assuntos que podiam

    ou no ser veiculados.

    De fato, ainda que vigente desde 1964, a ditadura militar brasileira sviria a revelar o seu lado mais repressor na passagem da dcada de1960 para a de 1970, com o Ato Institucional n. 5, que lhe concediapoderes ilimitados. Disposta a esmagar seus opositores, a ditaduraempregou esses poderes para realizar uma verdadeira devassa naproduo cultural brasileira, com a priso e o exlio de artistas eintelectuais e a censura agindo de forma praticamente absoluta nosmeios de comunicao de massa (COSSON In CASTRO; GALENO,2002 p.61).

    Vilas Boas em Perfis, publicado em 2003, levanta algumas caractersticas

    dos textos da Revista Realidade que so importantes para identificar um perfil. So

    elas: a imerso do reprter no processo de captao, jornalistas autores e

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    personagens da reportagem, nfase em detalhes e no em dados, descrio do

    cotidiano, valorizao dos detalhes fsicos e das atitudes do personagem. Segundo o

    autor, o perfil uma obra autoral que sem a narrativa literria no cumpre o seu

    papel de gerar empatias.

    Os processos de criao so multidimensionais. Neles, combinam-sememria, conhecimento, imaginao, sntese e sentimentos, cincoelementos imprescindveis ao trabalho autoral. A narrativa de umperfil no pode prescindir de todos os conceitos e tcnicas dereportagem conhecidos, alm de recursos literrios e outros. Mas elatambm est atada ao sentimento de quem participa (VILAS BOAS,2003, p.14).

    Atualmente, as condies de trabalho do jornalista e muitas vezes a sua

    disposio no contribuem para a construo de perfis. O uso da primeira pessoa,

    por exemplo, s permitido em colunas opinativas. Creio que uma maneira

    utpica - e intransigente - de pretender que o narrador inexista. E de querer

    padronizar (VILAS BOAS, 2003, p.10).

    O jornalismo convencional da nossa poca visto por Vilas Boas como frio.

    Internamente, a mdia impressa no tem conseguido enxergar as vrias alternativas

    disponveis para oxigenar suas prticas (VILAS BOAS, 2003, p. 12). Geralmente, os

    jornalistas trabalham o perfil por conta prpria, ou seja, sem vnculo com algum

    veculo de comunicao.

    A maneira mais abrangente de definir o perfil dizer que ele se delimita a

    contar histrias de vida. Est intrnseco ao perfil a humanizao da reportagem, visto

    que o foco deste gnero est nas pessoas, sejam elas pblicas ou annimas. Como

    consequncia, a importncia da reportagem est na vida do personagem, sua

    trajetria, seus altos e baixos, suas realizaes (VILAS BOAS, 2003, p.11) que, dealguma forma se tornaram interessantes ou, at mesmo representa, por suas

    caractersticas e circunstncias de vida um determinado grupo social, passando

    como que a personificar a realidade do grupo em questo (LIMA, 2009, p.52).

    As pessoas ao serem retratadas num perfil ganham uma nova posio: a de

    personagens da histria de uma sociedade. Alguns aspectos da vida desta pessoa

    so destacados no texto de maneira que ela se torna representante de uma

    realidade social.A partir do estilo de apurao e narrativa do escritor e jornalista Joseph

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    Mitchell podemos extrair algumas prticas essenciais para um perfil. No posfcio de

    O segredo de Joe Gould de Mitchell, Joo Moreira Salles destaca algumas

    caractersticas que diferenciam Mitchell, dentre elas a escolha de pequenos temas, o

    exerccio da observao e o entrevistador disposto a ouvir.

    Para Salles, Mitchell inventou uma nova categoria para o jornalismo literrio: o

    pequeno tema, ressaltando que o pequeno tema no significa pequeno personagem.

    Pouca gente destinaria tempo a um pica-pau empenhado em bicaruma rvore. Alguns tantos segundos, sim; alguns minutos, talvez;duas horas, no. Primeiro porque isso exige disciplina e pacincia[...] Depois, porque um pica-pau bicando uma rvore no chega a serum assunto danado de interessante. O segredo da escrita de Joseph

    Mitchell reside precisamente em contradizer essas duas afirmaes.Contradiz a primeira revelando uma capacidade incomum de terpacincia, dom que se traduzir numa obra construda em torno daescuta atenta e constante. Contradiz a segunda demonstrando que,quando se tem pacincia, o que parece banal um pica-pau bicandoum tronco pode ser extraordinrio um pica-pau derrubando umarvore (SALLES In MITCHELL, 2003, p.140).

    Ele afirma tambm que a observao minuciosa do mundo material uma

    estratgia literria que Mitchell sabia usar muito bem. Ambas as caractersticas so

    apresentadas como no frequentes na prtica jornalstica.

    Mitchell um recenseador, um observador. Nesse sentido, seujornalismo o inverso da veneranda e heroica tradio do jornalismoinvestigativo, no qual o trabalho de apurao busca descobrir o queest guardado a sete chaves. Mitchell, ao contrrio, escreve sobre oque est diante dos olhos de todos, mas sem que ningum prestemuita ateno (SALLES In MITCHELL, 2003, p.150-151).

    Segundo Salles, todos aqueles que j escreveram sobre Mitchell destacaram

    sua habilidade como entrevistador, mas no um entrevistador que estava procura

    de respostas exatas e, sim, que estava disposto a ouvir. Mitchell afirmava que a

    melhor conversa sem arte, sem clculo (SALLESIn MITCHELL, 2003, p.151).

    Os perfis reunidos em O Livro das Vidas Obiturios do New York Times,

    organizado por Matinas Suzuki Jnior, publicado em 2008, apesar de elaborados por

    diversos autores tm um formato bem parecido. Com poucas excees, os

    pequenos perfis o maior perfil tem nove pginas se iniciam da mesma maneira:

    apresentando os principais fatos da vida da pessoa retratada antes da sua morte. O

    perfil logo abaixo, escrito por Robert D. McFadden em 8 de agosto de 1994, um

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    exemplo.

    Benny Ong, imigrante nascido na Manchria que emergiu das lutasno submundo de Nova York para se tornar, segundo as autoridades,o lder do mais poderoso grupo do crime organizado de Chinatownnas duas ltimas dcadas, morreu aos 87 anos no New YorkDowntown Hospital (MCFADDEN In SUZUKI JNIOR, 2008, p.78).

    Da mesma forma, no final dos perfis, os autores relatam os parentes que o

    perfilado deixa aps sua morte, como esposo (a), filhos (as), irmos (s).

    Mesmo com os poucos pargrafos destinados a contar resumidamente a

    trajetria de vida do perfilado, estes so bem caracterizados, sendo possvel,

    durante e aps a leitura, imaginar a pessoa retratada com suas particularidades.Como o perfil de Harry Lipsig, um advogado de Nova York, escrito por Robert McG.

    Thomas Jr. em 13 de agosto de 1995.

