fabiana andrade

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS FEIRA DE SANTANA JULHO/2010

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Page 1: Fabiana Andrade

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

FEIRA DE SANTANA

JULHO/2010

Page 2: Fabiana Andrade

FABIANA DE SANTANA ANDRADE

TECER REDES, TECER HISTÓRIAS: As experiências de vida e

trabalho das pescadoras em Ilhéus - BA, 1980-2007.

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História da

Universidade Estadual de Feira de

Santana, como parte dos requisitos para

obtenção do título de Mestre em História.

Orientadora: Prof. Dra. Márcia Maria

da Silva Barreiros Leite.

FEIRA DE SANTANA

JULHO, 2010

Page 3: Fabiana Andrade

TECER REDES, TECER HISTÓRIAS: As experiências de vida e

trabalho das pescadoras em Ilhéus - BA, 1980-2007.

FABIANA DE SANTANA ANDRADE

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________

Charles D’Almeida Santana

Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

_________________________________________________

Cecília Conceição Moreira Soares

Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

____________________________________________________________

Márcia Maria da Silva Barreiros Leite. (orientadora)

Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (PUC/SP)

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Page 4: Fabiana Andrade

Dedico aos meus pais, Adelaide e

Pedro e as pescadoras de Ilhéus.

Page 5: Fabiana Andrade

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a imensa energia positiva, ao criador, a quem as

culturas estimam de formas diferentes e que na minha conheço por Deus e Jesus Cristo.

E aos grandes colaboradores desse trabalho, as pescadoras e pescadores artesanais que

abriram as portas do seu lar e das suas lembranças, há vocês muito obrigada.

Foram tantos caminhos percorridos durante esse período de pós-graduação que

não sei como vou poder repartir esses agradecimentos com todas as pessoas que fizeram

parte dessa etapa. Nas minhas viagens de Canavieiras para Feira, durante o estudo nas

disciplinas, contei com a compreensão e incentivo dos meus colegas professores do

Colégio Modelo de Canavieiras e as pessoas que dividir a casa na cidade de

Canavieiras, obrigada pelo incentivo, cuidado e atenção.

Ao meu grande amigo e irmão Rodrigo Osório e a sua mãe D. Silva, por

acolherem a mim em sua casa na cidade de Feira de Santana, saibam que vocês

tornaram a minha pós-graduação possível. Obrigada também pelos momentos de

diversão, onde rimos bastante e nos alegramos. A minha grande amiga, uma segunda

irmã, Ana Paula que pude contar em todos os momentos de angústia e necessidade,

muito obrigada. Aos meus queridos amigos Alexandre, Raquel e Eliane a quem

compartilhei e compartilho momentos felizes. Ao meu amigo Philipe que sempre esteve

disposto a ler o meu trabalho e contribuir, obrigada pela força. Aos meus colegas,

amigos e amigas do Mestrado, que mesmo distante me deixavam informada de todos os

acontecimentos e pelos momentos de discussão e aprendizado. Á Julival funcionário do

Mestrado que muito paciente e educado atendeu e procurou ajudar em todas as horas.

Aos meus mestres, um agradecimento especial ao professor Luiz Blume, meu

eterno orientador, foi com o seu incentivo que comecei a desenvolver a pesquisa, por

isso esse trabalho divido também com ele. Ao prof. Elvis Barbosa que sempre esteve na

torcida pela continuidade do trabalho. Ao prof. Lira pelas contribuições e sempre

disponibilidade e atenção que me dedicou. Ao prof. Charles por ser o educador que é,

pelo apoio e por suas leituras minuciosas dos textos. Ao prof. Wellington pelos

comentários substanciais ao texto de qualificação, obrigada. A prof. Ione e ao prof.

Reinaldo, pelos momentos de aprendizado e contribuição a pesquisa em sala de aula, e

ao prof. Coelho e a prof. Elizete por todo o estímulo, obrigada! A minha orientadora, a

prof. Márcia Barreiros, pela suas enriquecedoras contribuições e pelas suas palavras de

incentivo e experiência, um agradecimento especial.

Page 6: Fabiana Andrade

Meus eternos agradecimentos a minha mãe Adelaide e ao meu pai Pedro por

toda a paciência, cuidado e amor que sempre me dedicaram. Aos meus irmãos Fernanda

e Fábio por incentivarem a minha luta e esforço. Aos meus tios Pedro e Ednaide que

encorajavam o meu empenho e as minhas primas Maiara e Maraisa por todo o apoio e

atenção. Agradeço a toda a minha família que apoiou o meu esforço. Agradeço também,

aos meus queridos vizinhos e amigos do Bairro da Conquista que acompanharam meu

empenho e ao grupo Jovem Vinde e Verde pelos momentos de oração e pela paz que

sempre transmitem nos seus encontros. Obrigada a todas as educadoras e educadores,

corpo discente, ex-alunas e ex-alunos que fazem parte da Escola Família Agrícola

Comunitária Margarida Alves, por compartilharem comigo a experiência de uma

educação diferenciada e entenderem como esse trabalho é especial. Agradeço pelo

aprendizado, compreensão e pela oportunidade de fazer parte dessa grande família.

Agradeço especialmente, as pescadoras e pescadores artesanais que tornaram

esse trabalho possível, retorno principalmente a D. Nita e D. Chica em que compartilhei

momentos de descoberta e alegria no mangue. Para D.Chica, “a pescadora granfina”,

como ela divertidamente me chamava nos momentos em que pude acompanhá-la na

pescaria. A D. Tertulina, D. Júlia, e Sr. Gileno e a sua filha Helena, pela disponibilidade

e atenção, com que me receberam na realização da minha primeira entrevista. A D.

Cátia e D. Inês, por terem me dado à oportunidade de vivenciar momentos de

descoberta na coroa. A D. Dulciene o seu irmão, o Sr. José Rodrigues, por

compartilharem comigo as suas lembranças e pela atenção que passaram a me dedicar.

A D. Dinalva, D. Flávia, e Maria de Cássia, pela disponibilidade. Ao Sr. Márcio Vargas,

assessor técnico da Colônia de Pesca Z-34 e ao seu Presidente o Sr. José Neguinho pela

atenção com que recebem as pessoas na instituição. Ao Sr. José Carlos, a D. Orenice, a

sua filha Isarildes, e a D.Eliúdes, pelas tardes aprazíveis de diálogo nas suas residências,

muito obrigada! Sintam-se abraçadas todas as pessoas que contribuíram direta e

indiretamente para a concretização desse trabalho.

Page 7: Fabiana Andrade

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CEPLAC - Centro Executivo do Plano da Lavoura Cacaueira

CEDOC - Centro de Documentação e Memória Regional

IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis

INSS - Instituto Nacional de Seguridade Social

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

OIT - Organização Internacional do Trabalho

SETRAB - Secretaria do Estado do Trabalho

SEAP- Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca

SUDEP- Superintendência de Desenvolvimento da Pesca

Page 8: Fabiana Andrade

INDÍCE DE FIGURAS

FIGURA I: Mapa das Comunidades de Pesca.............................................................p.26

FIGURA II: Formação do Bairro Teotônio Vilela.......................................................p.29

FIGURA III: Ida de barco para a coroa, 2009.............................................................p.51

FIGURA IV: Mulheres pescando muapen na coroa, 2009..........................................p.52

FIGURA V: Inês na coroa em posição de trabalho, 2009..........................................p. 53

FIGURA VI: Pescadora no Manguezal, 2004.............................................................p. 54

FIGURA VII: Pescando Aratu, 2004...........................................................................p.55

FIGURA VIII: Munzuá, 2004..............................................................................................p.55

FIGURA IX: Pescadora catando siri..........................................................................p.62

FIGURA X: Pescadoras com o barco..........................................................................p.66

FIGURA XI: Pegando uma isca................................................................................p.100

FIGURA XII: Pescadora pegando a mututuca .........................................................p.100

Page 9: Fabiana Andrade

RESUMO

Esse trabalho trata das histórias de vida e dos modos de fazer das mulheres que

pescam aratu, peixe, que extraem as ostras dos paus de mangue ou capturam a lambreta

do fundo do mar; que capturam o caranguejo, o siri, costura as redes de pesca, como

também realizam o beneficiamento do produto e a sua venda. Essas mulheres são

pescadoras artesanais da cidade de Ilhéus, município localizado no sul da Bahia que

possui um número considerável de trabalhadoras da pesca. A variedade de práticas

desenvolvidas pela pescadora pode ser considerada uma peculiaridade do gênero

feminino no setor pesqueiro. A partir dos seus depoimentos são discutidas as

transformações no seu modo de vida e as memórias da sua vida no campo, já que muitas

pescadoras são oriundas da zona rural. Ao morar na cidade as pescadoras agricultoras

procuram organizar o seu modo de vida e manter as suas práticas e fazeres na cidade.

Mas no seu cotidiano travam uma antidisciplina ao que é imposto em defesa dos seus

costumes e também pela sobrevivência. Para darmos visibilidade as suas história de

vida e trabalho são utilizados os depoimentos orais, a iconografia e fontes escritas:

como as atas da Colônia da Pesca Z-34, jornais da região e diagnósticos produzidos

sobre a pesca do município.

Palavras Chave: Trabalho, Pescadoras, Gênero.

Page 10: Fabiana Andrade

ABSTRACT

This essay talks about the life story and the how-to of women who fish aratu,

extract oysters from the poles of the mangrove, capture scooter fish from the deep sea,

as well as crab and crayfish, who sew fishing nets and moreover reap the benefits of the

product and the sale of the product. These women are artisanal fisherwomen from

Ilheus, a city in the south of Bahia that has a considerable number of women working in

the fishing industry who survive off of what nature has to offer. A variety of practices

developed by the fisherwomen who partake in this activity may be considered a oddity

of the female gender in the fishing industry. Using their testimonies as a starting point,

discussions are made about the transformations in their way of life and the memories of

their lives on the farm, as many of them come from a rural area. By living in the city,

the fisherwomen look to organize their way of life and maintain their practices in the

city. However, in their daily life there is a resistance that they impose in defense of their

customs and survival. To give visibility of the work history of the fisherwomen, the

following were used: oral testimonies, iconography, as well as written sources such as

minutes from the Fishing Colony and journals and Diagnostics from the region

published about fishing in the city.

Keywords: Work, fisherwomen, gender.

Page 11: Fabiana Andrade

Sumário

CONSIDERAÇÕESINICIAIS.....................................................................................12

CAPÍTULO I

AS PESCADORAS E AS COMUNIDADES DE PESCA.................................... .......26

O TEOTÔNIO VILELA..................................................................................................28

O SÃO MIGUEL.............................................................................................................32

ENTRE O RURAL E O URBANO................................................................................35

CAPÍTULO II

AS LEMBRANÇAS DO LAZER E DO FAZER .......................................................... 63

OS ESPAÇOS OCUPADOS: AS FEIRAS, RUAS E AVENIDAS NA CIDADE. ...... 69

AS LUTAS COTIDIANAS E POLÍTICAS....................................................................79

CAPÍTULO III

A PESCADORA ARTESANAL E A NATUREZA......................................................98

AS LEIS NATURAIS E A VIDA NA MARÉ. ............................................................ 114

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................121

REFERÊNCIAS: .......................................................................................................... 124

FONTES ....................................................................................................................... 130

Page 12: Fabiana Andrade

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O fazer historiográfico implica nas reflexões postas entre a teoria e a prática

historiográfica. Muitas vezes, nas nossas pesquisas passa despercebido que o nosso

trabalho de contato com as fontes e os questionamentos que estabelecemos através da

pesquisa nos possibilita pensar que a construção historiográfica se dar através de

diversos níveis: teoria, problema, método e a perceptividade do historiador.

A pesquisa, geralmente vem imbuída de uma herança teórica por parte do

historiador, que muitas vezes, direciona o olhar e indica os problemas pensados. O

trabalho do historiador é como uma construção onde o plano de cada um, pensado

através de um problema, precisará de vários instrumentos para a sua construção. Muitas

vezes, ficamos de fora vendo como podemos colocar as peças, outras vezes nos

permitimos participar realmente da sua construção.

As pesquisas são muitas e variadas, assim também damos as formas as nossas

casas e ficamos preocupados em como vamos dar início as obras. Diante disso, muitas

vezes, estive pensando como construiria a história de vida e trabalho das mulheres

pescadoras da cidade de Ilhéus, localizada no sul da Bahia. O município parece ter a sua

memória fincada na cultura do cacau e de um passado onde os senhores coronéis eram

os donos do cacau e senhores do poder no local. A construção historiográfica da cidade

está repleta dos personagens da alta elite do cacau, pensada através das obras do escritor

Jorge Amado, que escreve também a história dos homens do cacau. Mas como falar dos

grupos sociais que, em sua maioria, não detêm o conhecimento da língua escrita? Os

métodos historiográficos nós permite tratar desses grupos, a partir de diversos tipos de

fontes que estão a nosso favor, mas, muitas vezes não a reconhecemos.

Durante um longo período a historiografia enxergou apenas as fontes

documentais como algo verossímil para o entendimento da realidade, mas quando

passou a visualizar realidades plurais o conhecimento se ampliou e se intensificou ainda

mais através da História Oral. Isso porque esse procedimento permite ao historiador

perceber passagens indescritíveis de serem retratadas por documentos escritos, que

podem ser percebidos nos gestos e na própria forma de construir a narrativa. Na década

de 60, os historiadores tradicionais passaram a criticar a História Oral em virtude da

falta de confiabilidade da memória devido ao seu esquecimento. Mas os pesquisadores

que trabalhavam com os depoimentos orais baseados na psicologia e na antropologia

Page 13: Fabiana Andrade

apresentaram que a tendenciosidade da memória, o seu esquecimento e os mitos devem

ser vistos pelo historiador como instrumentos para a compreensão do que está nas

entrelinhas da narração. Para Alessandro Portelli, a entrevista acaba avivando a

autoconsciência do entrevistado para aspectos da sua experiência a respeito dos quais

ele nunca pensou ou falou seriamente. 1

Aprender com a história oral é reconhecer que o outro tem uma história de vida

que nós desconhecemos e que quando ouvimos as suas experiências percebemos que

tem muito a nos ensinar. A cena comum de ver uma mulher de canoa no rio ou puxando

rede nas praias de Ilhéus me levaram a pensar na relação de trabalho entre as pescadoras

e pescadores artesanais do município. As pescadoras que foram entrevistadas trabalham

no mar, rios, lagos, mangues e coroas do município.

A temática sobre a mulher pescadora surgiu ainda no período da graduação

quando fui instigada a trabalhar no Projeto de Pesquisa do Professor Luiz Blume da

UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz) com a História dos Pescadores Artesanais

e o Processo de Modernização da Pesca em Ilhéus. Durante a graduação escrevi um

projeto de Iniciação Científica, financiado pela FAPESB, em que problematizei a

questão da invisibilidade da mulher pescadora, como foram poucas as pesquisas

encontradas sobre a atividade pesqueira na região busquei nos trabalhos de antropólogos

a discussão sobre pesca feminina. Back, Maldonado, Woortman2 e outros autores

colocam que existem poucos estudos sobre a atividade da mulher no setor pesqueiro.

Por dividir as atividades entre a casa e a maré, a mulher não tem o trabalho reconhecido

porque, muitas vezes, não se traduz em renda monetária sendo definido apenas como

coleta manual em algumas Colônias de Pesca3.

Em virtude da grande quantidade de comunidades pesqueiras na cidade trabalhei

na monografia de graduação com a comunidade do Teotônio Vilela, por está entre os

locais onde reside um grande número de trabalhadoras e trabalhadores da pesca. A

discussão sobre a invisibilidade do trabalho da pescadora continua presente no texto de

dissertação, mas as problemáticas e o campo de pesquisa são ampliados. Além de

trabalhar com comunidade do Teotônio Vilela, entrevistei também algumas mulheres da

1 Alessandro Portelli. História Oral como Gênero, 1981.

2 Trabalhos de Antropologia encontrados no Nupaub (Núcleo de Populações e Áreas Úmidas do Brasil).

3 O Estatuto de fundação das duas Colônias da cidade de Ilhéus noticiados no Diário Oficial, 1985,

explica que as Colônias são associações civis daqueles que fazem da pesca sua profissão ou meio

principal de vida, criadas com prazo indeterminado de duração e tendo por finalidade a representação e a

defesa dos direitos e interesses dos associados.

Page 14: Fabiana Andrade

comunidade do São Miguel, por ser um dos bairros mais tradicionais na atividade

pesqueira.

A cidade de Ilhéus possui vários lugares de manguezal acompanhados por rios, o

que possibilita a existência de cerca de vinte comunidades de pesca4. As mulheres

dessas comunidades realizam a arte da pesca artesanal5 porque fabricam os seus

próprios instrumentos e pegam pouca quantidade de mariscos e peixes. O seu trabalho é

considerado “arte” se pensarmos na prerrogativa de que é uma atividade humana básica

necessária, e na medida em que não é forçado, deformado ou alienado, constitui uma

atividade criativa livre. Visto dessa forma toda atividade criativa do homem realizada

no seu trabalho pode ser considerada “arte”. 6

As mulheres entrevistadas eram cadastradas à Colônia de Pesca Z-347,

instituição que representa os pescadores e pescadoras do município. Nas pesquisas

realizadas aos arquivos da Colônia ainda na Iniciação Científica pude observar que o

número de mulheres associadas à instituição aumentou consideravelmente a partir da

década de 1980. 8

Compreender o porquê do crescimento das mulheres colonizadas a

partir desse período foi um dos objetivos traçados para a pesquisa.

O que encontrei nas fontes escritas é que o interesse no cadastro á Colônia

estava vinculado às ações políticas desenvolvidos pela SETRAB e a promulgação da

constituição de 1988 que garantiu as pescadoras e pescadores os direitos aos benefícios

previdenciários. A SETRAB (Secretaria do Estado do Trabalho), por exemplo,

disponibilizou no ano de 1989 uma série de recursos visando o desenvolvimento da

4 Destacam-se as comunidades de pesca do São Miguel, Mascote, Rio Pardo, Itajuípe, Rio Almada, Itapé,

Rio Cachoeira, Banco da Vitória, Salobrinho, Iguape e Vila Olímpia. 5 Segundo Jussara Cristina Vasconcelos Rego no seu trabalho Etnoecologia dos Pescadores de velha

Boipeba-BA, do Costero a Berado. Salvador, 1994, a pesca artesanal é caracterizada por sua

sustentabilidade ecológica, possibilitada pelo conhecimento empírico acumulado pelos pescadores acerca

do ambiente com que interagem, e utiliza como matéria prima de seu instrumento os próprios recursos

naturais do lugar. 6 Janet Wolff. A produção social da arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p 29.

6No município de Ilhéus temos duas Colônias que representam a categoria das pescadoras e pescadores a

Z-19 e Z-34. Está última foi fundada em 12 de janeiro de 1947 e localizava-se no bairro do São Miguel

também conhecido como barra do Itaípe. Atualmente a sede da Colônia está fixada na Avenida Antônio

Carlos Magalhães situada no bairro do Malhado. A Colônia de pescadores Z-34, ou do Malhado, tem

cerca de 3.000 associados, possui frigorífico e auxilia aos associados para a obtenção de benefícios na

Previdência Social.

7Através do estudo das fichas de cadastrados pude observar um aumento considerável de mulheres que

passam a fazer parte da instituição a partir da década de 1980.

Page 15: Fabiana Andrade

pesca no Estado. Uma notícia do jornal Diário da Tarde apresentou a seguinte

chamativa:

Os pescadores e marisqueiras que ainda não se regularizaram junto às

Colônias de pescadores do Estado, que já tem cadastrados mais de 90 mil

profissionais dessas atividades, devem faze-lo o mais rápido possível. É que

a Secretaria do Trabalho (SETRAB), e a Federação dos Pescadores do

Estado da Bahia, com o apoio das prefeituras de vários municípios

produtores de pescado, estão desenvolvendo ações visando incrementar a

pesca em todo o estado. Dentre os benefícios (...) estão os destinados à

aquisição de redes de náilon, cursos ministrados às diretorias das Colônias,

com a finalidade de agilizar o seu funcionamento e prestar melhor

assistência aos seus associados (...) 9

Entretanto, aliada à vontade política e a luta dos movimentos sociais, estava o

interesse das mulheres em serem reconhecidas enquanto profissionais, e ao próprio

processo de saída, “expulsão”, dos trabalhadores do campo para a cidade, e a

apropriação dos seus direitos enquanto trabalhadoras. Em uma discussão mais

aprofundada no texto de dissertação podemos compreender como o trabalho das

pescadoras ganha as disposições legais e a luta pela igualdade de direitos e

sobrevivência cotidiana.

Ás mulheres é atribuído o título de marisqueiras porque geralmente são elas que

capturam tipos diferentes de mariscos (ostras, lambretas, sururu etc). Existe uma ideia

pronta que trata o pescador apenas aquele que trabalha em alto mar na captura do peixe.

Entretanto, muitas das mulheres entrevistadas estão longe dos ideais de

profissionalização da mulher que geralmente inscrevem-se no prolongamento das

funções maternais, naturais e domésticas que são as características das profissões

elencadas como adequadas para o ideal de mulher que cuida e consola. Como explica

Michelle Perrot, nos idos do século XIX, as profissões de enfermeira, assistente social e

professora primária eram descritas como atividades de mulher.

Qualificações reais fantasiadas como “qualidades” naturais e subsumidas a

um atributo supremo, a feminilidade: tais são os ingredientes da profissão de

mulher, construção e produto da relação entre os sexos. 10

As dificuldades das pescadoras em serem reconhecidas enquanto profissionais

da pesca também é conseqüência da sociedade misógina. A história das mulheres

9 Pescadores e Marisqueiras beneficiados pela SETRAB Nº 16.227. Diário da Tarde. Ilhéus-BA. Quarta-

feira, 27 de setembro de 1989. 10

Michele Perrot. As Mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p 253.

Page 16: Fabiana Andrade

entrevistadas é uma história de privações ao acesso a educação, ao lazer, e também

porque casam cedo ou engravidam no início da puberdade. Muitas já deixam à

adolescência na condição de mãe solteira, e as que casam não ficam muito tempo ao

lado dos seus maridos. Por dividir as atividades entre o lar e atividade pesqueira não são

tidas, muitas vezes, como trabalhadoras da pesca.

Nas comunidades pesqueiras elas criam alternativas para sobreviver à crise do

pescado e aos períodos em que o peixe não pode ser capturado em virtude da desova. As

mulheres costumavam manter a sua família com as atividades de artesanato e com a

captura do marisco. Muitas vezes o Ministério do trabalho costuma registrar a mulher

como marisqueira para não ter que pagar seguro já que não existe defeso para o

marisco11

. O sistema de gênero limita a participação das mulheres à esfera privada e

consequentemente o seu acesso aos direitos.

No Estado da Bahia a pesca é eminentemente artesanal, devido à extensão de

suas águas e também das suas características fisiográficas12

e da sua ictiofauna13

. Tendo

em vista que possui uma das maiores reservas de peixe na região costeira, o fundo do

mar raso e acidentado é habitat de espécies nobres como: vermelhos, badejos, garoupas,

chernes e lagostas. A captura dessas espécies geralmente fica limitada ao uso de linhas

simples, espinhéis e armadilhas, o que favorece e condiciona a atuação da pesca

artesanal, ao tempo que limitam o uso de determinadas embarcações e métodos de pesca

representados basicamente por aparelhos estáticos (redes de malhar). 14

A variedade de práticas desenvolvidas pela pescadora que, muitas vezes, é mãe,

esposa e trabalha na atividade pesqueira, pode ser considerada uma peculiaridade do

gênero feminino no setor pesqueiro. Entretanto, as políticas públicas não abarcam as

diversidades das atividades executadas pelas mulheres nas comunidades pesqueiras.

Elas sempre trabalharam, seja na ordem doméstica ou em outras funções. Entretanto,

nem sempre exerceram ofícios reconhecidos que trouxeram remuneração e as suas

atividades domésticas eram invisíveis.15

As trabalhadoras da pesca entrevistadas buscam

as suas próprias definições, que diferem das encontradas nos órgãos públicos16

. O

11

Rogéria Araújo. Pescadoras exigem direitos. Disponível em: www.edital.com.br. 12

Descrição da natureza, da terra e dos fenômenos naturais; geografia física. 13

Em ecologia e ciências pesqueiras, chama-se ictiofauna ao conjunto das espécies de peixes que existem

numa determinada região biogeográfica 14 GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Diagnóstico Subsetorial da Pesca artesanal. Salvador,

Agosto, 1994. 15

Michelle Perrot. Minha história das mulheres. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2008. 16

Estou fazendo referência a Colônia de Pesca Z-34 que tende a definir geralmente as mulheres como

marisqueiras e aos Diagnósticos de 1975, 1994 que também rotulam as mulheres de marisqueiras.

Page 17: Fabiana Andrade

Diagnóstico Subsetorial da Pesca artesanal17

, de 1994, elaborado pelo Estado da Bahia,

ressalta o seguinte:

“O setor pesqueiro é traduzido em duas atividades, a pesca e a mariscagem.

A distinção entre elas se dá em função do produto capturado e do sexo da

pessoa que exerce a atividade. Enquanto a pesca é exercida basicamente

pelos homens que utilizam embarcações e apetrechos de pesca, capturando

peixes e crustáceos, a mariscagem é uma atividade considerada feminina

embora muitos homens a exerçam, resultando na captura de moluscos e

crustáceos manualmente ou utilizando armadilhas”.

Algumas entrevistadas fazem uso da definição “pescadeira” como uma

atribuição própria das atividades que desenvolvem. A pesca no feminino parece existir

apenas como um complemento ao trabalho exercido pelas atividades do homem no mar

e nas águas estuarinas, ao ponto do trecho ressaltar que o homem pesca, enquanto a

mulher é reservada a função de mariscar. À mulher é excluída a terminologia de

pescadora, aquela que captura também peixes e crustáceos.

Ao longo do processo histórico essa isenção está acompanhada dos mitos que

reservam para as mulheres o espaço de terra, porque apenas as Deusas podem habitar e

dominar as diversas águas18

. Elas são excluídas da pesca de alto mar, em alguns locais,

porque crenças míticas sinalizam que elas provocam azar nas pescarias. Ou a mulher

não devia entrar nos botes e nem devia tocar nas redes, arpões, ou anzóis, para não atrair

prejuízos à atividade masculina. Em outras comunidades tal contato só é considerado

perigoso, no momento da menstruação ou puerpério.19

As dificuldades no mar, as péssimas condições do barco, o cuidar dos filhos são

motivos que afastaram as mulheres da atividade no alto mar. Algumas pesquisadoras

ressaltam que a pesca é considerada e percebida apenas como um trabalho masculino

porque é resultado da construção social do que foi feito com o pescador no país.

17

Um acordo assinado pelos Ministros do Meio Ambiente e da Agricultura instituiu um grupo de trabalho

cujo objetivo era formular uma Política Nacional da Pesca, que possibilitasse ao Governo definir para o

país, ações concretas não só do aproveitamento do seu potencial pesqueiro marinho, estuarino e

continental, mas principalmente, da potencialidade da sua costa e de águas interiores no desenvolvimento

da Aqüicultura. 18

Neuza Maria de Oliveira no seu texto Rainha das águas, dona do mangue: um estudo do trabalho

feminino no meio ambiente marinho. Ver. Bras. Estudos Pop. Campinas, 1983. Disponível em

www.abep.org.br. Acesso em 21/07/2006. Apresenta que nas figuras mitológicas as mulheres são tidas

como as rainhas e protetoras do mar, como o exemplo de Iemanjá, Oxum, Janaina, Mãe D’água, Nanã e

as sereias. São tidas como donas das águas doces e do mar, são representadas por mulheres belas,

vaidosas que protegem os pescadores e mantêm com estes uma relação amorosa simbólica, não toleram

outra presença feminina nas suas águas, e esta seria a explicação simbólica do impedimento da mulher

pescar no alto mar . 19

Silmone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípio. São Paulo: Ática, 1986, 19.

