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EM QUARENTENA MARIA ANTONIA Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 34 | 30 junho 2020 A conjuntura… Vidas Negras Importam Só Agora? Breve discussão sobre a imprensa negra no pós- abolição Devido aos acontecimentos atuais de violência policial contra a população preta, a hashtag #blacklivemaes ou #vidasnegrasimportam tomaram conta das redes sociais, resultando na eclosão de diversas manifestações pelo mundo afora … Autora: Simone Almeida Coluna socialista… Ato pelos trabalhadores da Cinemateca Brasileira, dia 26 de junho de 2020. Nesta fotografia, de longe, não estão todos aqueles que têm sido companheiros de jornada. Pessoal do Sindicato dos Radialistas de SP e ainda outros tantos colegas que não podem sair de suas casas e fazem o trabalho de organizar tudo e agitar das internet! Forças companheiros! Rosa Rosa Gomes, trabalhadora da Cinemateca Brasileira

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  • EM QUARENTENAMARIA ANTONIABoletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 34 | 30 junho 2020

    A conjuntura…

    Vidas Negras Importam Só Agora? Breve discussão sobre a imprensa negra no pós-

    abolição

    Devido aos acontecimentos atuais deviolência policial contra a população preta, ahashtag #blacklivemattes ou#vidasnegrasimportam tomaram conta das redessociais, resultando na eclosão de diversasmanifestações pelo mundo afora …

    Autora: Simone Almeida

    Coluna socialista…

    Ato pelos trabalhadores daCinemateca Brasileira, dia 26 de

    junho de 2020. Nesta fotografia, delonge, não estão todos aqueles quetêm sido companheiros de jornada.

    Pessoal do Sindicato dos Radialistasde SP e ainda outros tantos colegasque não podem sair de suas casas e

    fazem o trabalho de organizar tudo eagitar das internet!

    Forças companheiros!Rosa Rosa Gomes, trabalhadora da

    Cinemateca Brasileira

  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    A conjuntura…

    VIDAS NEGRAS IMPORTAM SÓ AGORA? BREVEDISCUSSÃO SOBRE A IMPRENSA NEGRA NO PÓS-

    ABOLIÇÃO

    Simone Almeida,Historiadora, pesquisadora, estudante de Técnico de Arquivo(ETEC) e estudante de Engenharia da Computação (Univesp)

    Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira comoum todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos,

    desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminaçãoracial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de

    efetivamente ser uma democracia racial.(Lélia Gonzalez)

    evido aos acontecimentos atuais de violência policialcontra a população preta, a hashtag #blacklivemattesou #vidasnegrasimportam tomaram conta das redes

    sociais, resultando na eclosão de diversas manifestações pelomundo afora: vários monumentos e estátuas que simbolizam aescravidão estão sendo retirados e derrubados pelosmanifestantes antifascistas e antirracistas, representando umgrande marco na historiografia mundial.

    DDiante do crescimento da extrema direita brasileira e do

    saudosismo da ditadura militar, com suas manifestaçõesantidemocráticas, incentivadas pelo presidente, nada mais justoque uma reação à altura, em defesa da democracia. Porém, paracomunidade preta, não há nenhuma novidade nisso, aliás, a

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    violência policial é uma velha realidade presente no cotidiano deboa parte da população brasileira.

    Muitos youtubers famosos, influencers, artistas, políticos,entre outros, estão cedendo espaço em seus perfis virtuais para adiscussão antirracista, disponibilizando, assim, o seu lugar deprivilégio ao conceder espaço para ativistas e intelectuais pretos.Embora a intenção seja boa e válida para a ampliação do debatesobre as questões raciais para todas as esferas da sociedade(discutir o racismo é discutir sobre a democracia), deve-se ter apreocupação de não ser criada uma dependência de só se falar noassunto quando o privilegiado socialmente permitir.

    Além disso, muitas marcas também aderiram à campanhaantirracista com hashtags e mudanças para a cor preta em seusperfis , porém sabemos que existem empresas voltadas para oramo da moda/produtos de beleza que, por muito tempo,perpetuaram a imagem da mulher branca, de traços finos ecabelo liso, como padrão de beleza estético ideal. Quandoobservamos tais empresas que agora se manifestampublicamente em apoio às pautas antirracistas, fica sempre adúvida: será que existem mulheres negras em seu quadro defuncionários com bons cargos e salários adequados, equivalentesaos do homem branco que exerce a mesma função? Umahashtag, uma mudança de status no Instagram ou um texto“enfeitado” no Twitter não podem reverter anos e anos deracismo estrutural que, de certo modo, destrói vidasindiretamente: à exemplo da mulher negra, a quem por muitotempo foi imposta a necessidade de alisar o cabelo para seraceita socialmente, influenciando na sua autoestima, matando,pouco a pouco, a sua essência e ancestralidade africana.