    Desde 1982, Lipsig realizava a maior parte do seu trabalho fora dostribunais, mas fez uma apario especial em 1988, representando afamlia de um homem que fora atropelado e morto por um veculodirigido por um policial embriagado de Nova York. Os advogados [...]estavam confiantes de que obteriam uma reduo da indenizaopor danos [...] alegando que a vtima, um psiquiatra de 71 anos,estava no fim da sua carreira produtiva. A confiana delesdesapareceu quando Lipsig se levantou para apresentar seuargumento inicial e citou a si mesmo como prova, ressaltando queera um advogado de 87 anos de idade, ainda na ativa, e sugerindoque o psiquiatra tambm poderia ter tido muitos anos de atividadepela frente [...] os advogados da cidade, receosos da fama dehipnotizador de Lipsig, decidiram que seria melhor fazer um acordo(THOMAS JR. In SUZUKI JNIOR, 2008, p.55-56).

    J o jornalista e escritor brasileiro Jos Castello em seu Inventrio das

    Sombras, publicado em 1999, rene 15 perfis. Nele, Castello apresenta textosbastante autorais, o que pode se notar logo no prlogo, quando diz:

    O resultado , por certo, um livro hbrido, (um livro, ele tambm,escrito na penumbra), que fica a meio caminho entre o jornalismo, oensaio, a crtica literria e a fico; que se esfora para tocar, enfimnessa zona escura, composta de imagens borradas e ilusespassageiras, na qual toda literatura, mesmo a mais profissional seorigina (CASTELLO, 1999, p.9).

    No incio do livro o autor tambm deixa claro que os perfis so resultados de

    encontros que fez ao longo de sua carreira com os escritores ali presentes, quando

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    jornalista de diversos veculos jornalsticos e a eles d o devido crdito, como no

    trecho a seguir.

    Conheci Caio Fernando Abreu na condio de editor do suplementoIdias do Jornal do Brasil, e aqui meu reconhecimento deve serdirigido a Roberto Pompeu de Toledo e Flvio Pinheiro, que mealaram a esse posto, e tambm a Arthur Xexo, que antes disso melevou para o jornal (CASTELLO, 1999, p.14).

    Os perfis so organizados sem critrio aparente e apresentam caractersticas

    diversificadas. Em alguns deles Castello se encontra diversas vezes com o escritor

    em questo, em outras ocasies o encontro acontece uma nica vez e h duas

    ocasies em que o autor constri seu perfil sem nunca ter entrevistado os autores

    em questo: Dalton Trevisan e Raduan Nassar.

    O livro tambm desenvolvido de maneira que os perfis no se assemelhem

    entre si. Em alguns deles, como ocorre com o de Nelson Rodrigues, Castello se

    impe bastante como narrador-personagem, sendo suas emoes, sensaes e

    temores essenciais para a narrativa.

    Tenso, sentindo-me incomodado com algo que no compreendia eque por isso mesmo me apavorava, passei a no atender ostelefonemas de Nelson Rodrigues. Hoje, depois de muitos anos,comeo a ter uma noo, ainda muito vaga, do quanto perdi.Naquela poca, eu dividia um apartamento no Jardim Botnico comdois amigos, que se empenharam em me salvar [...] Eu ouvia meusamigos responderem seus chamados, com as mesmas desculpasprogramadas de sempre, e me sentia muito mal, mas no me estavapreparado para outra soluo. Nem mesmo desfrutar daquelasatenes transitrias eu me permiti, o que hoje s posso lamentar(CASTELLO, 1999, p.144).

    Porm, em alguns perfis como no de Caio Fernando Abreu, Castello adota

    uma postura mais fria e distante, praticamente excluindo-se ao longo de todo o texto.

    Caio, antes apaixonado por sua tristeza, tornava-se agora umhomem flexvel. A doena o deixou muito apegado a um velho ditadofrancs Ah, se os jovens soubessem, se os velhos pudessem!, quepara ele resumia, em palavras simples, todo o sentido trgico, mastambm as melhores experincias da existncia (CASTELLO, 1999,p.69).

    A diversificao no modo como opta em construir seus perfis, no entanto, no

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    afeta em nada a leitura, sendo todos eles bem elaborados e devidamente

    caracterizados.

    2.2.1 Construo do personagem

    Brait em A personagem, publicado em 2006, discorre sobre os estudos ao

    longo da histria para conceituar o termo personagem. Para isso, ela inicia o livro

    com a definio do Dicionrio Enciclopdico das Cincias da Linguagem, organizado

    por Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, que relaciona o conceito personagem e

    pessoa. O dicionrio afirma que a personagem um ser de papel. Entretanto

    recusar toda relao entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagensrepresentam pessoas (BRAIT, 2006, p.11). Para entender o conceito de

    personagem e as semelhanas existentes entre personagem e pessoa, Brait volta

    Grcia antiga, com Aristteles, que define personagem como uma construo, um

    reflexo da pessoa humana.

    Outras definies do termo personagem que vale ressaltar so:

    representao de um ser humano numa obra de arte (PRIBERAM, 2011); o

    homem definido por seu papel social (MICHAELIS, 2009); pessoa que, porcaractersticas pouco comuns, chama a ateno dos outros (AULETE, s/d.);

    pessoa de importncia por sua posio social, ou por ser considerada ilustre;

    personalidade, qualquer pessoa considerada do ponto de vista do seu valor pessoal

    (LAROUSSE, 1999).

    Nesta construo do personagem, o jornalismo se apropriou de conceitos da

    literatura, como aponta Candido em A personagem de fico, publicado em 2007.

    O autor afirma que a valorizao esttica uma dessas apropriaes, que enriquecea narrativa, abre o leque de possibilidades para descrever o personagem e o

    ambiente em que est inserido e as impresses do autor, tornando assim o texto

    mais criativo e a leitura mais prazerosa. Os critrios de valorizao, principalmente

    estticos, permitem-nos considerar uma srie de obras de carter no-ficcional

    como obras de arte literrias e eliminar, de outro lado, muitas obras de fico que

    no atingem certo nvel esttico (CANDIDO, 2007, p.11).

    Outra apropriao a estrutura do texto, uma srie de planos que podem ser

    usados ou no, mas contribuem para melhor compreenso do leitor (CANDIDO,

    2007). O autor destaca tambm o emprego das palavras, pois estas tambm esto

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    ligadas a maneira como o leitor compreende o texto.

    A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte

    literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quase-sensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz).Este plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiorestem na literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a deprojetas, como vimos, objectualidade puramente intencionais que,por sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetosvisados. O que importa so os significados que se identificam comoos objetos visados, no os significantes. Estes ltimos as palavras se omitem por completo (CANDIDO, 2007, p.38).

    2.3 JORNALISMO E SUA FUNO SOCIAL

    Segundo Bill Kovach e Tom Rosenstiel, a principal finalidade do jornalismo

    fornecer aos cidados as informaes de que necessitam para serem livres e se

    autogovernar (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004, p.31). Os autores afirmam isso

    baseados na ideia de que a imprensa que nos ajuda a definir a comunidade que

    nos cerca e nos ajuda a criar linguagem e conhecimento comuns com base narealidade.

