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Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum em bovinos Doenças de bovinos Laboratório de Patologia Veterinária, Departamento de Patologia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil. http://www.ufsm.br/lpv Histórico e sinais clínicos Bovino, macho castrado, sem raça definida e com 7 anos de idade. O proprietário relatou que, nos últimos 60 dias, esse boi de tração apresentou timpanismo crônico, regurgitação de alimento e perda de peso. Durante esse período, o rúmen foi puncionado várias vezes para aliviar timpanismo. Ao exame clínico, as membranas mucosas estavam pálidas e havia timpanismo acentuado (Fig. 1). Esse bovino estava numa área onde o carcinoma de células escamosas (CCE) do trato alimentar superior é enzoótico nessa espécie. Havia acentuada infestação por samambaia (Pteridium aquilinum) (Fig. 2) no campo onde o bovino era mantido. Foi feito um diagnóstico clínico de CCE do trato alimentar superior e o bovino foi submetido à eutanásia em razão do mau prognóstico Fig. 1. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino com timpanismo.

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Page 1: Intox  Samambaia

Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum em bovinos

Doenças de bovinos Laboratório de Patologia Veterinária, Departamento de Patologia,

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil. http://www.ufsm.br/lpv

Histórico e sinais clínicos

Bovino, macho castrado, sem raça definida e com 7 anos de idade. O proprietário relatou que, nos últimos 60 dias, esse boi de tração apresentou timpanismo crônico, regurgitação de alimento e perda de peso. Durante esse período, o rúmen foi puncionado várias vezes para aliviar timpanismo. Ao exame clínico, as membranas mucosas estavam pálidas e havia timpanismo acentuado (Fig. 1). Esse bovino estava numa área onde o carcinoma de células escamosas (CCE) do trato alimentar superior é enzoótico nessa espécie. Havia acentuada infestação por samambaia (Pteridium aquilinum) (Fig. 2) no campo onde o bovino era mantido. Foi feito um diagnóstico clínico de CCE do trato alimentar superior e o bovino foi submetido à eutanásia em razão do mau prognóstico

Fig. 1. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino com timpanismo.

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Fig. 2. Campo infestado por Pteridium aquilinum (samambaia)

Achados de necropsia e histopatologia

Atrofia dos depósitos de gordura e palidez das membranas mucosas. Há extenso enfisema subcutâneo no flanco esquerdo (interpretado como secundário às punções do rúmen). Pequenos papilomas (2-5 mm de diâmetro) eram vistos na superfície da epiglote, do palato mole (Fig. 3) e da faringe.

Fig. 3. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino. Papilomas no palato mole.

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Havia aproximadamente um litro de líquido seroso amarelo-claro, parcialmente

coagulado, na cavidade peritoneal. O rúmen estava acentuadamente distendido por gás (Fig. 4). A porção distal do esôfago estava distendida (aproximadamente 3 vezes o seu diâmetro normal), firme e continha um tampão verde-escuro de alimento (grama) compactado (Fig. 5).

Fig. 4. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino. Rúmen distendido por gás

Fig. 5. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino. Tampão verde-escuro de

alimento no lúmen do esôfago.

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O conteúdo ruminal estava acentuadamente seco. Uma massa formada por múltiplos nódulos (alguns edematosos), sobressaia da mucosa do rúmen. A parede do rúmen, na entrada do esôfago e imediatamente distal (8 cm) a ela, estava espessada (aproximadamente 5 cm) e sua superfície de corte era firme, branco-acinzentada, e pontilhadas por focos amarelos (queratinização) e marrom-escuros (necrose) (Fig. 6). A massa causava estenose da entrada do rúmen. Havia hipertrofia da camada muscular das paredes do rúmen e retículo. As pregas do abomaso estavam espessadas com aspecto gelatinoso e translúcido (edema); múltiplos nódulos calcificados, causados por Oesophagostomum sp., podiam ser observados na parede do intestino delgado. Havia atrofia do lobo esquerdo do fígado e um cálculo biliar arenoso estava localizado na vesícula biliar.