Page 18: Fabiana Andrade

Segundo Lidiane Góes20

a nomeação mulher pescadora é resultado de processos sociais,

históricos e culturais. A autora recorre à literatura sobre a História dos Pescadores no

país de 1840 a 1930, e ressalta que mesmo sendo consideradas pescadoras naquele

período foram excluídas dos planos do governo. Porque a regularização e

profissionalização da pesca realizada pela marinha, tinha como objetivo formar um

contingente de homens e de barcos disponíveis para garantir a segurança do país e essa

atividade não incluía mulheres. Segundo a autora no trecho 137 do livro de Silva21

consta um relatório de 1852 no qual existe o insucesso do Cadastramento da Marinha no

Pará, em virtude de os trabalhadores da pesca serem constituídos principalmente por

mulheres.

As diversas concepções e teorias da epistemologia feminista nos ajudam a

pensar o porquê da invisibilidade da mulher no setor pesqueiro. As teorias feministas,

baseadas na filosofia pós-moderna, propõem novas relações e novos modos de lidar

com processo de produção do conhecimento não mais voltado para a síntese das

determinações marxistas, mas para a descrição das dispersões22

Nessa perspectiva, Joan

Scott, vai dizer que o discurso misógino construiu uma divisão de trabalho que

privilegiou o homem.

O discurso masculino do início do século XIX exalta o homem e considera a

mulher como sexo frágil. Mas como explicita Joan Scott23

os historiadores não devem

ficar presos a esses discursos que afunilam para assim poder enxergar as diversas

experiências das mulheres trabalhadoras na história. Destaca ainda que a evidência não

existe em si, porque consiste numa construção da narrativa. Procuramos então, nesse

trabalho, a evidência por si mesmo e a construção dos sujeitos enquanto trabalhadoras e

trabalhadores da pesca.

Ao falar das suas experiências de vida, as pescadoras contam que são filhas de

pequenos agricultores e agricultoras que viviam da plantação da mandioca, como

20

Lidiane de Oliveira Góes. Os usos da nomeação mulher pescadora no cotidiano de homens e mulheres

que atuam na pesca artesanal. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de

Pernambuco, Recife, 2008. 21

Esse trecho encontra-se na obra de Luiz Geraldo Silva que escreveu: Os pescadores na História do

Brasil (Colônia e Império). 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1988,168 p. 22

Margareth Rago. Epistemologia Feminista: Gênero e História. In: Pedro, Joana Maria e Grossi, Miriam

Pillarm (orgs). Masculino, Feminino, Plural: Gênero na Interdisciplinaridade. Florianópolis, Ed:

Mulheres, 1998. 23

Joan Scott. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, n 20, v. 2, 1995, p

86.

Page 19: Fabiana Andrade

também do trabalho nas lavouras de cacau e da pesca. Na cidade de Ilhéus nos temos

diversas tradições na arte de pesca. Tínhamos os trabalhadores que pescavam e

plantavam que são oriundas da zona rural e os pescadores que moravam nas zonas

ribeirinhas e costeiras. As pescadoras do Teotônio Vilela recordam da vida no campo,

do tempo em que conseguiam reunir toda a família para plantar e pescar. Enquanto que

no São Miguel, elas remontam ao tempo em que viver no bairro era partilhar o peixe

fresco na mesa que conseguiram com a pesca de calão, realizada no mar. A crise da

monocultura do cacau, a principal fonte de renda do município, gerou grandes

conseqüências para a cidade, como a concentração da população nos perímetros

urbanos.

Ao lado dos engenhos de açúcar a cultura do cacau foi plantada e desenvolvida

com base na experiência pessoal, ao longo do século XIX, a cidade viveu um grande

desenvolvimento econômico com o cultivo da lavoura cacaueira. Mas a economia da

cidade de Ilhéus começa a sofrer um grande abalo com a quebra da Bolsa de Valores de

Nova York em 1929 e teve a sua situação agravada a partir de 1957. A diminuição das

taxas de lucro do cacau devido à expansão da cacauicultura no Sudeste da Ásia

(Indonésia e Malásia) com alta produtividade, e a praga conhecida como vassoura de

bruxa (Crinipellis perniciosa) que atingiu a planta, provocou o desequilíbrio da

economia na região cacaueira. O abalo na economia do município ocasionou um grande

número de desemprego, de subemprego, expulsão dos trabalhadores do campo e

migrações do meio rural para a cidade.

O bairro do Teotônio Vilela surgiu na década de 1980, sendo ocupado por várias

famílias e grande parte da vegetação de manguezal foi aterrada para a construção de

casas. Já o São Miguel é conhecido como um típico bairro de pescadoras e pescadores

artesanais, local que passou por um processo de especulação imobiliária, por ser ponto

de parada de muitos turistas no verão e que atualmente luta para não desaparecer, em

virtude do processo de erosão, invasão das águas do mar.

Através das histórias de vida e trabalho das pescadoras percebemos o quanto os

seus papéis informais, as improvisações do dia a dia revestem-se em práticas que vão de

encontro ao poder disciplinador. Nas suas narrativas encontramos meios para refletir

como os significados atribuídos ao gênero perpassam pelas relações de poder vigente na

família, nas comunidades de pesca e no ambiente de trabalho. Ser mulher e pescadora

terão significados diferentes para o homem e para a mulher nas suas comunidades.

Page 20: Fabiana Andrade

No Primeiro Capítulo ressalto a história de vida e trabalho das mulheres na sua

comunidade de pesca. Apresentando através das suas lembranças como era o seu

cotidiano na roça e como foram construindo as novas relações de trabalho. As suas

memórias ressoam uma determinação para o trabalho no campo diferente das atividades

desenvolvidas na cidade. A atividade da pesca que geralmente era desenvolvida por

toda família na roça torna-se um meio de sobrevivência para muitas mulheres na cidade.

A pesca para muitas mães solteiras representou uma alternativa de vida e uma prática

que lhes garantiu a liberdade e manutenção da sua família.

No Segundo Capítulo, trato das mudanças dos modos de fazer e de estar na

cidade a partir do que pensam a respeito das suas transformações. Como também elas se

reconhecem enquanto pescadoras e profissionais da pesca. Nas suas falas percebemos

como elas insistem na descrição das suas atividades diárias, como uma tentativa de

afirmação do seu trabalho. Apresento os costumes e os modos de fazer específicos das

pescadoras na feira, nas ruas, e como o seu comportamento e as suas relações de

trabalho são conduzidas pelas famílias de pesca.

Segundo Raquel Rolnik a cidade é um continente das experiências urbanas, além

de um registro, uma escrita, e uma materialização da própria história.24

A história das

mulheres parece seguir caminhos e percursos diferentes dentro do limite que

denominamos cidade. As maneiras de fazer, modificadas e reapropriadas muitas vezes

são postas para driblar as regras de conduta estipuladas pelas políticas públicas para as

pescadoras e pescadores no município. Para Michel Certeau25

, essas táticas e práticas

aplicadas pelos sujeitos em seu dia-a-dia são chamadas de antidisciplina. Diferente da

concepção de Michel Foucault de que tudo é controlado pelo poder disciplinador.

Os consumidores têm o poder de burlar e criar estratégias de resistência em

defesa da manutenção dos seus fazeres. Não estou pensando na teoria de Certeau como

um modelo de análise que servirá de molde para refletir sobre os modos de vida das

mulheres pescadoras, mas a sua percepção sobre as práticas cotidianas será um caminho

norteador para apresentar a pluralidade das suas experiências. As “artes de fazer”

também estão presentes na definição da cidade pelo sujeito que constrói o seu traçado

segundo os diversos caminhos escolhidos para serem percorridos em seu cotidiano26

.

24

Raquel Rolnik. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. 25

Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-

Petrópolis, R.J; Vozes, 1994. 26

Idem.

Page 21: Fabiana Andrade

No Terceiro Capítulo pensarei na relação mantida entre as pescadoras e a

natureza. O que é ser pescadora e pescador artesanal diante de uma realidade em que o

meio ambiente degrada-se cada vez mais? De acordo com o Projeto GEPAM27

várias

experiências internacionais têm demonstrado que as mulheres se preocupam mais com a

situação do meio ambiente do que os homens. Há nessa perspectiva uma questão

vigente que envolve as particularidades de gênero que concebe a mulher como aquela

que cuida, a figura da mãe, a qual preserva o que é importante para os seus filhos. A

proximidade das pescadoras e pescadores artesanais com o meio ambiente garante um

conhecimento experimental que é característico da sua profissão?

A Etnobiologia tem demonstrado que os pescadores artesanais de águas

marinhas conseguem distinguir e reconhecer facilmente algumas espécies de animais,

devido à prática do manejo, do saber lidar com essas espécies. Em virtude dessa

aproximação com o meio ambiente, as pescadoras em Ilhéus também possuem um

conhecimento específico da natureza, portanto, vou procurar compreender quais as

particularidades dessa relação ao acompanhar as transformações que vêm acontecendo

nos seus modos de vida e trabalho.

Os saberes e valores das mães solteiras, trabalhadoras que criaram os seus filhos

a partir da atividade pesqueira são relembrados e discutidos. Cada história guarda

experiências únicas, mas que dialogam quando apresentamos o que é o conhecimento da

pescadora e do pescador artesanal, que é adquirido a partir dos costumes da sua família.

Os pescadores que vieram do campo realizam a atividade como um momento de

distração e mais um recurso que a natureza tinha para lhes oferecer. Mas a necessidade

muda à relação que essas pessoas tinham com o rio, o mar e a atividade pesqueira. As

relações de troca, solidariedade não são as mesmas entre as pescadoras e pescadores

artesanais. Nas entrevistas, as mulheres falam com sentimento dos momentos que

vivenciaram em seu cotidiano de luta e conquistas diárias. A vida dessas mulheres é

uma poesia de esforço diário pelo amor a vida e aos filhos.

Tecendo as redes de Informação

27

PROJETO GEPAM. Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional: Gênero, Cidadania e

Meio Ambiente. Prefeitura Municipal de Santo André. São Paulo: Linear B, 2004

Page 22: Fabiana Andrade

O fato de o conhecimento historiográfico partir de uma construção ideológica

significa que ele está sendo constantemente retrabalhado por todos aqueles que, em

diferentes graus, são afetados pelas relações de poder, pois tanto os dominados quanto

os dominantes tem suas próprias versões do passado para legitimar suas respectivas

práticas28

. Segundo Alessandro Portelli em conferência proferida na Anpuh Nacional de

2009, o poder do historiador converte-se no poder que concebemos aos entrevistados de

falar a verdade e tal poder consiste em uma tarefa específica da História Oral.

Para a construção desse trabalho algumas entrevistas aconteceram de forma

descontraída nos quintais das casas, na sala de estar das mulheres pescadoras, e muitas

vezes no momento em que estavam catando o marisco. As depoentes mostraram-se bem

dispostas a realizarem as entrevistas. O número de depoentes foi se formando a partir da

indicação das entrevistadas. Muitas vezes, as pescadoras narraram as suas experiências

de vida de forma mais detalhada e elucidada fora das suas residências, quando faziam o

percurso em direção ao trabalho.

As palavras ditas pelo outro podem ter significado simbólico bem diferente e

representar sentimentos muito diversos daqueles que os historiadores orais pensam que

elas transmitem. As mulheres quando falaram das suas experiências no trabalho

expuseram mais abertamente sobre a sua labuta diária, e como aprenderam a “arte da

pesca”. Entretanto, a relação com os filhos e marido, geralmente não eram citadas pelas

mães que eram solteiras, ficaram resguardados esses momentos e sentimentos na sua

memória.

Por isso, o trabalho com História Oral requer a leitura das minúcias, dos gestos e

das maneiras de ser das pessoas que podem estar abertas ou não ao diálogo. Mesmo

porque lembrar do que, muitas vezes, querem esquecer é um momento de reflexão e

desgaste intelectual e sentimental para o entrevistado. Podemos considerar que realizar

uma entrevista em muitas situações pode torna-se até mesmo uma “invasão de

privacidade” onde não sabemos até que ponto se pode adentrar nas suas memórias. Nos

depoimentos das pescadoras temos situações de explosão de felicidade e de tristeza.

Para tornar o diálogo agradável e satisfatório é preciso saber lidar e respeitar todas as

circunstâncias e aprender com elas.

28

Jenkin Keith. A História Repensada. 2°ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 4.

Page 23: Fabiana Andrade

Nos depoimentos das pescadoras estão os seus sonhos a sua maneira de viver e

as vivências passadas que também ensinam. Na história oral, o problema

epistemológico, como os historiadores utilizam as suas fontes é também um problema

de relações humanas.29

Para que a pesquisa realmente aconteça é necessário que o

pesquisador saiba lidar com os diversos momentos da realização de uma entrevista.

Porque a subjetividade do entrevistado está, muitas vezes, repletas de conflitos, anseios

que precisam ser compreendidos.

No desenvolvimento da pesquisa, por exemplo, houve mulheres que a princípio

não queriam falar, só quando adquiriram confiança que concederam o depoimento.

Outras gostaram de narrar as suas histórias e o ouvir gerava um sentimento de

reconhecimento e descoberta da sua identidade. As entrevistas foram realizadas, muitas

vezes, quando as mulheres catavam a carne do siri ou aratu, ou no momento que

limpavam peixe. A sua dinâmica de trabalho permanecia enquanto lembravam das suas

vivências. Essas entrevistas aconteciam de forma mais enriquecedora ainda, porque era

espontâneo o seu contar, mais do que se tivéssemos interrompido o seu trabalho para

conversarmos exclusivamente. A conversa saia com naturalidade, sem preocupação com

o gravador, o que quebrava de maneira satisfatória o nervosismo e preocupação pelo

depoente em se expor para os outros.

Uma das entrevistadas que a princípio não quis conversar pertence à comunidade

do São Miguel. Segundo a pescadora, a Universidade Estadual de Santa Cruz têm

desenvolvido muitas pesquisas na sua comunidade, mas sem retorno algum. Disse

ainda, que estava decidida a não conceder mais entrevistas aos pesquisadores da

Universidade Estadual de Santa Cruz. Estive na sua residência com uma representante

das Cáritas de Ilhéus e uma integrante da Pastoral da Pesca de Salvador que veio a

Ilhéus a convite das Cáritas, para ministrar um curso sobre os direitos previdenciários

para as pescadoras. Ela nos recebeu com uma deliciosa mariscada, foi quando estabeleci

o contato com a pescadora. Quando conversei com ela a princípio, estava decidida a não

conceder entrevista, mas no final do curso a pescadora terminou se dirigindo a mim e

disse que conversaríamos.

29

Memória Popular: Teoria, Política, Método. Grupo Memória Popular. Muitas memórias, outras

histórias. Déa Fenelon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida, Yara Aun Khoury. Editora

Olho D’água, 2005.

Page 24: Fabiana Andrade

A história oral das mulheres reconhece as memórias de vários sujeitos sociais e

ao mesmo tempo faz com que elas próprias possam se reconhecer 30

. As mulheres

utilizaram o momento da entrevista para enfatizar também os seus direitos de cidadania.

Podemos perceber que a história oral permite explorar aspectos da experiência humana

que raramente são registrados tais como a vida doméstica, os costumes, e os

significados do que está sendo narrado.

Esse trabalho parte principalmente dos depoimentos das pescadoras, mas não

deixa de utilizar outros tipos de fontes, como as iconográficas e as fontes escritas. Elas

são utilizadas não para provar o que elas relatam nas suas entrevistas, mas para ajudar

na compreensão das mudanças e permanências dos seus modos de vida e trabalho. As

imagens são utilizadas, algumas vezes, somente como uma obtenção visual da

informação, como também é problematizada ao longo do texto.

Através dos estudos que foram elaborados pelas CEPLAC (Centro Executivo do

Plano da Lavoura Cacaueira) criada em 20 de fevereiro de 1957 para auxiliar os

cacauicultores na crise da monocultura do cacau, serão discutidos alguns aspectos

específicos sobre a pesca na região. A Instituição elaborou vários Diagnósticos sobre a

Pesca artesanal em Ilhéus, datados de 1946, 1975 e 1997. Esses documentos oferecem

muitas informações sobre as maneiras de pescar e os problemas relacionados à pescaria

Baiana. Os Diagnósticos estão voltados principalmente para o estudo da pesca marítima,

mas não deixa de apresentar dados importantíssimos sobre os instrumentos de pesca e,

também, sobre a condição e o modo de trabalho das pescadoras e pescadores artesanais.

Desenvolvi também pesquisa nos Arquivos da Colônia de Pesca, onde digitalizei

algumas Atas da instituição e estudei os cadastros dos pescadores que ainda não estão

digitalizados. Nos arquivos do CEDOC- Centro de Documentação e Memória Regional

da UESC, as notícias foram pesquisadas no Jornal Diário da Tarde, e no Arquivo

Municipal da Cidade de Ilhéus foram realizadas pesquisas no jornal Diário de Itabuna.

A imagem de formação do bairro Teotônio Vilela faz parte do arquivo da Associação do

Bairro, onde também foi pesquisada as Atas de Fundação e as outras imagens é

resultado da pesquisa de campo. As imagens utilizadas no texto não são utilizadas como

fonte, mas como uma ilustração que nos ajuda a pensar e compreender modo de vida

das mulheres pescadoras.

30 Silvia Salvatici. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. In: História Oral.

(vol. 8) (n.o1). Revista da Associação Brasileira de História Oral. Jan.jun.2005. p. 29-42

Page 25: Fabiana Andrade
Page 26: Fabiana Andrade

I CAPÍTULO

AS PESCADORAS E AS COMUNIDADES DE PESCA:

TEOTÔNIO VILELA E SÃO MIGUEL.

A gente começou a trabalhar nova, com dez anos

a gente capinava, a gente via o nosso pai e mãe

fazendo aí a gente fazia também. Quando a maré

estava cheia a gente trabalhava na roça quando

secava a gente ia trabalhar na maré.

Maria Helena de Castro

Page 27: Fabiana Andrade

As pescadoras e as comunidades de pesca

As pescadoras realizam atividades das mais diversificadas nas comunidades do

Teotônio Vilela e São Miguel. A primeira está localizada na zona oeste no município e

possui uma extensa área de manguezal banhada pelo Rio Cachoeira e Rio Santana. A

comunidade do São Miguel, localizado na zona norte da cidade, consiste em um

alongado perímetro de terra banhado pelo Rio Almada e pelo Oceano Atlântico.

FIGURA 1: Localização da Área de Estudo (SEI e Adaptado do Programa Habitar

Brasil)

O município de Ilhéus é encoberto por vegetação de Mata Atlântica e possui

várias zonas alagadas de manguezais. As áreas mais representativas de mangue estão no

perímetro urbano e ao longo das margens e porções estuarinas dos rios Cachoeira,

Santana, Fundão e Almada. A forma irregular de relevo que compõe a estrutura do

Page 28: Fabiana Andrade

município fez com que uma das formas de extensão urbana tenha acontecido através do

entulhamento do Manguezal.

Nos tempos áureos da lavoura do cacau a região atraiu muitos imigrantes e a

população crescia tão rápido que num período de trinta anos teve um aumento de mais

de 700%, saltando de 7.629 em 1890 para 63.912 em 1920 (Andrade, 2003). Mas o que

antes era de outras cidades vizinhas para as fazendas do município passou a ser do

campo para a cidade, em virtude da crise do cacau, o que causou o aterramento de várias

zonas de mangue e o surgimento de novos bairros31

, a exemplo do Teotônio Vilela,

bairro que surgiu a partir de uma invasão e que teve várias de suas zonas de mangue

aterradas.

Os pescadores camponeses que viviam da agricultura e da pesca familiar

migraram para a cidade em busca de outras oportunidades e, muitos deles, encontraram,

na pesca, uma fonte específica de renda. A crise econômica da lavoura, juntamente com

a crença de que a vida na cidade é melhor e a ausência de uma política que assegurasse

a permanência das famílias no campo gerou um processo de migração das famílias

rurais para áreas próximas do perímetro urbano.

O Diagnóstico Sócio-Econômico da Região Cacaueira de 1975 apresenta dados

indicativos do crescimento da população pesqueira localizada na sede do município em

virtude da transferência da produção agrícola das famílias para a captura do pescado32.

O Diagnóstico informa que nas concentrações localizadas nas áreas rurais existia um

número significativo de mulheres e crianças que participavam da captura do pescado

para consumo próprio.

As mulheres que pescam no município trabalham tanto no “mar de dentro”,

como no “mar de fora”. O mar, muitas vezes, é percebido como domínio do homem em

oposição à terra que é de domínio feminino. O mar subdivide-se em mar de fora, espaço

da pesca marítima e em mar de dentro (entre a praia e os arrecifes) onde tanto homens

como mulheres exercem as suas atividades.

Entre os pescadores brasileiros observa-se uma visão de mundo em que é

muito marcada a separação dos domínios da terra e do mar. No mar alto,

31

Ao longo das décadas de 1960 a 1990 nós temos a continuação dessa expansão onde são ocupados os

manguezais do Malhado, Avenida Princesa Isabel, Avenida Esperança, ao norte A Barra do Itaípe ou São

Miguel, Jardim Savóia e ao Sul encontramos zonas aterradas ao longo da estrada Ilhéus - Olivença. No

final da década de 1980 temos a formação do Bairro do Teotônio Vilela, a Rua da Palha e Vila Nazaré. 32

Pesquisa sobre a pesca artesanal em Ilhéus realizada pela CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da

Lavoura Cacaueira) no ano de 1994.

Page 29: Fabiana Andrade

também chamado mar de fora, dá-se a atividade, por excelência, dos grupos:

a pesca de alto. No mar raso-mar de dentro, ou mar de terra-, além da pesca

de rede, que em muitos grupos também é uma atividade masculina, as

mulheres e crianças complementam a renda familiar com tarefas que vão

desde o artesanato e a confecção de instrumentos de pesca até o trabalho em

pequenas roças, onde produzem comida para o consumo familiar. 33

As pescadoras entrevistadas das comunidades do Teotônio Vilela e São Miguel

dividem as atividades com os pescadores nos rios, mangues e águas litorâneas da

comunidade. Nos seus depoimentos o que fica mais evidente é que a pesca no alto mar é

considerada uma atividade masculina por excelência e o gênero que exerce a função é

considerado como pescador. Mas as mulheres não costumavam exercer atividades

complementares, pois era costume trabalharem em família na atividade pesqueira.

No São Miguel as mulheres pescavam com a siripóia o siri no rio, mergulhavam

em busca da ostra, pegavam o camarão e o peixe. Pescavam também de rede, algumas

se aventuravam a pescar de tarrafa na praia, além disso, realizavam a cata dos diversos

tipos de mariscos e peixes que compravam dos barcos de alto mar e da pesca de calão.

Já no Teotônio Vilela, as mulheres costumavam trabalhar no mangue catando a ostra, o

aratu, o caranguejo, como também costumavam trabalhar na coroa na cata do muapen,

como também no rio na pesca do rubalo, siri, e diversas espécies de peixes de água

doce.

Através dos seus depoimentos vamos perceber que a migração do campo para a

cidade gerou novas relações de trabalho e formas diferenciadas de ser pescadora e

pescador. Mas ao longo do texto, também vamos discutir como as mulheres tornaram-se

pescadoras reconhecidas, colonizadas e vem lutando pela manutenção dos seus direitos

nos mais diversos setores da atividade pesqueira no município de Ilhéus. Ao passo que

ainda vem sofrendo de um preconceito construído pela sociedade que ainda tende a

dicotomizar as relações de gênero e, consequentemente, as suas diversas práticas.

“O pessoal foi construindo e colocou o nome de Teotônio Vilela”.

O Teotônio Vilela, lugar onde as pescadoras entrevistadas moram foi ocupado

por muitas famílias pobres que não tinham moradia própria e provenientes das roças de

33

Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.

Page 30: Fabiana Andrade

cacau. Para muitas pescadoras entrevistadas a ocupação do lugar significou um processo

de conquista pela moradia própria, as retaliações sofridas por parte do Governo não

foram suficientes para atenuar a luta que irá prosseguir pela melhoria do bairro.

O bairro está localizado na Rodovia Ilhéus – Itabuna e surgiu entre os anos de

1980 e 1990. No período de 1978 era apenas um aglomerado de pequenos sítios e

formado de terras devolutas do Estado. Os sitiantes viviam da produção de piaçava,

mandioca, caça, pesca e demais produtos agrícolas. No ano de 1985 era conhecido como

Gomeira34

, sendo formado de aglomerados de pequenas barracas, choupanas de palha

ou de tabunas e até mesmo de papelão como está demonstrado na imagem abaixo:

Figura 2: Formação do Bairro Teotônio Vilela (Fonte: Associação de

Moradores do Bairro).

Nas memórias das pescadoras entrevistadas do Teotônio Vilela, como

D.Tertulina (59 anos), D.Chica (54 anos), D. Cátia (34 anos), Helena (32 anos) e Sr.

Gileno (75 anos), D.Orenice (58 anos) e D. Inês (46 anos) estão presentes as histórias de

formação e crescimento do bairro.

34

Essa informação está registrada na Ata de reuniões dos membros da Igreja Católica Santíssima

Trindade localizada no bairro Teotônio Vilela.

Page 31: Fabiana Andrade

A pescadora Cátia, 34 anos, filha de pequenos agricultores, morou e trabalhou

no campo durante a sua infância. 35

Além de trabalhar na agricultura com os seus pais e

os seus irmãos, costumava também pescar com a sua família durante os finais de

semana. Ela recorda com saudosismo da infância quando tinha toda a família unida no

trabalho e fala das primeiras impressões que teve quando se estabeleceu no bairro.

Segundo ela no tempo em que era “Gomeira não tinha casa nenhuma era tipo um sítio,

bicho de porco pra caramba, aí o pessoal foi construindo e colocou o nome de Teotônio

Vilela”.

O lugar deixou de ser sítio quando um grupo de duzentas pessoas ocupou o

espaço e durou cerca de vinte dias sendo desmobilizada pela polícia municipal. O bairro

ficou conhecido como Gomeira (em virtude da grande quantidade de goma de mandioca

que produziam) seria inicialmente, demarcado e dividido em lotes para serem

distribuídos entre as famílias carentes. Como todos os inscritos não foram alocados

gerou-se total insatisfação, iniciando um movimento de ocupação.

Foram várias as possibilidades pensadas pela política local pela utilização a sua

maneira do espaço. A Prefeitura Municipal pensou também em implantar um Centro

Administrativo Municipal, mas a população passou gradativamente a ocupar e tomar o

espaço. A luta e a reivindicação dos grupos populares permanecem pela melhoria do

lugar que conquistaram.

Os ocupantes para terem a situação regularizada frente à Prefeitura Municipal

realizaram várias passeatas pelas ruas centrais da cidade, exigindo também melhores

condições de habitação. O bairro formou-se a partir do processo de ocupação liderado

por pessoas representantes de Movimentos Sociais na cidade e devido ao rápido

crescimento da população e ao movimento de reivindicação por direitos o bairro foi

reconhecido oficialmente pelo Governo municipal em 11/07/1989 com o nome de

Teotônio Vilela.

Nos registros do jornal Diário da Tarde36

constam movimentos de protestos da

população onde organizaram passeatas e abaixo assinados reivindicando investimento

em infra-estrutura para garantir melhores condições de moradia no local, como

abastecimento de água, energia elétrica, posto médico, sistema de esgoto, transporte e

35

Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada em sua residência no dia 03.01.2009.

36

Moradores do Teotônio Vilela fazem passeata pelo centro. Diário da Tarde. Ilhéus, quarta-feira, 18 de

março de 1987./ Invasores do Teotônio Vilela querem garantia de habitação. Diário da Tarde. Ilhéus,

sábado e domingo, 26 e 27 de junho de 1986.