    Seguindo esta mesma linha de raciocnio, o escritor e jornalista Jack Fuller

    afirma que a meta principal do jornalismo contar a verdade de forma que as

    pessoas disponham de informao para sua prpria independncia (FULLER apud

    KOVACH; ROSENSTIEL, 2004, p.34).

    Ferreira Jnior tambm define a funo social jornalstica, aproximando-a do

    exerccio realizado pelos cientistas e pesquisadores afirmando que nas duasprofisses assumimos o papel de mediadores, deixando alguns traos de oralidade

    nas histrias de vida, a ponto de no descaracteriz-las nem inviabilizar sua leitura

    por um pblico mais amplo, incluindo a os prprios colaboradores (FERREIRA

    JNIOR, 2003, p.231).

    Ainda segundo o mesmo autor, outros pontos do desenvolvimento realizados

    pelos cientistas devem serapropriados pela prtica jornalstica. Entre tais pontos,

    elencamos, alm da mediao, outros trs que ainda esto diretamente relacionados

    com o nosso trabalho: a propriedade intelectual, a definio do entrevistado como

    colaborador e a conferncia do resultado (FERREIRA JNIOR, 2003, p.231).

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    No entanto, o dever de informar os cidados e fazer com que tomem cincia

    do que acontece no mundo uma tarefa rdua e recheada de desafios. Segundo

    Medina (1982), o primeiro obstculo do jornalista o fato de sua profisso ser

    sempre pautada pela presso do tempo. Sem descanso, o jornalista atua durante

    todo o tempo, visto que as notcias acontecem 24 horas por dia.

    Segundo a autora, uma das consequncias da falta de tempo da profisso de

    jornalista, que delimita a sua misso social, o fato de esta no poder ter nenhum

    tipo de perfeccionismo cientfico.

    Um produto jornalstico nunca poder ser analisado atravs deparmetros rigorosos da cincia ou quaisquer esquemas tericos

    rgidos [...] O improviso, a sensibilidade ao oportuna e acapacidade de reao imediata so qualidades precpuas aojornalista que fazem de sua obra diria um produto imediato,atilado, atual, antecipador, provocador, inquietante, contestador econtestvel (MEDINA, 1982, p.21).

    A autora exemplifica esta impossibilidade de alcanar a perfeio cientfica ao

    afirmar que o jornalista tem que ouvir tanto o intelectual, que se julga intocvel e

    intraduzvel em seus pensamentos, quanto o homem comum, que est sedento de

    encontrar um canal por onde possa passar as sensaes de que est aprisionado na

    retaguarda (MEDINA, 1982).

    Ao observarmos a produo jornalstica atual podemos perceber que a

    maioria delas d mais voz aos intelectuais do que aos homens comuns. Para a

    autora, os meios de comunicao atualmente no realizam uma comunicao de

    fato, pois deixam de lado a figura humana, assim como os depoimentos annimos

    (MEDINA, 2008).

    Esta falta de comunicao que a cobertura miditica atual gera foi percebidatambm por Marco Ordoez, citado por Medida, ao dizer que h

    uma falta de fluidez nas translaes culturais que se geram em cadaum dos diversos grupos; uma impermeabilidade dos estratos sociaispara receptar as manifestaes culturais de outros setores. Umainteno de impor padres e moldes culturais e inclusive um af degrupos elitrios por transladar normas e valores, formas decomportamento que fortalecem os sistemas de dominao(ORDOEZ apud MEDINA, 1982, p.106).

    Diante deste cenrio existem alguns profissionais que se mostram dispostos a

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    reverter este quadro. Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004, p.31), citam Yuen Ying

    Chan, um ex-reprter do Daily Newsde Nova York, que afirma querer dar vozes

    queles que precisam de voz... gente desamparada.

    Esta a principal funo social do jornalista: ouvir vozes que no so

    ouvidas, mas precisam ser. E a reportagem, segundo Medina, uma das

    plataformas que possibilita o desenvolvimento desta democracia tambm proposta

    por Chan.

    A reportagem a forma de maior aprofundamento possvel dainformao social e, por outro lado aquela que responde melhor saspiraes de uma democracia contempornea [...] Pois justamente a pluralidade de vozes e a pluralidade de significadossobre o imediato e o real que fazem com que a reportagem se torneum instrumento de expanso e instrumentao plena da democracia,uma vez que a democracia polifnica e polissmica (MEDINAapud LIMA, 2009, p.23).

    Em A Arte de Tecer o Presente, publicado em 2004, Medina, ao falar do

    projeto So Paulo de Perfil realizado com alunos do curso de jornalismo da

    Universidade de So Paulo, aponta que o uso de vozes annimas enriquece a

    reportagem.

    [...] a ao coletiva da grande reportagem ganha em seduo quandoquem a protagoniza a so pessoas comuns que vivem a luta docotidiano. Descobrir essa trama dos que no tm voz, reconstituir odirio de bordo da viagem da esperana, recriar os falares, a oraturados que passam ao largo dos holofotes da mdia convencional(MEDINA, 2004, p.52-53).

    A autora discorre sobre a necessidade de eleger como prioridade a prtica do

    jornalista como um mediador social dos discursos da atualidade. Enunciar um textoque espelhe o dramtico presente da histria , a principio, um exerccio doloroso de

    insero no tempo da cidadania e da construo de oportunidades democrticas

    (MEDINA, 2004, p.48).

    Segundo Ferreira Jnior, quando retratamos o discurso de pessoas comuns

    ou no, devemos sempre levar em conta o alcance que o discurso jornalstico

    apresenta perante a sociedade. Devemos notar assim o alcance e o poder de

    qualquer discurso, poder de manipulao, de assujeitamento dos indivduos, poderde produo de sentido e de sujeitos (FERREIRA JNIOR, 2003, p.271).

    Medina tambm discorre sobre os reflexos das mudanas do mundo

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    contemporneo nas formas de narrativas.

    Fenmenos e instituies que registram esta experincia, como ocaso do jornalismo, vm constituindo uma gramtica narrativa h

    sculos e, no entanto no chegaram s frmulas mgicas quechamem a si a competncia para pautar e comunicar o que se passaa nossa volta [...] a narrativa que por a passa frequentemente deixaos consumidores, fruidores ou parceiros do caos contemporneo,frustrados com o universo simblico tal qual o organizam ascoberturas jornalsticas (MEDINA, 2004, p.48).

    Entre outras razes, a autora relaciona o problema da arte de tecer o

    presente ao fato de que a

    crise de percepo coisifica a conscincia humana e perturbaprofundamente as vises de mundo que se presentificam nasnarrativas. Paradigmas abalados, conflitos culturais edesumanizao de cosmovises sacodem as certezas tcnicas etecnolgicas da comunicao social assim como dos demais atos derelao entre os homens (MEDINA, 2004, p.48).

