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ITINERÁRIOS DE MISSÃO DO ORATORIANO TEODORO DE ALMEIDA Zulmira C. Santos* Se os primeiros estudos sobre as missões internas em Portugal, na Idade Moderna, visaram essencialmente «OS agentes, os métodos e os resulta- dos», como sublinhava, em 1984, Eugénio dos Santos, num estudo que pro- curava traçar o panorama do fenómeno missionário entre a segunda metade do século XVI e 1834 1 , as investigações mais recentes, embora não abando- nando esse domínio em que muitas áreas permanecem por clarificar, têm vindo a enquadrar o fenómeno missionário no conjunto dos mecanismos de controlo emanados de Trento, entendendo-o como o desenvolvimento de um mesmo objectivo que se, por um lado, se concretizava na intervenção nas áreas de poder através da direcção de consciências das classes dirigentes, por outro, encontrava nas missões a forma de divulgar e instaurar modelos de vida religiosa condizentes com a ortodoxia 2 E se a preocupação com as Índias de • Universidade do Porto 1 Eugénio dos SANTOS, Missões do interior de Portugal na Época moderna: agentes, métodos e resultados in Arquipélago, (Série de Ciências Humanas), no VI, Janeiro, 1984, 29-65. 2 Obviamente, no sentido de missão popular, paroquial.ou interna Alguns autores têm, como é sabido, chamado a atenção para os diferentes sentidos da expressão <<missio sacra>>. Veja-se, entre outros, Giuseppe ORLANDI, Le missione popolare in età moderna in Storia deli' ltalia Religiosa, Roma, 1994, 418-443 (t. II. L'Età Moderna). Como acentua este estudioso <<illinguaggio eccle- siastico d'età moderna attribuisce ai termine «missione>> (missio sacra) vari significati. Per esem- pio, quello di predicazione della fede ai non credenti e ai non cattolici, specialmente nei paesi d'oltre mare; ma anche quello di missione popolare (o paiTocchiale), destinata ai cattolici.>> (419). O mesmo autor assinala ainda, recuperando as palavras de R. COLOMBO ( Il linguaggio mis- sionaria nel Settecento {raliano. Intorno al «Diario delle missioni di s. Leonardo da Porto Mautizio» (Rivista di Storia e Letteratura religiosa», 20, 1984, 371),que 'l'invasione missionaria' nell' europa cattolica dei '600... há representato <<i' altra faccia dei grande slancio missionaria nei confronti delle colonie extraeuropee: aspetti diversi, ma complementari, di un gigantesco tentati- vo di acculturazione che consisteva in un caso nell"esportazione coatta dei modello di civiltà cris- tiano-europeo, e nell' altro nella lotta, metodologicamente varie gata, contra !e caratteristiche 'pre- cristiane', animisti e di vario tipo, della 'cultura popolare' da un capo all'altro deli' Europa>> (ibid, 418). Sobre esta questão, a obra fundamental de Louis CHÂTELLIER, La religion des pauvres. Les Missions rurales en Europe et laformation du catholicisme moderne. XV/e-XIX siecles, Paris, 1993 (Tradução portuguesa A religião dos Pobres. As fontes do cristianismo moderno. Séc. XVI- -XIX, Lisboa, 1994.). Vale a pena, também, para a realidade ibérica, embora quase só espanhola e essencialmente sobre a pregação, continuar a ter em conta as informações de Joel SAUGNIEUX, Les Jansénistes et le renouveau de la prédication dans l'Espagne de la seconde moitié du XVII/e siecle, Lyon, 1976, especialmente sobre a actividade missionária do P. Calatayud e a obra Las do- ctrinas y sermones para misión de Miguel de Santander, publicada pela primeira vez em 1800. Piero CAMPORESI, Cultura popolare e cultura d'élite fra Medioevo ed età moderna in Storia 18 273

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ITINERÁRIOS DE MISSÃO DO ORATORIANO TEODORO DE ALMEIDA

Zulmira C. Santos*

Se os primeiros estudos sobre as missões internas em Portugal, na Idade Moderna, visaram essencialmente «OS agentes, os métodos e os resulta­dos», como sublinhava, em 1984, Eugénio dos Santos, num estudo que pro­curava traçar o panorama do fenómeno missionário entre a segunda metade do século XVI e 18341

, as investigações mais recentes, embora não abando­nando esse domínio em que muitas áreas permanecem por clarificar, têm vindo a enquadrar o fenómeno missionário no conjunto dos mecanismos de controlo emanados de Trento, entendendo-o como o desenvolvimento de um mesmo objectivo que se, por um lado, se concretizava na intervenção nas áreas de poder através da direcção de consciências das classes dirigentes, por outro, encontrava nas missões a forma de divulgar e instaurar modelos de vida religiosa condizentes com a ortodoxia2

• E se a preocupação com as Índias de

• Universidade do Porto 1 Eugénio dos SANTOS, Missões do interior de Portugal na Época moderna: agentes, métodos e

resultados in Arquipélago, (Série de Ciências Humanas), no VI, Janeiro, 1984, 29-65. 2 Obviamente, no sentido de missão popular, paroquial.ou interna Alguns autores têm, como é

sabido, chamado a atenção para os diferentes sentidos da expressão <<missio sacra>>. Veja-se, entre outros, Giuseppe ORLANDI, Le missione popolare in età moderna in Storia deli' ltalia Religiosa, Roma, 1994, 418-443 (t. II. L'Età Moderna). Como acentua este estudioso <<illinguaggio eccle­siastico d'età moderna attribuisce ai termine «missione>> (missio sacra) vari significati. Per esem­pio, quello di predicazione della fede ai non credenti e ai non cattolici, specialmente nei paesi d'oltre mare; ma anche quello di missione popolare (o paiTocchiale), destinata ai cattolici.>> (419). O mesmo autor assinala ainda, recuperando as palavras de R. COLOMBO ( Il linguaggio mis­sionaria nel Settecento {raliano. Intorno al «Diario delle missioni di s. Leonardo da Porto Mautizio» (Rivista di Storia e Letteratura religiosa», 20, 1984, 371),que 'l'invasione missionaria' nell' europa cattolica dei '600 ... há representato <<i' altra faccia dei grande slancio missionaria nei confronti delle colonie extraeuropee: aspetti diversi, ma complementari, di un gigantesco tentati­vo di acculturazione che consisteva in un caso nell"esportazione coatta dei modello di civiltà cris­tiano-europeo, e nell' altro nella lotta, metodologicamente varie gata, contra !e caratteristiche 'pre­cristiane', animisti e di vario tipo, della 'cultura popolare' da un capo all'altro deli' Europa>> (ibid, 418). Sobre esta questão, a obra fundamental de Louis CHÂTELLIER, La religion des pauvres. Les Missions rurales en Europe et laformation du catholicisme moderne. XV/e-XIX siecles, Paris, 1993 (Tradução portuguesa A religião dos Pobres. As fontes do cristianismo moderno. Séc. XVI­-XIX, Lisboa, 1994.). Vale a pena, também, para a realidade ibérica, embora quase só espanhola e essencialmente sobre a pregação, continuar a ter em conta as informações de Joel SAUGNIEUX, Les Jansénistes et le renouveau de la prédication dans l'Espagne de la seconde moitié du XVII/e siecle, Lyon, 1976, especialmente sobre a actividade missionária do P. Calatayud e a obra Las do­ctrinas y sermones para misión de Miguel de Santander, publicada pela primeira vez em 1800. Piero CAMPORESI, Cultura popolare e cultura d'élite fra Medioevo ed età moderna in Storia