Page 32: Fabiana Andrade

segurança. O bairro Teotônio Vilela cresceu e melhorou a sua infraestrutura em razão da

luta de representantes da população local. Para que as suas reivindicações estivessem

mais organizadas foi criada a Associação dos Moradores. Muitas das pescadoras

entrevistadas fizeram parte desse processo de formação do bairro, o que significou para

a sua família um momento de conquista pela moradia própria. Os seus depoimentos

relatam esse princípio como motivador para o processo de migração dos moradores

rurais do campo para a cidade. D. Inês diz o seguinte:

(...) a gente morava na roça, na casa dos outros, aí disse que teria um

negócio de uma invasão aqui, e aí a gente entrou nessa invasão também,

sabe; porque quem não tinha casa veio todo mundo para aqui, porque ia ter

cada qual seu pedacinho de chão e fazer a sua casinha. Aí agente veio assim

por isso. Porque isso aqui era um pedaço de terra isolado não morava

ninguém aí o pessoal resolveu invadir, aí veio todo mundo aí eu vim no

meio. 37

No Teotônio Vilela, nós temos uma junção de camponeses pescadores que

trabalhavam no regime de agricultura familiar assim como também pescavam para o

consumo familiar e para vender o produto nas feiras livres durante os finais de semana.

A migração desses pescadores camponeses para as áreas periféricas da cidade fará com

que a pesca se torne o seu principal modo de vida. Os grupos de trabalho dos pescadores

agricultores formam-se dentro da unidade familiar. Nas suas narrativas a pescadoras

apresentam que mesmo trabalhando na roça pescavam para o consumo e para vender na

feira nos finais de semana, gerando, portanto, um excedente de produção.

Os camponeses pescadores que migraram para a cidade salientaram nos seus

depoimentos que a atividade da pesca era intermitente as atividades no campo ou

realizadas para o consumo como para ajudar na renda da família. As diferentes relações

de trabalho no campo vão criar experiências outras de valor de uso da prática pesqueira.

Nas famílias em que os pescadores prestavam serviço nas fazendas, a atividade

pesqueira era realizada todos os finais de semana ou nos dia que não tinham serviço.

Essa atividade garantia uma renda extra para a família das pescadoras que recebiam

pelas diárias nas fazendas.

Entre as famílias que eram donas de pequenos sítios a atividade pesqueira era

realizada geralmente para o consumo diário. Já para as famílias que eram meeiras38

nas

37

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 38

O meeiro é aquele que tem contrato escrito com o proprietário da terra e desenvolve atividade

agropecuária, dividindo meio a meio as despesas e os rendimentos obtidos.

Page 33: Fabiana Andrade

grandes fazendas a atividade pesqueira significava mais um meio de renda que eram

realizados tantos nos finais de semana, como nos momentos de descanso da atividade

pesqueira. A pluralidade de experiências e a necessidade que envolve a atividade

pesqueira no município de Ilhéus demonstram que não podemos ficar presos, mais uma

vez, à dicotomias que modela e generalizam tantos os modos de trabalho, como as

diversas experiências.

Por isso, através das histórias de trabalho procuro construir a história do

cotidiano da pescadora e das suas particularidades no trabalho da pesca, que enquanto

mulher sofre uma série de represálias no âmbito das representações públicas que ainda

estão impregnadas pelas representações misóginas de ser pescadora e da prática

pesqueira, que envolve na verdade uma variedade de atividades.

Eu morava em uma Ilha de pescadores...39

As pescadoras do São Miguel entrevistadas foram D. Nita (72 anos), D. Flávia

(56 anos), D. F. Júlia (60 anos), D Zó (44 anos), D.Dulciene (42 anos) e Sr. Antônio, D.

Omerita (71 anos), D. Valdecir (57 anos), José Carlos (58 anos). Nessa comunidade as

famílias viviam da pesca artesanal simples em que praticavam o artesanato, fabricavam

apetrechos de pesca e dedicavam-se a comercialização do peixe na sua comunidade, por

ser um local bastante requisitado pelo turismo.

Entre as mulheres entrevistadas temos as que aprenderam a pescar com outro

pescador ou pescadora artesanal e as que nasceram em famílias que sempre tiveram a

pesca como meio de sobrevivência. As pescadoras e pescadores do Teotônio Vilela,

como do São Miguel são considerados artesanais porque recolhem pouca quantidade de

mariscos e peixes e também por fabricarem a sua própria arte de pesca, como explicado

abaixo:

A pesca se caracteriza pela simplicidade da tecnologia e pelo baixo custo da

produção. Este tipo de pescador tem na pesca a sua principal fonte de renda,

e a produção volta-se para o mercado, sem perder, contudo seu caráter

alternativo, podendo destinar-se tanto ao consumo doméstico como à

comercialização. 40

39

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 40

Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.

Page 34: Fabiana Andrade

D. Eliúdes, filha de pescadores, cresceu no São Miguel em meio a pesca de

Calão e de rede no mar. O seu pai, migrante do estado de Pernambuco trabalhou em

diversas fazendas de Ilhéus até o dia que se estabeleceu como pescador no São Miguel.

Ela teve uma participação direta no espaço público da atividade pesqueira, pois durante

muito tempo trabalhou na Colônia de Pesca Z-34 como secretária. Ela entrou para a

colônia em 1966, como funcionária e, em 1984, foi eleita “pelos pescadores” como fez

questão de dizer, ao cargo de Secretária da Colônia de Pescadores Z-34.

Ao lembrar do tempo em que foi morar no São Miguel ressalta que muitos

pescadores estabeleceram-se no local com o consentimento da família Lavigne,

proprietária das terras, e construíram os seus barracos feitos de palha de coqueiro.

Segundo a pescadora também morou com a sua família em um desses barracos feitos de

palha que foi construído pelo seu pai e enfatizou que naquela época morava em uma

“ilha de pescadores”.

O São Miguel era matagal, coqueiral, sabe? Era o tempo em que à família

Lavigne era dona dessas terras todas, como chamar, para lá do Iguape, para

cá, São João, tudo era dessa família. E essa família, eles, não era assim,

gananciosa, porque o pescador chegou por aqui, e fazia o barraquinho deles

por aqui, em qualquer local, dessas terras, que era só de pescadores mesmo,

ilha de pescadores. 41

A comunidade do São Miguel é formada principalmente por famílias de

pescadores que sobrevivem da pesca artesanal. O povoamento do bairro data de 1896

quando pescadores fizeram, na restinga do São Miguel, uma favela de barracos cobertos

de palhas de coqueiro42

. Esse bairro viveu um processo de especulação imobiliária por

está localizado próximo ao mar e possuir uma riqueza natural privilegiada.

O bairro está sendo invadido pelas águas do mar, em virtude dos efeitos da

erosão que se intensificaram com a construção do Porto Internacional de Ilhéus na

década de 1960. Após a sua implantação e posterior ampliação, a praia de São

Sebastião, a sul do Porto sofreu crescimento e o seu trecho norte enfrentou um drástico

recuo da linha da costa43

. Para contornar a força do mar a população levantou proteções

por conta própria, mas no final da década de 1990 a Prefeitura construiu quatro espigões

em posição transversal para aplacar as forças das águas, porém não tem surtido tanto

41

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 42

Maria Palma Andrade. Ilhéus: passado e presente. Ilhéus: EDITUS, 2003. 43

Amon Chystian de Oliveira Teixeira. Caracterização do Processo Erosivo na praia do São Miguel,

Ilhéus, Monografia- UESC, 2006, p 08.

Page 35: Fabiana Andrade

efeito segundo as pescadoras e pescadores do local. Vejamos o que diz a notícia datada

de 1988:

A prefeitura de Ilhéus vai iniciar no próximo mês de março a primeira obra

de enroscamento do bairro São Miguel, na zona norte da cidade, que há

mais de dez anos vêm sofrendo prejuízos estruturais em virtude da erosão

marítima provocada a partir da construção do prolongamento do Porto em

mar Aberto. 44

O relato da pescadora Dulciene e o seu irmão José Rodrigues, nos remete as

mudanças nos costumes e nas formas de pescar que são vividas em virtude das

transformações no setor econômico e ao mesmo tempo cultural. Eles são filhos de

pescadores que cresceram morando na beira do mar e acompanhando diariamente as

pescarias na comunidade do São Miguel. D. Cica, como é conhecida no lugar, recorda

do tempo em que era criança, e que esperava a pesca de calão para ganhar os peixes

miúdos para comer ou secar e vender nas redondezas da cidade.

As atividades desenvolvidas pelas mulheres no São Miguel geralmente

concentravam-se na aquisição do peixe pequeno pela pesca de arrastão e na confecção

de redes. Desde criança, eles aprenderam com os seus pais a serem pescadores, vendo

os mais velhos pescando e ao acompanhá-los nas pescarias diárias.

As pescadoras e pescadores entrevistados lembram com saudosismo das festas

que aconteciam todos os anos para o padroeiro São Miguel e no dia de São Pedro,

padroeiro dos pescadores. A festa era organizada com o apoio da Colônia Z-34 e dos

políticos locais. Um dia antes do acontecimento tinha a preparação do que as mulheres

chamaram de “profano” 45 que era o momento de oferendas á Iemanjá, a rainha das

águas. No dia da festa tinha a procissão e as brincadeiras como torneio de futebol,

gincana de pesca com tarrafa, corrida de canoa e a famosa procissão com as

embarcações. Além das barracas que vendiam comidas típicas e bebidas.

Era uma festa que resgatava a raiz do pescador e era esperada todo ano.

Eram brincadeiras, torneio de pesca e as mulheres cuidavam do lado

profano da festa (..) A festa acabou porque quiseram fazer da festa algo

que desse lucro. 46

44

Anunciamos o início das obras de enroscamento do bairro São Miguel. Diário da Tarde, Ilhéus, sexta-

feira, 27 de fevereiro de 1998. 45

Dulciene Costa Santos. (42 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009 46

Idem.

Page 36: Fabiana Andrade

Para o pescador José Rodrigues (38 anos) esse costume significa hoje um “lado

morto da história” porque não realizam mais a comemoração. Os pescadores do São

Miguel apresentaram como justificativa para o fim da festa a morte dos antigos

organizadores, a falta de apoio da Colônia de Pesca e pela festa ter se tornado um objeto

de interesse estritamente financeiro. Vejamos a reportagem:

Numa promoção da Prefeitura Municipal de Ilhéus, Adebanorte e Colônia

de Pesca Z-34 prosseguem as festas em louvor a São Miguel, padroeiro da

bairro...O encerramento da festa será no dia 30, com maratona (7hs),

torneio de futebol (8hs), gincana de pesca com tarrafa (9hs), missa (10hs).

À tarde haverá corrida de canoa e a tradicional procissão marítima que

deverá contar com cerca de 20 embarcações. 47

A organização da festa por pessoas que não eram da comunidade fez com que o

evento fosse destinado ao turismo local e perdesse a sua identidade de festa religiosa

pensada e elaborada pela própria comunidade. Além disso, o que era mítico, a devoção

à padroeira e as forças da natureza podem ter deixado de ser tão contempladas por uma

geração que não quer seus filhos como pescadores ou pescadoras. Mas as pescadoras

entrevistadas insistem na ideia de que a invasão das águas do mar no São Miguel é

consequência do fim do festejo do padroeiro.

Como o pessoal disse aqui é mar, o mar tem dono né! E a gente sabe que

um dia vamos ter que sair daqui. O que eu penso é que depois que a festa

acabou o São Miguel começou a acabar, porque enquanto tinha essa festa

de lago aí, corrida de canoa, pescador que ajudava a Igreja, pescador

contribuía com a Igreja e tudo, a pesca era maravilhosa. 48

Os costumes religiosos que deixam de ser praticados reflete a mudança nos seus

modos de vida e a percepção dos grupos enquanto povo que constrói significados e que

precisam lutar pela sua manutenção que, muitas vezes são vistos no âmbito dos afazeres

e das práticas cotidianas.

47

Pescadores animados para a festa do São Miguel. Ilhéus- BA, Diário da Tarde, Ilhéus-BA, quarta-

feira, 26 de setembro de 1984.

48

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.

Page 37: Fabiana Andrade

Entre o rural e o urbano

Nas suas lembranças as mulheres voltam para o tempo de infância, para as

recordações do trabalho na lavoura e na pescaria. Charles Almeida, na sua obra “Fartura

e Ventura Camponesas”, explica que contrárias a qualquer formatação do tempo as

memórias negam a cronologia rígida e linear do passado antes do presente, e este

precedendo o futuro.49

Nos seus depoimentos ficamos atentos para o vai e vem da

memória, dos sentimentos que afloram e das lembranças que permanecem pelas

experiências de uma vida no campo.

A maneira como constroem o seu passado ressaltam vivências plurais e

reafirmam a dificuldade no trabalho e as suas formas diárias de luta. A pescadora Cátia,

filha de pequenos agricultores morou e trabalhou no campo durante a infância. Recorda

que a sua família dividia as atividades entre a agricultura, durante a semana, e a pesca

nos fins de semana. Quando ela e os seus familiares vieram morar no bairro Teotônio

Vilela, ela tinha onze anos de idade. Na condição de mãe solteira manteve e ainda

mantêm o seu filho através da pescaria.

Ela lembra com saudosismo da roça, lugar onde ela e os seus irmãos brincavam

em frente ao rio e trabalhavam na lavoura e no beneficiamento do marisco. A pescadora

diz o seguinte sobre as lembranças do tempo de infância: “(...) eu gosto da roça, eu

gosto da roça, se eu encontrasse um sítio para trocar na minha casa, eu trocava. Eu gosto

de acordar com o canto dos passarinhos, é muito bom!” 50 Na roça, a sua família fazia

plantação de mandioca e de feijão e como o número de irmãos era bem extenso

costumavam, algumas vezes, dividir os grupos que iriam trabalhar no campo e os que

deveriam pegar ostra no mangue.

Já a pescadora Inês, 46 anos, mãe de seis filhos e filha de pequenos agricultores,

antes de se estabelecer na comunidade do Teotônio Vilela morou na zona rural da

cidade de Ilhéus. Ela costumava prestar serviço nas diversas fazendas da cidade.

Trabalhando de enxada, na plantação, raspagem e peneiração da massa de mandioca,

como em todo o processo de fabricação da farinha de mandioca. Ela aprendeu a pescar

com a sua mãe que tinha o costume de pescar no rio enquanto o seu pai trabalhava na

49

Charles D’Almeida Santana. Fartura e Ventura Camponesas: Trabalho, cotidiano e migrações: 1950-

1980. São Paulo: Annablume, 1998. 50

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.

Page 38: Fabiana Andrade

roça. O seu pai recebia diárias pelo trabalho nas fazendas e quando não tinha oferta de

serviço também trabalhava na pescaria. A pescadora conta que:

Trabalhava de enxada, raspava mandioca...é peneirava a massa é

tudo...tudo que tinha de fazer mais leve assim a gente fazia...o mais

pesado era dos mais velhos...e os mais leve era trabalho nosso.51

Para poder vender o produto a sua família precisava acumular o pescado na

casca para conservá-lo, pois não tinham geladeira. No dia anterior à feira, salgavam o

pescado e no dia seguinte retiravam o sal para vender o produto. A dificuldade de

transporte tornava a venda muito exaustiva. Segundo D.Inês, no período em que

moravam na fazenda, o principal meio de locomoção da sua família era o barco. A

pescadora expõe “que hoje tudo é fácil, tem carro na porta, mas de primeiro tudo era de

canoa”52. Explica que depois de atravessarem o rio, tinham ainda que realizar uma longa

caminhada para chegar à feira do Malhado, quando não recorriam à carona de

caminhoneiros na beira da estrada.

Elas começaram a trabalhar ainda crianças, nas suas lembranças de infância

estão registradas as idas para o mangue com toda família. Ao lembrar da sua meninice

sente dificuldade de falar e a emoção torna-se presente em suas lembranças. Ela e os

irmãos pescavam com a sua mãe e o seu pai praticamente todos os dias.

A minha infância num foi boa não, pra falar a verdade do jeito que eu vejo

os meninos hoje, eu canso de dizer pros meus: -Vocês estão no céu. É por

que hoje em dia eles tem tudo pra aprender. Tem a ajuda do governo né!

Tem tudo isso e não querem nada...E a gente não. A gente tinha até vontade

de ir para a escola, mas não tinha ninguém para ensinar perto. Era roça...era

tudo mato. Então pra mim não foi muito boa não. A gente não tinha

liberdade, era só trabalhar mesmo e pronto (risos) quando a gente ia brincar

já estava sem graça. 53

A sua filha Rosa, pescadora e moradora do Teotônio Vilela conta que no período

que morou na Maria Jape, pescava ostra, muapen, siri e dividia o trabalho entre a roça e

a pesca. A sua família realizava a atividade pesqueira nos dias mais próximos dos fins

de semana, pois não tinham geladeira para armazenar e conservar o produto. Na sua fala

Rose utiliza o termo “trabalho” apenas para a atividade no campo.

51

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 52

Idem. 53

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.

Page 39: Fabiana Andrade

As “crianças” das comunidades de pescadores camponeses, ou vice-versa,

tornam-se desde muito cedo adultas em relação à educação e ao trabalho, porque se

constituem aprendizes dos pais e assumem muitas responsabilidades nas tarefas diárias.

Nas experiências de vidas das pescadoras e pescadores artesanais percebemos como a

sua experiência de vida possui modos de fazer que se distancia de um modelo de

sociedade burguesa que ajudou a construir o que seria próprio ao período da infância.54

Durante as entrevistas muitas pescadoras relataram com lágrimas nos olhos que

não sabiam ler e escrever porque o seu pai não deixou e outras disseram que a distância

e o acesso à escola não permitiram que estudassem. A pescadora Inês, diz o seguinte: “a

gente tinha até vontade de ir para a escola, mas não tinha ninguém para ensinar perto,

era roça, era tudo mato!”55

A pescadora Rosa enfatiza o seguinte: “Tinha o dia da gente pescar e tinha o dia

de trabalhar” e explica também que era costume das mulheres agricultoras pescarem

porque, “era um tipo de bico que elas faziam né! Quando era chamada para trabalhar

elas iam, quando não era chamada ia pescar, era um tipo de bico.” Segundo a pescadora

nesse período era tudo muito difícil e diz não sentir saudades do campo. Além do lugar

onde morava não possuir energia elétrica era distante da cidade e para pescarem

precisavam fazer longas caminhadas. Quando não estavam pescando encontravam-se na

roça de cacau desenvolvendo várias atividades.

Nós trabalhávamos para os outros na roça de cacau, às vezes a gente

colhia o cacau, muitas vezes a gente capinava. Mãe ia com a gente e

colocava a gente tudo na roça lá cada qual com uma inchadinha. A gente

colhia cacau com podão, bandeirava. De tudo eu fazia!56

O trabalho de meeiro57

ou pagamento de diárias nas fazendas de cacau, sempre

representou para região cacaueira uma exploração excessiva da força de trabalho. O

modelo de latifúndio e monocultura que explorava e oprimia os trabalhadores e

trabalhadoras foram forças impulsionadoras que levaram a uma onda de migração na

zona rural para a cidade. Quando recordam do período em que trabalhavam na lavoura

discutem as alegrias de uma vida no campo, mesmo com tantas dificuldades. D. Rosa

54

Philippe Áries apresenta na sua obra: História Social da Criança e da Família (1981) que o sentimento

de infância foi construído ao longo da Idade Média pois na sociedade européia não existia a consciência

da particularidade infantil. Assim, a criança que tinha condições de viver sem a solicitude constante de

sua mãe ou de sua ama, ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes. 55

Idem, 2006 56

Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009. 57

Idem, op. cit., p.38.

Page 40: Fabiana Andrade

ressalta que os melhores momentos de diversão eram as contações de histórias

realizadas nas casas dos mais velhos, na sua infância era costume aproveitarem a lua

cheia para a contação de histórias.

Era ajuntava todo mundo, assim do tempo que era lua cheia, aí juntava

aquela ruma de gente. Aí vinha todo mundo pra casa de um só, no caso lá

era o mais velho. Ai juntava todo mundo e íamos para lá ouvir as histórias

dos mais velhos. Fazíamos uma fogueira e ali ficávamos até a hora de

dormir. 58

Ao tempo que pensa nos bons momentos, a pescadora acentua que não gostaria

mais de voltar para a roça onde cresceu e trabalhou por muito tempo. Ela diz que não se

acostumaria mais com a falta de energia que ainda persiste e as intempéries da vida no

campo. As pescadoras constroem uma representação bucólica da vida no campo de um

passado de paz, simplicidade e sem ambição, e ressaltam as facilidades de uma vida na

cidade. Raymond Willians na sua obra “Campo e Cidade” remete as representações

construídas a respeito do campo e da cidade na Inglaterra precursora da Revolução

Industrial. O autor observa à construção de um mito de uma vida no campo inferior a

vida na cidade.

Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,

cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O

campo passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz,

inocência e virtude simples. À cidade associou-se a idéia de centro de

realizações - de saber comunicações, luz. Também constelaram-se

poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho,

mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e

limitação. 59

Nas falas das mulheres o ideal urbano é celebrado em relação ao campo,

contudo, os aspectos negativos levam as mulheres a buscarem a paz e o silêncio que

tinham na roça no seu trabalho na maré. Para a pescadora Maria de Cássia, filha de

pequenos agricultores e mãe de dois filhos, a pescaria era um momento de diversão para

ela e suas amigas. E “na roça era bom de viver, porque na rua é muita zuada, zuada de

som e na roça a gente não ver isso, por isso eu gostava de viver lá!”.60 O trabalho no

mangue lembra da vida na roça, pela tranqüilidade e silêncio que encontram no lugar.

Na coroa e no manguezal as mulheres estão longe da agitação da cidade e dos

58

Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009. 59

Raymond Williams. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,

1989, p. 11. 60

Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.

Page 41: Fabiana Andrade

problemas familiares. A pescadora Cátia ressalta que “é muito barulho onde a gente

mora e no mangue o silêncio é tanto que às vezes assusta” 61

Segundo as pescadoras hoje os seus filhos têm a oportunidade de estudar, de

brincar e “ser criança”, chance que não tiveram durante a infância. Elas começavam a

trabalhar ainda crianças, desenvolvendo as mais diversas atividades na lavoura e na

atividade pesqueira Algumas mulheres demonstraram-se constrangidas ao falar sobre as

suas brincadeiras de infância em virtude da falta de tempo que tinham para brincar. Elas

ressaltaram as dificuldades do seu tempo de criança e apresentaram que mesmo diante

das circunstâncias eram felizes porque tinham uma família para compartilhar as suas

alegrias e sofrimentos.

Maria de Cássia, entre sorrisos diz: “a gente não brincava muito não quando era

criança, eu não gostava de brincar não (...) nunca gostei de brincadeira.62

Já a pescadora

Orenice expõe que o trabalho na roça era muito exaustivo, por isso tinham pouco tempo

disponível para brincar. Ela tinha 58 anos quando foi realizada a entrevista, mãe de 8

filhos e 2 filhas mulheres, há quatorze anos trabalha na atividade pesqueira. Na roça a

sua família costumava pescar para o consumo.

Ela trabalhava na roça de “enxada, arrancando capim e fazendo plantação”.

Segunda ela, a sua vida era muito difícil e não tinham tempo para brincar, estudar e

muito menos namorar. Na entrevista, a pescadora fala entre risos quando lembrava que

precisava encontrar uma saída para fugir da forma controladora do pai para namorar

escondido. E ressaltou que foi a sua brincadeira favorita na roça: “namorar eu tinha que

namorar escondido, o velho era bravo minha filha, ele não deixada, até na feira quando

eu ia tinha que ir mais os meus irmãos.” 63

Ela enfatizou ainda que tentou voltar a

estudar quando veio morar no bairro Teotônio Vilela, mas não conseguiu continuar em

virtude da dificuldade de aprendizado.

A pescadora Helena ao lembrar da sua meninice diz que enquanto os seus pais

trabalhavam na roça de cacau, ela estava catando guaiamu, e com aproximadamente dez

anos de idade já ajudava os pais na roça e nas tarefas de capinar o terreno. Assim

recorda do dia-a-dia na roça.

Eu morava dentro da canoa. Não tinha nem casa perto onde ir...tinha que

trabalhar mesmo quando ela sai mais o pai. A gente ficava dentro do cacau

61

Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 03.01.2009. 62

Idem. 63

Orenice Paixão dos Santos. Entrevista realizada na sua residência no dia 05.01.2009

Page 42: Fabiana Andrade

pegando guaiamu, eu não sabia ficar dentro do rio sozinha, ficava dentro do

cacau, fazia ratueira, ia pegar o guaiamu pela beira ali do rio. 64

Com cerca de dez anos de idade já trabalhava na roça de enxada, capinando e

também pescava. Segundo ela, “quando a maré estava cheia a gente trabalhava na roça

quando secava a gente ia trabalhar na maré”. As atividades eram realizadas por toda

família tanto no campo como na maré, as tarefas eram seguidas de acordo com a

observação do meio em que viviam e as necessidades da família. Na roça pescavam no

rio para o consumo, como também para vender nos finais de semana na feira da cidade.

Para a pescadora Júlia, mãe de Helena, o seu pai não gostava de pescar, mas a sua mãe

gostava por ter aprendido a “arte da pesca” com a sua avó. E ressalta que quando a sua

mãe não estava na roça com o seu pai ela encontrava-se na maré.

Quando saía da maré a gente ia pra roça pra plantar era milho, arroz, feijão,

abóbora. Após essa época a gente fazia um giral, ói, já tá em cima, lá fazia

de um ano para outro. Aí quando é hora da maré a gente tava na maré,

quando era hora da roça a gente tava na roça não perdia tempo não...Em

pescaria e roça, ninguém diz assim você não conhece isso não. Porque eu

conheço tudo. De manhã cedo meu pai dizia assim levanta, levanta que o

passarinho ta na roça. A gente era só pegar um paninho enrolar pelo braço,

molhava tudo. 65

A pescadora Júlia de Castro nasceu no ano de 1945 quando foi realizada a

entrevista ela tinha 60 anos. Ela é natural de Ribeira do Conde, fronteira de Sergipe.

Aprendeu a pescar com os seus pais e ao casar com o Sr. Gileno aos 25 anos de idade,

morou em uma fazenda em Ilhéus, localizada no Banco da Vitória, para depois morarem

no Teotônio Vilela. A sua filha Helena ao lembrar do tempo em que a sua família tinha

um sítio no Banco do Vitória, disse que tanto trabalhavam na roça como pescavam. Era

costume toda família participar das atividades, pois desde muito jovens precisavam

trabalhar tanto pela necessidade como pelo aprendizado. Segundo Maria Helena: “dez

anos, dez, nove, a gente começou a trabalhar nova! Com dez anos a gente capinava, a

gente via o nosso pai e mãe fazendo aí a gente fazia também”. 66

As pescadoras agricultoras viviam em um sistema intensivo de trabalho aliando

os afazeres no campo ao trabalho da pesca. As mulheres alternavam ainda o trabalho na

roça e no rio com o serviço doméstico. Elas lembraram com saudade da infância na roça

pela união que mantinham com toda a família, mas afirmaram que não tinham tempo

64

Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na residência no dia 12.11.2005. 65

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006. 66

Idem, 2005.

Page 43: Fabiana Andrade

para brincar. A diversão para muitas das entrevistadas era trabalhar no mangue, ou no

rio com os seus pais. Mas não deixaram de ser criança e faziam do seu trabalho diário a

sua diversão. D Inês ao lembrar dos momentos de criança diz: a minha infância num foi

boa não, pra falar a verdade; do jeito que eu vejo os meninos hoje, eu canso de dizer

pros meus: vocês estão no céu!67

Muitas das pescadoras entrevistadas colocaram que estudar não era viável

porque, muitas vezes, a instituição de ensino ficava distante do local onde moravam e

porque a figura do pai não concordava que as suas filhas estudassem. Algumas

pescadoras falavam com lágrimas nos olhos da vontade que tinham de aprender a ler e

escrever. As mulheres dividiam as tarefas com os homens e ainda atuavam no serviço

doméstico, mas não possuíam os mesmos direitos de escolha na família.

Os pescadores agricultores e pescadoras agricultoras migram para a zona urbana

em virtude da falta de perspectiva que atravessavam no campo e em virtude do

desemprego que atingiu os trabalhadores rurais de forma acentuada a partir da crise da

monocultura do cacau na década de 1980. Nesse processo as mulheres são as primeiras

a perderem o emprego no campo. Uma notícia do Jornal Diário da Tarde datada de 1988

apresenta um movimento de protesto ressaltando essa prerrogativa:

As mulheres no setor de trabalho, apesar das conquistas que obtiveram com

a nova Constituição, ainda não promulgada, continuam em relação aos

homens em desvantagem, pelo menos na zona rural. É que os cacauicultores

simplesmente resolveram dispensá-las, ou então não admiti-las alegando que

o rendimento da mão de obra feminina é inferior a dos homens (...)68

.