    2.4 O LIVRO-REPORTAGEM COMO VECULO DE COMUNICAO

    JORNALSTICA

    A construo da notcia segundo Lima em Pginas Ampliadas: o livro-

    reportagem como extenso do jornalismo e da literatura,publicado em2009, segue

    um conjunto de tcnicas que visam informar e orientar as pessoas de maneira

    rpida, clara, precisa e objetiva. Mas, esse texto jornalstico, conhecido como

    jornalismo informativo, era insuficiente quando se tratava da compreenso dos fatos

    e contextualizao dos acontecimentos. Lima (2009) afirma que tal prtica era e

    muitas vezes criticada como superficial e incompleta.

    Manoel Vilela Magalhes citado por Lima, explica outra frmula: a notcia

    redonda, que surgiu em busca de enriquecer o texto jornalstico. [...] este termo

    define uma nova formulao em que a informao principal, ao ser tratada pelo

    reprter, acompanhada de dados complementares capazes de oferecer aos

    leitores elementos mais slidos para avaliar a extenso do noticirio (LIMA, 2009,

    p.17).

    De acordo com Lima, essa frmula da notcia ainda no trazia no texto tal

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    aprofundamento dos fatos que possibilitasse a compreenso do receptor. Ainda

    assim, o arredondamento puro e simples da notcia seria pouco para responder as

    crticas (LIMA, 2009, p.18). Para o autor foi assim que a reportagem foi

    desenvolvida. O jornalismo no mais se resumia ao jornalismo dirio em que se

    busca transmitir informaes s pessoas medida que os fatos acontecem, de tal

    forma que o leitor receba os dados de que precisa para se manter informado.

    Desse modo, quando [...] o jornal dirio noticia um fato qualquer,como um atropelamento, j traz a, em germe, uma narrativa. Odesdobramento das clssicas perguntas a que a notcia pretenderesponder (quem, o que, como, quando, onde, por que) constituir depleno direito uma narrativa no mais regida pelo imaginrio, como na

    literatura de fico, mas pela realidade factual do dia-a-dia, pelospontos rtmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados,tornam-se reportagem (LIMA, 2009, p.22-23).

    Para Lima esse tipo de jornalismo dirio tem como caracterstica a corrida

    contra o tempo entre o acontecimento, a apurao, a edio e a transmisso. A

    reportagem uma extenso dessas notcias do cotidiano e dispe de mais tempo

    para produo. Ela tem como caractersticas especficas a ampliao, a

    contextualizao e o aprofundamento.

    Por isso, visando atender a necessidade de ampliar os fatos, decolocar para o receptor a compreenso de maior alcance, que ojornalismo acabou por desenvolver a modalidade de mensagemjornalstica batizada de reportagem. a ampliao do relato simples,raso, para uma dimenso contextual [...] possibilita um mergulho defolego nos fatos e em seu contexto, oferecendo a seu autor ou aseus autores, uma dose pondervel de liberdade para escapar aosgrilhes normalmente impostos pela frmula convencional dotratamento da noticia, com o lead e as pirmides j mencionadas(LIMA, 2009, p.18).

    Alm da questo do tempo, questes econmicas tambm orientam a notcia,

    mesmo diante da funo social do jornalismo. Medina, citada por Lima, discute o

    sustento da informao jornalstica que o espao publicitrio, afirmando que a

    informao social briga por espao na mdia. Assim, o jornalismo se limita frmula

    da notcia que a pirmide invertida, uma frmula econmica, mas tambm

    superficial, pois comprime a informao num curto espao e tempo (LIMA, 2009).

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    A grande-reportagem briga por espaos nobres [...] e esse espaonobre passa a ser o livro, um espao de relativa independncia emrelao estrutura empresarial, jornalstica e tambm um espao decerta perenidade, porque combina as possibilidades deaprofundamento da grande-reportagem (LIMA, 2009, p.33).

    Em oposio a isso, o livro-reportagem um veculo jornalstico impresso,

    no peridico que apresenta reportagens com informaes mais completas, amplas

    e ricas em detalhes, como tambm aprofundadas, na busca por razes e

    implicaes (LIMA, 2009).

    Esse grau de amplitude superior pode ser entendido no sentido demaior nfase de tratamento ao tema focalizado quando comparadoao jornal, revista ou aos meios eletrnicos -, quer no aspectointensivo, de aprofundamento, seja quanto combinao dessesfatores (LIMA, 2009, p.26).

    Por estas caractersticas Lima afirma que esse veculo de comunicao

    preenche os vazios deixados pelas publicaes peridicas.

    O livro-reportagem cumpre um relevante papel, preenchendo vaziosdeixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rdio, pelos

    noticirios da televiso, at mesmo pela internet quando utilizadajornalisticamente nos mesmos moldes vigentes na prtica impressaconvencional. Mais do que isso, avana para o aprofundamento doconhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, oaspecto efmero da mensagem da atualidade praticada pelos canaiscotidianos da informao jornalstica (LIMA, 2009, p.3-4, grifo doautor).

    Em sua pesquisa, Lima afirma que apesar de o livro-reportagem ter as suas

    especificidades os recursos tcnicos com que essa funo desempenhada

    provm do jornalismo [...] a realidade essencial do livro-reportagem determinada a

    partir das caractersticas e dos princpios que regem o jornalismo como um todo

    (LIMA, 2009, p.10-11). Alm das tcnicas, ele afirma ainda que tambm cabem ao

    livro-reportagem as mesmas tarefas do jornalismo, que so informar, orientar e

    explicar.

    Lima (2009) afirma que h poucas pesquisas direcionadas ao estudo do livro-

    reportagem tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, conforme o prprio autor

    pode confirmar ao consultar o contedo disponvel na biblioteca da Escola de

    Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo. Lima considerado um dos

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    pioneiros nas pesquisas sobre o tema, como afirma Ferreira Jnior.

    No caso dos livros-reportagem, a polmica se estabelece no dilogo

    com o principal trabalho j produzido na rea da Comunicao arespeito do fenmeno. Trata-se da pesquisa desenvolvida porEdvaldo Pereira Lima (1993), talvez a primeira iniciativa de flego deuma anlise cientfica de narrativas jornalstico-literrias,especificamente tratadas pelo autor no mbito do que classifica comolivro-reportagem (FERREIRA JNIOR, 2003, p.320).

    Mas, segundo Ferreira Jnior o termo livro-reportagem pode ter sido usado,

    primeiramente, por Antonio Olinto ao realizar um trabalho em 1952 comparando o

    livro-reportagem aos livros de viagens.

    Para Olinto: H sculos que o livro de viagens substitua areportagem, porque havia, nele, a descrio que leva o homemcomum a satisfazer sua curiosidade em relao ao desconhecido [...]o livro tipo reportagem corresponde, no cinema, ao documentrio(FERREIRA JNIOR, 2003, p.320).