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cá se pode datar da década de trinta do século XVP, os anos que acompan­ham e se seguem a Trento assistem a uma intensificação do fenómeno mis­sionário, de forma a que, ao longo do século XVII, a missão foi assumindo o carácter de instituição permanente no âmbito da pastoral, tomando-se, como tem sido unanimemente assinalado pelos estudiosos deste domínio, um dos fenómenos mais característicos de Seiscentos4

A bibliografia desenvolvida neste âmbito, para além de estabelecer, conforme a área de intervenção era ou não maioritariamente protestante, a conhecida tipologia que procura reduzir a natureza das missões a dois méto­dos essenciais5

, a missão catequística e a missão penitencial - embora alguns autores considerem a existência de um terceiro método, resultante da síntese dos dois primeiros -tem acentuado, nas estratégias missionárias, a questão da penitência, da organização e do controlo do sentimento de culpa, do objectivo fulcral e final da confissão, num esforço que, visando o controlo social, pro­curava a homogeneização de um cristianismo «rural» que misturava religião e mag1a.

Apesar deste complexo quadro de referência, procuraremos apenas, neste curto trabalho, contribuir para o estudo das missões em Portugal, através de um caso absolutamente particular e bastante restrito- a actividade missionária do oratoriano Teodoro de Almeida [1722-1804]- objectivo para que dispomos de um conjunto de dados bastante limitado. E se a esta co­nhecida figura do Oratório português de Setecentos têm atribuído unanime­mente projectos e formas de divulgação da denominada Filosofia Modema, como autor e professor, embora se possam e devam discutir os contornos e sentidos dessa divulgação, muito menos atenção se tem prestado, porém, à dimensão espiritual ou «espiritualizante» de alguns dos seus textos que, no

d'Italia. Annali 4. Intellettuali e Potere, (Torino, 1981, 81-158) e Albano BIONDI, Aspetti della cultura cattolica post-tridentina. Religione e controllo sociale in Storia d'Italia, (oh. cit., 253-304) integram observações a reter.

' Roberto RUSCONI, Predicatori e Predicazione (especialmente o ponto 6. Dalle «lndie di quag­giú» ad un cristianesimo rurale in Storia d'Italia. Annali 4. lntellettuali e Potere, Torino, 1981, 951-1035 e, para além da bibliografia aí indicada, o posterior trabalho de Adriano PROSPERI, II Missionario in L'Uomo Barocco dir. da Rosario VILLARI, Roma, 1991 (Trad. port. O Missionário in O Homem Barroco, Lisboa, 1995).

4 Cario GINBURG, Folklore, magia, religione in Storia d'Italia, Torino, 1972. Giuseppe ORLAN­DI. Le missione popolare in età moderna in Storia deli' ltalia Religiosa ... , ob. cit., 418-443

'Giuseppe ORLANDI, Le missione popolare ... , ob. cit., 432-434. Vejam-se as distinções subli­nhadas por este estudioso entre os diversos tipos de missionários: «missionario (Missionarius) per antonomasia era detto chi si dedicava alie missioni popolari vere e proprie, com vari livelli di responsabilità (Praefectus missionum, Alter missionarius, Secundus missionarius, Socius mis­sioarii, Socius in Missionibus); ii missionario urbano (missionarius urbanus, Concionator in piareis civitatis, Concionator per sacella civitatis, concionator per vicos civitatis) era destinato alia missione urbana; ii missionario suburbano (Missionarius suburbanus, paganus, extra moenia, per pagos, per suburbia, per vicinia) operava nei dintorni della città, nei casali ecc.; ii missionario urbano-suburbano (Missionarius urbanus et paganus, urbanus et per pagos) operava sai in città che nei dintorni.).

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entanto, integram e explicitam um projecto de Fé e Luzes, para usar uma denominação consagrada, que neste caso convém matizar pela expressão «as luzes possíveis num projecto de Fé» pois que, embora aparentemente ambígua, é porventura a que mais fielmente traduz e engloba o conjunto da sua obra.

E, contudo, menos atenção ainda- se é possível dizê-lo desta forma eufemística - tem recebido o quadro de tarefas pastorais em que sempre se envolveu e de cujo conjunto devemos destacar, essencialmente pela importân­cia que Teodoro de Almeida lhe concedeu, uma constante, insistente e por vezes até ávida actividade de direcção espiritual de figuras de nobreza de corte. É justamente nessa rede de relações e solidariedades que Almeida tanto cultivou que é preciso procurar, se não todas, grande parte das razões que explicam a animosidade de Sebastião José de Carvalho e Melo que acabou por conduzir o oratoriano a oito anos de estadia no Porto, afastado da corte, entre 1760 e 1768 e quase dez em França, entre Fevereiro de 1769 e Março de 1778.

Apesar desta marcada relação com os círculos de corte retomada, talvez de outras formas mas com estratégias e objectivos idênticos, depois da subida ao trono de D. Maria I- e que no presente contexto não importa explo­rar- Teodoro de Almeida parece ter concedido grande importância ao traba­lho missionário no conjunto das suas tarefas pastorais.

A letra dos Estatutos da Congregação do Oratório6 distinguia com nitidez as «Índias de cá» das «Índias de lá», reservando para as primeiras as aptidões e esforços dos seus membros, face ao panorama de ignorância vigente e ao problema maior da ausência de confissões: «He grande a neces­sidade que o Reyno tem de Missionarias, pela crassa ignorancia que geral­mente há dos mysterios da Fé, confissões nullas de muytos annos por negli­gencia, ou por pejo, com notavel perda das almas por este respeyto, e grande descuydo da salvação, em que se vive, por falta de Despertadores, como tudo nos consta já por experiencia. E assim os nossos Padres irão dous, e dous a estas missões, à imitação dos discípulos de Christo, especialmente por este Arcebispado, alcanç~ndo do Senhor Arcebispo, ou quem suas vezes tiver, licença para absolver dos peccados reservados, e ordem para que os Parrocos os não impidão, mas mandem abrir as Igrejas, e tocar o sino, e campainha para acudir o povo»7

As missões de carácter evangelizador, dirigidas à «conversão dos gen­tios», eram entendidas como sendo «mays para escolhidos do que para man-

6 José Sebastião da Silva DIAS, A Congregação do Oratório de Lisboa. Regulamentos Primitivos. Coimbra, 1966. Sobre as diferentes formulações dos Estatutos até ao reconhecimento final pelo Breve de Clemente X <<Ex iniuncto nobis coelitus>>, em 1672, se bem que o texto retenha a data de 12 de Janeiro de 1670, cf. Eugénio dos SANTOS, O Oratório no Norte de Portugal, Lisboa, 1980, 1-98 e Maria Lucília Gonçalves PIRES, Para uma leitura intertextual de «Exercícios Espirituais» do Padre Manuel Bernardes, Lisboa, 1982,47-59.