Fig. 6. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino. Espessamento da parede do

esôfago e da entrada do rúmen indicam a presença de carcinoma de células escamosas.

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O exame histológico revelou carcinoma de células escamosas (Fig. 7) no rúmen e

papilomas de células escamosas no palato mole, faringe, esôfago e rúmen.

Fig. 7. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum. Bovino, rúmen. Histopatologia do

carcinoma de células escamosas

Diagnóstico final

Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum (samambaia).

Comentários

P. aqulinum (samambaia) é uma planta de distribuição cosmopolita que causa intoxicação em animais de produção de várias regiões do mundo. Samambaia é uma das plantas tóxicas para bovinos mais importantes no Brasil e causa sérias perdas econômicas nas Regiões Sul e Sudeste. A planta também cresce em outras regiões do Brasil incluindo os estados da Bahia, do Acre, do Mato Grosso do Sul e de Pernambuco. Há três manifestações clínicas associadas à intoxicação por P. aquilinum em bovinos, uma forma aguda e duas formas crônicas. (1) Quando os bovinos ingerem grandes quantidades da planta (10 a 30 g/kg ou mais) por períodos de tempo relativamente curtos (semanas ou poucos meses – geralmente até que o peso da planta ingerida iguale o peso do animal) ocorre aplasia de medula óssea que resulta em doença aguda, geralmente fatal, caracterizada por febre, diátese hemorrágica, trombocitopenia e neutropenia. (2) Quando os bovinos ingerem menos que10 a 30 g/kg da planta por períodos mais longos (um ano ou mais), desenvolve-se uma doença crônica caracterizada por hematúria intermitente. Essa forma é conhecida como hematúria enzoótica e é relacionada ao desenvolvimento de tumores na bexiga; hemagiomas são freqüentemente encontrados nesses casos, mas vários tipos de neoplasmas vesicais, malignos e benignos, têm sido descritos. A hematúria

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enzoótica acaba levando a anemia crônica e morte. (3) A terceira manifestação clínica relacionada à ingestão de samambaia está representada neste caso e consiste no desenvolvimento de CCEs no trato alimentar superior. A ocorrência de CCEs no trato alimentar é uma doença crônica (meses a anos) e os efeitos deletérios dos neoplasmas são principalmente mecânicos e relacionados com a interferência na deglutição e ruminação, o que leva a má nutrição extrema. Os bovinos afetados têm geralmente 5 anos de idade ou mais. Presume-se que o desenvolvimento do CCE ocorra quando os bovinos ingiram pequenas quantidades por períodos muito longos (anos). Os CCEs ocorrem em uma ou mais das seguintes localizações no trato digestivo de bovinos: base da língua, esôfago, cárdia e rúmen. Os sinais clínicos incluem tosse, regurgitação de alimentos, timpanismo, diarréia e perda progressiva de peso que acaba culminado com a morte. Os sinais clínicos variam dependendo da localização do tumor; por exemplo, tosse é relacionada a tumores na base da língua e timpanismo é relacionado a tumores localizados no esôfago e cárdia (como ocorreu neste caso). Metástases ocorrem em alguns casos, principalmente para os linfonodos regionais e pulmões; CCEs localizados no rúmen podem ocasionalmente metastatizar para o fígado, através da circulação porta.