    No Brasil, a combinao jornalismo e literatura num veculo como o livro pode

    ser observada no romance-reportagem que, para Cosson, um tipo particular de

    narrativa, ou ainda, uma reportagem disfarada de romance. Cosson afirma que a

    existncia do gnero no pas resultado da represso do regime ditatorial no campo

    jornalstico, principalmente na dcada de 1970.

    [...] o romance-reportagem efetiva-se no momento em que a censurapassa a atuar de forma mais seletiva e a grande imprensa sobretudocomea a ser liberada, o papel do gnero mais de denuncia do quede resistncia censura e ao regime. semelhana dos movimentos

    populares da poca, o romance-reportagem alinha-se entre asdiversas vozes que desmascaram o regime e apontam para anecessidade da democracia e a construo de uma sociedade maisjusta. Depois, o enfrentamento com a censura foi assumido dentro docampo do jornalismo, sobretudo, pela imprensa alternativa.(COSSON In CASTRO; GALENO, 2002, p.62-63).

    Segundo Cosson, nesta poca os jornalistas que buscaram a aproximao

    com a literatura assim o procediam no apenas, ou principalmente, por fora da

    censura, mas sim porque encontravam no romance-reportagem um espao no mais

    existente na imprensa (COSSON In CASTRO; GALENO, 2002, p.63).

    Parte dessa falta de espao nos jornais atribuda por Cosson censura e

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    outra parte s mudanas na estrutura da imprensa do Brasil com a implantao de

    um novo padro de jornalismo, baseado no exemplo americano: uma srie de

    procedimentos e tcnicas na coleta, seleo e divulgao das notcias que se

    opunham frontalmente a tradicional ligao entre jornalismo e literatura praticada no

    Brasil (COSSON In CASTRO; GALENO, 2002, p.63).

    Atualmente, tal padro de jornalismo permanece na imprensa e o livro-

    reportagem tem individualidades, segundo Lima, que o tornam hoje, meio e espao

    para os jornalistas atuarem sem as amarras do jornalismo convencional da grande

    mdia. So elas: liberdade pela pauta, liberdade temtica, liberdade de angulao,

    liberdade de fontes, liberdade temporal, liberdade de eixo de abordagem e liberdade

    de propsito.Para Lima o livro-reportagem tem liberdade de pauta e liberdade temporal.

    Ambas esto ligadas ao fato deste veculo ter a possibilidade de trabalhar com a

    contemporaneidade e no apenas atualidade. Para diferenciar esses dois termos,

    ele se utiliza da definio de Dulclia Buitoni de que

    contemporaneidade pode englobar a formao de uma tendnciacultural que j dura meio sculo ou um fato que aconteceu ontem.

    Contudo, no por ter acontecido ontem, e sim por estar relacionadocom uma srie de contextos [...] Por conseguinte, acontemporaneidade se define [...] pela possibilidade de estabelecerrelaes pertinentes aos dias de hoje (LIMA, 2009, p.65).

    A no periodicidade desse veculo outro fator que traz liberdade de escolha

    da pauta. Segundo Lima, assim como a atualidade pode se revelar incua como

    critrio de definio da pauta, a periodicidade impe padres de rotina.

    A liberdade temtica est muito prxima liberdade de pauta, pois o livro-

    reportagem trabalha com os mais diversos temas, sejam novos olhares de temas

    que j foram discutidos ou, temas que ainda no foram explorados pela imprensa

    diria. A essa especificidade Lima conceitua tambm como universalidade do livro-

    reportagem e afirma que tal caracterstica do livro-reportagem liberta o autor dos

    grilhes impostos pelo sensacionalismo na imprensa cotidiana (LIMA, 2009, p.83).

    A liberdade de angulao do livro-reportagem est relacionada ao fato deste

    veculo ser uma obra de autoria, ou seja,

    desvinculado, ao menos em tese, de comprometimentos com o nvelgrupal, com o nvel massa e com o nvel pessoal tal qual limitado nas

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    grandes empresas jornalsticas, seu nico compromisso com suaprpria cosmoviso e com o esforo de estabelecer uma ligaoestimuladora com seu leitor, valendo-se, para isso, dos recursos queachar mais convenientes, escapando das frmulas institucionalizadasnas redaes (LIMA, 2009, p.83).

    O livro-reportagem pode trabalhar com fontes no oficiais diferentemente dos

    outros veculos, pois no estando atrelado ao ritmo compulsivo de produo das

    redaes, o livro-reportagem pode fugir do estreito crculo das fontes legitimadas e

    abrir o leque para um coral de vozes variadas (LIMA, 2009, p.84).

    O tipo de abordagem do livro-reportagem tambm livre. Ele pode tanto focar

    nos acontecimentos como vislumbrar um horizonte mais elevado penetrando na

    situao ou nas questes mais duradouras que compem um terreno das linhas de

    fora que determinam os acontecimentos (LIMA, 2009, p.85).

    Como liberdade de propsito, Lima atribui ao fato de que o jornalismo

    convencional estruturou a narrativa com tcnicas que, pelo exagero, tornam a

    comunicao social pouco interessante ao leitor que logo esquece a informao. Tal

    jornalismo de esqueceu do estilo narrativo de que o homem de qualquer cultura

    aprecia desde o tempo da civilizao humana, que contar histrias. Com o livro o

    jornalista pode fugir aos ditames convencionais que restringem sua tarefa deconstrutor de mensagens na imprensa cotidiana (LIMA, 2009, p.63).

    2.5 CONTEXTO ATUAL DAS PESSOAS EM SITUAO DE RUA

    A condio de precariedade em que vivem as pessoas em situao de rua noBrasil um tema facilmente percebido por qualquer morador de grandes cidades,

    como a capital So Paulo, cidade que escolhemos ter como foco de nossa pesquisa.

    O problema, porm, pouco explorado pela mdia e muitas vezes at ignorado por

    grande parte da populao, que se exime do comprometimento, descartando as

    possibilidades de reflexo a respeito do tema.

    O artigo Descartveis urbanos: discutindo a complexidade da populao de

    rua e o desafio para polticas de sade de Adorno e Varanda cita Michel Foucault

    para refletir sobre a maneira como a sociedade lida com o problema das pessoas

    em situao de rua.

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    Partindo do pressuposto de que as respostas institucionais questoforam sendo assumidas pela assistncia social, por viaassistencialista, e observando-se atualmente um processo de

    justificativa medicalizante desse fenmeno. Isso , reduzir adimenso de um problema social complexo a um diagnstico mdicoclnico, ou entend-la na dimenso dos preceitos higienistas esanitaristas, na tica da remoo das populaes em circulaopelas cidades (Foucault, 1979). Considera-se que os servios desade, tambm tenham tendncia a reproduzir esse enfoque(ADORNO; VARANDA, 2004, p.57).