7 J. S. da Silva DIAS, Estatutos ... , n.0 15, 17.

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dados»s e «se não põem por obrigação aos nossos congregados; mas os que quizerem ir a ellas, será acção muyto louvavel, de muyta gloria pera Deos, e credito desta congregação, que como tal se deve persuadir; e assim, os que a intentarem darão conta ao Preposito, que a communicará com o Prefeyto espiritual, e mays Deputados, os quaes considerando a vocação, prestimo, e espírito dos sujeytos, julgando ser conveniente lhes darão licença, ou para sempre, ou por annos determinados, e sempre será conveniente remetê-los à Recoleta que para este fim fundarão em Pernambuco dous Clerigos, filhos desta Congregação, em que hoje assistimos, com a qual nos communicaremos com toda a charidade; como Irmãos, filhos da mesma Mãy, lhe assistiremos ao que neste Reyno lhe for necessario, e daremos agasalho aos que a elle vierem; e com esta communicação se animarão alguns a ir ajudalos naquella nova conquista de almas, em que aquelle Recoleta tem feyto tanto fructo como he notorio. E assim para estas missões, como pata as do Reyno, de que fallamos acima, se pedirão a Sua Santidade, com todo o calor, os privilegias de Missionarias tão precisamente necessarios ao intento: e para os Padres, e Irmãos desta Congregação as graças, e indulgencias que tem a de S. Philippe Neri em Roma, a de S. Carlos Borromeu, ou outra semelhante; e para os que de fora assistirem aos exercícios, as que se puderem alcançar, ou têm os Con­gregantes de S. Philippe Neri em Roma9».

Ao subordinar, em termos de obrigações e consequente importância, as missões evangelizadoras às missões no «reino», os Estatutos concedem, no quadro da actuação da instituição, indubitavelmente maior relevância a estas últimas, marcando as diferenças face a outros Institutos tidos como mais vocacionados para além-mar, ao mesmo tempo que enfatizam a componente doutrinal e o apelo à confissão: «Ü estilo ordinario será, chegando a huma terra, fazer hum dos Padres doutrina à hora que for mays conveniente, para poderem vir todos a ella; a qual constará de tres partes: ensinar sumariamente os Mysterios da Fé precisamente necessarios, com a brevidade possível, para ficarem mays facilmente na memoria; fazer huma exortação muito efficaz à reforma de vida, e aborrecimento do peccado, valendo-se para isso de de algum motivo que se offerecer, ou levar preparado, e com seus exemplos, e ensinar a confessar bem, com as partes necessarias para isso, estranhando muito, com razões e casos notaveys que succederão aos que se confessarão mal, e negarão peccados por pejo; e no fim, ensinando, e persuadindo a neces­sidade, e virtude do acto de contrição, fazendo-o por remate da doutrina, com os mininos em voz alta, e com huma exclamação que mova as lagrimas, e arrependimento. E do mesmo pulpito, ou lugar alto, em que fará a doutrina, com a sua capa, barrete, e cana na mão, avizará que quem se quizer confessar acuda na mesma manhã seguinte em que há de estar naquella terra, como

'J. S. da Silva DIAS, Estatutos ... , n.0 16, 18. 'J. S. da Silva DIAS, Estatutos ... , n.0 18-19.

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estará no dia seguinte à espera da caça que levantou a doutrina; e se lhes pare­cer necessario estarem mays algum, ou alguns dias estarão, mas só os que jul­garem precisamente necessarios para poderem acodir aos que tiverem que remediar, nos quaes farão amizades, e visitarão os carceres, e hospitaes, se os ouver, e tambem pregarão se se offerecer occasião de que esperem fructo.» 10

A pertinência das missões «no Reino» assentava, assim, pela letra dos Estatutos, no ensino sumário e breve dos «mysterios da Fé» e na extrema importância conferida à confissão, deixando entender objectivos tendentes ao preenchimento de um saber encarado como lacunar em termos religiosos e espirituais e, simultaneamente, preocupações maiores com a salvação das almas, que pecados nunca confessados certamente impediriam.11

Não surprende, neste universo, que o Padre Manuel Bernardes [1644--171 O] tivesse julgado necessário acentuar, na introdução de Luz e Calor dirigida «Ao Leitor Benévolo», que o terceiro motivo que o havia sido leva­do a escrever residia na vontade de «suprir, pelos voos da pena, os passos que por meus achaques não posso dar nas Missões, que mandam os Estatutos desta minha Congregação» 12

2. «Em Miçoens porventura irá dizendo» ...

No caso particular da actividade missionária de Teodoro de Almeida a documentação é escassa .. Podemos recorrer, no conjunto de fontes susce­ptíveis de servir ao estudo da sua biografia, a um grupo de documentos, pre­sumivelmente autógrafos, guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo13 e à Vida anónima que por 1830- a acreditar em referências intratex­tuais- um outro congregado, muito provavelmente o P. Joaquim Dâmaso, lhe dedica e cujo manuscrito se intitula Vida do P. Theodoro de Almeida da Con­gregação do Oratorio de Lisboa, Fundador do Convento das Religiosas da Visitação de Maria no sitio da Junqueira, e o quee mais trabalhou para de novo ser povoada a Casa do Espirita Santo da Pedreira depois de reedifica-

10 J. S. da Silva DIAS, Estatutos ... , n.0 15, 18. "Jean Delumeau sublinhou, como é sabido, em L'aveu et le pardon (Paris, 1990) o quanto a práti­

ca da confissão teve dificuldade em impor-se. Existe sobre este problema uma vasta bibliografia que nos dispensamos de citar. Monique COTTRET no recente Jansénismes et Lumieres (Paris, 1998) retoma alguns aspectos da questão, no capítulo «contre les Jésuites>>, 117-142. E. dos SAN­TOS abordou o problema, em contexto missionário, em A congregação do Oratório. Subsídios para a sua história, dissertação de licenciatura dact., Porto, 1968 e Missões e missionários do inte­rior da região de Guimarães e sua colegiada. 85(!' aniversário da batalha de S. Mamede (1128--1978), Actas, Guimarães, 1981, vol. III, 219-236.

"Padre Manuel BERNARDES, Luz e Calor, Porto, s/d.: «Três motivos me tornaram a meter na mão a pena : um que respeita a Deus, outro a mim e outro ao meu próximo. O primeiro foi obedecer aos que estão em lugar de Deus; o segundo, temer a conta do talento (ainda que limitado) se o não pusesse a logro; o terceiro suprir, pelos voos da pena, os passos que por meus achaques não posso dar nas missões, que mandam os Estatutos desta minha Congregação>>.

13 Referimo-nos ao grupo de documentos sob a designação Ms. da Livraria 1675 1-16.

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da sobre as ruínas da que pelo terremoto de 1755, e inçêndio, que se lhe seguia ficara destruidd 4

Tanto o primeiro conjunto documental, constituído por folhas avulsas de difícil identificação segura, como a Vida se revelam textos complicados na perspectiva da utilização directa como fontes, na medida em que ambos com­portam problemas.