O problema do fator desemprego na zona rural para essas famílias que viviam do

pluralismo econômico fez com que migrassem para a cidade em busca de melhores

oportunidades. O censo do IBGE 2002 apresenta que são 16 milhões de trabalhadoras

rurais e que enfrentam o trabalho mais precário e não remunerado. As que exercem

trabalho remunerado recebem 25% menos do que os homens, mesmo exercendo a

mesma função.69

Ao transferirem-se para a zona urbana, muitas mulheres exerceram no

município de Ilhéus a atividade da pesca por ser um costume já praticado no campo.

Nas suas atividades diárias continuam a usar os recursos da natureza no seu

cotidiano. Na cidade elas usam a lenha para ferver os mariscos e paus tirados do próprio

67

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 68

Lavoura Cacaueira dispensa mulheres. Diário da Tarde. Ilhéus, Sexta feira, 22 de junho de 1988. 69

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, Ilhéus, Bahia, 2002.

Page 44: Fabiana Andrade

mangue para construir instrumentos de pesca. Mas o artesanato que antes era bastante

realizado pelas mulheres é substituído pelas linhas de nylon que podem ser compradas

prontas. Em muitas casas das pescadoras na comunidade do Teotônio Vilela os seus

quintais lembram à vida na roça pelo costume de criar aves e de plantar ervas

medicinais. As mulheres, mesmo vivendo na cidade mantêm determinados costumes

que praticavam no campo e defendem essa maneira de viver que está relacionada aos

seus modos de fazer e as suas experiências vividas ao longo do tempo.

A divisão das tarefas e a forma como as atividades pesqueiras passam a ser

praticadas ganha outro significado nas suas vidas e nas tarefas diárias. São diversas as

formas de organização ao nível do trabalho que inclui desde as atividades desenvolvidas

por toda a família, até o trabalho realizado pelas mulheres em suas comunidades de

pesca. As mulheres geralmente pescam acompanhadas por outras companheiras e essa

prática remete a atividade da pesca familiar. Muitas das entrevistadas são mães solteiras

que mantêm a sua família com o trabalho no mangue.

Elas possuem um saber peculiar que está relacionado à sua história de vida e a

maneira como fizeram-se pescadoras. Algumas entrevistadas, desde criança

trabalhavam na arte da pesca; para outras a atividade representou a forma de garantir a

manutenção da família. Os resquícios da dominação patriarcal estão presentes na

concepção que as mulheres possuem do trabalho e a crença de que ser pescadora tem

significados diferenciados. Em virtude da variedade dos modos de vida percebemos

como a convicção de ser pescadora parece tomar outra proporção quando voltam para o

momento presente. No discurso de D. Francisca está presente à afirmação de que o

trabalho na pesca começou quando passou a trabalhar com o marido na pescaria porque

foi assim que conseguiu adquirir o conhecimento da atividade pesqueira.

Bom...eu aprendi com o meu marido...o meu marido é pescador..aí ele me

levava ia tirar ostra...me levava aí eu não sabia remar ele me ensinou a

remar, me ensinou a tirar ostra da casca, me ensinou a ensacar. Aí o meu dia

a dia era com ele para cima e para baixo pescando.70

As mulheres, em alguns momentos da entrevista, tendem a consentir em sua fala

as representações dominantes da diferença entre os sexos. Elas tendem a reproduzir a

“violência simbólica” que mantêm a dominação do sexo masculino. As representações

de inferioridade masculina, incansavelmente repetidas e mostradas, inscrevem-se nos

70

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.

Page 45: Fabiana Andrade

comportamentos e nas almas de umas e de outros.71

As pescadoras também estão

impregnadas da concepção dominante de que a “arte da pesca” é exclusividade do sexo

masculino.

A pescadora Francisca, também conhecida como D. Chica, ao recordar das

pescarias passadas lembra-se da coragem do seu companheiro falecido. Depois da morte

do seu marido, ela manteve os seus oito filhos através do trabalho na pesca. A pesca “é

um meio de vida” porque foi através desse trabalho que conseguiu sobreviver com os

seus filhos. As atividades que realizava anteriormente com o marido não é reconhecida

pela pescadora como um trabalho, mas é enfatizado como uma profissão por ela a partir

do momento em que ingressou na Colônia de pesca e tornou-se a principal mantenedora

da sua família.

O trabalho informal e sazonal realizado pelas pescadoras não é tido por D. Chica

como uma atividade profissional. Mas quando tornam-se as únicas beneficiárias da casa

é que começam a perceber-se enquanto trabalhadoras da pesca. Ela ressaltou que tentou

trabalhar em casa de família, mas que não conseguiu em virtude das exigências de

horário e do controle sobre o trabalhador.

Porque pra mim era melhor pescar do que trabalhar em casa de

família...porque a gente pesca tem aquele horário a gente ta em casa... se a

maré tá de manhã quando é uma hora duas horas a gente ta em casa...aí a

gente pesca ganha o dinheiro da gente

e também ganha o dinheiro da gente...olha os filhos...faz uma coisinha...lava

uma roupa...né...faz uma comida... então...para mim casa de família para

mim é mais ruim. 72

A atividade pesqueira possibilita as pescadoras uma maior liberdade e

disponibilidade para cuidar da casa e dos filhos. Longe da disciplina do trabalho em que

o empregador usa o tempo de sua mão de obra e cuida para não ser desperdiçado,

porque o que predomina não é a tarefa, mas os valores do tempo que é reduzido ao

dinheiro, às pescadoras possuem o controle do seu próprio tempo.73

A narrativa da pescadora Chica é repleta de emoção dos momentos de

dificuldade que vivenciou com o seu marido na pesca. Ela descreveu com entusiasmo os

71 Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.

Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995.

72 Francisca Maria dos Santos – Chica (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.

73 E. P. Thompson. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. Tempo, Disciplina

de Trabalho e Capitalismo Industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 268.

Page 46: Fabiana Andrade

riscos, enfatizando sempre a coragem do seu marido. As narrativas das pescadoras são

acompanhadas de passagens sobre a virada do barco na maré forte, o risco de

afogamento no rio, o sumiço nos buracos do mangue ou o afogamento na travessia da

coroa. Para continuar o trabalho na pescaria ela passou a acompanhar a pescadora Nita.

Segundo Chica deslocavam-se juntos para a maré, mas “cada quem fazia a sua

pescaria”. A sua produção é individual e a sua cata, geralmente era realizada em família.

Já as pescadoras que geralmente costumavam ir com a mãe trabalhavam tanto na maré

como na cata do marisco.

A pescadora Nita, moradora da comunidade do Teotônio Vilela tinha setenta e

dois anos quando foi realizada a entrevista. Ela é filha de pequenos camponeses

proprietários de terra e mãe de doze filhos. Quando foi perguntada com quem ela

aprendeu a pescar, ela disse: “-Eu era pescadora desde menina, meu pai tinha calão...” O

costume de pescar no campo é trazida para a cidade com a saudade da vida na roça,

onde as redes de solidariedade eram outras. Segundo a pescadora, na fazenda da sua

família, plantavam, cultivavam, tinham criação e casa para fazer farinha e dendê. Eles

tinham uma pequena fazenda que ficava próxima à Ituberá, e depois que o seu pai

faleceu a família dela veio morar em Ilhéus. Na fazenda, além dos trabalhos da roça,

tinha também a pesca de Calão.

A gente trabalhava na roça, aí tinha dias que meu pai dizia assim: - Hoje a

gente não vai pra roça, hoje a gente vai pegar peixe. Ele tinha casa de fazer

farinha e fazer dendê. Então a gente fazia farinha, a gente fazia dendê.

Aquele beju dourado. 74

Segundo ela, toda a sua família juntamente com os trabalhadores da roça

trabalhava na pesca de calão. As relações de solidariedade entre os camponeses

pescadores eram comuns no seu cotidiano. Tanto o peixe pescado como o beiju e o

dendê feito era distribuído para os trabalhadores da fazenda. A pescadora sente saudade

do tempo que morava na roça e diz que naquele período viviam com muita fartura.

Vejamos a sua fala:

Não a gente fazia para dentro de casa mesmo, aí distribuía para os

trabalhadores. Ele criava aqueles porcos grandes e quando era São João ele

matava e distribuía com os trabalhadores. Era vida boa quando a gente era

mocinha que morava na roça, era vida boa, tudo barato, a gente não gastava

nada, não sabia quanto custava nada, era muito boa!75

74

Andrelita Caiu Batista- Nita (78 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 22.03.2009. 75

Idem, 2009.

Page 47: Fabiana Andrade

A pescadora Omerita do São Miguel é mãe de dez filhos, como afirmou em

entrevista, criou os seus filhos “sem marido e sozinha”. Com setenta e dois anos

continua trabalhando na pesca do siri com uma de suas filhas. Ela trabalhou por muito

tempo prestando serviço em fazendas, até ser contratada em uma delas, onde

desenvolveu vários serviços como capinar e plantar. Mas nas horas que estava em casa

procurava pescar para a manutenção dos seus filhos. A pesca nesse período era garantia

da alimentação diária da família.

Ela diz que sempre trabalhou em roça, mas nunca deixou de ser pescadora,

porque aprendeu mesmo a pescar com a sua mãe no rio quando criança. Quando foi lhe

perguntado o que pescava; afirmou o seguinte: “quando eu comecei a pescar eu era

menina, pescava em rio de água doce. Sabe? Era beré, era traíra, piau, acari, era esses

peixes.” Assim como a sua mãe costumava pescar para a alimentação da família, ela

continuou pegando peixe quando podia para a alimentação diária. Depois a atividade

pesqueira passou a ser a sua principal fonte de renda. O sentimento de perda da vida que

tinham no campo é enfatizado pela pescadora, como também as dificuldades que passou

como empregada de outras fazendas.

A gente tinha uma rocinha, umas terras. Meu pai colocava roça pra gente,

plantava mandioca, plantava verdura, fazia farinha pra vender. Eu criava uns

porquinhos. E é assim que a gente viveu, se criou! Já no meu caso com os

meus filhos foi diferente, trabalhei muito em roça dos outros, muito, muito,

muito. As vezes eu chegava da roça, cinco horas da tarde, saia e ia pescar de

noite lá no pé de serra para poder pegar peixe para dar para eles comerem,

para no outro dia ir trabalhar de novo. Ah, minha filha, eu sofri! Tinha que

arrumar alguma coisa para deixar para eles comerem. Por isso eu digo que

eu já pesco a muito tempo. 76

A comparação que faz do tempo que morava na propriedade da sua família e

depois nas roças dos outros remete ao processo de migração dos trabalhadores rurais

para a cidade em busca de melhores condições de vida. Mesmo morando mais próxima

do perímetro urbana a pescadora continuou desenvolvendo e procurando trabalho nas

fazendas próximas da região. Algumas pescadoras costumavam enfatizar e se orgulhar

de terem criado sozinha os seus filhos. Essa necessidade de afirmação está relacionada,

em grande parte, à percepção da sociedade que, em muitas situações, age com

preconceito e torna invisível o trabalho feminino.

76

Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.

Page 48: Fabiana Andrade

A pescadora Omerita lembrou também do tempo em que pescava de Jangada,

quando saia quatro horas da manhã e chegava ao escurecer. Ressalta ainda, que quando

pegava um peixe que precisava fazer muita força para retirá-lo de dentro da água tinha a

ajuda dos outros pescadores do barco. Ela faz questão de lembrar que pescou em alto

mar em situações difíceis e perigosas vivenciadas na pesca jangada. 77

Em uma notícia do Jornal Diário de Itabuna de 1958 o jornalista ressaltou que os

pescadores apresentavam uma mesma técnica utilizada pelos egípcios há dois mil anos

atrás. Ao tempo que faz uma crítica ao descaso do Governo que esquece dessa categoria

de trabalhadores, tendo em vista que devido aos ventos fortes as jangadas estavam

estacionadas na praia enquanto os navios japoneses, noruegueses e russos estavam

explorando o litoral brasileiro.

Ao olharmos o drama desses pescadores primários e pobres meditamos

sobre o nosso atraso e descaso do governo. Enquanto contemplamos as

Jangadas, encalhadas na praia, a duzentas, trezentas milhas da costa

brasileira navios japoneses, noruegueses e russos enchem os barcos

modernos na pesca do maior cardume de “atum” que se pode ter idéia.

Enquanto estrangeiros enriquecem na costa brasileira, pescadores nacionais

passam as maiores privações a que um ser humano está condenado. 78

Essas informações são importantes para pensarmos nas intempéries que os

pescadores e pescadoras artesanais têm enfrentado para manter a sua “arte da pesca”. D.

Omerita, discute as mudanças na “arte da pesca” como algo que é muito visível ao não

se ver mais jangadas estacionadas na beira das praias de Ilhéus. E com saudosismo diz

que “agora que inventaram o barco não tem mais pesca de jangada. Ali na rua do

sossego em Ilhéus, ali pescavam de Jangada.”79

A filha da pescadora Omerita apresenta o quanto é necessário às mulheres

acompanharem as mudanças nas artes da pesca. D. Valdecir conhecida como D. Val, é

pescadora, moradora do São Miguel e mãe solteira que tem sete filhos. Ela enfatiza que

quer um barco a motor e está trabalhando para isso, porque isso significa redução do

esforço que faz ao pegar no remo e andar longas distâncias pelas águas do rio. Enquanto

a sua mãe sente saudades das jangadas que ficavam estacionadas nas beiras das praias

da cidade, a sua filha afirma que quer um barco à motor.

77

Idem. 78

Diário de Itabuna. Na maravilhosa praia do Malhado. Itabuna, 11 de fevereiro de 1958, p.06. 79

Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.

Page 49: Fabiana Andrade

As “artes da pesca” artesanais são repensadas por essas trabalhadoras que

continuam sobrevivendo à desigualdade da captura do pescado no mercado. O

beneficiamento do produto realizado por essas mulheres ao catar o siri e vender de

forma independente já é uma conquista delas no mercado da pesca. O que elas

produzem é tão específico que nenhuma grande empresa se colocou a tomar o seu

espaço.

Muitas “artes de pesca” são repensadas com o objetivo de melhorar a condição

de trabalho e, muitas vezes, com a capacidade de super explorar o meio ambiente. A

pescadora Omerita recorda do período em que foi morar no São Miguel e continuou

trabalhando na roça e na maré. Ao lembrar da pesca no São Miguel diz como era usual a

pesca de Calão nas praias do lugar. O que a mulher recebia do calão era sempre o peixe

pequeno e fresco em que preparavam os espetinhos às enfiadas. A pesca de calão é uma

das mais tradicionais da comunidade, ao descrever como era praticada tal arte, diz o

seguinte: “O Calão é uma rede bem grande. Aí eles vão, chega lá uns salta e vem

nadando para terra e eles lá vem soltando, soltando a rede. Depois vem pra terra, para

puchar a rede. Aí vem o peixe!”. 80

A pescadora Zó, filha de D. Omerita ao falar da infância conta com entusiasmo

que achava bonito e gostava de ver o peixe pegar no anzol. Depois que o seu pai

separou da sua mãe a pescadora disse que enquanto a sua mãe trabalhava na roça, ela

procurava pescar no rio para ajudá-la. Porque quando ela e os seus irmãos não tinham

nada para merendar procurava no rio a alimentação. A extração de peixes para as

agricultoras pescadoras era uma atividade praticada, principalmente, para a alimentação

da família. Inclusive a pescaria podia envolver todos os membros familiares sendo

também tida como um momento de descontração.

Algumas pescadoras entrevistadas ainda colocaram a pescaria como um

momento de diversão, tranqüilidade, onde esquecem os problemas e dificuldades do dia

a dia. O seu modo de trabalho é cansativo, mas está em contato com os lugares da pesca

possibilita às pescadoras o relembrar dos seus momentos lúdicos do tempo de infância,

ao passo que permite a elas estarem atreladas ao meio ambiente e aproveitar desse meio.

A produção que antes envolvia toda a família, agora está sendo executada por

alguns membros do grupo familiar que mantêm a tradição da arte da pesca. Através das

entrevistas percebe-se que nas famílias das pescadoras são poucos que seguem a

80

Omerita Maria de Jesus (71 anos). . Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.

Page 50: Fabiana Andrade

profissão de pescadores artesanais. Além disso, o que antes era tratado como uma

necessidade onde todos os integrantes da família participavam da atividade pesqueira,

agora é atividades de poucos dentro do círculo familiar. Poucos são os filhos e filhas

que acompanham os seus pais nas pescarias diárias.

A pesca no feminino

Na cidade de Ilhéus as pescadoras desenvolvem as suas atividades em diversos

lugares do manguezal da região, que possui um potencial relevante de crustáceos, tais

como: caranguejos, siris, guaiamus e aratus. Além de diversos tipos de moluscos como

ostra, sururu, mexilhões e outras espécies conhecidas regionalmente por lambretas,

muapen e sarnambi, encontradas em quantidade nas coroas81

. O espaço natural é um

local em que as pescadoras e pescadores artesanais conhecem e delimitam limites de

busca de extração de mariscos e também consiste em um espaço social e de domínios

compartilhados pelo gênero feminino e o masculino.

Para as pescadoras que trabalham na coroa e no manguezal só é viável trabalhar

durante a “maré morta” porque o mangue e a coroa precisam estar descobertos pelas

águas do rio. Elas referem-se ao Rio Cachoeira, ambiente de pesca, como “Maré”82

o

que está relacionado com a “maré de lançamento”, “maré baixa ou maré morta” e “cheia

ou maré grande”. Através do acompanhamento das marés as mulheres escolhem o

melhor local para desenvolver as suas atividades diárias.

A maré grande ela enche e vaza e a maré morta ela não vaza ela fica toda na

beirada do mangue, então ela não vaza, depois que a maré puxa lançamento

ela começa a encher, no horário certo ela fica toda seca. Então é o horário

melhor de pescar é quando ela vasa todinha ela fica no ponto do seu tempo

de sair 6:00 hs da manhã chega 2:00hs, né? 83

As pescadoras saem para o trabalho, orientadas pelo horário da maré, para

trabalhar na coroa ou no mangue e precisam saber qual é o horário da maré baixa para

realizarem a extração dos mariscos. Elas não seguem “o tempo do relógio” porque na

sua profissão existe uma interação de dependência em relação aos condicionamentos do

81

Pequenas ilhas de areia ou pedra que surgem quando as marés estão plenamente baixas. 82

Denominação referente às águas dos rios e mares. 83

Tertulina Ferreira Mota (59 aos). Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na residência de D.

Júlia e Sr. Gileno.

Page 51: Fabiana Andrade

meio natural. A atividade extrativista das pescadoras depende justamente da dinâmica

da reprodução do mangue e do conhecimento que possuem do meio natural.

A “arte” da pesca é um conhecimento transmitido através da oralidade e do

acompanhamento da prática diária nos ambientes da pesca. Para exercer essa atividade o

indivíduo precisa saber lidar com os instrumentos de pesca e com a dinâmica dos ventos

e das marés. Esse conhecimento é passado de geração em geração e geralmente é

adquirido na família. Enfatizou a pescadora Inês, que todo o conhecimento que possui

da atividade pesqueira aprendeu com a sua mãe: “tudo o que estou falando eu aprendi

com ela, meu pai também pescava. Na idade de dez anos, doze anos, nós ia mais eles”.84

Nas suas lembranças da pescaria D. Júlia apresentou os conhecimentos herdados

da sua mãe. Ela explicou que dependia da prática diária escolher o marisco de

preferência para catar, das necessidades do mercado e de um conhecimento específico

para que a sua extração fosse bem sucedida.

No mês você pode pescar todos eles, e se você não puder pescar você só

pesca um. O sururu é um marisco bom, mas você para tirar uma quantidade,

ele fica enterrado na lama. Aí se você for tirar de dedo esbagaça a unha tem

que tirar na raiz da faca. A ostra não se fala que é agarrada na beira do

mangue, mas o sururu é o mais trabalhoso que tem. Então é uma pescaria

que você tira muito e não rende. 85

Os filhos das pescadoras e pescadores artesanais começavam a instruir-se “nos

segredos da maré” ainda crianças quando pescavam com os seus pais. Eles aprendiam a

remar, a nadar, qual a melhor maré para pescar, ou seja, na “maré morta” ou “maré alta”

e que marisco pescar em cada período. No regime de produção familiar todos os

integrantes da família participavam da atividade pesqueira. Na pesca a extração de

grande quantidade de marisco significava lucro para os familiares, então, quanto mais

pessoas exercendo a função melhor para a arrecadação familiar.

O seu cotidiano não era organizado por tempo definido porque é o tempo natural

que regulava as atividades que seriam realizadas. Embora inseridos na teia capitalista, é

o tempo natural, imprevisível e irregular que coordena o seu modo de vida. Elas se

fizeram pescadoras pelo profundo conhecimento do meio ambiente que foi adquirido na

prática cotidiana e pelo fato de sua família salvaguardar o conhecimento tradicional dos

84

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 (10 páginas). 85

Julia Dias de castro (60 anos). Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na residência de D. Júlia

e Sr. Gileno.

Page 52: Fabiana Andrade

seus antepassados que é constantemente repensado e modificado. Para Thompson86

tradição envolve uma perpetuação de práticas e normas, que se reproduzem ao longo de

gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes.

A discussão a respeito da tradição foi a princípio secularizada pelo pensamento

cultural marxista, porque era compreendida apenas como uma permanência morta do

passado. Para Raymond Williams87

a tradição é o meio mais poderoso de uma prática de

um grupo não se subjugar às pressões dominantes, porque o que temos é uma “tradição

seletiva” que traz intencionalmente aspectos culturais de um passado no processo de

definição e identificação social e cultural.

Nas entrevistas das pescadoras percebemos como elas procuram identificar e

afirmar um passado na pesca através da sua lembrança cotidiana de uma vida no campo

em que praticavam a atividade para a venda e o consumo. Também percebemos como

os conhecimentos em relação ao meio ajudam como uma forma de afirmar a

continuidade do seu trabalho porque apresentaram o cuidado que possuíam com o meio

ambiente. Esses aspectos são intensificados com as críticas aos barcos pesqueiros, ou às

pessoas que recentemente ingressaram na atividade, e vem prejudicando a forma

artesanal de praticar a atividade pesqueira. Ao se apropriarem dessas “maneiras de

fazer” as mulheres procuram manter a sua forma de trabalho e a permanência do seu

modo de vida. Para Raymond Willians a tradição significa:

Um aspecto da organização social e cultural contemporânea, no interesse do

domínio de uma classe específica. São com freqüência pontos de recuo para

grupos na sociedade que foram deixados à margem por algum

acontecimento hegemônico particular. 88

As pescadoras artesanais através das suas práticas procuraram manter certos

costumes que estão atrelados as maneiras de ser pescadora e pescador artesanal. Com

isso, as pessoas que ingressaram na atividade precisaram estar atreladas aos interesses, e

comumente às maneiras de fazer e agir que dão significados aos seus modos de vida. As

pescadoras saíam para pescar, na maioria das vezes, acompanhadas pelos filhos ou pelas

companheiras de profissão. Pelo costume de pescar com toda a família e também em

virtude dos perigos que o meio natural oferece. De barco ou canoa e com instrumentos

86

Edward Palmer Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 87

Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar: Rio de Janeiro, 1979. 88

Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar: Rio de Janeiro, 1979, p.119.

Page 53: Fabiana Andrade

de pesca específicos procuram o melhor local para a realização da cata do marisco ou

peixe. Essa imagem demonstra que é comum para a mulher pescadora sair em seu

barco, tendo como força motor do barco a sua própria experiência em manusear o remo

nas águas do rio.

FIGURA 3: Ida de barco para a coroa. (Fotografia de Pesquisa, 2009).

É comum também às pescadoras e pescadores artesanais dividirem o espaço no

mangue, na coroa e no barco de pesca. Podemos perceber na imagem que mesmo sendo

acompanhada por um homem no barco é a mulher detentora do seu barco de pesca que

assume a posição de guia e liderança do momento. Em cada espaço que circunda o rio

as mulheres e homens trabalham pegando uma determinada espécie de marisco. O

conhecimento herdado adquirido na família, ou com outra pescadora artesanal é que

lhes garante retirar uma boa quantidade do produto. O sururu, a ostra, o aratu e o

caranguejo são retirados do manguezal e cada um possui uma forma específica de

manuseio que garante a sua extração.

Algumas pescadoras quando lembram da infância, recordam o quanto foi difícil

aprender a pescar e catar determinado marisco. Nas entrevistas contam com entusiasmo

que quando crianças não conseguiam arrecadar nem um terço de marisco que

conseguiam na fase adulta.

Eu ia mais pescar, ia pra coroa com as minhas amigas (...) Nesse tempo

a gente só pegava pouquinho mesmo, a gente deixava para comer.

Page 54: Fabiana Andrade

Nesse tempo eu não pegava muito, muito como eu pego agora não, eu

não tinha costume de pegar não (...) No dia que eu fui, eu peguei meio

litro de muapen (...) Hoje eu tiro quinze litros, dez, onze, doze. 89

Na coroa, as mulheres procuram afastar-se das outras no processo de extração

do marisco. Como é uma atividade que depende de muito empenho e esforço físico, elas

permanecem em silêncio trocando apenas algumas palavras ou cantarolando. Trabalham

com dedicação para catar o maior número possível de muapen enquanto o lugar

permanece descoberto pelas águas do mar. A pescadora Helena chegou a comparar o

local da Coroa a uma “feira” pela quantidade de pessoas trabalhando, e disse ainda que

o público incluía, muitas vezes, idosos e crianças.90

Figura 4: Mulheres pescando muapen na coroa. (Fotografia de pesquisa,

2009).

Pela imagem acima nota-se que a atividade depende de muito esforço físico e

causa sérios problemas de saúde, já que precisam ficar agachadas e cavar buracos na

areia para a retirada do produto. Muitas mulheres que trabalham nessa situação sofrem

de dores de coluna, nos braços, mãos e pernas pelo tempo prolongado do esforço e a sua

89

Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.

90

Maria Helena de Castro. Entrevista realizada na sua residência no dia 11.12.2006.

Page 55: Fabiana Andrade

exposição ao sol dificulta ainda mais a condição de saúde. Elas ficam horas agachadas

durante a “maré baixa” cavando com pequenas enxadas os buracos em busca do

muapen. Na cata precisam ter manejo e rapidez na aquisição do marisco que facilmente

foge na areia. As mulheres procuram se proteger do sol, sempre com uma boina ou um

pano na cabeça. Além disso, precisam se resguardar da violência na coroa já que é um

local bastante isolado e propício aos riscos de todo tipo.

Figura 5: D. Inês na coroa em posição de trabalho.

(Fotografia de pesquisa 2009).

Elas costumam pegar mariscos como o sururu, siri, a ostra, e realizam a cata nas

suas residências com as suas filhas e filhos. Além de ajudarem, muitas vezes, as

pescadoras vizinhas que são as suas companheiras no serviço. Esse auxílio mútuo

facilita o trabalho árduo na cata do marisco e representa para as mulheres um momento

de socialização com os filhos, e, ou companheiras de trabalho. Depois de um longo dia

de trabalho, ao chegarem aos seus lares, dedicam-se aos fazeres domésticos, ao cuidado

com os filhos e no beneficiamento do produto através do seu cozimento e da sua cata.

Quando a maré dá de tarde a gente sai daqui mais tarde...Quando maré der

duas horas da tarde eu saio daqui dez horas do dia aí está com um pedaço do

mangue seco... Aí o resto do dia todo eu pego em casa, catando o marisco,

cozinhando, olhando os meus meninos, arrumando a casa e fazendo os

minhas coisas pra comer..né? Pronto...mais o meu dia a dia é no mangue...e

é um trabalho que eu tenho que é um trabalho fixo esse meu...porque eu não

tenho outro né? O certo é esse mesmo. 91

91

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.