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Na mídia televisiva, o racismo estrutural está presente emdiversos aspectos, como na teledramaturgia, e foi muito bemevidenciado através do documentário “Negação do Brasil”1, noqual é possível identificar como a questão foi sendo abordada ereproduzida ao longo dos anos: em alguns casos o racismo éexplícito e, em outros, ele se manifesta pela reprodução do mitoda democracia racial (somos todos iguais).

    Recentemente, alguns veículos de imprensa começaram adar mais ênfase nas pautas antirracistas, no entanto, essesmesmos canais midiáticos são os responsáveis pela disseminaçãodo racismo estrutural que está presente há tempos em nossasociedade. Embora tenham incluído jornalistas pretos comoâncoras, em contrapartida continuam reproduzindo a mulhernegra como “engraçada, desengonçada, que fala o portuguêsincorreto e com atitudes infantis”, como em determinadasatrações humorísticas; da mesma forma, os programassensacionalistas do jornalismo policial, que sempre partem deum julgamento moral e tendencioso, continuam retratando onegro como propenso à criminalidade.

    Por outro lado, quando as discussões das pautas raciaisocorrem no terreno virtual, verifica-se, infelizmente, a mesmatendência dos veículos midiáticos televisivos/jornalísticos, ondeas discussões tomam uma grande proporção inicialmente(viralizam), inflando a opinião pública, mas depois de um curtoespaço de tempo, caem no esquecimento. João Pedro, Ágatha,Marcos Vinicius, Evaldo dos Santos Rosa (o músico que foimorto com 80 tiros disparados contra seu carro pelo Exército),Amarildo… Os casos são diversos, incontáveis e corriqueiros, e,

    1A NEGAÇÃO do Brasil. 2017. Vídeo (1h29min07s). Publicado pelo canal Cine Clube Dionel.Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2020.

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    no entanto, naturalizados e normatizados, como se fizessemparte do cotidiano.

    Por essas e outras tantas questões, é possível questionar seo atual movimento midiático simpático às pautas antirracistas érealmente genuíno ou se está apenas seguindo uma ondapassageira, acompanhando o calor dos movimentosinsurrecionais que eclodiram por conta da violenta morte deGeorge Floyd em solo norte americano. Além disso, outraproblemática se faz presente: ao disponibilizar seus espaçosmidiáticos para discutir e se debruçar sobre as pautasantirracistas, a mídia/imprensa branca, e por vezes burguesa, nãoacaba por ofuscar os espaços e veículos midiáticos da imprensaalternativa, dos coletivos periféricos, dos movimentos negrosdiversos?

    Ao discutir as pautas raciais de maneira “improvisada” eno calor dos acontecimentos verificados nos EUA, amídia/imprensa oficial no Brasil dá a impressão de que nossosGeorge Floyd da violência urbana cotidiana passamdespercebidos e invisibilizados perante a comoção pública. Emais, tais iniciativas passam, por vezes, ao imaginário popular, afalsa impressão de que inexiste uma preocupação de outrasesferas sociais com essas problemáticas, ficando a impressão deque só existe discussão sobre tais temáticas quando amídia/imprensa oficial ou youtubers se interessam em cederespaço para tais discussões. Acabam, com isso, invisibilizandolutas cotidianas da população negra para se fazer ouvir edenunciar seu duro cotidiano em uma país extremamente racistacomo o Brasil.

    A imprensa negra há tempos se faz presente evidenciandoa importância da discussão das pautas raciais e denunciando a

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    violação dos direitos civis que, por muitas vezes, lhes foi negadopelas classes dominantes. Não é diferente nos dias atuais, quandovasta produção literária, jornalística e midiática negra possui seupapel fundamental nas discussões sobre o racismo estrutural,mas, normalmente, não tem visibilidade.

    As atuais iniciativas da mídia/imprensa oficial em tratar aspautas raciais dão ainda a impressão da não existência de umaimprensa negra ativa e combatente no passado. Ledo engano,pois através de uma breve análise documental de fundosarquivísticos, é possível verificar que a imprensa negra sempre sefez presente.

    As publicações jornalísticas após a abolição da escravidãoretratam as condições que o negro se encontrava, tentandosobreviver e ascender socialmente, inclusive enfrentandodificuldades de inserção no mercado de trabalho, acentuadas pelocontingente imigratório predominantemente branco e europeu,cuja chegada foi incentivada pelo crescimento econômico do caféem conjunto com o interesse, por parte do governo brasileiro,em promover o branqueamento da população, intensificandoainda mais a marginalização do negro.2

    Logicamente, a imprensa tradicional negligenciava aquestão negra, sempre atribuindo o insucesso do recém liberto àincapacidade intelectual ou à propensão natural ao crime. Poresses motivos, os periódicos da imprensa negra foramimportantes para a integração do negro no começo do séculoXX, a despeito dos níveis de analfabetismo da população negraserem muito altos naquela época.