O primeiro grupo integra um acervo diversificado e pouco ordenado, que uma pequena epígrafe manuscrita atribui a Teodoro de Almeida: Obras, Rascunhos e Apontamentos que me parece serem pela maior parte, do P. Theodoro de Almeida - alguns andão impressos I Caza da Congregação do Espírito Santo de Lisboa 15

• Contém documentação diferenciada, desde cartas escritas pelo oratoriano a missivas a ele dirigidas, composições poéticas diversas, versões prévias de obras publicadas ... Considerando o objectivo que norteia este trabalho, a determinação da actividade mi_ssionária de Almeida, não nos importam, obviamente, todos os textos, de resto muito significativos de outros pontos de vista, mas apenas aqueles que explicitamente integram referências a esse facto e que, de alguma forma, permitem avaliar o lugar que Almeida assinalava às missões, no quadro das suas tarefas apostólicas. Nesse sentido, valeria a pena precisar se esses textos que, neste caso particular, merecem a nossa atenção, pertencem ou não ao oratoriano.

Verdadeiramente, interessam-nos, no contexto em causa, duas versões rasuradas, praticamente iguais, de uma mesma composição poética intitulada Historia da Fogida de misseno sahindo do Reino pa escapar da sua perci­guição I Em 1768 I Cantico de louvor de Misseno, escapando dos perigos á imitação do de Moizes despois depassar o Mar Vermelho 16

• Embora a com­paração com cartas consideradas da mão de T. de Almeida permita suspeitar até do carácter autógrafo de tal documentação, importa-nos, sobretudo, por agora, ajuizar da autoria e não tanto da também muito provável autenticidade

14 ANTT Ms da Livraria 2316. Referenciado por A. A Banha de ANDRADE em <<Processo pom­balino contra os oratorianos>> (in Contributos para o estudo da mentalidade pedagógica em Portugal, Lisboa, 1982, 435-490), este manuscrito foi largamente utilizado, praticamente como fonte indiscutível, por Ferdinand de AZEVEDO, na dissertação que a Teodoro de Almeida dedi­cou: Teodoro de Almeida ( 1722-1804) and the Portuguese Enlightenment (a dissertation submit­ted to the Faculty of the Graduare School of Arts and Sciences of the Catholic University of America in partia/ fulljillment of the Requirements for the Degree of doctor of Philosophy, Washington D. C., 1974. Francisco Contente Domingues, que também o utiliza em Ilustração e Catolicismo. Teodoro de Almeida (Lisboa, 1994 ), transcreveu-o em <<Teodoro de Almeida (1722--1804). Subsídios para uma biografia», F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa- dissertação de mestrado, 1986 (dactilografada).Existem, ainda, algumas indicações dispersas e muito pontuais no manuscrito alegadamente anónimo, embora com toda a probabilidade de Teodoro de Almeida, intitulado Historia da Fundação do Mosteiro da Visitação em Lisboa. No anno de 1784 (ANTT, Ms da Livraria, 661) que integralmente transcrevemos na nossa dissertação de doutoramento (em curso).

1' ANTT, Ms da Livraria 1675 1-16.

16 ANTT, Ms da Livraria 1675 3 (A).

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da cópia. E as provas que relevam da própria natureza dos textos, isto é, da permanência de temas, títulos e personagens, afiguram-se-nos seguras, se avaliadas no quadro da produção escrita do oratoriano.

O poema narra as vicissitudes de Misseno, que se vê obrigado a aban­donar o país a caminho do exílio, em virtude da perseguição movida por um ministro poderoso e, embora sem data, deverá ter sido escrito depois do regresso de Teodoro de Almeida a Portugal, em 1778, ou quando muito durante a estadia em França. 17 Indepentemente das claríssimas e transparentes alusões a momentos e acontecimentos conhecidos da vida de Teodoro de Almeida, essencialmente à alegada ordem de prisão emitida por Pombal que o teria levado a fugir do Porto para a Galiza e, depois gorada a tentativa de atingir a Holanda, a permanecer durante quase dez anos em França, a perso­nagem Misseno atravessa algumas das produções textuais do oratoriano, como uma espécie de alter-ego que, no poema Lisboa destruida 18

, é apelidado Tirso e que o autor faz presenciar e participar das operações de salvamento consequentes ao terramoto de 1755, acompanhando a Marquesa de Távora e sua filha, a Condessa de Atouguia19

• Em O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna (1779)21>, o protagonista, também apelidado Misseno, representa a unidade da novela através de um fio condutor nem sempre claro e explica e legitima, pela actuação escolhida, a concepção de felicidade que o título espelha. Lidos à luz destes textos e contextos, parece pacífico aceitar a auto­ria de Teodoro de Almeida e logo aproveitar como testemunhos credíveis as poucas mas ainda assim existentes informações sobre a sua actividade mis­sionária enquanto exilado.

17 A Vida atribui-lhe a data exacta de 1777, ano em que Teodoro de Almeida inicia o regresso a Portugal. A Historia da fogida de Misseno compara a fuga de Moisés à do protagonista, silen­ciando, contudo, as razões que a motivaram. De qualquer modo, o símile não deixa de funcionar no quadro simbólico da opressão que obriga Misseno a abandonar o reino. Nas duas lições do poema, que diferem apenas, como já acentuámos, pela correcção das rasuras, o autor, com toda a probabilidade Teodoro de Almeida, não desenvolve o tema do afastamento da corte, mas tão somente o de' um peculiar «voluntário>> exílio que procura, aturadamente, explicar por desígnios da Providência que pretendiam conduzi-lo à Saboia, onde teria como missão trazer para Portugal as Yisitandinas de S. Fliancisco de Sales e Santa Joanna Frémyot de Chantal: «la no Forte hum bem triste calhaboiço I preparado me tem: já carrancudas I sentinellas destina, que me guardem I Thé que a morte me arranque a triste vida I Nos tormentos escuro consumida I Já cadeias prepara já Ministros I com algemas e cadeias bem munidos I Já passadas manda ordens apertadas I Em segredo, que todos em segredo I Prontamente executam já partirão I Os correios voando, já lhe tarda I O effeito das ordens dezejado ... >>. ANTT, Ms da Livraria 1675 3 (A),

"Lisboa destruída poema. Lisboa, Officina da António Rodrigues Galhardo, 1803. 19 Ao resumir os acontecimentos do terramoto de 1755, o biógrafo de Teodoro de Almeida sublinha

no texto da Vida, a extrema coragem do oratoriano e alude, justamente, ao poema em causa: <<Portanto considerou sempre o P. Theodoro estte acontecimento como dirigido pela Mão Divina, e em agradecimento ao Senhor de tão beneficio, em que lhe salvou a vida , logo sahiu pela cidade visitando as ruinas, e empregandose em enterrar os mortos que apparecião debaixo dellas, e sal­var de entre ellas os que ainda se achavam vivos. Tanto era nesses calamitosos dias o seu fervor, ou trabalho, que mais parecia Ter corpo de ferro que de carne>>. Cf. Vida ... §28.

20 O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna ou Arte de Viver Contente em Quaesquer Trabalhos da Vida, Lisboa, Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1779.

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Todavia, a fonte mais informativa, e contudo bastante parca, é a Vida acima indicada que, no entanto, como já sugerimos, é um texto posterior, redigido por um discípulo que alegadamente se propõe contar «O que vio e ouvio da propria boca de seo Mestre»21

• Ao longo do relato, o biógrafo vai disseminando informações sobre o trabalho missionário que facultam a reconstituição de um percurso, no sentido de um itinerário geográfico, ao mesmo tempo que divulgam juízos valorizadores, sempre atribuídos a Teodoro de Almeida, caucionados pela fórmula discursiva «muitas vezes lhe ouvi dizer», desta especial tarefa apostólica.