Page 56: Fabiana Andrade

Os riscos das picadas dos mosquitos levam as pescadoras a cobrir todo o seu

corpo no manguezal. Nesse ambiente deslocam-se com dificuldade, segurando pelos

paus de mangue, para chegar aos locais mais distantes e de fartura do marisco.

Geralmente vão acompanhadas para o mangue, a coroa, ou o rio, mas no momento que

estão no local cada uma assume um percurso individual.

Figura 6: Pescadora no Manguezal

(Fotografia de Pesquisa, 2004)

Na pesca do aratu, além de enfrentarem a dificuldade de locomoção no

manguezal, precisam ter muita paciência para esperarem o marisco pegar a isca e logo

depois jogam no balde. Sem fazer barulho enchem em questão de minutos o balde e

jogam toda a quantidade do marisco que vão arrecadando em um saco que irão carregar

pela lama, com muito sacrifício até a margem do rio. As mulheres do Teotônio Vilela

utilizam pequenos anzóis e esperam próximas às árvores do manguezal o animal sair

dos seus esconderijos.

No Teotônio Vilela costumavam percorrer vários espaços para escolher o local

de retirada do produto. Para isso, utilizavam diversos tipos de objetos, como enxadas,

foices, facão e faca. Segundo a pescadora Helena, a enxada é para o muapen, o facão é

Page 57: Fabiana Andrade

para tirar ostra, a faca é para o sururu e o anzol tanto para pegar peixe como o aratu.92

Depois com seus sacos cheios do produto encontram-se para seguirem viagem de volta

para casa. Elas pegam no rio, o siri com a siripóia ou algumas espécies de peixes como

o robalo, ou curimam, peroá, carapeba ou traira etc.

FIGURA 7: Pescando aratu. (Fotografia de pesquisa, 2004).

As suas tarefas não estavam divididas porque participavam de todo processo,

desde o captura do marisco ou peixe, até a produção e à sua venda. As pescadoras e

pescadores artesanais mantêm os seus costumes também na permanência da utilização

de vários instrumentos de pesca que vem de um conhecimento passado de geração para

geração. A atividade pesqueira é realizada na região desde o período Colonial sobre a

influência da cultura negra, indígena e européia. Um tipo de armadilha de pesca

bastante utilizada pelas pescadoras e pescadores artesanais é o munzuá93

, apresentado na

foto abaixo. Armadilha feito de Canabrava, cipó retirado do próprio mangue, o munzuá

pega qualquer tipo de marisco ou peixe.

92

Maria Helena de Castro. Entrevista realizada na sua residência no dia 11.12.2006. 93

Consiste em uma armadilha feita de cana brava, traçada com malhas hexagonais, e figurando numa

seção de dois losangos unidos formando um ângulo.

Page 58: Fabiana Andrade

FIGURA 8: Munzuá (Fotografia de pesquisa, 2004)

Carlos Ott94

encontra a identificação do munzuá como um tipo de armadilha

utilizada pelos pescadores da Bahia desde o período Colonial. Na cidade de Salvador e

nas cidades próximas é identificado o uso desses instrumentos de pesca pelos

pescadores locais. Nos depoimentos abaixo está inscrito qual a sua função e a descrição

de como o munzuá é produzido por uma pescadora.

Os pescadores da Penha (subúrbio baiano) nos informaram que, num

barco, levam grande número desses manzuás, atados uns aos outros,

colocando-os no fundo do mar, em lugares apropriados, que assinalam na

praia com uma palmeira ou outra qualquer marca bem visível, para que,

voltando a buscá-los no dia seguinte ou mesmo mais tarde, possam

encontrá-los facilmente. 95

Mede o tipo, o tamanho do manzoá, limpa a Canabrava depois você pega

aqueles taliscos coloca no chão e aí vêm com um nalho vai crescendo, vai

crescendo quando você vê que dá para você fechar ele no tamanho de

você colocar ele dentro da lama do mangue para fechar ele no tamanho de

você colocar ele dentro da lama do mangue aí você fecha, aí fica a entrada

do aratu, moréia. E aí atrás fica fechado, aí do lado você faz uma tampa

como mói de tirar o marisco que ta ali dentro. Tem que fechar duas

tampas tem uma no meio, uma aqui em cima na boca...e a outra em baixo. 96

As suas falas apresentam a sabedoria adquirida na prática diária discorrendo a

respeito da forma de uso de manejo dos instrumentos e a sua melhor utilização para uma

boa produção. As mulheres sempre foram artesãs dos instrumentos de pesca porque

costumavam fabricá-los tanto para o uso familiar como para a venda. As pescadoras e

pescadores sempre utilizaram vários tipos de instrumentos, inclusive a tarrafa,

costumeiramente utilizado na pesca que envolve toda a família porque é grande o

94

Carlos OTT (OFM). Os elementos culturais da pescaria baiana. Boletim do Museu Nacional. n. 4. Rio

de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p.33. 95

Ibid,1944, p.33. 96

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.

Page 59: Fabiana Andrade

esforço físico para jogar a rede ao mar. A tarrafa é um elemento cultural português, mas

que passou a ser bastante utilizado pelos povos indígenas. 97

Ao estudar a nomenclatura de crustáceos e moluscos dos pescadores do

Recôncavo, este autor constatou também que a influência da língua indígena é mais

acentuada. Através dos estudos dos viajantes, ele chegou a ressaltar que no século XVI,

pescadores do Recôncavo Baiano, saiam quase exclusivamente das aldeias indígenas.

Ele descreveu ainda que Gabriel Soares98

ao estudar a vila dos pescadores do

Recôncavo Baiano apresentou que bastava para os moradores da vila o peixe, a farinha

de mandioca e as bananas que eles mesmos cultivavam no local. Além disso, era muito

presente um sentimento comunitário entre os pescadores da Vila de São Francisco que

se ajudavam quando alguém sofria um problema de saúde.

Na Vila de São Francisco (...) conversando com um deles que estava

doente, perguntamos-lhe quem arranjava nesse tempo, os peixes para ele e

para a família. “Os outros” respondeu-me ele. Mas como o senhor compra

deles?“-Qual nada, não tenho dinheiro: eles me dão tantos peixes quantos

preciso, e, quando eu ficar bom, ajudarei a quem estiver doente! 99

As pescadoras demonstram essa solidariedade na sua prática cotidiana ao levar

a companheira das pescarias em sua canoa100

, ao emprestar a sua geladeira para a outra

guardar o seu marisco, ao ajudar na cata do marisco. Essas práticas são vivenciadas nas

comunidades e as famílias sempre recorrem às relações de compadrio ou vizinhança nos

momentos difíceis.

A primeira entrevista da pesquisa foi realizada na casa de D. Júlia e o Sr. Gileno

na comunidade do Teotônio Vilela. Na sua residência encontravam-se mais duas

pescadoras: a sua filha Helena e a pescadora Tertulina, uma vizinha. A forma como

trataram à entrevista lembra o trabalho que desenvolvem na pescaria, sempre em

grupos, deslocando-se para os ambientes de pesca.

As suas narrativas trazem muita riqueza de relatos, como a sua determinação

para o trabalho, o lucro com a pesca e como a atividade é a principal fonte de

subsistência para a família, mantenedora dos conhecimentos da arte. Ao comparar o

97

Segundo Carlos Ott a tarrafa é incontestavelmente um elemento cultural português, que propagou-se no

tempo pós-colombiano, com tal rapidez entre os indígenas brasileiros, que hoje em dia parece um

elemento cultural ameríndio, pois entrou até na mitologia indígena. 97

98

Através do estudo das cartas jesuíticas o autor procura compreender a partir das descrições de G.

Soares as características culturais do pescador do Recôncavo. 99

Carlos OTT (OFM). Os elementos culturais da pescaria baiana. Boletim do Museu Nacional. n. 4. Rio

de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 100

São feitas de um tronco de árvore que dependendo do tamanho pode levar cerca de cinco pessoas.

Page 60: Fabiana Andrade

ontem e o hoje D. Júlia expõe que foi agregado um valor maior ao produto que pescam,

contudo a quantidade de marisco que pegam é bem menor de quando começou a pescar.

Hoje o valor que conseguem arrecadar na venda do produto é melhor, entretanto, a

quantidade que conseguem retirar é menor.

Eu tô gostando daqui, porque ainda acho que o marisco sendo pouco, mas o

dinheiro é mais. E lá naquela época eu não pescava pra vender era pra gente

comer, só vinha mesmo o caboje, e o bobo, porque a gente secava ele e

vendia na feira. Quinhentos rés, dez tostões, naquela época, agora dez

tostões é um real. Tudo barato no início um tustão, .uma peça de farinha era

quinhentos rés, mil e quinhentos. 101

A sua filha Helena, nascida em 1973, recorda que quando criança o momento da

pescaria era um espaço para a diversão e, ao mesmo tempo, deixa implícito que essa

atividade exigia tempo, esforço e muita dedicação para ser executada. Ver a mãe

pescando já era um motivo para reproduzir e feito e passar a executar a atividade.

Era criança. Eu catava gaiamu, porque eu não sabia catar como cato aqui,

nem sabia pescar. Eu ia pescar mais os outros mais não sabia direito se ia

pro fundo, eu me esforçava porque eu era pequena, também pescava de rede,

eu ficava na beirada, então eu ia pescar pela beirada, não sabia remar, vim

aprender aqui. 102

Outro marisco retirado pelas mulheres é o sururu, extraído da lama do mangue,

pegam também a ostra de mergulho no rio ou podem removê-las das pedras dos

manguezais com pequenas marretas. A pescadora Eliúdes103

, moradora do São Miguel,

lembrou que no tempo em que pescava o muapen, o marisco, era conhecido como

“cochinhas” e que pescavam apenas para o consumo familiar. No São Miguel, o

pescado que geralmente as mulheres ganhavam dos pescadores que trabalhavam na

pesca de calão, era utilizado na venda do espetinho ou para consumo das famílias.

Nas comunidades pesqueiras as mulheres são encobertas culturalmente pela

identidade coletiva masculina, mas elas integravam a força de trabalho, seja

gerenciando o consumo da família ou produzindo alimentos e insumos para a pesca. Na

cidade de Ilhéus o esfacelamento da pequena produção no campo e o processo de

urbanização fez com que a prática da pesca artesanal passasse por mudanças que vêm

101

Julia Dias de Castro. Entrevista coletiva realizada na sua residência no dia 12.11.2004. 102

Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 103

Maria Eliúdes Oliveira da Silva (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30/04/2007.

Page 61: Fabiana Andrade

descaracterizando cada vez mais o perfil e os modos de vida das pessoas que praticavam

a atividade pesqueira.

No São Miguel as pescadoras e pescadores artesanais lembram que sempre

viveram da atividade pesqueira sendo pescando para o consumo, ou para atender as

outras necessidades. A pesca realizada por toda a família tinha na extração dos recursos

naturais a sua própria sustentação porque tudo que precisavam para pescar retiravam do

meio natural. Os instrumentos que as famílias de pescadores produziam ainda são

artesanais, mas a base desses instrumentos é composto de elementos industrializados.

Antigamente as marisqueiras utilizavam o barbante para cochar o fio, hoje é

industrializado; fazia com uma espécie de madeira nativa que dá na beira do

manguezal também, o que a gente chama de curtiça, que a gente utiliza

como bóia, que é para a rede flutuar, até as cordas que a gente utiliza para

fazer as tralhas da rede era tudo artesanal que era de tiçal. 104

Podemos perceber que o pescador atribui à mulher marisqueira a função de

cochar o fio que hoje é industrializado. O Sr. José Rodrigues, pescador artesanal da São

Miguel, nasceu e cresceu vendo os seus pais trabalharem na atividade pesqueira. A sua

mãe além de costurar a rede para a sua família, também produzia apetrechos de pesca

para vender e procurava alternativas que suprisse as necessidades da sua família, como

vender os peixes as enfiadas pelas praias do São Miguel, caminhando pelas ruas da

cidade, ou nas feiras durante os finais de semana.

As atividades das mulheres pescadoras nas comunidades de pesca eram bastante

diversificadas e sempre procuraram as mais variadas formas de obter o lucro. Essa

forma de lidar e de mudança das práticas ao longo do ano, provavelmente, provocou

também a invisibilidade do trabalho da pescadora. Elas fazem o trabalho da pesca

artesanal porque retiram da natureza os elementos necessários a sua sobrevivência e

confeccionam a mão os seus próprios instrumentos de pesca, e capturam um quantidade

baixa do produto. As pescadoras e pescadores artesanais continuam produzindo os seus

instrumentos de pesca, mas agora a base de nylon e de boias plásticas. Esse trabalho

realizado principalmente pelas mulheres levava horas para ser realizado e não deixava

de contar com a ajuda dos filhos e das filhas.

104

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Page 62: Fabiana Andrade

O modo de trabalho da comunidade permanece artesanal pela interação que os

sujeitos possuem com a natureza, pelo costume de pescar em pequenos barcos e lidar

com antigos instrumentos de pesca e pela própria construção da afirmação em ser

pescadora e pescador artesanal. Nesse ínterim, vamos perceber também que as relações

e as tarefas desempenhadas pelas mulheres e homens não serão as mesmas, ou

necessariamente, não serão percebidas da mesma forma.

Page 63: Fabiana Andrade

II CAPÍTULO

A MULHER NA MARÉ: O COTIDIANO E OS

MODOS DE VIDA

Ser pescadora pra mim é uma profissão muito

boa..né, é você ser profissional. Alguma

pescadora pra dizer eu sou pescadora tem que

ser profissional, tem que ser colonizado, tem

que ter sua carteira de pesca né; e pra mim é

muito bom ser pescadora, muito bom!

Francisca Maria dos Santos

Page 64: Fabiana Andrade

As Lembranças no tratar da pesca, do lar e dos filhos.

As mulheres desenvolvem atividades na pesca e no lar, além de cuidar dos filhos

e dos afazeres do lar, as pescadoras apresentaram nas entrevistas que sempre

trabalharam no reparo dos apetrechos de pesca, no beneficiamento do produto,

limpando e aprontando o peixe para a comercialização. Segundo a pescadora Eliúdes105

,

ela e os seus irmãos costumavam ajudar o seu pai na pesca de rede para pegarem o

peixe pequeno, que limpavam, secavam no varal e salgavam para vender o peixe seco

pela praia, caminhando pelas ruas ou nas feiras da cidade. O dinheiro arrecadado com a

venda desses peixes era utilizado principalmente pelas mulheres para comprarem o que

necessitavam.

As pescadoras do São Miguel recordam que não era costume pescar siri para a

comercialização, porque geralmente pegavam para o consumo familiar. A Srº Eliúdes,

trabalhou durante muito tempo como secretária da Colônia de Pesca Z- 34106

de Ilhéus e

em entrevista enfatiza que eram poucas as mulheres que realizavam o registro da

Colônia de Pesca, porque os direitos trabalhistas não eram iguais para os homens e

mulheres que trabalhavam na atividade pesqueira.

Antigamente, eu pescava de rede, eu pescava de anzol, agora, não era muito

de pegar caranguejo, se tivesse de andada pegava, agora aratu eu gostava de

pegar, mas aquilo ali tudo era pro consumo, consumo de marisco, né, era pro

consumo. 107

Os homens eram os únicos representantes legais das famílias de pescadores. A

partir da década de 1980, a Constituição de 1988 garantiu alguns direitos para as

mulheres e, em consequência de situações como a morte do marido ou separação e

conscientização de que os seus direitos também fossem garantidos, as pescadoras

gradativamente tornaram-se sócias da Colônia de Pesca Z-34. Mesmo exercendo

atividades com os seus maridos, as mulheres não tinham a preocupação em se

cadastrarem nas Colônias de pesca.

105

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 106

Colônia de Pesca localizada no bairro do Malhado em Ilhéus- BA, tendo como primeiro local de sede

o bairro do São Miguel depois que foi transferida. De acordo com pesquisas realizadas na Colônia de

Pesca durante a graduação e o Projeto de Pesquisa sobre “Os pescadores artesanais: Mudanças e

Permanências nos modos de vida e trabalho”, verificou-se que a partir da década de 1980 houve um

aumento no número de mulheres cadastradas à Colônia de Pesca Z-34. 107

Idem, 2007.

Page 65: Fabiana Andrade

A situação de mãe e esposa levava à mulher a subalternidade na representação

da atividade profissional. A Srº Elíudes recorda que enquanto ela e seus irmãos

ajudavam o seu pai na pesca de rede no mar, a sua mãe costurava as redes, produzia os

instrumentos e cuidava dos afazeres domésticos. As atividades das mulheres estavam

dividas entre o pescar, o confeccionar as redes e os trabalhos no lar.

No tratar do beneficiamento do produto as pescadoras sabem que a forma não é

a mais adequada de higienização, porém, é a condição de trabalho que possuem. Na

imagem apresentada, a pescadora escolhe o próximo siri que será catado, com uma faca

de mesa elas apresentam muita rapidez nas mãos para a retirada da carne do marisco.

Figura 9: Pescadora catando siri (Fotografia de pesquisa, 2004).

O trabalho em casa é uma extensão do trabalho que realizam na maré, porque em

meio ao cuidado dos filhos e do lar, as mulheres terminam de preparar o produto para

ser comercializado. A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da

divisão social do trabalho e nela a dimensão opressão/dominação está fortemente

contida. Além disso, é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista das

relações sexuadas de poder, que gera relações de exploração e opressão entre duas

categorias de sexo socialmente construídas.108

Algumas entrevistadas continuam reproduzindo a idéia de separação das tarefas,

considerando especialmente como trabalho as atividades realizadas pelo gênero

masculino. As pescadoras mesmo realizando diversas funções na atividade pesqueira

108

Helena Hirata. Nova Divisão Sexual do Trabalho: Um olhar voltado para a empresa e sociedade. São

Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

Page 66: Fabiana Andrade

ainda não têm as suas atividades reconhecidas. Mesmo porque, muitas vezes, só é

considerado trabalho aquilo que se localiza na esfera produtiva da sociedade. Como as

mulheres não são tidas como pescadoras, elas não têm acesso a créditos e recursos

financeiros (barcos e apetrechos) e serviço de extensão a fim de aumentar-lhe a renda e

produtividade. Para a pescadora Chica a pescaria representou o meio que garantiu a

sobrevivência dos seus filhos depois que o seu marido faleceu.

Não dá para levar comida, como ia levar comida com um saco? Ou uma

coisa ou outra, então eu deixo de comer, o corpo já está habituado naquilo.

Às vezes eu chego do mangue, pergunte a minha menina, vou cozinhar

aratu, depois que eu cozinho meus aratu que eu boto para esfriar que é que

eu vou tomar um banho e às vezes eu vou catar o aratu...só vou comer na

hora de dormir! 109

O marisco que antes era destinado ao consumo das famílias, e era catado para

auxiliar nas despesas diárias nas casas das pescadoras-agricultoras, agora são catados

como a principal fonte de renda da família. A pesca familiar que era bastante comum

entre os pescadores artesanais do São Miguel que estava direcionada para a pesca do

peixe, passou a ser exercida por alguns membros da família, em virtude de terem

migrado para outras atividades. Ao passo que na atividade pesqueira a família passou a

pescar e catar tipos diferentes de mariscos, peixes e crustáceos.

A diversidade de produtos pescados fez com que a renda da família não ficasse

dependente de apenas um produto da maré. Com a implantação do defeso110

de

determinadas espécies, as famílias ficaram impedidas e condicionadas à proibição de

pescar a espécie escolhida. A variedade de produtos pescados também pode ser

considerada uma tática que encontraram para driblar e sobreviver às normas

condicionadas e evitar que determinadas espécies de peixes e crustáceos sejam extintas.

Pescar o siri, o camarão, o robalo, a tainha, a carapeba, é algo praticado entre

algumas famílias do São Miguel. De acordo com as necessidades do mercado e do seu

rendimento as famílias das pescadoras e pescadores concentram as suas atenções na

pesca de determinado produto. Mesmo no defeso elas procuram outras atividades que

garantam o sustento da família a partir do seu próprio trabalho e não apenas com o

auxílio garantido pelo Governo no período do defeso.

109

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 110

Época do ano em que as pescadoras e pescadores são proibidos de pescar determinado tipo de espécie

no período da sua reprodução.

Page 67: Fabiana Andrade

As pescadoras possuem uma maneira particular de viver e de estar nos lugares

de pesca. Podemos perceber através dos depoimentos que a atividade pesqueira garante

às mulheres uma liberdade e que, muitas delas, não conseguem se adaptar a uma outra

maneira de fazer. É muito difícil para as mulheres serem vigiadas e controladas por um

poder que dita as regras de como devem agir. No trabalho da pescaria é construída uma

noção própria de controle do tempo e da divisão das tarefas entre a atividade e o lar.

Elas comentaram nas entrevistas que não conseguiram se adaptar as exigências e os

horários que deviam ser cumpridos ao exercerem outras atividades.

Pra mim era melhor pescar do que trabalhar em casa de família...porque a

gente que pesca tem aquele horário que a gente ta em casa... se maré dá de

manhã quando é uma hora duas horas a gente ta em casa...aí a gente pesca

ganha o dinheiro da gente e também olha os filhos...faz uma coisinha...lava

uma roupa...né? Faz uma comida... então...para mim casa de família para

mim é mais ruim porque casa de família para mim tem aquele horário não é

Tertulina? Chega sete sai seis entra oito...não tem aquele horário certo..E pro

baixo de ordens né? Tem que fazer o que o patrão manda né? E na pescaria

não (...).111

Eu gosto de pescar, teve uma vez que eu fui trabalhar numa casa de família e

não gostei. Tem uma que eu não gosto de ser mandada. Aí eu disse, eu vou

trabalhar numa coisa pra mim mesmo, eu não vou ser mandada. Eu só

trabalhei pros outros só seis meses. Saí até o dinheiro eu larguei lá, nem lá

eu fui buscar, mais, larguei o dinheiro metade do dinheiro lá e não fui mais

lá e continuei trabalhando nisso. 112

A atividade pesqueira permite as mulheres cuidar dos seus filhos, do lar, ao

tempo em que trabalhavam para sustentar a família. A não adaptação ao trabalho

disciplinar remete às táticas e maneiras de ser pescador e pescadora artesanal que tem a

liberdade como uma das principais contribuições e interiorizações dessa atividade.

Como explica Certeau113

o ser humano possui estratégias e táticas de sobrevivência em

seu cotidiano que jogam com os mecanismos de disciplina. As táticas pensadas pelo

autor não tem um lugar próprio porque resultam em algo que é praticado. Esses

procedimentos táticos estão relacionados às “maneiras de fazer” que fogem as relações

de poder que tentam controlar o espaço social.

Existe um saber já escrito nas práticas das mulheres pescadoras presentes nas

diversas maneiras de produzir, de ser, de falar e caminhar. No desenvolvimento das

narrativas as rotas e os caminhos que as levavam para o mangue, assim como o trabalho

111

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 112

Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 113

Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-

Petrópolis, R.J; Vozes, 1994.

Page 68: Fabiana Andrade

no manguezal, nos corais e rios são lembrados com uma dualidade de emoção. Nas suas

reminiscências são ressaltadas as mudanças nos modos de vida e trabalho e as

estratégias cotidianas de sobrevivência. As comunidades de pesca possuem as suas

significações próprias e as maneiras de agir estão relacionadas à sua forma de trabalho.

Nas suas lembranças, muitas vezes, o lúdico se confunde com o medo dos

perigos que já vivenciaram. Quando lembram das pescarias as mulheres recordam

também os perigos que elas, seus pais, irmãos e irmãs já vivenciam nos lugares de

pesca. As mulheres contam nas suas entrevistas que o mangue tornou-se um local

perigoso, o refúgio dos bandidos e esconderijo dos marginais procurados pela polícia.

Elas relataram que atualmente ser pescadora é correr risco de vida.

(..) A pescaria antes era bem melhor, porque hoje faz até medo você entrar

no mangue, você encontra aí vagabundo com dois ou três revólveres na mão

tá entendendo...Faz medo mesmo! É Deus que eles passa por a gente e não

diz nada as vezes ousa e diz:- Ó tia se você ver a polícia aí atrás perguntar de

lá ele, , não vai me entregar não...é muito difícil... é muito difícil a pescaria,

muito difícil mesmo. 114

Algumas pescadoras quando narram essas situações contavam sorrindo os

perigos que já vivenciaram na pescaria. Outras preferiam não lembrar desses momentos

difíceis. Geralmente costumavam dizer que não recordavam de tais momentos. Para

D.Julia, pescadora aposentada, o mangue é um “lugar mal assombrado”115

, por isso

procurava ir sempre acompanhada para a maré. Segundo ela, qualquer barulho dentro

do mangue provocava grandes sustos, porque além do medo existia a dificuldade de

locomoção no mangue.

Aponta que no manguezal tem o “sumidor”, um tipo de lama movediça que se

uma pessoa cair pode ser tragado até desaparecer por completo. Pescar em grupo é uma

forma dos pescadores protegerem-se contra os perigos que podiam encontrar no

ambiente de trabalho. Dona Júlia aprendeu a pescar com a mãe e também ensinou os

seus filhos a pescar. Na sua narrativa estão as dificuldades e as marcas deixadas pelas

vivências na maré.

Quando vê minhas pernas são cheias, essas marcas. Tudo preto por aqui

tudo. Esse negócio preto tá vendo aí as costuras, tudo é ostra quando ela

corta, aí. Isso aqui pegou sete pontos, e abriu aí porque eu era diabética.

Estou fazendo tratamento que graças a Deus que eu saí do mangue. Minha

114

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 115

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006.

Page 69: Fabiana Andrade

pressão é alta agora, problemas de diabete, então como é que fica. Se eu me

jogasse para isso ia ser pior. 116

A sua filha Helena reiterou que desde criança acompanhava os seus pais na

pescaria. D. Júlia, diz que tinha medo da situação íngreme do manguezal, enquanto a

sua filha Helena diz, “que faz medo entrar no mangue”117

, devido à quantidade de

homens armados que as mulheres se deparam no local. Os barcos das pescadoras,

muitas vezes, são roubados por ladrões que se utilizam dele para fugirem ou roubarem

os sítios que ficam localizados às margens dos rios. Além de enfrentarem os obstáculos

na natureza as mulheres se deparam com a violência urbana. A pescadora Chica conta

entre risos os perigos que já vivenciou na maré com D. Nita. Ela enfatiza a coragem e

determinação da sua amiga de pescaria que mesmo sem saber nadar, enfrentava os

riscos dos ventos fortes no rio. Mesmo sendo criada “na beira do rio” não sabia nadar,

mas tinha uma coragem desafiadora. A pescadora ressaltou que certa vez pensou que

iriam morrer porque durante o momento que estavam na maré pegaram um vento muito

forte, mas destemida a pescadora não recuou aos pedidos de retorno e seguiu em frente

remando o seu barco.

E eu: - Nita cuidado! E ela: - Calma Chica...calma, a gente vai chegar lá, a

gente vai chegar lá...Mais quando eu olhava vinha cada onda que chega a

espumar... E ela tira a água...tira a água...e eu nem olhava fazia assim

ô...(gesto com o rosto), para não ver a ribanceira de água que vinha...e lá

vai ela remano...e lá vai remano...Aí ela disse assim: - Tá vendo

abestalhada que a gente ia chegar. Eu nunca vi uma coragem daquela! 118

No depoimento acima e na imagem que segue estão descritas informações sobre

a importância das pescadoras irem acompanhadas para pescar. Na maré dividem

angústias e as dificuldades para colocarem o barco de volta para a água como também

outras situações inusitadas que inesperadamente surgem ao longo do caminho. Eles

carregam os seus instrumentos individuais e executam a pesca da mesma forma.

116

Idem. 117

Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006.

118

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.

Page 70: Fabiana Andrade

Figura 10: Pescadoras com o barco.

(Fotografia de pesquisa, 2004).

Segundo D. Nita, ela nunca temeu entrar no mangue ou no rio para pescar.

Comenta ainda, que sempre acompanhou a marido nas madrugadas para pescarem de

“três maio”, arte de pesca que os seus pais utilizavam quando era menina, um tipo de

rede que colocavam no rio e ficavam aguardando os peixes caírem na armadilha. Nas

entrevistas, as mulheres fizeram o comentário desse tipo de armadilha durante as

lembranças de infância na pesca com a família.