    Desta forma, a maioria dos estudos realizados acerca do tema tem como foco

    a sade e a quantificao das pessoas em situao de rua. Os mais recentes

    estudos realizados na metrpole paulistana foram promovidos pela Secretaria

    Municipal de Assistncia e Desenvolvimento Social de So Paulo, intitulados:

    Trajetria de Vida da Populao Atendida nos Servios de Acolhimento para

    Adultos em Situao de Rua Municpio de So Paulo, que foi realizado pelo

    Centro de Estudos Rurais e Urbanos; Principais Resultados do Censo da Populao

    em situao de rua da Cidade de So Paulo, 2009 e Principais Resultados do Perfil

    Socioeconmico da Populao de Moradores de rua da rea central da Cidade de

    So Paulo, 2010, estes ltimos, realizados pela Fundao Instituto de PesquisasEconmicas (FIPE).

    A terceira pesquisa citada acima, realizada pela FIPE constatou, entre outros

    dados, que:

    A populao em situao de rua na cidade de So Paulo predominantemente do sexo masculino (86%) e de no brancos(64%), com idade mdia de 40 anos. A metade dessa populao estna faixa etria de 31 a 49 anos, distribuindo-se os demais, em iguaispropores, na faixa de 18 a 30 e de 50 e mais anos. A escolaridade baixa, com 9,5% de analfabetos e a maioria (62,8%) com ensinofundamental incompleto. Mas h uma parcela de 9% com ensinomdio completo, 2,3% com nvel superior incompleto e 1,9% comsuperior completo. [...] Nasceram na cidade de So Paulo, 27,5%dessa populao. Os demais vieram de outros municpios do estadode So Paulo e de outros estados e a maioria (75%) migrou para acidade de So Paulo uma nica vez (SCHOR; VIEIRA, s/d., p.6-7).

    Segundo o Censo da Populao de Rua referente ao ano de 2009, na cidade

    de So Paulo, a regio central lidera o ndice de pessoas em situao de rua, sendoo bairro da Repblica o primeiro colocado (23,8%), seguido pela regio da S

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    (18,1%) e Santa Ceclia (4,7%). Esta maior concentrao da regio central pode ser

    justificada pela oferta de ocupaes clandestinas que a regio proporciona

    populao de baixa renda, que posteriormente pode vir a se tornar moradora de rua.

    A demanda pelos locais de moradia com acesso mais fcil aotrabalho e s facilidades urbanas disponibilizadas na rea centralatrai a populao de baixa renda para as ocupaes clandestinas,cortios, favelas beira dos rios ou morros que circundam as reasurbanizadas. Algumas pessoas transitaram por essas regies depobreza e pelos trabalhos informais e temporrios antes dechegarem s ruas (ADORNO; VARANDA, 2004, p.62).

    Neste ponto se faz necessrio definir o termo morador de rua, que tambm

    pode ser classificado como sem-teto, desabrigado e mendigo, este ltimo, pudemos

    perceber diante das pesquisas realizadas para execuo deste trabalho, quase em

    desuso na rea sociolgica e acadmica. Atualmente, os termos mais usados so

    pessoa em situao de rua ou populao de rua. Estes ltimos termos, segundo

    pesquisa da FIPE abrangem as seguintes definies:

    Moradores de rua: pessoas que no tm moradia e que pernoitamnas ruas, praas, caladas, marquises, jardins, baixos de viadutos,mocs, terrenos baldios e reas externas de imveis; Acolhidos:pessoas que, tambm sem moradia, pernoitam em albergues ouabrigo (SCHOR; VIEIRA,s/d., p.2).

    Ainda sobre o termo pessoas em situao de rua, mas desta vez olhando-o

    de maneira sociolgica, encontramos em Escorel a seguinte definio:

    Para Escorel (1999), a excluso social um processo no qual nolimite os indivduos so reduzidos condio de animal laborans,cuja nica atividade a sua preservao biolgica, e na qual estoimpossibilitados de exerccio pleno das potencialidades (ESCORELapud ADORNO; VARANDA, 2004, p.61, grifo do autor).

    Segundo estudo realizado em 2008, o aumento do nmero de pessoas em

    situao de rua na cidade de So Paulo se deu principalmente a partir da dcada de

    90, com os efeitos do neoliberalismo e da globalizao que foraram uma nova

    estruturao produtiva.

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    Enfim, o trabalho assalariado substitudo por atividadesintermitentes, temporrias, com rendimentos instveis e desprovidosde seguridade social e demais direitos trabalhistas. Se uma parte daclasse trabalhadora se adapta a essas metamorfoses no mundo dotrabalho, outra parte no consegue se sustentar domiciliada e assiste porta da rua se abrir medida que as portas das empresas sefecham. Nesse contexto, acreditamos que a populao em situaode rua constitui um dos efeitos perniciosos da reestruturaoprodutiva, fenmeno que pode explicar o crescimento dessecontingente durante a dcada de 1990 (FERREIRA et al, 2008,p.113).

    Desta forma, o aumento de pessoas em situao de rua da cidade de So

    Paulo estaria intimamente ligado precarizao das relaes de trabalho, que pode

    ser entendida como a soma do desassalariamento da terceirizao e dainformatizao.

    Ainda segundo esse estudo, as pessoas em situao de rua, passam a

    procurar servios que as ajudem na reinsero na sociedade, mas acabam

    esbarrando em diversos problemas de ordem sociolgica. Um estudo a respeito das

    condies de vida das pessoas em situao de rua, realizado por Escorel (1999),

    aponta como caractersticas dos trabalhos desempenhados por esta populao,

    A intermitncia dos vnculos, que devem ser buscados diariamente;a realizao concomitante de diversos bicos; a polivalncia e, svezes, a ausncia de uma profisso especializada, sintetizadas naexpresso de faz-tudo ou faz-qualquer-coisa (ESCOREL, 1999,p.216-217).

    Enquanto em situao de rua, as pessoas passam a viver da caridade e da

    esmola fornecida pela sociedade. Porm, este aspecto barrado por campanhas

    governamentais que desestimulam esse tipo de assistencialismo, acreditando que

    este um dos aspectos causadores do crculo vicioso que dificulta a reinsero

    destas pessoas na sociedade.

    [...] necessrio ressaltar a importncia preventiva das campanhasque solicitam populao o no fornecimento de esmolas, sejamestas em forma de dinheiro ou outros benefcios. A caridade e oassistencialismo funcionam, neste caso, como um grande atrativopara a rua, criando um crculo vicioso extremamente perverso elegitimando a condio de pedintes e necessitados (DONINELLI et

    al; 2005, p.137).

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    2.5.1 Polticas Pblicas da cidade de So Paulo

    O Decreto n 40.232 de 2 de janeiro de 2001 regulamenta a Lei n 12.316, de

    16 de abril de 1997, que obriga o Poder Pblico do Municpio de So Paulo prestar

    atendimento populao de rua da Cidade de So Paulo. Alm da Lei, o Decreto

    tem como base o artigo 221 da Lei Orgnica do Municpio de So Paulo, que afirma

    ser

    dever do Municpio a promoo e assistncia social, visando garantiro atendimento dos direitos sociais da populao de baixa renda,buscando assegurar, dentre outros fins, a prioridade no atendimento populao em estado de abandono e marginalidade na sociedade(PREFEITURA, s/d., p.1-2).