Embora aqui não caiba a discussão da natureza textual da Vida, tri­butária do variado e complexo filão designado como «biografia devota»22

, o que implicaria lê-la na moldura de tópicos, estratégias e procedimentos de intensificação tendentes à construção de uma conduta proposta como mode­lar, valerá a pena acentuar que se nos depara uma «fonté(» que se pretende, se não claramente um «espelho» de perfeição «oratoriana», que haveria que dis­cutir numa formulação cronológica tão complexa do ponto de vií)ta do debate visando a «utilidade» das ordens religiosas quanto o era 1830, com toda a probabilidade o ano da redacção, pelo menos um paradigma de «religioso» útil à sociedade, à Igreja e ao país.

Deste ponto de vista, sublinhemos que nas fontes que privilegiámos, não procurámos, em virtude da sua própria natureza, dados factuais, que do­cumentos da própria Congregação do Oratório podem facultar, o que não sig­nifica, naturalmente, que os documentos utilizados não os proporcionem, e que não possam ser confirmados por outro tipo de documentação, mas sim as formas e sentidos como textos do autor e de outros sobre ele, em diferentes cronologias, valorizaram as missões, quer do ponto de vista da funcionalidade dentro de um conjunto de tarefas apostólicas, quer do lugar atribuído no desenhar de um retrato de «religioso» formulado como exemplar.

As apreciações globais sobre a importância e funções das missões, como já sugerimos, ocorrem, essencialmente, no texto da Vida. Em vários momentos do relato, o biógrafo sublinha o lugar privilegiado que Teodoro de Almeida lhes concedia, apresentamdo-as como a mais importante e envol­vente das tarefas pastorais. A primeira alusão verifica-se na sequência dava­lorização das aptidões e capacidades pedagógicas do oratoriano como mestre

21 Vida ... § 1. 22 O problema da ambígua fronteira entre as <<vidas de santos» ou <<biografias sacras>>, para usar a

designação de J. Thomas HEFFERNAN ( Sacred biography. Saints and their biographers in the Middle ages, Oxford, 1988) tem vindo a ser equacionado sobretudo para os XVI e XVII por uma ampla bibliografia. Vejam-se, para o estado da questão, os estudos citados e a problematização do conceito em Maria de Lurdes Correia FERNANDES, Entre a família e a religião: a «Vida» de João Cardim ( 1585-1615) in Lusitania Sacra, 2.• série, Tomo V, Lisboa, 1993, especialmente 93--104. Veja-se, ainda, como põem a questão, os diferentes artigos do n. 0 3 de Via Spiritus (Porto, CIUHE, Ano 3, 1996) intitulado. Legendae, Vitae, Flores: formas e conteúdos da hagiografia em Portugal na Época Moderna.

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particular do filho do Marquês de Távora, a quem preparou, apenas no espaço de menos de um mês, para a defesa de «Conclusões» na Casa do Espírito Santo23

, como professor de Filosofia24, como exímio manejador de instrumen­

tos físicos 2S, como admirável autor da Recreação Filosófica26 • Num quadro

discursivo tão valorizador de uma dimensão de cariz intelectual, o biógrafo introduz a vertente verdadeiramente pastoral, como se se pretendesse sublin­har que os caminhos da ciência não implicavam para Teodoro de Almeida o esquecimento de outras obrigações que entendia até como bem mais impor­tantes: «Naturalmente mais amava o P. Theodoro os estudos, que lhe occu­pavam o entendimento, do que aquelles que carregão a memoria, nem tinha paciencia para obras de mera erudição como Filosofo a quem a contemplação de hum vermezinho, que mal se ve a olhos nus, ou de huma florzinha desprezada entre as ervas do campo, dá mais que pensar do que a Historia Grega ou romana, e como em parte pelo seu genio activo e pelo seu zelo vir­tuoso não consentia descanso, não se poupava no Confessionario e ás Mis­sões, e num e noutro ministerio não lhe faltarão perigos e aflições.»27

Para além desta primeira referência ao comportamento do oratoriano perante as tarefas pastorais assinaladas pelos Estatutos, que claramente salien­ta as missões e a confissão28

, o biógrafo constrói, depois de sublinhar os peri­gos de uma missão levada a efeito em Óbidos, que posteriormente descreve­remos, uma espécie de apreciação gradativa, afirmando que para Teodoro de Almeida nenhuma tarefa revestia maior importância do que a actividade mis­sionária: «Não se pode explicar quanto o arrebatava de contentamento o exer­cício das Missões, e era a sua paixão dominante, de sorte, que que sendo nomeado para Missão, isso preferia a tudo, e nunca se escusava ainda que tivesse entre mãos o maior negocio do mundo. Por isso não he de admirar que nenhuns perigos ou trabalhos podessem refrealo»29

• Este juízo, as sacado a

23 Vida ... §17. 24 Vida ... § I? e 19. "Vida ... §20. "Vida ... §25 27 Vida ... §29. A assistência aos enfermos constitui outra das tarefas de Teodoro de Almeida muito

acentuada pelo biógrafo, circunstância que não surpreende, de forma alguma, lida no enquadra­mento da obediência aos Estatutos, que sublinhavam essa importante dimensão, distinguindo, pela óbvia necessidade de marcar a especificidade da congregação nascente, os oratorianos de outros Institutos, na esteira do exemplo de S. Filipe de Néri: <<Do mesmo modo irão aos hospitaes, não a estar de assistencia, como está repartido pelas Religiões, mas as vezes que poder ser, e for mays conveniente, a ajudar os enfermos, confessalos, e aproveytando-se da occasião para falarlhes de Deos, e instruilos no que não souberem para sua salvação.» (J. S, da Silva DIAS, Estatutos ... , n.0 13,15).

" Vida ... §30. O empenho de Teodoro de Almeida no ministério da confissão arrasta na Vida o rela­to das dificuldades e vicissitudes da confissão fora de portas, na medida em que o biógrafo naiTa, pormenorizadamente, viagens que quase conduziram o oratoriano à morte, por tempestades, erros de caminhos ....

"Vida ... §34.

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Teodoro de Almeida, surge legitimado pelo recurso ao testemunho directo do autor do texto, estratégia a que, aliás, reiteradamente se recorre no decurso da biografia em causa: «Para mim [muitas vezes lho ouvimos dizer] seria coisa bem gostosa, se morresse andando em Missão»30.

Ainda de acordo com o biógrafo, o objectivo primordial das missões residia, para Almeida, na salvação das almas e no instrumento fundamental constituído pela confissão. Lamentava, assim, fazendo desse facto o objectivo maior das missões, que «a imensidade de pessoas rusticas que vivem nas aldeias, como ordinariamente não tenhão outros confessores senão os seus próprios parochos que familiarmente os conhecem, por isso calão pecados mais feios que hão cometido nos poucos anos e ainda na idade adulta, e assim vivem, morrem e se condenam. Isto he que lhe fazia doçes e ama veis todos os contratempos e penalidades que se lhe offerecião por occasião das Mis­sões»»31.