Não, nunca eu tive medo. Eu pescava mais ele (marido), a gente colocava

três maio, a gente colocava lá no Rio do Engenho de noite assim, olha! Tudo

escuro a gente só via os vagalumes cantarem. Sem luz, sem nada. A gente

colocava a rede e ficava ali até amanhecer o dia..Tirava os peixes que

tivessem de tirar e quando era de manhã a gente ia pra lá. 119

As pescadoras do São Miguel contam com muito entusiasmo como era pescar no

bairro e através das suas rememorações podemos perceber as mudanças nas práticas e

arte de pesca. Os pescadores costumavam pescar de canoa no alto mar e isso

representava um grande perigo para o pescador, pois tinha que enfrentar os ventos

fortes. Segundo D. Eliúdes, antigamente era canoa, não era, não era barco, eram

canoinhas, que cabiam dois, com remos, enfrentavam o mar por aí (...). Para a pescadora

o barco a motor possibilitou uma segurança maior para os pescadores que se aventuram

no alto mar.

119

Andrelita Caio Batista- Nita (78 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 22.03.2009.

Page 71: Fabiana Andrade

Teve uma época que meu irmão ia sair para pescar (...)e o tempo mudou,

vento forte, dando a hora dele chegar, e nada de chegar, e vai dando a hora,

vai dando meio-dia, e nós ficamos aflitos. Porque aí sabíamos o horário e ele

não chegou. Vento forte, aí o vento jogou eles para muito longe, não tinha

possibilidade de vir para a terra porque o vento puxava para fora, né, puxava

para fora, e foi uma angústia, uma angústia, rezava tanto, e Deus ouviu as

preces, de tardezinha eles fizeram e lutaram bastante, e conseguiram chegar

né; numa praia mais distante, e vieram para cá. Essa dificuldade toda, por

causa de pesca, hoje, eles continuam pescando, mas já tem o barco. 120

Ao mesmo tempo em que há um sentimento favorável à utilização dos barcos a

motor, algumas pescadoras entrevistadas demonstram uma forte indignação em relação

aos grandes barcos industriais de pesca, porque esses barcos acabam destruindo as artes

de pesca que são colocadas no mar pelos pescadores artesanais. A concorrência com os

grandes barcos pesqueiros tem diminuído a capacidade de pesca do trabalhador

artesanal. Além disso, o aumento do valor do produto no mercado tem feito com que

esses antigos laços de solidariedade e confiança entre os pescadores não sejam tão

comuns como eram.

Para a pescadora o seu tempo de infância era um tempo de fartura, época que as

mulheres e crianças recebiam gratuitamente dos barcos de pesca que chegavam: a

lagosta, o camarão e vários tipos de peixes pequenos que utilizam na alimentação ou

para vender na praia e pelas ruas da cidade. Segundo D. Eliúdes, o camarão hoje é

“ouro” para os pescadores, por isso não é mais comum distribuírem parte da sua

produção entre os moradores locais.

Antigamente quando os calãos davam aí, o camarão, até eles davam para

nóis, não faziam questão. Hoje, o camarão é ouro. E aí depois com os barcos

motorizados, tem o camarão defumado, não é? Num dá mais, não. Ai eu

presencio, ás vezes eu vou na praia, vou fazer caminhada, conheço todo

mundo lá, aí, “ô, dona Eliúdes, leva um peixinho para a senhora?”, e tal, e os

camarões, “ah, deixa um camarão que eu quero”, “camarão aí”, camarão

hoje é ouro, a gente via o camarão antigamente, ói, um peixe vivo! Ia comer

o peixe vivo, peixe vinha se batendo na linha, nó em terra, do pescador né? 121

Segundo Isarildes, mais conhecida como Zó, pescadora artesanal do São Miguel,

era costume do pescador conhecido como o Sr. Badú jogar o Calão para distribuir peixe

para a comunidade. Mas depois da sua morte os seus filhos continuam distribuindo

algumas vezes no ano o peixe para a comunidade. Esse laço de solidariedade permanece

120

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 121

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.

Page 72: Fabiana Andrade

para manter a memória do Sr. Badú viva para os pescadores e pescadoras do local. As

mulheres passam a ocupar outros espaços e as redes de troca são enfraquecidas porque o

que antes era recolhido para atender as necessidades diárias da família passa a ter um

outro valor de troca, mas direcionado para os lucros do mercado.

A pescadora Zó colocou que nunca tentou pescar de Calão, em virtude da força

que precisa ser empreendida para ser jogada a rede no mar, mas ela pescava de rede e de

tarrafa. Disse através de risos que tinha muita dificuldade para pescar de tarrafa no mar.

No mar eu pescava de tarrafa e de rede, eu pescava com uma de oito quilos

de chumbo! Os pescadores ficavam danados, porque às vezes eu ia jogar e

não abria toda a tarrafa aí os peixes corriam, aí eles ia jogar e não pegavam

mais nada (risos). Mas eu estava tentando pegar para dar comida aos meus

irmãos, para ajudar a minha mãe. 122

As pescadoras passaram a disputar os espaços com os homens nas comunidades

de pesca. Essa relação algumas vezes conflituosa demonstra que as mulheres destemidas

procuraram aprender outras “artes de pesca” que possibilitassem um rendimento maior.

Mas a sua falta de experiência em determinadas artes tornava a relação com o outro

pescador um momento de conflito também porque não era compreensível e, muitas

vezes aceitável, para o homem, pescador ver a ousadia da mulher e ter que dividir o seu

espaço com o outro gênero. Nisso, o mais interessante é perceber como uma cultura

feminina se constrói no interior de um sistema de relações desiguais, como ela mascara

as falhas, reativa os conflitos e pensa nessas relações. 123

Os espaços ocupados nas ruas, avenidas, e feiras da cidade.

Através das lembranças das pescadoras à cidade vai sendo definida pelos modos

de ser e fazer. A cartografia das ruas e bairros é traçada a partir dos sentimentos de

pertencimento ao espaço praticado. Os lugares percorridos vão sendo objeto de

mudança e adquirem sempre uma nova significação. Em muitas situações, vamos

122

Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.

123 Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.

Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995, p.47.

Page 73: Fabiana Andrade

observar que em defesa dos seus modos de viver procuram “formas de fazer” para

driblar as determinações dos poderes dominantes.

Para tratar dessas experiências recorremos à memória que muitas vezes é falha e

o seu tempo dissonante. A memória pode ser apropriada pelo historiador para a

compreensão dos modos de vida dos sujeitos, assim pode apresentar as suas minúcias,

os gestos de desesperos, apegos aos espaços, exageros, felicidades, conflitos, dúvida, e

ideia de tempo apresentada pelas pescadoras. A memória é um processo individual e

dinâmico que partilha dos elementos socialmente criados e compartilhados. Podemos

considerar que o instrumento da História Oral é essa “memória criativa” e que deve ser

pensada como fonte de uma subjetividade.124

Ecléa Bosi125

no seu trabalho “Memória de Velhos” nos ajuda a pensar como os

idosos e idosas organizam o tempo em sua memória, apresentando como as suas

lembranças seguem uma lógica própria. A percepção de tempo está presente nas

narrativas dos sujeitos, que podem seguir a noção das mudanças típicas dos seus modos

de fazer e viver. A percepção de tempo do grupo das pescadoras está relacionada às

modificações na sua labuta diária, ou percepção das mudanças dos seus costumes, ou

modos de fazer. Para dar ideia de temporalidade elas utilizam determinados trechos bem

característicos da sua conduta diária, como, “no tempo da minha mãe”, “no tempo em

que o rio enchia”, “no tempo que a gente pegava aratu com facilidade”, “no tempo que a

gente enchia a rede”.

Os seus depoimentos estão imbricados de significados que nos ajudam a

compreender o que é ser pescadora e quais as mudanças que interferiram no seu modo

de vida. A memória é constantemente remodelada devido às categorias de sentimento,

intenção e propósitos de vida experimentados pelo autor. A matéria da memória é

sempre modelada pelo presente que possui o desejo de explicação sobre o passado.

Sendo assim, como trabalhar com a memória das pescadoras diante dessas lembranças

que se amotinam a partir das vivências do presente? Os sentidos do passado produzido

pelas pescadoras estão imbricados tanto dos reais processos de dominação que adquirem

representatividade quanto pelo conhecimento produzido no transcorrer da vida

cotidiana. Segundo Déa Felenon, precisamos pensar na “memória popular” como um

objeto de estudo, mas também como uma dimensão da prática política. Já que os

124

Alessandro Portelli. História Oral como gênero. Projeto História: revista do programa de Estudos Pós-

graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

n° 0. São Paulo: Educa, 1981. 125

Ecléa Bosi. O Tempo Vivo da Memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo, Cia das Letras, 1994.

Page 74: Fabiana Andrade

sentidos do passado são produzidos tanto pela memória privada como pelas

representações públicas. 126

Pensar nessas lembranças que se amotinam é avaliar o político, as formas de

dominação e de conduta dessas mulheres na sua prática cotidiana. Nas entrelinhas

podemos apreender de forma particular o quanto a maneira de pensar dessas mulheres

pode afirmar ou negar o seu papel de trabalhadoras da pesca, mães e esposas. Assim,

podemos compreender como as pescadoras percebem a si mesmas e a realidade que

fazem parte. Essas perguntas são importantes para dizer como o sujeito social se

comporta frente a sua realidade e percebe as mudanças que ocorrem ao longo da sua

experiência de vida.

A partir das suas lembranças a cidade adquire outra conotação, que segue as

introspecções das suas vivências urbanas. As “artes de fazer” também estão presentes na

definição da cidade pelo sujeito que constrói o seu traçado segundo os diversos

caminhos escolhidos para serem percorridos em seu cotidiano. É importante ressaltar

que a concepção de espaço no texto é diferente da idéia de lugar. O lugar é algo que não

possui um sentimento de pertencimento ou de estabelecimento para os sujeitos. Já os

espaços seriam os locais de pertencimento e identificação das mulheres pescadoras. De

acordo com as formulações de Certeau:

...espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por

um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo,

a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um

sistema de signos- um escrito. 127

O espaço ocupado pelos sujeitos é um lugar praticado, assim por mais que

existam definições geométricas da rua pelo urbanista é o pedestre que vai estabelecer as

suas formas. Segundo o autor é nas práticas do dia-a-dia que o sujeito articula a

oposição entre “lugar” e “espaço”. Apresenta ainda que o “fundar um lugar e dele fazer

a figura de um túmulo” não deixam de ser espaços que são condicionados pelas ações

de sujeitos históricos. O relato do espaço é ao mesmo tempo uma língua falada, isto é,

um sistema linguístico distributivo de lugares e ao mesmo tempo um ato que pratica.

126

Déa Ribeiro Fenelon. et.al. (orgs). Muitas Memórias Outras Histórias. São Paulo, Olho d’Água, 2005.

127

Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-

Petrópolis, R.J; Vozes, 1994, p. 202.

Page 75: Fabiana Andrade

Ele faz essa relação utilizando os diversos relatos da memória sobre a rua, as

determinações, e os procedimentos de leitura dos mapas.128

Os lugares das pescadoras na cidade eram: as ruas, avenidas e as feiras da

cidade. A rua era lugar de trabalho da pescadora, que escolhia percorrer as ruas da

cidade, transcorrer os seus bairros e as avenidas: 2 de julho e 7 de setembro. As ruas e

avenidas eram mais um lugar de passagem do que um espaço de pertencimento. Elas

faziam longas caminhadas pelas ruas da cidade para vender os seus peixes e mariscos. A

pescadora Inês, filha de pescadores, através dos quais aprendeu a arte da pesca,

ressaltou em entrevista que a pescaria sempre foi a sua fonte de renda e que vender o

produto significava, muitas vezes, estabelecer um longo percurso a pé pelas ruas da

cidade.

....andando pelas ruas....assim...já fiz muito coisa (risos)...enchia os vasos

de muapen, ostra, camarão...agora não..agora to mais velha e não to

agüentando pegar peso para andar assim não. 129

As ruas consistiam no espaço dos transeuntes, dos vendedores ambulantes que

percorriam esses lugares à procura de compradores. As pescadoras procuravam

percorrer os bairros de Ilhéus, em busca de compradores específicos de cada lugar. Ao

passo que abasteciam a clientela local com a venda dos seus produtos, percorriam as

ruas do próprio local, ou esperavam até o Sábado para vender os produtos nas feiras da

cidade. Mas esses percursos deixam de acontecer com maior intensidade e as

pescadoras procuraram outras maneiras para venderem os seus produtos. Assim o seu

traçado vai ganhando um novo delineamento. Segundo Ana Lanna a cidade moderna

dividiu os grupos sociais.

Havia na cidade uma superposição de funções e coexistência dos mesmos

espaços de grupos sociais distintos. Isto era incompatível com uma

proposta burguesa de cidade. A cidade moderna pressupõe a separação

dos corpos e funções.130

O que permaneceu foi o ponto de encontro das pescadoras: “a feira na cidade”.

A resistência cotidiana, no seu lar e as suas táticas de venda e trabalho demonstrou

como os grupos de pescadores procuraram sobreviver diante de um poder disciplinador

128

Ibid, p. 202. 129

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 (10 páginas). 130

Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma Cidade na Transição: Santos: 1870-1913. São Paulo, HUCITEC, 1996,

p 119.

Page 76: Fabiana Andrade

que cria normas para uma forma de ser pescadora e pescador artesanal. Nas

determinações do poder público de Ilhéus, percebemos a necessidade de organização e

separação dos espaços urbanos.

Durante o Governo de Antônio Olímpio, na década de 1980, são implantadas

várias medidas de remodelação urbana. O jornal “Diário de Itabuna” de 1981 enfatizou

as ações de Antônio Olímpio como o grande agente do progresso na cidade de Ilhéus.

Informou ainda, que uma das principais medidas do seu Governo foi à melhoria da

estrutura viária urbana que padecia de uma melhoria da sua situação devido a uma série

de deficiências. O prefeito realizou a pavimentação de um grande número de ruas do

bairro do Pontal, construiu um novo Mercado de Peixes distante do centro e bairros da

cidade, a construção do Terminal Coletivo Urbano, da Central de Abastecimento, entre

outras realizações. 131

A construção do Terminal Coletivo, localizado na Rua da Usina, tinha como

finalidade centralizar todo o sistema de transporte coletivo na área central da cidade. A

ideia do jornal é de que o trabalho de Antônio Olímpio proporcionou o melhoramento

das vias públicas e o “progresso” da cidade de Ilhéus. Além de melhorar a circulação do

centro urbano da cidade de Ilhéus já que contava com ruas estreitas e um número grande

de veículos estacionados ao longo dos meios-fios que atrapalhava o trânsito de pessoas

e de veículos.

A construção do Centro de Abastecimento, também realizado durante o governo

do prefeito Antônio Olímpio, teve como objetivo deslocar a feira livre localizada na

Avenida 2 de julho, no centro da cidade, para uma zona periférica. Efetuando assim, a

demolição do antigo Mercado Municipal. Segundo as informações do jornal, a feira

livre representava um “obstáculo ao desenvolvimento da cidade, impedindo inclusive a

possibilidade de aproveitamento, a nível turístico de uma das regiões mais privilegiadas,

porque fica próximo da enseada”.132

O seu Governo parecia seguir a política

nacionalista que pensava em promover um melhor funcionamento dos locais públicos

da cidade. As pescadoras se referem à feira da Avenida 2 de julho como a “feira velha”

onde a princípio vendiam os seus mariscos e depois da mudança foram vender no

Guanabara para depois serem deslocadas para o Malhado.

As políticas públicas na cidade de Ilhéus procuraram organizar um espaço que

era dos feirantes e que muitas vezes fogem aos padrões de higienização e de conduta

131

Antônio Olímpio coloca Ilhéus na rota do progresso. Diário de Itabuna. Sábado, 27 de junho de 1981.

132 Idem.

Page 77: Fabiana Andrade

estabelecidos. A feira é um lugar fétido para alguns, insalubre, onde os órgãos públicos

institucionalizam várias maneiras dos grupos feirantes lidarem com os seus produtos.

No jornal essa problemática é destacada a partir das seguintes afirmações:

O centro servirá também para resolver o sério problema da feira do

Malhado, que se constituía num verdadeiro atentado a saúde, inclusive com

esgotos estourados e calçamento de terra bruto. Alí se reúnem mais de mil

feirantes vendendo os seus produtos, sobretudo, aos domingos, sem as

menores condições de higiene e de conforto. 133

No ano de 1891 a Prefeitura Municipal de Ilhéus iniciou a construção da Central

de Abastecimento com o objetivo principal de transportar os feirantes do Guanabara e

da Avenida 2 de Julho para o Malhado. A sua medida determinou também que os

vendedores ambulantes deixassem de estabelecer parada na Praça Cairú localizada no

centro da cidade. Os vendedores ambulantes foram obrigados a localizarem-se em zonas

mais distantes dos principais lugares do centro da cidade. Essa mudança fez com que os

feirantes procurassem instrumentos que possibilitassem a permanência no local. Junto

aos meios de comunicação os vendedores inconformados denunciam a decisão da

Prefeitura e as ações abusivas dos seus fiscais.

Peixeiros e vendedores ambulantes que costumam fazer parada na Praça

Cairu, próximo ao bar no Guanabara, procuram a nossa reportagem para

denunciar que estão sofrendo as mais diversas pressões por parte da

Prefeitura Municipal de Ilhéus, que através de fiscais totalmente

desqualificados para o serviço os estão impedindo de trabalharem naquele

local. Segundo os reclamantes, do jeito que a vida está difícil, a mudança de

local implicaria na perda de praticamente de todos os fregueses. 134

Os vendedores criticaram a arbitrariedade utilizada pelos fiscais para fazer com

que a determinação não fosse cumprida. A notícia também apresenta que segundo “os

reclamantes” para os consumidores de peixes, mariscos, frutas e outros gêneros da

determinação da Prefeitura constitui-se como um ato totalmente “injusto e de cunho

anti-social”, já que dezenas de donas de casa não teriam condições de se deslocarem

para a Avenida Itabuna ou do Malhado pela grande distância. Os feirantes do local vão

defender a sua permanência no espaço insistindo também que a feira do Guanabara é

um ponto tradicional e que abastece muitos consumidores de baixa-renda.

133

Antônio Olímpio coloca Ilhéus na rota do progresso. Diário de Itabuna. Sábado, 27 de junho de 1981 134

Prefeitura pressiona vendedores ambulantes do Guanabara. Diário da Tarde. Ilhéus - BA, quinta-

feira, 04 de fevereiro de 1982.

Page 78: Fabiana Andrade

As pescadoras recordaram da dificuldade de transporte para se deslocarem até

centro da cidade. Se perdessem o ônibus ou o caminhão no dia de feira tinham que

esperar no centro até o dia seguinte. Além disso, recordam-se da retirada pelo governo

da “feira velha” estabelecida na rua 2 de Julho, com o propósito de “não enfear o centro

da cidade”. A pescadora Zó diz o seguinte: “Antigamente a feira era na 2 de Julho. Ai

acabou a feira de lá e veio para o Malhado. O prefeito tirou de lá né; porque é um cartão

postal de Ilhéus né! Uma feira ali; naquela bagunça danada!” 135

A cidade é pensada, muitas vezes, para atender aos interesses de um grupo social

e não há um poder de disciplinarização e higienização. O que parece mesmo é que “a

cidade e não os cidadãos seria a instância de referência”. Mas os modos de fazer das

pescadoras driblam as condutas programadas em permanência dos seus locais de venda.

Os diversos grupos sociais possuem maneiras de fazer plurais, que podem ser lidos

como os alicerces dos seus modos de vida.

Mudar os seus costumes, mesmo em termos de conduta, talvez represente a

tentativa de mudar o que possui uma significação própria a sua forma de viver. Para

alguns autores, a exemplo de Thompson136

, a resistência dos grupos populares ingleses

do século XVIII estava relacionada à luta pela manutenção dos seus costumes frente à

ameaça do sistema capitalista. Tendo em vista que existia uma complexa rede de

relações sociais, em termos de crenças, tradições e práticas. Ele demonstrou que o povo

inglês tanto se acomodou quanto resistiu às inovações econômicas e sociais implantadas

pelo sistema capitalista.

Para Michel Certeau os grupos populares fazem usos diversos dos significados

recebidos que podem ser percebidas nas suas distintas “maneiras de fazer” presentes em

seu cotidiano. Os grupos populares se apropriam do que é determinado pelos poderes

dominantes e inventam as suas diversas formas de viver a partir das estratégias e táticas

cotidianas. Segundo a sua concepção os grupos populares resistem às estipulações do

poder a partir das “diversas maneiras de fazer” do dia-a-dia denominadas de

“antidisciplina”. 137

Os discursos das pescadoras ressaltam que a feira do Guanabara ainda é um

local bastante frequentado pelas pescadoras, pescadores e vendedores ambulantes. Mas

a feira que antes estava concentrada na praça Cairú, atualmente se estabeleceu em dois

135

Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 136

E. P. (Edward Palmer) Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 137

Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-

Petrópolis, R.J; Vozes, 1994.

Page 79: Fabiana Andrade

lugares do centro de Ilhéus. Localiza-se na rua 7 de setembro, nas quintas, terças e

sábados e na mesma Avenida Cairú, mas precisamente atrás do prédio da CEPLAC,

principalmente aos Sábados. Como ressalta Ana Lanna percebemos nesse processo de

emergência uma nova maneira de estar na antiga cidade.138

A feira também é um lugar de táticas de sobrevivência, solidariedades e diversas

maneiras de agir. Os feirantes antigos estabelecem os seus espaços de venda e resistem

quando novas pessoas procuram um lugar para venderem os seus produtos. A

manutenção dos espaços na feira pode estar relacionada à rede de relações mantidas

entre os feirantes e a sua clientela, e até mesmo para manter apenas a vendagem de seus

produtos nos espaços que já estão delimitados. Helena, pescadora de 32 anos, filha de

D. Júlia, 61 anos, pescadora aposentada respondeu em entrevista com muita entonação

de que sua mãe trabalhava na feira do Guanabara, mas que ela não gostava. A pescadora

Tertulina, de 59 anos, explica porque não costumava vender na feira antiga do

Guanabara, localizada no centro da cidade.

Porque lá a feira é um local pequeno, aí o povo fica com muita confusão,

aqueles fereiros velhos que já está lá! É muita confusão, você chega e bota o

marisco. -Não aqui não quero, tira daí. Aí com isso fica chocado e não vai

mais lá. Então, aí na feira do Malhado tem como tudo nós vender. Aí, nós

vamos vender na feira do Malhado porque é grande a feira, às vezes o fiscal

é legal com a gente, bota a gente no local. Então na feira do Malhado tem

como vender tudo. Então a gente faz o ponto de venda ali. Aí na hora que

alguém vai procurar, mas também trabalho no Guanabara, é... lá nas sete

portas eu não gosto muito não.139

Nas feiras antigas os vendedores estabelecem territórios que fogem das regras

criadas pelo poder público nos novos locais de venda. Além da apropriação dos espaços

que são estabelecidos os feirantes também criam táticas para venderem os seus

produtos. Em entrevista a pescadora Inês de 52 anos, filha de pescadores ressaltou que o

valor do produto depende de como o comprador apresenta-se na negociação, pela

possível condição econômica do mesmo, ou pela demanda de procura dos mariscos no

dia140

. Desta forma, a pescadora não possui um valor fixo para o seu produto, porque a

própria indicação de valor do seu produto é uma tática utilizada para tirar proveito em

138

Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma Cidade na Transição: Santos: 1870-1913. São Paulo, HUCITEC,

1996. 139

Julia Dias de Castro (60 anos). Maria Helena de Castro dos Santos (32 anos); Tertulina Ferreira Mota

(59 aos), Gileno Ferreira dos Santos (75 anos) Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na

residência de D. Júlia e Sr. Gileno, (32 páginas). 140

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006

Page 80: Fabiana Andrade

determinadas situações que são favoráveis ou desfavoráveis à venda do produto. Ela diz

o seguinte:

A gente vende o litro de muapen por dois reais, um e cinqüenta, às vezes um

real; também quando a feira ta muito ruim, vende também por um real. A

ostra é quatro, cinco, seis, não tem preço certo. É assim...as vezes é mais

caro um pouco...quando a pessoa é mais coisa a gente vende mais barato

(risos) é assim. 141

Das suas lembranças evocam as riquezas de relatos de como a pesca tornou-se

mais lucrativa e a principal fonte se subsistência para a sua família que é mantenedora

dos conhecimentos da atividade artesanal.

Eu tô gostando daqui, porque ainda acho que o marisco sendo pouco mas o

dinheiro é mais. E lá naquela época eu não pescava pra vender era pra gente

comer, só vinha mesmo o caboje, e o bobo, porque a gente secava ele e

vendia na feira. Quinhentos rés, dez tostões, naquela época, agora dez

tostões é um real. Tudo barato no início um tustão...uma peça de farinha era

quinhentos rés, mil e quinhentos. 142

A pescadora Helena salienta que não eram todos os dias que ela vendia o seu

produto na feira. Ela pescava uma boa quantidade para vender no Malhado durante o

Sábado e Domingo, explicou que na feira do Guanabara são todos os dias que

funcionava a vendagem de peixes e mariscos, mas no Malhado o comércio concentrava-

se nos finais de semana. Segundo Helena, as suas irmãs costumavam vender também na

feira do Guanabara ao contrário dela que só vende na Central de Abastecimento. Ela diz

que para vender o seu produto espera os finais de semana e recebe a ajuda das suas

irmãs que se concentram em pontos diferentes na feira.143

As pescadoras formam grupos de solidariedade, familiar ou não, que indicam

onde devem comprar os produtos que estão sendo buscados pelos consumidores,

traçando assim táticas para a venda. O homem mesmo imbricado num sistema plural

constrói “modos de fazer” que se diferenciam de um lugar, de uma comunidade para

outra.144

Mesmo controlado por uma lei o homem sem sair do lugar tem uma imensa

capacidade de improvisação e criatividade ou para forjar a realidade almejada, ou para

viver uma vida mais digna, ou até mesmo como uma resistência ao que lhe é imposto.

141

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 142

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista coletiva realizada na sua residência no dia 12.11.2004. 143 Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 144

Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-

Petrópolis, R.J; Vozes, 1994

Page 81: Fabiana Andrade

Entre as famílias entrevistadas do bairro Teotônio Vilela muitos dos seus

membros incluindo mulheres e homens que herdaram a arte da pesca com seus pais

praticavam a atividade artesanal. As táticas de solidariedade são geralmente

estabelecidas entre a família e os grupos das pescadoras para driblar as dificuldades do

dia a dia. Para a pescadora Cátia145

vender na Feira tornou-se muito complicado em

virtude da autorização legal que precisavam adquirir. Quando ela precisava

comercializar na feira utilizava o ponto de venda da sua irmã que também é pescadora

artesanal e uma outra irmã sua utilizava a mesma estratégia. Mesmo precisando vender

o seu produto na feira elas apresentaram particularidades que faziam parte do costume e

das suas práticas diárias.

A liberdade é o sentimento que faz parte da maneira de ser e agir dos grupos de

pesca que pode ser percebido nas suas manobras cotidianas. Elas geralmente não

escolhiam a feira para venderem os seus produtos porque não gostavam da delimitação

do espaço e da disciplina que precisavam seguir. Segundo a pescadora Orenice vender

na feira é “um fedor danado, uma zoada” e ressaltou ainda que:

A pescaria a gente vai na hora que quer e vêm na hora que quer não é não?

Deu fome, deu vontade de vim embora...se tiver de barco vem, se tiver a pé

vêm e naquele castigo ela disse que estava indo cinco e meia para chegar na

hora que o povo abre a feira né? Pra sair de lá as cinco da tarde, quando ela

sai de lá eu já peguei o meu marisco, já tratei já embalei e já estou

descansando. 146

As mulheres preferem escolher os lugares para vender os seus produtos o que

lhes garante mais praticidade e liberdade. Podemos perceber que até mesmo as

pescadoras que vendiam na feira não costumavam seguir uma rotina diária, já que

preferem vender mais pelas ruas da cidade caminhando e delimitando os principais

locais de venda.