    A partir disso, o decreto, prev a

    oferta de servios que estimulem a sada de crianas, jovens eadultos das ruas, sem coero, agresso, maus tratos e destruio

    de pertences; garantia de acolhida em espaos que tratemdignamente homens, mulheres e crianas; oferta de instalaesfsicas com condies de salubridade, segurana e grau deprivacidade compatvel com um processo de contnua recuperao ereinsero social; acesso a servios de sade sem discriminao ecom proviso de condies de recuperao em situaes deagravamento; alimentao com adequado padro de nutrio edignidade no uso de utenslios, descartveis inclusive; manutenode higiene nos locais de atendimento; proviso de local para guardade pertences da populao, sem discriminao; extenso da ateno populao de rua para alm de abrigos e albergues, incluindoprogramas que afiancem autonomia pela oferta de condies de

    trabalho e moradia; respeito s caractersticas de gnero e das faixasetrias. (PREFEITURA, s/d., p.1-2).

    A poltica de atendimento populao em situao de rua envolve a

    implantao e manuteno pelo Poder Pblico Municipal de servios e programas,

    podendo ser realizados em parceria com organizaes sociais. So eles: albergues

    ou abrigos especiais com profissionais e materiais necessrios para o acolhimento

    de at 100 pessoas por unidade, fornecendo condies de pernoite, higiene

    pessoal, lavagem e secagem de roupas, alimentao, guarda-volumes, trabalho

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    scio-educativo e servios de documentao e referncia na Cidade

    (PREFEITURA, s/d., p.3).

    Restaurantes comunitrios coordenados pela Secretaria Municipal de

    Assistncia Social que devem oferecer alimentos populao diariamente,

    garantindo padres nutricionais adequados ao preo de custo de cada refeio

    (PREFEITURA, s/d.), assim como casas de convivncia com profissionais e

    materiais necessrios para promoo diria, em especial, de atividades de

    convivncia, socializao e organizao grupal, atividades ocupacionais,

    educacionais, culturais e de lazer (PREFEITURA, s/d., p.3).

    As Secretarias Municipais de Assistncia Social e Habitao devem organizar

    moradias provisrias em parceria com organizaes sociais para a proviso deinstalaes, prprias ou locadas, com capacidade de uso temporrio por at 15

    pessoas moradoras de rua e em processo de reinsero social (PREFEITURA, s/d.,

    p.3). Sobre essas moradias, o decreto tambm determina que

    o acesso moradia provisria estar subordinado a avaliao scio-educativa do estgio de reinsero social do interessado, realizadapelos albergues e casas de convivncia da rede [...] ao Poder Pblico

    caber prover e manter as instalaes fsicas, envolvendoadaptaes, reformas e pagamento de tarifas pblicas, bem comoestabelecer parceria para pagamento de pessoal; s organizaessociais e empresas caber garantir padres adequados de qualidadedo atendimento bem como participar da gesto compartilhada(PREFEITURA, s/d., p.3).

    Solues habitacionais definitivas tambm so previstas no decreto. A

    Secretaria Municipal de Habitao deve proporcionaralternativas habitacionais que

    atendam pessoas em processo de reinsero social e incluam auxlio moradia,

    locao social e financiamento de construes em regime de mutiro

    (PREFEITURA, s/d., p.3), avaliando sempre as necessidades e caractersticas de

    cada pessoa a ser atendida.

    Programas voltados para a capacitao profissional por meio de oficinas,

    cooperativas de trabalho e comunidades produtivas devem ser oferecidos a essa

    populao, envolvendo tambm o

    encaminhamento a empregos, formao de associaes ecooperativas de produo e gerao de renda e manuteno deprojetos agrcolas de desenvolvimento autossustentado, que

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    promovam a autonomia e a reinsero social da populao de rua(PREFEITURA, s/d., p.4).

    O poder pblico deve implementar e manter

    programas assistenciais e preventivos realizados nas ruas, poreducadores capacitados, com pedagogia prpria aplicvel aotrabalho com este segmento da sociedade [...] com a cooperao daGuarda Civil de So Paulo e a ao de voluntrios e de organizaessociais (PREFEITURA, s/d., p.4).

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    3 APRESENTAO DA PEA FINAL

    3.1 CONCEPO

    Questes que envolvem a vida em sociedade, os desajustes sociais, os

    direitos e deveres de cada cidado sempre nos atraram, antes mesmo de iniciar o

    curso de jornalismo. Quando chegamos ao momento de escolher o tema para o este

    trabalho, tnhamos a certeza de que queramos retratar uma questo da vida em

    sociedade. Ainda sobre o tema, tnhamos como ponto de partida que era a vontadede trabalhar com histrias de superao, em que a capacidade humana revelada

    de maneira positiva.

    Aps diversas conversas entre o grupo e em especial uma conversa com uma

    amiga do grupo, tambm estudante de jornalismo (Mariana Exposito) chegamos ao

    tema Ex-moradores de rua. Mais para frente, aps algumas pesquisas,

    compreendemos que a termologia mais correta seria pessoas que j passaram pela

    situao de rua. A partir desta ideia, trabalharamos com um assunto que envolveuma questo da vida em sociedade, relacionada famlia, emprego e moradia.

    Escolheramos pessoas que j saram da situao de rua pensando na nossa ideia

    inicial de trabalhar com a superao.

    Alm disso, durante todo o curso a habilidade mais evidente do grupo foi

    escrever. O jornalismo impresso em suas diversas possibilidades, especificamente o

    jornalismo literrio foi desenvolvido por ns com mais prazer e empenho. Desta

    forma, quando soubemos das possibilidades que a Universidade apresentava comrelao pea (jornalismo em vdeo, em rdio, impresso e on-line, fotojornalismo,

    comunicao organizacional e monografia) logo nos decidimos pelo jornalismo

    impresso no formato livro, acreditando que nele poderamos abordar as histrias de

    superao da maneira desejada, por meio do jornalismo literrio.

    Na concepo do tema e, posteriormente, execuo da pea, empregamos

    algumas caractersticas do formato livro dentro do jornalismo, apontadas por Lima

    (2009). So elas: a liberdade pela pauta, liberdade temtica, liberdade de angulao,

    liberdade de fontes, liberdade temporal, liberdade de eixo de abordagem e liberdade

    de propsito.

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    Nossa proposta era elaborar um livro-reportagem com histrias individuais de

    superao, mas que tivessem alguma ligao. Com base nos conceitos discutidos

    por autores como Medina (2008) e Ferreira Jnior (2003) o livro possibilitaria ouvir o

    discurso de pessoas comuns e annimas, que tambm precisam ser ouvidas, num

    dilogo democrtico em que se resgata a humanizao do jornalismo.