Apesar desta inequívoca superlativação, as fontes consultadas não per­mitem determinar exactamente o tipo de missão efectuada, que deveria, con­tudo, obedecer à letra e ao espírito dos Estatutos, incidindo sobre práticas doutrinais simples e sucintas e sermões visando levar os fiéis à confissão, embora não saibamos, apesar dos muitos sermões publicados e inéditos de Teodoro de Almeida, especificamente quais os que integraram programas missionários32. Existem dados rigorosos, efectivamente, mas esses dados limi­tam-se a datas e locais, embora intencionalmente ou não - tenhamos presente que, no caso do texto da Vida, estamos perante uma reconstrução biográfica que tende para o paradigma- essas informações conduzam subliminarmente à conclusão que o oratoriano nunca abandonou o trabalho missionário, a não ser durante a estadia em França, e aí apenas por imperativos do idioma, já que para pregar não bastava apenas o conhecimento do idioma, mas era absoluta­mente imprescíndivel uma competência profunda que permitisse «mover», obviamente no sentido do «movere», o auditório em causa.

30 Vida ... §32. e § 46. " Vida ... §34 " A produção parenética publicada de Teodoro de Almeida encontra-se reunida nos quatro volumes

intitulados O Pastor Evangelico repartindo o Pasto Da Divina Palavra Nas Praticas Familiares Dos Domingos e Festas, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1797-1798. Dirigindo-se, essencial­mente, <<aos Pastores das almas>> (Prologo), o autor oferece <<esta Collecção para todos os Domingos e Festas do anno, em ordem a poderem entreter, instruir, e animar o seu povo para o exerci cio das virtudes, e segurança da salvação. Não acharão aqui vozes fortes, enfaticas, sonoras, que lisongeem os ouvidos, mas frase clara, corrente, natural, que desperte a attenção do animo: não estrondosos clamores, com que aterrem e espantem o seu auditoria, mas sim huns suaves e amorosos silvos, com que chamem e advirtam as suas ovelhas>> (XIII-XIV). Permanecem manus­critos os Sermoens do P.e Theodoro de Almeida da Congregação do Oratorio de Lisboa, ANTT, Ms da livraria 2411.

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3. À procura de um «mapa» missionário

De que informações dispersa dispomos então? De anos e locais que facultam o desenho de um pequeno itinerário que procuraremos explicitar.

A primeira missão documentada pelo texto da Vida data apenas de 1756, tinha Teodoro de Almeida trinta e quatro anos, e teve lugar em Óbidos. O relato das dificuldades de viagem de Lisboa a Óbidos é muitissimo mais pormenorizado que o registo da missão em si mesma. Diz-se apenas que Almeida saiu de Lisboa na segunda-feira de Entrudo e que pregou em Paço de Arcos e depois em Óbidos. A verdadeira preocupação do biógrafo reside na sobrevalorização dos perigos e vicissitudes da acção missionária: «Não foram raros semelhantes trabalhos nas jornadas das Missões. Em 1756 haven­do de ir pregar de Missão a Óbidos sahio de Lisboa na 2.a feira de entrudo, e na terça feira jantou no Cereal, que dista de Óbidos 3 legoas e partindo dela ás 3 horas lhe aconteceo no caminho e não havendo luar, errou o baleeiro o caminho de forma, que em vez de tomar o caminho de Obidos tomou o que[ ... ] . quando conheceo o erro procurou remedialo atravessando por terras lavradas, e sem estrada conhecida [ ... ]»33

• As viagens atormentadas são a pauta que rege estas descrições. Não só o caminho para um local não muito distante da capital surge inçado de dificuldades agravadas por invernos difí­ceis e tempestuosos, como os Missionários são confundidos com ladrões o que dificulta, num primeiro momento, enquanto a confusão se não desfaz, a guarida durante a noite.

Verdadeiramente é esta a única missão documentada durante os anos em que Teodoro de Almeida desempenha a função de professor nas Necessi­dades e publica os primeiros volumes da Recreação Filosófica. Existe uma outra referência, que parece contemporânea, mas é menos explicíta e serve para confirmar os perigos relatados: «Pouco menor foi o perigo em que o P. Theodoro se achou em outra occasião. Estava também em Missão em Paço d'arcos, e numa tarde tendo acabado de pregar, montou a cavallo para ir dalli a 2 legoas a huma confissão para que o chamavão».34

Na perspectiva da economia do texto, o investimento discursivo nas dificuldades e agruras de uma tarefa em que a própria vida estava, frequente­mente, em perigo, como que subsume outras eventuais missões, provavel­mente idênticas, no sentido em que, no contexto de uma biografia alinhada como moldura de um oratoriano «perfeito» do ponto de vista de conduta espiritual e pastoral, um exemplo serviria, naturalmente, como coagulação de muitos outros.

Do ponto de vista cronológico, a segunda referência, bastante indefini­da, prende-se com os anos de estadia no Porto, para onde foi mandado pelo

33 Vida ... §32. "Vida ... §33.

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então Conde de Oeiras. Deverá ter tido lugar, portanto, entre 1760 e 1768, aliás mais precisamente depois de 1762, já que entre 1760 e 1762 sabemos que esteve impedido de pregar: «Na Festa do Corpo de Deos particular da congregação do Porto em 1762 foi o primeiro sermão, que ali pregou, com tal decoro, dignidade e unção, que causou grande commoção no auditoria lamen­tandose todos de que permanecesse encerrado, com prejuízo do publico hum homem tão extraordinario em talento. No seguinte anno começou a empregar­-se com maior publicidade nos ministérios da Congregação frequentando os Confessionarios na congregação, nos carceres da Relação, nos hospitaes, nas cazas dos enfermos onde de continuo era chamado ou mandado, pregando fre­quentemente na Congregação e nas terras onde era mandado em Missão.».

A modalização que envolve a frase, pelo uso do advérbio «frequente­mente», faz crer ou pelo menos traduz a intenção do biógrafo em fazer acre­ditar o leitor numa actividade intensa do ponto de vista missionário. Não nos importa, neste contexto, a confirmação documental das afirmações que, aliás, existe, mas sim a «verdade» textual que o relato impõe, no sentido em que nos interessa sobretudo demonstrar a importância que o ministério das missões revestia, no universo de uma conduta apresentada como modelar, em 1830, na atmosfera que começava a assistir ao intensificar do debate sobre a importân­cia e papel social das ordens religiosas.

Em 1768, e terá que ser forçosamente antes de 26 de Setembro de 1768, data em que Teodoro de Almeida partiu para um forçado exílio que pre­tendia desenrolar-se na Holanda e acabou por ter lugar quase sempre em Bayonne, no sul de França, e esporadicamente em Annecy, na Saboia, diz-se que estava em Trás os Montes onde fora acabar uma missão que ali tinha feito, mas não se indicam nem mês nem lugar precisos: «Ü adio [de Sebastião José de Carvalho e Mello] porem em particular ao P. Theodoro que no retiro do seu se divertisse em compor os seos livros e evitasse toda a publicidade. Estava o P. Theodoro em Trás os Montes aonde fora acabar huma Missão que alli tinha feito, quando recebeo aquelle aviso do qual logo entendeo que na Corte havia novidade a seo respeito, sem saber o que se encOntrou a descon­fiar, que o novo desagrado contra a sua pessoa era concebido pelo genero de vida em que se occupava no Porto, e que elle lhe traria alguma ruína, e viria alguma ordem para o prender.»35

No caminho para o exílio na Holanda, onde já estava o P. Chevalier, e que havia sido o primeiro destino escolhido por Teodoro de Almeida, mas que as extremas dificuldades de uma viagem por mar haviam posteriormente alte­rado para a bem mais próxima França, e no quadro de uma breve estadia em Vigo, quando a intenção inicial ainda permanecia, decidiu aproveitar o tempo de espera, pregando missão: «Porem fosse necessario esperar ali alguns dias vento favoravel, com o qual o Capitão naquella paragem prometia chegar a S. Sebastião dentro em dois dias, quis o P. Theodoro dezafogar o seo espírito

"Vida ... § 57.