Na feira não...eu nunca gostei...eu nunca gostei...eu nunca gostei de entregar

no Malhado...na feira. Por causa do enxame, fica lá aquela vida toda

esperando um filho de Deus para comprar! É muito mais fácil...eu já

chegava aqui com os meus muapens e minhas ostras e não esquentava

lugar...já chegava para o freguês tal dia tem o marisco..tem? tem! 147

As pescadoras do São Miguel ressaltaram que era costume as mulheres irem

para a beira do mar ganhar os peixes menores resultados da pesca de calão. Com esses

145

Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 03.01.2009. 146

Orenice Paixão dos Santos. Entrevista realizada na sua residência no dia 05.01.2009. 147

Idem.

Page 82: Fabiana Andrade

peixes as mulheres tratavam, colocavam para secar no varal ou coqueiro e pegavam os

palitinhos da palha de coqueiro para espetarem os peixes e assim saíam pela praia e ruas

do bairro vendendo o peixe assado. A pescadora Eliúdes explicou que enquanto o seu

pai vendia peixe na feira-livre, os peixes menores eram vendidos “às enfiadas”148

.

Grande parte dos peixes conseguidos pelas pescadoras era utilizada para o consumo

próprio e antes o peixe que era vendido nos palitos de coqueiro, agora é comercializado

nas latas e manuseados pelas pescadoras.

D. Elíudes enfatizou que era mais disposta do que suas irmãs, pela sua coragem

e pela boa relação que mantinham com os pescadores. Segundo ela, sua mãe e as suas

irmãs faziam geralmente o serviço doméstico e cuidavam da limpeza e preparação dos

mariscos e ela sempre muito “danada”149

trabalhava diretamente na pesca dos peixes e

cata de mariscos. Ela apresenta que sempre foi muito disposta para o trabalho e a sua

disposição fez com que se destacasse das suas irmãs enquanto pescadora.

A construção histórica da divisão de trabalho segundo os sexos provocou uma

submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica. As mulheres

incorporaram a linguagem de dominação, mas ao mesmo tempo resistiram à mesma

dominação. Podemos perceber que a pescadora Eliúdes afirma uma idéia de que a sua

mãe e as suas irmãs desenvolviam atividades domésticas e de “ajuda” nas atividades da

pescaria, enquanto ela realmente pode ser considerada pescadora já que era disposta ao

trabalho do mar. Como nos afirma Roger Chartier:

Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina

tomam a forma de dilacerações espetaculares, nem se exprimem sempre pela

irrupção singular de um discurso de recusa e rejeição. Elas nascem com

freqüência no interior do próprio consentimento, quando a incorporação da

linguagem da dominação se encontra reempregada para marcar uma

resistência. 150

Já no seu cotidiano as mulheres possuíam estratégias próprias de compra e

venda que resistem também aos padrões do mercado. As pescadoras entrevistadas

lembram que muitas das suas freguesas já morreram, mas elas têm conseguido outros

consumidores para os seus produtos. Elas também possuem vários lugares de venda

como a beira da praia, no centro, restaurantes, barracas de praia, e nas feiras da cidade.

148

Termo utilizado em entrevista no dia 30.04.2007, para designar a forma como vendiam o peixe. 149

Termo utilizado pela pescadora 150

Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.

Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995, p. 42.

Page 83: Fabiana Andrade

As mulheres não faziam parte dos ambientes políticos quando esses não eram

propícios a sua conduta diária e continuam não fazendo parte desses ambientes em

virtude dos seus lucros não serem assim tão satisfatórios. Algumas mulheres

entrevistadas da cidade de Ilhéus e que são Cadastradas às Colônias151

de pesca

demonstraram que não vendiam e continuam não vendendo para a instituição. Porque o

valor que a Colônia para pelo produto está abaixo do valor do mercado. Elas passaram a

comprar o produto do pescador para revender aos comerciantes de peixe. O assessor

técnico da Colônia Z-34 discorreu sobre as diversas atividades realizadas pelas

pescadoras:

As marisqueiras tem um trabalho descascando o camarão, que ela pega, que

compra dos pequenos produtores de barcos, barcos de ida e volta, barcos de

arrasto, de pequeno porte, esses barcos saem de manhã e voltam à tarde,

outras catadeiras, marisqueiras, elas compram a produção, fazem o filé, e

vendem a colônia, a colônia muitas vezes recebe a produção dessas

marisqueiras, não de todas porque são muitas, mas de algumas a gente

recebe. 152

Ao entrevistar as mulheres também chamadas de marisqueiras vamos perceber

que as suas atividades nas comunidades de pesca são bastante diversificadas. Além de

cuidar dos filhos, das tarefas domésticas, elas sempre exerceram diversas atividades no

setor pesqueiro, desde a confecção dos instrumentos de pesca, limpeza do pescado,

venda do produto, até a pesca de rede e do anzol no rio.

O assessor técnico da Colônia destacou principalmente as atividades das

mulheres que estão ligadas ao setor da pesca mercantil simples, o que consiste nas

atividades resultantes da pesca de alto mar. Podemos perceber que existe uma

dominação masculina também na linguagem e na forma como caracterizam o trabalho

da pescadora como sempre subserviente ao trabalho do pescador de alto mar e não tão

pouco expõe e valorizam as atividades desenvolvidas pelas mulheres em outros setores

da atividade pesqueira.

Escrever a respeito dos grupos que mantêm uma tradição, ou seja, uma

permanência dos costumes torna ainda mais instigante essa luta diária contra as

determinações do poder, que Thompson colocaria no âmbito da resistência em defesa

151

Instituição que tem o objetivo de garantir os direitos e representar legalmente a categoria dos

pescadores e pescadoras. 152

Márcio Luís Vargas. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 27.08. 2004.

Page 84: Fabiana Andrade

dos seus costumes.153

A partir dos pormenores das práticas cotidianas das pescadoras na

cidade podemos perceber como demonstram resistência as construções sociais que,

muitas vezes, determinam e negligenciam as diversas experiências de ser pescador e

pescadora artesanal.

As lutas cotidianas e políticas.

Ah, minha história. Se eu te contar a minha história, minha filha,

você nem acredita. A minha história foi de muito trabalho, eu

criei dez filhos, sem marido, sozinha e Deus. Criei tudo, está tudo

criado! 154

Na fala de Omerita, pescadora do São Miguel e mãe de dez filhos estão inscrita a

situação de muitas pescadoras entrevistadas das comunidades Teotônio Vilela e São

Miguel que mantiveram sozinhas as suas filhas e filhos. Nas suas narrativas preferem

não lembrar algumas situações que vivenciaram ao longo da sua trajetória de vida

conjugal, e procuram descrever um passado construído a partir de muita luta e esforço

pela sobrevivência e igualdade de direitos.

Durante as entrevistas as mulheres demonstraram que queriam apresentar as suas

reivindicações com diversas críticas direcionadas à sociedade, às políticas públicas do

Governo e à própria Academia. Como trata Portelli para o profissional da História Oral

uma entrevista é sempre uma lição de aprendizagem.155

As suas lembranças expressam

a historicidade das experiências pessoais, os papéis do indivíduo na sociedade como

também demonstram os conflitos e as disputas de poder entre os diversos grupos

sociais.

Através do processo de resistência cotidiana e reconhecimento dos seus direitos

as mulheres passam a se posicionar enquanto “profissionais da pesca”. Para muitas

pescadoras a atividade significou o único meio de sobrevivência da família, a sua

independência financeira, assim como tiveram uma maior liberdade de gênero. O seu

ingresso na Colônia de pesca fez com que elas se reconhecessem enquanto integrantes

de uma categoria profissional.

153

E. P. (Edward Palmer) Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 154

Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010. 155

Alessandro Portelli. História Oral como gênero. Projeto História: revista do programa de Estudos Pós-

graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

n° 0. São Paulo: Educa, 1981.

Page 85: Fabiana Andrade

As contradições de gênero são superadas, em parte, no cotidiano das

comunidades de pesca pelas mulheres que enfrentaram os riscos da pescaria para

sustentar os seus filhos, ou por aquelas que precisavam vender o produto. Nas histórias

contadas percebemos a tomada de empoderamento156

pelas pescadoras porque passam a

se identificarem enquanto trabalhadoras e travar um disputa pela igualdade de direitos e

também pelo reconhecimento do seu trabalho. Elas fazem do seu cotidiano momentos

de resistência e assim constroem uma história de luta e desafios.

A idéia de empoderamento está relacionada a uma proposta mais ampla tanto na

própria discussão do movimento feminista como nas lutas cotidianas empreendidas

pelas mulheres pela igualdade. Esse conceito surgiu com os movimentos civis nos

Estados Unidos nos anos setenta como uma forma de valorização da raça do negro e da

negra, e conquista por uma cidadania plena. No Brasil, o conceito passa a ser utilizado

pelas intelectuais feministas na década de 1980 visto que estas procuram demonstrar

que para enfrentar a sociedade patriarcal as mulheres estão disputando e negociando o

poder em várias instâncias do ambiente público e social com os homens.

O empoderamento aqui é utilizado no sentido de que as mulheres têm assumido

no seu discurso uma postura de luta pela igualdade nos diversos campos da atividade

pesqueira. No seu cotidiano as mulheres articulam meios para superar as dificuldades e

desigualdades, a princípio elas serão as grandes incentivadoras umas das outras para que

procurem os meios legais e se registrem na Colônia de Pesca. Ao passo que criam

associações e procuram apoderar-se da administração dos próprios órgãos legais para

terem os seus direitos atendidos.

Algumas mulheres do São Miguel como Dulciene, a sua mãe Sione e Flávia

apresentaram a pescadora Eliúdes como uma importante representação da mulher, já

que ela cadastrava as pescadoras a Colônia de Pesca quando ficavam viuvas e

reivindicavam a garantia dos seus direitos. Já a narrativa da pescadora foi voltada para o

contexto político local e as suas discordâncias em relação às ações tomadas atualmente

pela Colônia de Pesca Z-34. Nas suas lembranças as pescadoras ressaltaram que o

trabalho era uma prática comum na sua vida, mas exercer determinadas atividades como

a pesca de calão no mar junto aos pescadores de águas marinhas é descrita com uma

função desafiadora.

156

O termo empoderamento pode ser definido como um mecanismo de autonomia de pessoas,

organizações e ou comunidades inseridas em processos coletivos ou sociais que passam a controlar as

suas ações e decisões através da reivindicação de direitos e consciência de direitos.

Page 86: Fabiana Andrade

D. Eliúdes, pescadora de 73 anos durante a realização da entrevista no São

Miguel, apresentou-se como uma mulher ousada e corajosa já que assim como o seu pai

e os seus irmãos passava o dia na beira do mar. Ela disse que diferente da sua mãe

costumava conversar com os pescadores e saía com o seu pai para puxar o calão157

no

mar, e ressaltou que era “pescadora” porque pescava de anzol, ciripoia e de rede no rio

com as “companheiras”.158

Durante o tempo que trabalhou na Colônia de Pesca Z-34 como secretária,

chegou a se candidatar a presidente, mas não foi eleita. Depois de vinte e dois anos de

trabalho na Colônia de pesca, ela deixou de prestar serviço a instituição. A pescadora

discute em seu depoimento os problemas que presenciou no tempo em que estava na

Colônia ao tempo que externa o não reconhecimento profissional do trabalho executado

pela sua mãe durante a sua infância.

Os momentos vividos antes não são lembrados ou preferem que sejam

esquecidos, pela dor da situação, ou porque a sua vida vai tomar uma outra acuidade

pelo aumento da responsabilidade e cuidado sobre os filhos. As mulheres procuraram

preservar determinados assuntos que estão relacionados geralmente a sua vida pessoal,

muitas das entrevistadas são mães solteiras e mostraram-se bem relutantes em falar da

relação com o marido e com os filhos, bem como em apresentar os seus sofrimentos, as

suas angústias e decepções, o que se tornava uma tarefa muito difícil para as

entrevistadas.

Tanto a pescadora Omerita, como Elíúdes, Dulciene e Flávia são mulheres que

demonstraram em suas falas um senso de liderança na luta pelo reconhecimento do

trabalho feminino no setor. A pescadora Flávia lembrou o seguinte: “Desde o período

que comecei a pescar eu mesma colonizei várias pessoas aqui do bairro São Miguel, tem

Luciene, tem Zó, um bocado de gente aqui que pesca siri”.159

As mulheres são solidárias com as colegas de trabalho e alertam a respeito da

importância de se cadastrarem as Colônias de pesca. Elas sempre exerceram um papel

importante na atividade pesqueira no bairro São Miguel, seja costurando as redes de

malhar, o calão, ou vendendo os peixes miúdos que ganhavam, mas foi com a

necessidade familiar e, muitas vezes, com a independência total dos seus maridos que as

pescadoras procuraram cadastrar-se na Colônia de Pesca.

157

Na pesca de calão a rede é arrastada pelos pescadores no mar. 158

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 159

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.

Page 87: Fabiana Andrade

A pescadora Flávia criou os seus seis filhos através da pesca, depois que ficou

viuva conta que foi uma das primeiras mulheres do São Miguel a realizar a pesca e cata

do siri por iniciativa própria, e a possuir barco para trabalhar no mar e no rio. Ressalta

ainda, que era costume das mulheres pegarem peixe no rio e também no mar, não sendo

muito comum a pesca do siri. Quando foi perguntado se era costume pegar siri a

pescadora diz o seguinte:

Não, não. Ninguém pegava siri, nenhuma mulher pescava siri aqui para

vender, pegava robalo, pegava todo tipo de peixe, mas siri ninguém. Eu

entrego na colônia dependendo da necessidade, que se eu vou lá e entrego.

Desse período que comecei a pescar eu mesmo colonizei várias pessoas

aqui do bairro São Miguel, tem Luciene, tem Zó, um bocado de gente aqui

que pesca siri. 160

No seu depoimento só se afirma pescadora depois da separação do marido, e a

sua fala vai estar voltada para essa fase da vida. A pescadora conta que possuiu quatro

barcos à motor e realizava a pesca do peixe, siri e lagosta e enfatiza o seguinte: “Minha

vida de pescadora começou quando eu separei do marido e fiquei com seis filhos

pequenos aqui, antes eu não era bem de vida, aí eu fiquei sem nada”. O próprio olhar

das pescadoras artesanais a respeito da importância do seu trabalho está voltado para a

condição de manutenção de uma rotina diária e pela legalização da sua atividade junto

às representações do setor. Mesmo porque, muitas vezes, as atividades realizadas de

beneficiamento do produto não são tidas como um trabalho.

A pescadora sente a necessidade de afirmar que também pescava com os outros

pescadores das mesmas artes de pesca, por isso também deve ser chamada de

“pescadora artesanal”. D. Zó, moradora da comunidade do São Miguel, quando foi

perguntada sobre o que é ser pescadora e marisqueira diz o seguinte, “não tem diferença

nenhuma, porque o homem pesca se dá o nome de pescador e a mulher é pescadora.

Deram o nome de marisqueira porque não quiseram chamar de pescadora”. 161

Ao perguntar o que é ser pescadora algumas entrevistadas apresentaram que a

pesca representou o meio de subsistência que encontraram, e muitas outras falaram que

se tratava de uma profissão. A pescadora Chica, viúva e mãe solteira, depois do

falecimento do marido procurou cadastrar-se à Colônia Z- 34, para ter os seus direitos

garantidos.

160

Idem. 161

Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.

Page 88: Fabiana Andrade

Ser pescadora pra mim é uma profissão muito boa né! É você ser

profissional. Alguma pescadora pra dizer eu sou pescadora tem que ser

profissional, tem que ser colonizado, tem que ter sua carteira de pesca né? E

pra mim é muito bom ser pescadora! 162

As pescadoras artesanais se identificam com um grupo possuidor de uma

profissão, porque essa atividade é entendida como o domínio de um conjunto de

conhecimentos e técnicas que permitem ao produtor subsistir e se reproduzir enquanto

pescador e pescadora163

. D. Julia e o Senhor Gileno sempre pescaram no regime

familiar, depois de quase trinta anos de convivência no trabalho da pescaria. D. Júlia

associou-se a Colônia de Pesca. Mas sempre pescou com o Senhor Gileno, sem tanta

frequência porque a sua principal função era vender o produto na feira. A pescadora diz

o seguinte, “Era mais eu vendendo e ele pescando, ele mais os meus meninos”. 164

Segundo D. Júlia para atender as exigências da Colônia, já que foi colonizada

em um período muito próximo a aposentadoria, lembra o seguinte: “Quando eu estava

pagando eu tinha que fazer tudo se não eu não tinha direito a nada!” Ela precisava

manter uma rotina de trabalho e vender o produto para a Colônia já que tinha

necessidade de assegurar o seu benefício. Sendo assim, muitas pescadoras e pescadores

acabavam vendendo para a Colônia porque acreditavam que precisavam fazer isso para

facilitar o processo da aposentadoria.

A prática artesanal de confecção, beneficiamento e reparo dos apetrechos de

pesca é tida como uma atividade complementar às necessidades da família por isso

consideram nos seus discursos, muitas vezes, que pescadora é a mulher que pratica a

ação de pescar ou catar o marisco. Nas suas entrevistas apresentam que “ser pescadora é

viver de tudo que tem na maré”165

é saber remar, saber pegar o marisco, conhecer os

lugares no mangue, aprender a tratar o produto para a comercialização e a lidar com as

dificuldades do seu trabalho.

O fato das mulheres não realizarem atividades pesqueiras ligadas ao espaço do

mar, não permite, muitas vezes, que sejam reconhecidas enquanto pescadoras. A

“invisibilidade” do seu trabalho nas comunidades de pesca está, entre outros motivos,

relacionada ao status de complementaridade e informalidade do seu trabalho. Um estudo

sobre comunidades pesqueiras e relações de gênero apresenta a seguinte afirmativa:

162

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 163

Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo:

Ática, 1983. 164

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 165

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2004

Page 89: Fabiana Andrade

O trabalho e a produção das mulheres na pesca têm sido marcados por

grande invisibilidade (...) Mesmo que sua produção gere excedente e seja

colocada no mercado como produto de valor comercial, este aparece nas

estatísticas como coleta manual. 166

Fernandes167

, por exemplo, chega a enfatizar que na maioria das sociedades

pesqueiras em todo o mundo existe uma forte divisão sexual do trabalho e afirma que a

pesca marítima é uma atividade predominantemente masculina porque sugere que “a

pesca requer fibra e força e as mulheres presumivelmente não têm essas qualidades”. As

mulheres desempenham um esforço muito grande no trabalho de extração dos mariscos

e peixes devido às condições insalubres dos manguezais e em virtude da tamanha força

física que empenham durante as práticas cotidianas de pesca.

A pescadora Tertulina, nascida em 1946 e moradora do Teotônio Vilela,

aprendeu a arte da pesca com outro pescador. Como mãe solteira criou os seus dezesseis

filhos através dessa atividade. Durante a entrevista externou a sua indignação frente às

políticas públicas. Ela falava para a representação desse poder que estava atrelada ao

Estado já que havia um vínculo com a universidade pública. A entrevista soou como

uma oportunidade para apresentar o quanto existia uma distância entre as suas

vivências, os seus modos de vida e os estereótipos que perpassam nos ambientes

públicos sobre a mulher pescadora.

Eles lá o pessoal do INSS porque se a gente tem como provar que é

pescadora né, tem os documentos, tem a arte da pesca, sabe, tá

entendendo. Porque o melhor lá isso que cai. Não pagamos? Tudo bem.

Agora tem quantos aí que diz que pesca e ta aposentado e nunca pescou.

Agora quem pesca e tem como provar, tem essa dificuldade toda. 168

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como pescadores não

apenas os trabalhadores e trabalhadoras que se dedicam à captura de pescado e exercem

as funções de membros de tripulações de barcos costeiros, mas também os que fazem

tarefas específicas da pesca de água doce e águas costeiras. Fazem parte dessa definição

também os coletores de esponjas e pérolas, algas e sargaços, moluscos e crustáceos.169

166

Tailler latino americano sobre gênero e o trabalho da mulher em comunidades pesqueiras. Trabalho

da Mulher Pescadora em Comunidades Pesqueiras do Litoral de Pernambuco. Recife, 2000 167

Ideval Pires Fernandes. Estudo da situação sócio-econômica e tecnológica da Pesca Artesanal

Marítima de Peixes no Município de Ilhéus-BA. Mestrado em Desenvolvimento Ambiental e Meio

Ambiente-UESC, Ilhéus, 2003. 168

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 169

Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática,1986, p.11.

Page 90: Fabiana Andrade

Mas as mulheres ainda encontram muitos problemas nos órgãos públicos ao definirem-

se enquanto pescadora, em virtude da falta de reconhecimento e informação sobre as

suas atividades no setor pesqueiro.

O trabalho das mulheres em suas comunidades de pesca é bem diversificado. A

Lei da pesca, decreto 221 de 20 de fevereiro de 1967 diz que “pescador profissional é

aquele que, matriculado na repartição competente segundo as leis e regulamentos em

vigor, faz da pesca sua profissão ou meio principal de vida”. Essa Lei reconhece todas

as pessoas que fazem da pesca seu principal meio de vida como pescador (a)

profissional. Porem, a variedade de atividades desenvolvidas pelas mulheres na pesca,

que vai desde a captura, costura das redes, até o beneficiamento e venda do produto, não

garantia os mesmos direitos para as mulheres que realizavam apenas o beneficiamento

ou venda do produto.

Segundo a Lei de 1967 é considerado “pesca todo o ato tendente a capturar ou

extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente

meio de vida.” A atividade de captura que elas realizam também é reconhecida

legalmente como uma atividade de pesca. A denominação de marisqueira foi uma

atribuição criada para as mulheres em virtude da atividade de capturar crustáceos ser

exercida principalmente pelo gênero feminino. O termo de “marisqueiro” para o homem

pouco foi encontrado nos registros da Colônia Z-34 de Ilhéus, mesmo existindo um

número considerável de homens que executam a atividade de mariscar. A denominação

“marisqueira” termina por dificultar o acesso das mulheres aos créditos e direitos

trabalhistas já que as mulheres não são tidas como pescadoras.

A nova Lei da Pesca e Aqüicultura, Lei 11.959 de 29 de junho de 2009 revoga a

Lei de 1967. Dentro das suas disposições continua compreendendo a pesca “como toda

operação, ou ação tendente a extrair, colher, apanhar, apreender, ou capturar recursos

pesqueiros.” As mulheres pescadoras que capturam o siri e realizam a extração da ostra,

do sururu e do mupaen continuam a serem reconhecidas pelas determinações legais

como pescadoras. Diferente da antiga Lei essa reconhece nos seus artigos e define a

pesca artesanal como “toda atividade praticada diretamente por pescador profissional,

de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção

próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações

de grande porte.”

Nessa nova legislação da pesca um dos grandes avanços para o reconhecimento

do trabalho da mulher pescadora é o seu Art. 4 que considera atividade pesqueira

Page 91: Fabiana Andrade

artesanal “os trabalhos de confecção, de reparos de artes e petrechos de pesca, os

reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto da

pesca artesanal.” Essas atividades nem eram citadas na outra legislação de pesca, mas

nessa as mulheres que realizam o reparo e beneficiamento do produto também devem

ser registradas como pescadoras artesanais.

A conquista dos direitos das pescadoras faz parte de um processo de luta recente

que está relacionado ao próprio movimento feminista que despontou no mundo na

década de 1960. A falta de reconhecimento pela sociedade e o pouco investimento que o

Governo brasileiro tem garantido ao setor da pesca artesanal agrava a “pouca

visibilidade” e importância ao modo de vida das trabalhadoras da pesca. Nas

entrevistadas as mulheres sentiam necessidade de apresentar e reafirmar que eram

pescadoras e algumas chegaram a se autodenominar “profissionais da pesca”. Os

homens, mesmo praticando a pesca em águas interiores, muitas vezes, denominavam-se

pescadores, mas as mulheres eram chamadas de “marisqueiras” nas narrativas do gênero

masculino.

O não reconhecimento do seu trabalho faz com que as mulheres tenham mais

dificuldade de garantir os seus direitos junto as representações legais, a exemplo do

direito a aposentadoria. As pescadoras são idealizadas, muitas vezes, pelos grupos

sociais, como uma mulher sem “vaidade, maltrapilha e suja”170

, em virtude das

condições do seu trabalho no mangue, local de muita lama. Ao apresentarem-se bem

vestidas, encontram dificuldades para serem reconhecidas enquanto pescadoras. De

sobremaneira, nas entrevistas, criticam a forma como o sistema previdenciário brasileiro

as trata, uma vez que devem provar, com sua aparência, que são pescadoras, em termos:

Lá no pessoal do INSS a gente tem que provar que é pescadora né, tem os

documentos, tem a arte da pesca, sabe? Tá entendendo? (....) Agora tem

quantos aí que diz que pesca e ta aposentado e nunca pescou. Agora quem

pesca e tem como provar, tem essa dificuldade toda. 171

O servidor que está lá na Previdência, trata o pescador como se ele fosse um

qualquer, um ninguém, principalmente a marisqueira, quando ela chega toda

pintadinha, toda arrumadinha, com relogiozinho, e tal, eles tratam ela como

se ela não fosse uma pescadora. Então eles queriam, eles querem que a

pescadora, ou a marisqueira, e o pescador, pra ele reconhecer, se ele estiver

cheio de lama, se tiver fedendo a peixe, se tiver, lá a mulher com o cabelo

todo esvaraçado, toda desgraçada, toda rasgada, aí eu acho que eles

170

Termos que são utilizados pelas pescadores nas suas entrevistas como uma crítica ao posicionamento

da sociedade. 171

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.

Page 92: Fabiana Andrade

enxergam, não é, com uma facilidade maior. Então, mas não é por aí, eles

têm que enxergar o pescador, a pescadora, como um profissional. 172

O depoimento do pescador Reinaldo mais conhecido por Zé Neguinho,

presidente da Colônia Z-34 desde o ano de mil novecentos e noventa e nove, exprime a

dificuldade que as mulheres têm para conseguir a aposentadoria junto ao INSS173

em

virtude do próprio reconhecimento da atividade de pesca como um trabalho. Para o

pescador o próprio Governo Federal e Estadual não dispõe de políticas que atendam as

pescadoras e pescadores artesanais e, ao mesmo tempo, garanta uma maior segurança e

prestígio desse profissional. Essa falta de interesse e informação dificulta e situação da

mulher que não é contemplada na diversidade das suas funções. Os papéis

desempenhados por elas nos diversos setores da sociedade, mostram o quanto à

construção historiográfica negligenciou a sua ação. Em virtude disso:

Impõe-se a necessidade de documentar a experiência vivida como

possibilidade de abrir caminhos novos. Outras interpretações de identidades

femininas somente virão à luz na medida em que experiências vividas em

diferentes conjunturas do passado forem gradativamente documentadas, a

fim de que possa emergir não apenas a história da dominação masculina,

mas, sobretudo os papéis informais, as improvisações, a resistência das

mulheres. 174

Temos o surgimento de lideranças femininas na cidade de Ilhéus, a pescadora

Dulciene mais conhecida como D.Cica na Comunidade do São Miguel, filha de

pescadores artesanais, é uma das fundadoras da recente Associação de Pescadoras e

Pescadores da Comunidade. A Associação foi criada porque houve desentendimentos

dos moradores do lugar com a Colônia de Pesca Z-34. O problema foi gerado, porque a

Colônia está endividada com o Banco do Nordeste, dessa forma, a instituição não

conseguiu verbas para pequenos investimentos necessários à manutenção das

trabalhadoras e trabalhadores do setor de pesca.

Na entrevista realizada com Márcio Vargas, assessor técnico da Colônia, este

afirmou que a instituição nas décadas de 1970 e 1980, com a ajuda do Banco do

Nordeste, ofereceu diversas linhas de crédito para o pescador artesanal marinho. O

172

Reinaldo Oliveira-Zé Neguinho.Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 23.02.2008. 173

Instituto Nacional de Seguridade Social. 174

Maria Odila Dias. Novas Subjetividades Na Pesquisa Histórica Feminista: uma hermenêutica das

diferenças. In. Estudos Feministas. CFH/CCE/UFSC, Ano 2. N.2, 1994.