    2BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de S. Paulo. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo:Editora Perspectiva, 1973.

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    No Arquivo Público do Estado de São Paulo, é possívelconsultar os arquivos permanentes sobre a imprensa negra, comoesses a seguir.

    O Alfinete (1918-1921)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Alvorada (1948) – Jornal da Associação dos Negros Brasileiros (ABN)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    O Bandeirante (1918-1919)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Liberdade (1919-1920)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Tribuna Negra pela União Social e Política dos Descendentes da RaçaNegra (1935)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Senzala (1946)

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    O Acervo da revista Quilombo (1950) pode ser consultado através do site daIpeAfro

    Em suma, a imprensa negra sempre se fez presente. Osespaços “cedidos” pela mídia/imprensa oficial, youtubers,

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    blogueiros, influencers etc., ainda que importantes diante daconjuntura atual, não devem, no entanto, serem vistos como osúnicos espaços onde as pautas antirracistas são discutidas. Poroutro lado, é necessário também que os diversos movimentosnegros não fiquem “reféns” dos espaços disponibilizadosimprovisadamente pelo calor sensacionalista do momento. Cabeaos negros reivindicar a discussão permanente de tais pautasnesses espaços, de maneira paralela ao trabalho desempenhadopela imprensa negra ao longo da história.

    Referências bibliográficas

    A NEGAÇÃO do Brasil. 2017. Vídeo (1h29min07s). Publicado pelo canalCine Clube Dionel. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2020.

    ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Repositório Digitalde Jornais e Revistas. Disponível em:. Acesso em: 28 jun. 2020.

    A VOZ DA RAÇA. São Paulo, 1933-1937. Disponível em:. Acesso em: 28 jun. 2020.

    BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de S. Paulo. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

    IPEAFRO. Acervo Digital. Disponível em: . Acesso em: 28jun. 2020.

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    SITE do Arquivo Público de SP reúne jornais históricos da “imprensanegra”. G1, 13 maio 2011. Disponível em:. Acesso em: 28 jun.2020.

    Coluna socialista …

    “Muitos são os memes na internet de pessoas que tinhamprojetos de aprender mandarim, praticar ioga e virar o novo

    maromba do pedaço durante a quarentena, aproveitando as 2h detransporte que seriam poupadas, mas que no final não

    conseguiram concretizar nada. Ao fim, a quarentena parece umavida em suspenso, um eterno esperar pelo reencontro que parece

    que nunca vai chegar.Somado a esse caos, esse sentimento estranho de uma vida

    interrompida sabe-se lá até quando, eu e meus colegas passamospor mais um processo ao mesmo tempo: somos trabalhadores da

    Cinemateca Brasileira.Repassar todos os acontecimentos seria muito torturante e

    enfadonho, desde março quando os vales não caíram e depois nomês seguinte quando o salário não caiu e a espera semana após

    semana, promessas semanais de resolução do problema e denovo, de novo, de novo. Passaram-se três meses nessa situação…

    A vida em suspenso pela quarentena virou uma abstração,como se estivesse no espaço, vagando sem controle. Olhar para

    amanhã, para a próxima semana é um grande nada. Não épossível fazer qualquer tipo de plano, porque simplesmente não

    sabemos nada do que acontecerá. A quarentena piora tudo,porque não há empregos possíveis, perspectivas de estudos,

    nada… E nem de receber os salários já devidos.

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    Após o quarto ato, que foi mais um piquete para lembrarque ainda não recebemos um real sequer, um sentimento de

    vazio ficou, de não ser possível planejar qualquer coisa. O quefazer, se toda semana reuniões acontecem ou são adiadas e nada

    é dito sobre quando receberemos? Bate um cansaço, um certodesespero, desânimo, uma decepção enorme com algumas

    pessoas durante este processo.Mas fica também um alento, um sentimento de amparo em

    alguns colegas de trabalho, companheiros nessa luta, que conhecimelhor durante esse processo, nos aproximamos, começamos a

    trocar ideia, outros que tiveram os laços reforçados. Nosapoiamos uns nos outros, nos dias difíceis, trocando ideia,

    tentando encontrar uma solução conjunta, amenizar a situaçãodos mais frágeis e tentar não enlouquecer… A esses colegas umagradecimento gigante, um carinho imenso, fico muito feliz deestar com vocês, da gente ter se encontrado e se aproximado, seapoiado, mesmo que desse jeito torto, nessa situação horrível!

    Obrigada por estarmos juntos e sobrevivendo a essepesadelo que parece não ter fim…”

    Rosa Rosa Gomes, trabalhadora da Cinemateca Brasileira

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  • Maria Antonia | Ano 1 nº 34 | 30 jun 2020

    _____________________________________________________Expediente

    Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Prado, Daniel Ferraz,Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.Publicação do GMARX - Grupo de Estudos de História e Economia Política / FFLCH-USPEndereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000Email: [email protected]

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    mailto:[email protected]