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em huma empreza bem pouco accomodada ao estado de peregrinação em que se achava mas heroice e digna de hum Varão Apostolico. Era nos princípios de Novembro quando chegou a Vigo; pois no passaporte que alli tirou para passar a França se acha a data de 6 de Novembro: e como se offereceo occasião de demora, quis primeiro o Padre português, Pobre e Fugitivo, deixar aquelle povo de Bençãos do Ceo fazendolhes huma Missão, a que todos concorrerrão em grande alvoroço e devoção apostolica aos Sermões e Doutrinas e fazendo confessar. Como era povo marítimo seria também a Mis­são, para que o Missionário fosse ao mesmo tempo insinuando no animo dos que o haviam de transportar.».36

Na Biscaia, lugar onde nas palavras do biógrafo, provavelmente inspi­radas em Teodoro de Almeida, havia uma representativa comunidade por­tuguesa - que as reticências e formulações eufefhísticas do oratoriano deixam adivinhar como emigrados políticos ao consulado pombalino- oferece-se para pregar missão, depois de lhe ter sido recusado alojamento em estalagens várias, por confusão com a roupeta dos jesuítas37. Tomada definitivamente a decisão de abandonar o primeiro projecto de reunião na Holanda ao P. Cheva­lier: «mas por huma parte o perigo passado lhe deixou hum grande horror ao mar, por outra a jornada por terra muito dispendiosa e sem meios para a inten­tar»38, anuiu aos pedidos dos compatriotas exilados e ali ficou, enquanto não chegaram notícias de que Sebastião José de Carvalho e Melo não havia desis­tido, motivo que o levará a terras de França .. Decorridos alguns meses, apro­ximando-se a Quaresma, solicitou permissão para «pregar Missão»: «Tanto que se aproximou a Quaresma se appresentou ao Bispo e ao parocho daquel­la terra offerecendose para ali pregar de Missão. Consentirão de boa vontade na pia proposta do P. Theodoro e elle abrio a Missão no príncipio da Quares­ma de 1769 na Igreja Parrochial de se Maria. Com o sucesso feliz desta Mis­são pareçeo querer o Senhor pagarlhe os trabalhos passados fazendolhos esquecer de sorte que em huma carta que então escreveo então« ... em toda a sua vida não tivera missão de tanto gosto e consolação como aquella».39

36 Vida ... § 63. Missão documentada, também, pela Historia da Fundação: <<e não encontrando em Vigo, onde tinha feito huma pequena Missão ... » (foi. 8).

" Vida ... § 71: <<Sahio pois o P. Theodoro no dia 3 de Dezembro em figura mais de morto que de vivo, façe macilenta, barba crescida, corpo tremulo, roupeta pouco aseada, como de quem tinha andado aos tombos pelo navio. Mas esta mesma triste figura que pareçe dever mover toda a lasti­ma e compaixão o fez objecto de hmTor e aborrecimento, e lhe grangeou nova tribulação e tris­teza, pois que discorreu de estalagem em estalagem em todas achava repulsa, espondendo seca­mente que não havia lugar e viuse esposto a ficar nas praças ou adros das Igrejas sem agasalho e a causa era que como o P. Theodoro conservou sempre a roupeta da Congregação reinava horror aos Jesuítas ninguém pensava fosse o P. Estrangeiro fosse um Filipino [assim chamam em Espanha aos congregados de S. Filipe de Néri] mas espalhouse a voz por toda a parte que era Jesuíta que tinha ficado escondido depois da expulsão: e por isso ninguém o queria recolher nas estalagens».

"Vida ... § 71. 39 Vida ... § 71.

285

É precisamente esta a missão que aparece enunciada no manuscrito, em duas versões, acima citado, denominado Historia da Fogida de misseno sahindo do Reino pa escapar da sua perciguição I Em 1768 I Cantico de lou­vor de misseno, escapando dos perigos á imitaçõ do de Moizes despois depassar o Mar Vermelho. No quadro das tribulações sofridas, descritas pelas estrofes iniciais, Misseno não esquece, em momento algum, o «serviço de Deos»:

Nesse tempo em lugar bem differente Sempre o meu menisterio m' occupava Porque a Deos devo o mesmo em qualquer parte Elle he o mesmo, o lugar não muda nada Elle a vida e as forças me conserva No serviço de Deos hei de' emprega-la Pois que Deos sem Ter fim que seja justo Nem as forças nem a vida pode dála. Grato pois a meu Deos que me livrara Novo Altar nessa terra levantei Não no Monte, em que ao povo a lei se déra Mas pregando em Missoens a mesma ley Ia de um lado, já do outro corre o povo A tomar meu conselho, e o novilho De seus vícios que muitos adoravão[ ... ]40

O facto de as missões de Misseno se apresentarem no texto como for­mas de difusão do respectivo «conselho», torna-as, do ponto de vista do autor, a razão pela qual nova perseguição se organiza, já que Misseno se encontrava demasiado próximo do país de origem, representando, assim, um perigo acrescido, na medida em que se, por um lado, poderia publicitar acções menos recomendáveis do governante em causa, por outro, figurava o vivo desafio à autoridade, pois que havia escapado ünpune à prisão:

«Elle esta la num canto da biscaia Escondido assim he mas nada emporta Que elle longe pregando e confessando Em Miçõens porventura irá dizendo A povos que ao longe te respeitam Coisas tuas que se vão já desprezando Pois que vem que de todo o teu furor Teu poder e astúcia esta zombando.»41

'" ANTT, Ms. da Livraria 1675 3 (A), foi. 4v. 41 ANTT, Ms. da Livraria 1675 (A), foi. 5r.

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Curiosamente, estes versos, que evidenciam o perigo representado por Misseno no exercício das missões, aparecem atribuídos a um «conselheiro» não identificado, que impele o Ministro, sempre não nomeado, a insistir na perseguição ao oratoriano. Ainda que julguemos tratar-se de uma alusão a Seabra e Silva, que Teodoro de Almeida nunca quis apontar claramente como o principal dos seus inimigos na corte, não só por esses tempos, mas mesmo depois, durante o reinado de D. Maria, importa aqui explorar o investimento ideológico no tratamento da actividade missionária, apresentada como o prin­cipal perigo constituído por Misseno, no sentido em se sublinha a constância apostólica de um exilado, que mesmo sabendo-se perseguido, não abandona­va os ministérios que considerava seus.