Geralmente alguns poucos ou vários papilomas são observados nas proximidades dos neoplasmas malignos (CCEs). Evidências histológicas de transição entre crescimentos benignos (papilomas) e malignos (CCEs) foram observadas em cerca de metade dos casos. O achado consistente de papilomas nos locais onde se desenvolvem os CCE levaram à suspeição que o papilomavírus dos bovinos (BPV) tenha um papel na patogênese dos CCEs do trato alimentar superior associados à ingestão de samambaia; essa suspeita foi confirmada. Há seis subtipos de BPV (BPV 1-6) que induzem lesões em bovinos, com características e distribuição específicas. O CCE do trato alimentar superior em bovinos é associado com ingestão prolongada de samambaia e infecção concomitante por BPV-4, enquanto que a infecção por BPV-2 é associada a tumores de bexiga e hematúria enzoótica em bovinos que pastejam em campos infestados por samambaia. Os papilomas induzidos por BPV são crescimentos benignos que ocasionalmente sofrem transformação maligna devido a fatores genéticos ou ambientais. Em bovinos, a infecção do trato alimentar superior por BPV-4 leva à formação de palpilomas que acabam regredindo dentro de aproximadamente um ano devido à resposta imunológica mediada por células do hospedeiro. No entanto, em bovinos que ingerem samambaia (que contém substâncias imunossupressoras), os papilomas persistem por períodos prolongados e podem se transformar em carcinomas. Estudos in vitro indicam que a samambaia é o co-carcinógeno para BPV-4 na patogênese do CCE do trato alimentar superior de bovinos. O flavonóide quercetina, um composto mutagênico bem conhecido da samambaia provavelmente tem ação sinérgica com BPV-4 na transformação maligna de células de papiloma. Acredita-se que o aumento da atividade viral pós-trancrição de BPV-4, com falha da parada do ciclo celular em G1 e com a função alterada da proteína de supressão tumoral p53, sejam os eventos que contribuem para a transformação da célula epitelial. De fato, existe uma forte correlação epidemiológica entre o consumo de samambaia e o desenvolvimento de CCEs no trato alimentar superior de bovinos. O complexo papiloma-CCE foi experimentalmente reproduzido em bovinos pela administração via oral de samambaia.

Em ovinos, a ingestão de samambaia causa degeneração progressiva da retina, referida como “cegueira brilhante” e tem sido responsabilizada por doença neurológica em suínos e eqüinos devido à deficiência de tiamina supostamente causada por tiaminases presentes na planta. No entanto, apesar da alta incidência da intoxicação por samambaia

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em bovinos no Sul do Brasil, nenhuma dessas condições em ovinos, suínos ou eqüinos foi documentada no país.

Tumores do trato alimentar são relatados em pessoas que consomem brotos e rizomas de samambaia. No Sudeste do Brasil um estudo mostrou um aumento relativo no risco de desenvolver respectivamente câncer esofágico e gástrico de 3,4 e 3,45 vezes, em pessoas que ingeriam brotos de samambaia. Ptaquilosídeo norsesquiterpeno, outra substância carcinogênica isolada de samambaia, ocorre no leite de vacas que ingerem a planta. Leia mais sobre essa doença: Barros C.S.L., Graça D.L., Santos M.N. & Barros S.S. 1987. Intoxicação aguda por

samambaia (Pteridium aquilinum) em bovinos. Hora Vet. 37: 33-39. Fighera R.A., Souza T.M., Rissi D.R. & Barros C.S.L. 2006. Intoxicação por samambaia

(Pteridium aquilinum) em bovinos: aspectos clínicos, hematológicos e patológicos. In: Resumo dos trabalhos apresentados no Encontro Nacional de Laboratórios de Diagnóstico Veterinário-ENDIVET-2006.

Moreira Souto M.A., Kommers G.D., Barros C.S.L., Piazer J.V.M., Rech R.R., Riet-

Correa F. & Schild A.L. 2006. Neoplasias do trato superior de bovinos associadas ao consumo espontâneo de samambaia (Pteridium aquilinum) Pesq. Vet. Bras. 26:112-122.

Moreira Souto M.A., Kommerrs G.D., Barros C.S.L., Rech R.R. & Piazer J.V.M. 2006.

Neoplasmas da bexiga associados à hematúria enzoótica bovina. Ciência Rural, 36: 1647-1650.

Peixoto P.V., França T.C., Barros C.S.L. & Tokarnia C.H. 2003. Histopathological aspects

of bovine enzootic hematuria in Brazil. Pesq. Vet. Bras. 23:65-81.

Souza M.V. & Graça D.L. 1993. Intoxicação crônica por Pteridium aquilinum (L.) Kuhn (Polypodiaceae) em bovinos. Ciência Rural 23:203-207.

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