    A princpio, planejamos um livro com seis captulos, sendo eles: prefcio,

    quatro captulos com as histrias dos personagens e posfcio. No prefcio

    apresentaramos o tema Pessoas em situao de rua, apontando o cenrio atual

    vivido por pessoas que estiveram em situao de rua na cidade de So Paulo e hoje

    no se encontram mais nesse contexto, destacando a experincia de viver um

    processo de reinsero social. No posfcio, contaramos a experincia de conhecer,conviver e escrever sobre personagens de uma histria de sobrevivncia, de

    pessoas que venceram obstculos sociais, econmicos e algumas vezes

    psicolgicos com o objetivo de recuperar a vida em sociedade.

    A primeira dvida que surgiu foi como encontrar os personagens para o nosso

    livro. Pelo conhecimento que tnhamos a respeito de Organizaes No

    Governamentais (ONGs), sabamos que existiam algumas delas que trabalhavam

    com essa temtica. Iniciamos a apurao pesquisando informaes sobre algumasONGs como, Anjos da Noite e CROPH (Coordenao Regional das Obras de

    Promoo Humana), a Revista Ocas, produzida por jornalistas e vendida por

    pessoas em situao de desemprego e o Moradores de Rua, um portal de notcias

    que tem o objetivo de mobilizar e conscientizar a populao a respeito do tema.

    Planejvamos por meio de ONGs obter o contato de pessoas que estiveram

    em situao de rua, passaram por essas instituies e que no presente j tinham

    restabelecido suas vidas. Assim, por meio de indicaes das ONGs, chegamos aalguns abrigos, que possuem o auxlio da prpria Prefeitura de So Paulo,

    localizados em diferentes regies da cidade.

    Procuramos os abrigos Casa Abrigo So Francisco de Assis e Estao

    Vivncia a fim de obter alguma indicao de algum que tivesse passado pelo local

    e, que hoje tivessem suas vidas recuperadas e completamente inseridas

    sociedade, como tnhamos planejado. Porm, logo nas primeiras ligaes,

    percebemos que encontraramos dificuldades, pois todos os atendentes e

    assistentes sociais diziam que gostavam de nossa abordagem, conheciam pessoas

    que se encaixavam no perfil procurado, mas que no tinham a liberdade nem o

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    poder de nos repassar tais informaes.

    No abrigo Casa Abrigo So Francisco de Assis (Rua Antnio Santos Neto,

    40, Santana), tomamos conhecimento de histrias de pessoas que tinham, inclusive,

    se casado, realizado graduao e que j tinham filhos. Os assistentes sociais diziam

    que telefonariam para aquelas pessoas e nos retornariam mesmo que nenhuma das

    pessoas tenha aceitado conversar conosco. Infelizmente, mesmo com insistncia de

    nossa parte, nenhum deles concordou em relatar a sua histria para o nosso

    trabalho, alegando que aquele era um passado que queriam deixar para trs,

    definitivamente.

    Continuando a apurao, ao entrar em contato com Estao Vivncia, um

    Centro de Acolhida localizado no bairro do Canind, conhecemos Daniel Galdino.Pela sua experincia, ele nos afirmou que provavelmente no conseguiramos

    conversar com ningum que tivesse sado da situao de rua h muito tempo, pois

    eles no teriam os contatos, mas que, talvez conseguiramos falar com algum que

    ainda estivesse passando pela situao de transio. Foi assim que conhecemos o

    trabalho desenvolvido em diversas Repblicas da cidade de So Paulo por ONGs

    em parceria com o poder pblico.

    Essas Repblicas foram criadas a partir da necessidade de oferecer mais umtempo para a readaptao vida normal s pessoas que um dia estiveram em

    situao de rua e j passaram por um perodo de recuperao nos Albergues e

    Centros de Acolhida da cidade. Estes locais so administrados pela Coordenao

    Regional das Obras de Promoo Humana (CROPH), uma ONG da cidade de So

    Paulo com quase 40 anos de existncia, que conveniada a rgos pblicos da

    cidade, administra atualmente 18 projetos sociais, entre eles as Repblicas.

    Com os resultados das primeiras apuraes e o conhecimento da existnciadessas Repblicas, mudamos um pouco a ideia inicial de retratarmos histrias de

    superao de pessoas que j no vivem mais a realidade da rua e esto totalmente

    reinseridas na sociedade. Percebemos que retratar o processo de autonomia em

    curso, mas j num estgio avanado e prximo a se completar, seria tambm muito

    interessante. Da mesma forma, observamos que os termos pessoa em situao de

    rua ou populao em situao de rua usados atualmente abrangem moradores de

    rua, ou seja, pessoas que de fato vivem na rua e acolhidos, que so pessoas que

    nunca chegaram a morar na rua, mas ao perderem suas moradias foram para os

    Albergues ou Centros de Acolhida da cidade.

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    Daniel Galdino, baseado nesta nova proposta do trabalho, nos passou o

    contato de dois assistentes sociais responsveis por algumas Repblicas em So

    Paulo. Um deles o Ozeas Alexandria, que possui ps-graduao em Trabalho

    Social em Famlias e cursa Ps-graduao em Gerontologia, e, atualmente, o

    gerente de servios da Repblica para Homens (Av. Mercrio, 518, Centro, ao lado

    do Mercado Municipal de So Paulo) e a Rosana Fernandez, atualmente gerente de

    servios da Repblica para Mulheres (Rua Claudino Alves, 170, Santana). Essas

    Repblicas abrigam 20 homens e 20 mulheres, respectivamente, neste processo de

    autonomia.

    Entramos em contato, inicialmente, com o Ozeas, que logo aceitou nos ajudar

    e buscar personagens para o nosso livro. Aps quase dois meses apresentando oprojeto ao Ozeas conseguimos agendar a primeira visita a Repblica para Homens.

    Neste dia, esclarecemos mais uma vez nosso trabalho, seus objetivos e sua

    metodologia. Elaboramos uma solicitao formal para que trabalhssemos junto a

    ONG CROPH e a Prefeitura de So Paulo.

    O Ozeas nos apresentou alguns moradores que estavam em processo de

    sada da repblica, sendo que para isso eles precisam ter um emprego e uma

    moradia que no a repblica. Aps conhecermos um pouco da histria dessesmoradores e encontrarmos neles boas histrias, ficamos com dois personagens:

    Alderico e Maciel.

    Como relatado anteriormente, planejvamos retratar quatro histrias no livro.

    Para enriquecer o trabalho com uma histria feminina, entramos em contato com a

    Rosana, da Repblica para Mulheres. Desde o princpio, porm, fomos alertadas

    que o processo de recuperao das mulheres em situao de rua era muito mais

    trabalhoso e delicado comparado ao dos homens. As mulheres, segundo osassistentes sociais, apresentam maior propenso violncia sexual na rua, assim

    como outros problemas relacionados ao fato de terem filhos. Ainda assim,

    persistimos com diversas ligaes pa