Se retomarmos o texto da Vida, já que a Fogida de Misseno não volta a abordar as missões, verificaremos que o biógrafo faz corresponder ao período da estadia no sul de França, como atrás dissemos, um interregno na actividade missionária que a necessidade de um conhecimento profundo do francês jus­tifica.

Depois do regresso a Portugal- o oratoriano chega a Lisboa em 1778 -encontramos referências a três missões: uma na Quaresma de 1797, tinha Teodoro de Almeida 75 anos, desenrolada em Sacavém, outra em 1799, em Vialonga e a terceira em Belas, em 1800, quatro anos apenas antes da morte, aos 82 anos de idade. Em relação à primeira, o biógrafo justifica, pela doença, a proximidade do local e naturalmente enfatiza o esforço necessário para, em tais condições, cumprir tal tarefa: «Chegou a Quaresma e como se tratasse de nomear para Missão daquele ano não escusou este trabalho que sempre lhe era agradável; porém em prudente cautela escolheu o sitio de Sacavem, por ser dos mais vizinhos de Lisboa afim de comodamente se poder recolher à Congregação. quando sentisse em si novidades e para que, em tal caso, não ficasse a Missão interrompida pediu por companheiros para o ajudarem o Pde António das Neves e Domingos Vicente. Porém quis o Senhor, que se acabasse a Missão sem novidade de maior e se recolheram os Missionários, segundo o costume rlo sábado de Ramos».42

Verdadeiramente, as referências directas que encontrámos esgotam-se neste pequeno conjunto de informações.

As fontes interrogadas não aludem a nenhuma devoção de tipo especí­fico, nem sequer ao Sagrado Coração de Jesus de que Teodoro de Almeida foi um empenhado e consciente agente de difusão, a avaliar não apenas pela pro­dução da obra Entretenimentos do Coração Devoto com o Santíssimo Cora­ção de Jesus (1790), posteriormente traduzida para espanhol e, com alte­rações significativas, para francês, sob o título Elevations sur le Sacré Coeur

42 Vida ... §189.

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de Jésus (1868)43, mas também pelo responsabilidade e envolvimento nos

«pios exercícios que se costumam fazer na Igreja da Visitação de Lisboa»44•

Permitem, todavia, conjugando as indicações disseminadas pela Vida com as lacunares informações facultadas por um texto que se pretende a ver­são do autor para o seu próprio exílio, questionar a importância ideológica do trabalho missionário no contexto das tarefas pastorais do oratoriano, pois, e como coincidência ela parece demasiado propositada para não ser intencional, não pode deixar de notar-se que, para cada momento específico de mudança na vida de Teodoro de Almeida, se aponta a existência de uma Missão. Mis­são em 1756, em plena vida de corte, como contraponto de uma imagem talvez demasiado áulica que, mesmo na ausência de outros dados, e há muitos ... , o texto não deixa de sugerir- não esqueçamos que o biógrafo, para acentuar a extrema importância concedida pelo oratoriano às missões, recorre à expressão «mesmo que tivesse entre mãos o maior n~gocio do mundo» - e daí o sublinhar de dificuldades e agruras de uma tarefa apostólica que a Vida insiste em designar como a mais importante de todas; missão em 1768, em Trás os Montes, durante a estadia no Porto, compulsivamente afastado da corte, embora mantendo, tanto quanto possível, a rede de relações e soli­dariedades criada, como se as missões desenvolvidas em Trás os Montes fun­cionassem como o exemplo de apostolado de alguém, caido em desgraça, mas que, se bem que afastado dos centros de decisão, dos círculos de poder e do favor real- já que grande parte da alta aristocracia com que Teodoro de Almeida se relacionava como confessor, director espiritual ou simples con­selheiro tinha sido condenada à morte ou estava presa ou exilada- não esque­cia os sagrados deveres de um religioso exemplar e persistia na tarefa de sal­vação das almas; missão em Vigo em plena viagem marcada por inúmeras dificuldades, missão na Biscaia, a caminho do exílio, missão em 97, 99 e 1800, muitos anos depois do regresso, já velho e doente.

Ao fazer corresponder, em 1830, a cada fase da vida de Teodoro de Almeida- desde a vivência na órbita da corte em Lisboa ao desterro para o Porto, à viagem a caminho do exílio &"ao regresso final -uma ou várias mis­sões, o biógrafo pretende fazer salientar a dimensão mais «popularizante» de

43 Zulmira C. SANTOS, As traduç6es das obras de espiritualidade de Teodoro de Almeida ( 1722--1804) em Espanha e França: estado da questão,formas e tempos in Via Spiritus, I, (1994), 185--208.

44 Teodoro de ALMEIDA, Entretenimentos do Coração Devoto com o Santíssimo Caração de Jesus. Ajuntam-se alguns actos de desagravo, e outros obséquios. Para passar devotamente a hora que cada mês se toma de adoração ao Coração Santíssimo, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1790, «Advertencia»: <<Havendo de publicar os pios exercidos, que se costumam fazer na Egreja da Visitação de Lisboa, em louvor do Santissimo Coração de Jrsus, nas primeiras sextas-feiras dos mezes; e tambem as indulgencias, que o Santissimo Papa Pio VI, hoje reinante na Egreja de Deus, concedeu a quem todos os mezes, ou em cada anno, tomasse uma hora, para n'ella obsequiar o Santiisimo coração de Jesus, me resolvi a juntar estes Entretenimentose Actos de Desaggravo, com os mais Obsequias a este Santissimo coração, fornecendo aos devotos leitura para passarem a hora de adoração com fervor; ... ( citamos pela 3." edição, sem data, publicada no Porto.).

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uma figura conhecida pela sua faceta áulica e pela aura de divulgador cientí­fico. Desse ponto de vista, a versão de um «religioso» culto, que se movia nos círculos da corte, mas não esquecia a função de agente de ligação entre dois tipos de cultura religiosa, corrobora as orientações que o próprio Teodoro de Almeida parece querer imprimir no delinear da imagem que de si pretende projectar, ao fixar, para o exílio, a sua «lição» acentuando a exemplaridade de conduta espiritual e pastoral.

Naturalmente, os objectivos dos dois textos não são coincidentes: por 1777, data em que deverá ter sido escrito o poema em causa, Teodoro de Almeida procurava fixar uma versão da perseguição pombalina que talvez, em alguns aspectos, não correspondesse exactamente à verdade- houve quem o censurasse por fuga tão precipitada- e em 1830, num contexto especial­mente polémico face à pertinência e função social das ordens religiosas, que se prolongará pelos anos seguintes, o biógrafo propõe, num texto que, embo­ra permanecendo manuscrito, não foi completamente desconhecido, um modelo de «religioso» que, embora c~lto e interventivo nos círculos de poder, nunca esqueceu a suprema importância que os Estatutos da respectiva con­gregação atribuíam às missões como tarefa apostólica. Era este este o mode­lo de perfeição que valia a pena propor e defender nesses anos que o biógrafo apelida de «conturbados tempos»?

E, se por um lado, estas referências parecem suportar um dispositivo ideológico capaz de estrategicamente sublinhar o superior papel do trabalho missionário, na construção de um paradigma de perfeição «oratoriana», nesta segunda metade do século XVIII, por outro, este pequeno mas conciso con­junto de dados poderá contribuir para equacionar as questões relativas a um eventual mapa missionário que contemple globalmente o século das Luzes.

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