Page 93: Fabiana Andrade

banco contou com a ajuda da CEPLAC175

instituição que realizou vários Diagnósticos

sobre pesca artesanal, porque entre os objetivos da instituição estava o de investir em

outros setores que contribuíssem para o desenvolvimento da região.

Entretanto, em virtude de alguns problemas gerados pelos serviços de uma

empresa contratada pela CEPLAC que não terminou o trabalho de reforma da Colônia, a

mesma tornou-se endividada. As pescadoras apresentam de forma crítica a ausência dos

direitos porque são cadastradas a uma instituição de pesca, mas muitas não se sentem

representadas.

A vida do pescador é uma vida sofrida, você não tem médico, a gente não

tem um auxílio doença. Quando você é colonizado e você adoecer, eles

podem até assim comprar um remédio, porque quando o meu marido

adoeceu, eles ajudaram muito...Eu pesco, chega de noite, chovendo, eu vou

ascender fogo embaixo de chuva, porque o lucro não dá para cozinhar no

gás, então vou ascender fogo embaixo de chuva, espero cozinhar, depois vou

tomar banho, daqui a pouco estou aí cheia de doença porque aqui no São

Miguel teria que ter um galpão, ta entendendo? A gente faz com o maior

cuidado, mas quem sabe lá, esse marisco pode pegar até um..né? 176

As pescadoras e pescadores artesanais estão assegurados pelos benefícios da

Previdência Social que concede a aposentadoria aos cinquenta e cinco anos para a

mulher e sessenta anos para o homem.177

A Previdência garante ao assegurado especial

o auxílio doença, aposentadoria por invalidez, auxílio acidente e salário maternidade.

Entretanto, esse o auxílio doença citado pela pescadora é concedido mediante exame

médico pericial e esse processo geralmente é bastante dificultoso para a pescadora.

Nos depoimentos, houve grande insistência de afirmação sobre as atividades que

executam e à falta de reconhecimento do seu trabalho no setor pesqueiro. A

profissionalização da mulher é uma construção social e produto das relações entre os

sexos. Ao longo do processo histórico as profissões das mulheres inscrevem-se no

“prolongamento das funções naturais” que eram atribuídas às mulheres como afeitas ao

cuidado do corpo e do indivíduo na figura da mãe, como enfermeiras, professoras e de

secretária, sempre disponível, intuitiva e discreta, adaptava-se mais facilmente as

175

Para atenuar a crise do cacau, o Governo, pressionado pelos cacauicultores, criou no dia 20 de

fevereiro de 1957 a CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), com o objetivo de

fornecer linhas de crédito para melhorar os métodos de produção, empregando tecnologia, modernizando

e ampliando suas lavouras. 176

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009. 177

A Lei nº 8.213 de 24 de Julho de 1991 estendeu os benefícios da Previdência com seguridade especial

a todos os Trabalhadores Rurais, como também o que explora atividade agropecuária, pesqueira ou de

extração de minerais.

Page 94: Fabiana Andrade

facilidades do chefe.178

As mulheres trabalhadoras da pesca buscam a sua

profissionalização e a igualdade de direitos nas relações de gênero transformando as

“qualidades naturais” que lhes são atribuídas em um trabalho oficialmente registrado e

ávido pelo reconhecimento.

A mobilização dessas mulheres seja em nível de formação de uma instituição

ou nas “brechas” do cotidiano sempre fizeram parte das histórias de vida. São várias as

suas estratégias para burlar a “disciplinarização”, que está no cotidiano, em ser mãe,

mulher e trabalhadora da pesca. A pescadora Zó, ainda instiga a discussão e afirma que

pescador é aquele que vive da atividade pesqueira e por isso pesca todo tipo de mariscos

e peixe, por isso não existe a diferença em ser “pescador e marisqueira”.

Ser pescadora é pescar mesmo. Não é ficar com o pé enxuto, se colonizar

e dizer eu sou pescadora. Tem que cair no mangue, no rio, pescadora

pesca tudo. Não é aquele que diz: - Ah, eu pesco robalo, pescador se não

tiver o robalo pega o caranguejo, pega o guaiamu, pega o aratu, pega siri.

Esse é o pescador legítimo, pesca tudo!179

As mulheres por não estarem envolvidas com os ambientes políticos da pesca,

representadas pela Colônia, têm dificuldade de validar os seus direitos, e muitas vezes,

não possuem nem a consciência de tais direitos. Nos seus discursos percebemos as

mudanças dessas práticas e também as que permanecem e resistem ao longo do

processo histórico. Na fala da pescadora Zó, por exemplo, está presente a sua

indignação contra a dificuldade que possuem para adquirir determinados benefícios

enquanto pessoas que muitas vezes não são pescadoras têm os benefícios adquiridos.

Tem muita gente colonizada que não pesca. Tem gente colonizada que

nunca pisou o pé na água. Isso eu sou contra, porque eu pesco desde

menina e conheço muita gente que não pesca e está colonizada recebendo

do Governo o que não merece! Enquanto nos pescadores que estamos

precisando de um auxílio doença e não recebe.180

Algumas pescadoras entrevistadas procuraram instruir-se para lutar pelos

benefícios. Foi assim que D. Cica, contribuiu para a fundação da Associação de

Pescadoras e Pescadores do bairro, principalmente com o objetivo de conseguir

investimentos diretos do Governo. A pescadora Cica conseguiu os créditos oferecidos

178

Michelle Perrot. As Mulheres ou os silêncios da História. Bauru, SP: EDUSC, 2005. 179

Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 180

Idem.

Page 95: Fabiana Andrade

pelos órgãos do governo, especialmente pelas políticas da SEAP (Secretaria Especial de

Aqüicultura e Pesca) que disponibiliza programas de incentivo a pesca simples. Para

isso, as pescadoras e pescadores artesanais resistiram às represálias da Colônia e

continuaram no processo de luta. Ela procura se inteirar dos Seminários referentes à

pesca em busca de alternativas que venham a contribuir aos diversos setores da

atividade.

A Colônia de Pesca Z-34 na qual estavam antes vinculados garante aos

pescadores a seguridade da aposentadoria e os benefícios do trabalhador. Além disso,

oferece aos barcos de motor que fazem a entrega do produto para a instituição um

adiantamento de crédito, para a compra de isca, gelo, mantimentos e combustível. A

Colônia acaba favorecendo o pescador marítimo que apresenta uma produção maior e

geralmente não compra a pouca produção das pescadoras. As atividades realizadas por

elas não são organizadas e não há investimentos que contribuam para a melhoria das

condições de trabalho.

As pescadoras e pescadores artesanais, mesmo tendo registro na Colônia de

Pesca, e serem cadastrados na marinha não se sentem seguras e muito menos com

credibilidade para exercerem o direito de compra na sociedade. Através dos seus

depoimentos podemos perceber que a antiga relação de troca e confiança no mercado

não é mais aceita no sistema capitalista da produção. Vejamos o depoimento do

pescador José Carlos:

Hoje o pescador às vezes que consegue um crédito na cidade. A gente vai

comprar na cidade, aí os caras perguntam a profissão. Aí a gente diz: -

Pescador. Aí já olha meio atravessado, rum! Pescador.. lá ele!rsrs. Aí para

comprar qualquer coisa dá um trabalho triste. Em terra não, a pessoa pode

trabalhar no que for. Você trabalha aonde? Sou empregado. Pronto. Aí

compra. Que paga ou não paga, mas eles têm prazer de vender. Às vezes

um pescador tem condições até de pagar, mas eles já olham atravessado

para vender! 181

O pescador José Carlos é morador da comunidade do São Miguel, possui quatro

filhos e no seu depoimento enfatiza que não gostaria que os seus filhos terminassem os

seus dias como pescadores, assim como os seus avôs e o seu pai. Segundo ele,

anteriormente os pescadores só tinham o fundo rural, e atualmente ainda possuem

alguns benefícios, mas que não são necessários para garantir o reconhecimento do

pescador e da pescadora artesanal.

181

José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 11.01.2010.

Page 96: Fabiana Andrade

O pescador não é uma pessoa reconhecida, a pessoa que trabalha em uma

firma é reconhecida por muitos órgãos... é sindicato. E nos pescadores

temos sindicato? Temos malmente a Colônia. Então, se temos algum

problema para resolver ou nos temos conhecimento ou não temos porque a

Colônia só resolve os problemas da área dela. Então é difícil pra gente que

somos pescadores. 182

Para o pescador José Carlos a Colônia não assume a função de Sindicato para

lutar pela defesa dos direitos individuais e coletivos do grupo. Portanto, o grupo é uma

categoria que não possui a mobilização necessária para lutar pelos interesses do

pescador que sobrevive da pesca mercantil simples. As Colônias são entidades sem fins

lucrativos que assumem a função de “sindicato” e cooperativa”, mas nem sempre está

organizada para atender as necessidades e particularidades do grupo de trabalho. Mesmo

porque os lucros obtidos com a venda do pescado não são repartidos de forma

igualitária entre os pescadores e pescadoras. A instituição funciona mais como uma

intermediária na venda do pescado do que como uma cooperativa.

Segundo Eliúdes, pescadora e ex-secretária da Colônia, os pescadores foram

deixando de pagar regularmente a instituição, sendo que esse comportamento de

omissão junto à mesma está de alguma forma relacionada à sua atuação administrativa e

de representatividade. Mesmo porque o lucro obtido com a venda no mercado é maior

do que o preço pago pela Colônia.

Antigamente, o pescador era tão obediente, tão interessado, que eles

pagavam mesmo, a tarifa do peixe, seja o que for, ia pescar, chegava em

terra, aqui tinha uma casa, chamava “tarifa”, né, se eles pescavam no rio

de noite, e chegavam lá, pesavam o peixinho deles, ficavam lá, para no

outro dia ele pegar aquele peixe, pagava a tarifa dele lá. 183

A pescadora Cica aprendeu a pescar com os seus pais e vive da pesca, compra e

venda de peixes e mariscos. A sua principal atividade está relacionada ao

beneficiamento do produto, porque compra o peixe e marisco para vender ao mercado.

As mulheres passam a fazer parte dos ambientes políticos e disputam o poder entre os

homens até então os que se destacavam nesses espaços. As políticas públicas não são

concernentes à igualdade entre os gêneros, porque parte de um ideal de pesca

majoritariamente masculino. Nesse trabalho entendo como políticas públicas as

182

Idem, 2010. 183

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.

Page 97: Fabiana Andrade

diretrizes elaboradas que indicam como as instituições devem operar em função do

alcance do bem público.184

As mulheres desenvolvem atividades diversificadas no setor e o seu trabalho é

proporcional ao desenvolvido pelos homens. Entretanto, os benefícios e o

reconhecimento da mulher enquanto “pescadora” não é percebido da mesma forma. O

pensamento jurídico é construtivo de realidades locais e não um mero reflexo dessas

realidades. Porque a normativa jurídica do mundo não é simplesmente um conjunto de

normas, regulamentos, princípios e valores limitados, que geram tudo o que tem a ver

com o direito, mas parte de uma maneira específica de olhar a realidade.185

As políticas

públicas voltadas para as pescadoras e pescadores artesanais, ainda estão imbricadas de

uma concepção misógina em relação ao trabalho da pesca.

184

Maria de Fátima Massena de Melo. Políticas Públicas entre pescadores artesanais: invisibilidade do

trabalho produtivo e reprodutivo, Fazendo Gênero 8- Corpo, Poder e Violência, 2008. Disponível em:

www.fazendogenero.ufsc.br 185

Clifford Gerrtz. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 10 ed. Petrópolis, R.j:

Vozes, 2008.

Page 98: Fabiana Andrade

III CAPÍTULO

A PESCADORA ARTESANAL E A NATUREZA

Antigamente, você via, você ia pescar, ou você tava na

beira do rio, no fundo da sua casa, você via o siri,

camarão, e hoje a gente não tem nada, nada. Para você

ver um siri na beira do rio, chegando assim, é muito

difícil, muito difícil. Com o tempo aí a gente comenta,

pescar camarão para vender era muito bom, era bom.

Dulciene Costa Santos

Page 99: Fabiana Andrade

As Pescadoras e a Natureza

Os problemas ambientais afetam de forma direta as pescadoras e pescadores

artesanais que sobrevivem dos recursos oferecidos pela natureza. Para as pescadoras, a

natureza torna-se compreensível através do víeis de suas representações culturais e

também de seus aspectos físicos e biológicos. A proximidade que mantêm com o meio

natural nos permite pensar que a relação e o significado que o meio representa para os

grupos de pesca é bastante diferenciado do que é concebido pelo modelo capitalista de

exploração. A partir dos recursos que, muitas vezes, são retirados da própria natureza

eles controlam a quantidade de peixes e mariscos que precisam capturar. Tanto as

mulheres como os homens possuem intrínsecos meios que ajudam na preservação do

meio natural.

O processo de expansão da cidade de Ilhéus e destruição dos manguezais186

,

principais berçários, demonstra que a relação do homem com a natureza têm sido algo

nocivo e desarmonizado. O homem necessita transformar as riquezas naturais através do

seu trabalho para sobreviver, mas esses mecanismos têm levado à exploração excessiva

desses recursos. As mulheres que praticam a pesca em Ilhéus deslocam-se nos rios com

seus barcos ou de canoas para pegar o siri ou peixe, para mergulhar e catar a ostra no

manguezal e na coroa capturam diversos tipos de mariscos.

Os lugares em que trabalham são sempre rotativos, o que contribui para garantir

a sustentabilidade das espécies. As construções dos significados em torno dos elementos

naturais nas suas atividades cotidianas revelam as complexidades dos seus costumes e

símbolos que são criados para tratar a natureza. Esse conhecimento, herança dos seus

familiares, vem acompanhado de diversas maneiras de como tratar a natureza.

O espaço natural é um local em que os pescadores artesanais conhecem e

delimitam limites de busca de extração de mariscos e também consiste em um espaço

social e de domínios compartilhados pelos sexos, feminino e masculino. As pescadoras

artesanais fazem parte de uma disciplina de trabalho voltado para a relação direta com a

natureza, por isso os valores de uso e troca possuem uma conotação diferenciada para as

186

FIDELMAN no seu trabalho: Impactos Ambientais: manguezais da zona urbana de Ilhéus (Bahia,

Brasil). In: CONGRESSO LATINO AMERICANO SOBRE CIÊNCIAS DEL MAR. Anais, Trujillo:

Colacemar, Peru, 1999, p. 843-844. Os manguezais do município ocupam uma área de aproximadamente

1274 ha. São formados por espécies do gênero Rhizahora, Avicennia e Lagunculária. As áreas mais

representativas estão na zona urbana do município e ao longo das margens e ilhas da porção estuarina dos

rios Cachoeira, Santana, Fundão e Almada.

Page 100: Fabiana Andrade

comunidades de pesca. As consequências das ações de exploração sobre o meio têm

demonstrado que os valores de uso e troca superaram o de necessidade. Na prática da

pesca artesanal, muitas vezes a proximidade e equilíbrio com o meio denota uma

necessidade de cuidado e sustentabilidade das riquezas naturais.

A Etnobiologia187

preconiza que os pescadores artesanais de águas marinhas

conseguem distinguir e reconhecer facilmente algumas espécies de animais, devido à

prática do manejo, do saber lidar com essas espécies. Essas táticas surgem nos seus

“modos de fazer” mesmo de forma indireta, e envolvem mitos, crenças, normas e tabus

culturais que contribuem para o equilíbrio do ecossistema marinho. Nas entrevistas as

pescadoras em Ilhéus comentam a respeito dos poluentes que são jogados nos rios e no

mar pelo polo industrial do município, ressaltando que precisam percorrer lugares cada

vez mais distantes para realizarem as suas atividades e salientam que a quantidade de

pessoas que trabalham no mangues e rios é cada vez maior.

Você sabe até onde nós vamos pescar? Até a rodoviária, até a ponte do

Teotônio Vilela. Teve um dia que a maré estava tão cheia e o barco virou,

foi muita gente olhando, eu não sabia nadar, nesse dia eu aprendi. Por

Deus eu te juro. Foi Deus mesmo! Quando cai, não sabia remar, eu não

sabia nada.188

A pescadora Valdecir, mãe solteira de sete crianças, sempre pescou com a sua

mãe Omerita, 71 anos. Ela ressalta que hoje costumam remar para lugares cada vez mais

distantes para capturar o siri, o que torna a sua profissão muito mais arriscada. As

pescadoras do São Miguel dizem nas suas narrativas que a morte do Rio Almada tem

significado a destruição do seu modo de vida.

D. Zó189

, critica a falta de atuação das políticas públicas na sua comunidade. O

bairro não tem rede de esgoto, e apenas quem tem foça nas suas casas possuem a

alternativa para jogar os dejetos, mas quem não tem joga no rio. Essa poluição ocasiona

a morte de muitos peixes e fica inviável a pesca no local. Para a pescadora Zó, também

moradora da comunidade do São Miguel, muitos que pescam têm consciência que não

podem pegar o marisco pequeno, mas fazem isso por uma questão de necessidade

porque “precisam comer, vender e vivem da pesca”.

187

Estudo das formas como os diversos povos se relacionam com à biodiversidade. 188

Valdecir Maria de Jesus (53 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010. 189

Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.

Page 101: Fabiana Andrade

Do siri que não tem o defeso, mas poderia ter o defeso do siri. Tem o siri

mole, tem o tempo do siri miúdo e tem o tempo do siri ovado. Isso deveria

ter o defeso, mas aqui em Ilhéus não chegou. Como tem o defeso do

camarão, tem o defeso do robalo. Agora do siri não tem, poderia ter. Isso é

uma coisa errada.190

Nas suas lembranças estão marcadas o tempo da bonança em que viviam a partir

do que o meio oferecia. Durante o inverno as pescadoras e pescadores artesanais

conseguiam pescar várias espécies de peixes, como o robalo, a carapeba, o pitu, a

pilastra e o bagre de água doce, mas com o assoreamento e a poluição do rio a atividade

pesqueira foi prejudicada. Durante o inverno a pesca acontecia no rio porque no mar

tornava-se muito perigosa em virtude das fortes ventanias. Essa divisão possibilitava

manter a sua família em todas as estações do ano, como também que as espécies

tivessem um período maior para a sua reprodução. O seu próprio modo de vida garantia

uma sustentabilidade do meio. Entretanto, o seu trabalho tornou-se “migratório”, pois

ressaltaram em seus depoimentos que precisaram transportar as suas canoas em

caminhões para realizarem a pesca nas cidades vizinhas.

A gente faz o seguinte, a gente coloca um material no caminhão e se

desloca para Canavieiras, para Itacaré, para Una porque aqui mesmo nessa

área da gente aqui, a gente não está mais conseguindo trabalhar sossegado.

Inclusive essa pesca de arrasto motorizada tem cidades aqui no Brasil que

é proibida e onde ela foi inventada na Ásia tem lugares que devastou

tanto, tem certos tipos de devastação que não ocorre espécie nenhuma

nesse local que eles atuavam. 191

Nas narrativas, as pescadoras ressaltaram que durante a infância não tinham

barco motorizado, nem a rede que arrasta camarão e faz o peixe se afugentar. Esses

barcos destroem e varrem o fundo dos mares com os seus equipamentos destruindo os

grandes berçários marinhos, como também retiram as armadilhas de pesca colocadas

pelas pescadoras e pescadores artesanais em lugares próximos da costa. O mau uso dos

instrumentos de pesca em larga escala tem descaracterizado o modo de vida de pessoas

que também exploram os recursos naturais em baixo escala. Eles expõem que a pesca de

verão era suficiente para sustentar a sua família no inverno.

Todas as espécies foram extintas, não existe mais camarão, não existe

mais peixe, não existe mais nada naquele local. Então nos fomos

prejudicados está entendendo, porque naquela tempo era muita fartura era

190

Idem, 2010. 191

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Page 102: Fabiana Andrade

um tempo bom, que verão para gente era sinônimo de passar o inverno

tranqüilo, trabalhava três quatro meses no verão e tinha condições de

suportar o inverno, ta entendendo, com a ajuda que a gente achava na

beira do rio. 192

O cuidado com a natureza é apresentado em suas narrativas como algo

primordial para a captura do marisco assim como para a sua preservação. Para

conseguirem uma boa quantidade de mariscos ou peixes a pescadora precisa interagir

com o meio e conhecer as suas táticas, porque cada espécie possui as suas formas

específicas de serem pescadas. Quando descrevem as suas atividades de pescaria, elas

transportam as suas memórias para o seu ambiente de trabalho e ensinam com as suas

lembranças o quanto a arte da pesca exige um conhecimento minucioso do lugar e das

práticas.

Eu gostava muito de pescar era o robalo de espera. A gente encosta a

canoa, aí quando chegar em um lugar onde tem um remão fia, aquela água

ali parada, aí a gente encosta a canoa, pega o que está dentro da canoa e

joga do lado de fora. Aí você isca o anzol e joga! Assim que você joga se

o robalo tiver por ali ele vem logo! Ali ele pega no anzol, aí ele já vem na

flor da pele ai a gente dá linha para ele no mesmo instante a gente arrasta,

quando ele cansa. Se ele for grande você tem que ter uma marretinha para

jogar ele dentro da canoa. 193

As pescadoras falaram a partir das suas vivências como o meio é tratado por

aqueles que cuidam dele e enfatizaram que a atividade pesqueira está cada vez mais

difícil em conseqüência das ações de exploração sem a devida preocupação com os

recursos naturais extraídos do próprio lugar onde moram.

Hoje em dia você vai para o mangue...vai e não tira aratu que não ta tendo

porque é o povo tirando vara...é o povo tirando madeira...escorraçando os

mariscos tudo...é...arrebenta com os mangues...é mata os mangues...aí

pronto fica difícil.194

O aratu é um marisco que fica nas flechas dos paus de mangue, portanto, como

explica a pescadora se as árvores de mangue são destruídas esses mariscos não têm

como sobreviver no manguezal. Para elas, o valor de compra do pescado aumentou com

o interesse do mercado pelo seu produto, mas também a quantidade de marisco vem

diminuindo em virtude da degradação do meio ambiente.

192

Idem. 193 Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 194

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.

Page 103: Fabiana Andrade

O bairro Teotônio Vilela possui cerca de trinta mil habitantes195

, onde parcela

considerável da sua população sobrevive do trabalho da pescaria. As pescadoras

entrevistadas enfatizaram que têm aumentado o número de mulheres e homens

pescando. Nas entrevistas as pescadoras também disseram que o pescado é capturado de

acordo com a época propícia para a sua captura, entretanto, as pessoas que não possuem

essa informação acabam capturando o marisco no momento em que eles estão

desovando. Segundo as pescadoras, a falta de experiência desses pescadores recentes

tem prejudicado a reprodução das espécies dos mariscos. Ao passo que as pescadoras

entrevistadas da comunidade do São Miguel também colocam que o rio não comporta a

quantidade de pessoas que estão realizando a atividade da pesca.

Devido à poluição do rio e também é muita gente pescando, o rio é

pequeno demais para tanta gente, aí não dá tempo desovar e crescer. Aí

muita gente pega os pequenos, aí não dá tempo dos pequenos

reproduzirem, ai vai diminuindo a quantidade. 196

Os mariscos como os caranguejos estão morrendo no município em virtude da

quantidade de lixo industrial que é jogado nesses ambientes. A pescadora Tertulina da

comunidade do Teotônio Vilela colocou em entrevista que houve o tempo do

“caranguejo de andada” em que saiam para realizar a sua cata com um saco e de bota

para o mangue dizendo: “–Vamos catar caranguejo?”, mas essa experiência os seus

filhos e netos não podem vivenciar mais porque “o caranguejo de andada acabou”, ou

seja, não existe com a fartura que existiu na sua época.197

A pescadora D. Júlia, disse

que só via “os caranguejos acamados, acamados, parecendo sapo!”, enfatizou ainda que

a morte dos caranguejos teria sido por causa de um derramamento de Petróleo que

aconteceu no Rio do Engenho.198

As mulheres apresentaram também preocupação com a pesca predatória e

inconsciente por parte das pessoas que ingressam na atividade, mas que não possuem os

mesmos costumes que elas. Segundo as pescadoras, muitas pessoas pegam o animal no

seu período de desova, o que ocasiona um grande malefício para a reprodução da

espécie. A proximidade das pescadoras artesanais com a natureza permite criar

mecanismos de defesa intrínsecos em seus costumes e na forma de lidar com os

195

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, Ilhéus, Bahia, 2002. 196

Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 197

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.

198

O povoado Rio de Engenho está localizado 20 km ao sul de Ilhéus. O vilarejo é banhando pelas águas

do Rio Santana.

Page 104: Fabiana Andrade

recursos naturais. A natureza é pensada, trabalhada e transformada pelo homem que

vive em sociedade. Para as pescadoras e pescadores, “tudo depende da natureza” e se

ela não é tratada a relação natural deixa de acontecer. Então, se o homem passa a

possuir outra concepção do que seria essa relação talvez tudo possa ser mudado,

transformado e preservado.

Os seus depoimentos demonstram a consciência em relação à ação do homem

sobre o meio, o que poderia ser feito para melhorar essa situação e como as medidas

implantadas pelo governo acabam sendo fonte de imposição, e muitas vezes,

resistências as suas ações. Por possuírem uma relação mais próxima com o meio

ambiente, as pescadoras e pescadores artesanais desenvolvem uma relação de uso e

troca diferente das pessoas que estão longe desse espaço, e influenciada

psicologicamente por outros valores.

Traditional economic valuation, perhaps the best-understood case of

quantitative valuation, begins by assuming that the source of values is the

felt preferences of individuals. Felt preferences are psychological states that

determine, at least on the average, individual behavior in the marketplace.

An entity has “demand value” if it can satisfy such a felt preference. The

market determines what the actual demand value of an entity is. Does

biodiversity get its value in this way? Certainly, those of us who are deeply

committed to biodiversity conservation are willing to pay a certain amount

for it. 199

Para o autor a valorização tradicional da economia assume que a origem do valor

perpassa por preferências individuais. As desastrosas preferências são percebidas como

estados psicológicos que determinam a conduta no lugar social. O mercado determina

qual a demanda atual de valor nisso. A falta de acesso imediato à "natureza" pode afetar

os nossos estados psicológicos, incluindo os nossos estados emocionais, de forma que

nós não compreendemos ainda a importância cientifica de cada lugar.

As pescadoras e pescadores artesanais extraiam da própria natureza os recursos

necessários para a prática da pesca artesanal. O pescador José Wellington recorda que as

Jangadas eram feitas na própria cidade a partir da retirada da árvore da mata. Segundo

ele “entrava aí, na mata, e tirava um pau, que servisse para fazer jangada, para a canoa,

e fazia assim, um rapaz ali construía." No Teotônio Vilela as mulheres costumam retirar

dos paus do mangue um tipo de marisco chamado de “almofadinha” para a pesca do

199

Sahotra Sarkar. Biodiversity and Environmental Philosophy: Introduction. New York: Cambridge

University Press, 2005, p.77.

Page 105: Fabiana Andrade

aratu. A foto abaixo demonstra a pescadora Chica pegando a isca antes de iniciar a

pesca do marisco.

FIGURA 11: Pescadora pegando a isca

(Fotografia de pesquisa, 2004)

Outra isca bastante utilizada pelas pescadoras é a chamada “mututuca”, é uma

espécie que fica enterrada na areia e tem a aparência de uma cobra. Algumas pescadoras

consomem a espécie, outras utilizam apenas com isca na pesca do aratu, siri, e de

peixes. Durante a cata do aratu a pescadora pode encontrar a tal isca e precisam

empreender uma força muito grande para retirá-la da areia.

Page 106: Fabiana Andrade

Foto 12: Pescadora pegando a mututuca

(Fotografia de pesquisa, 2009).

O processo de devastação das áreas de mangue tem feito com que as pescadoras

se encaminhem para áreas cada vez mais distantes para realizar a cata do produto. Para a

pescadora Helena, “o marisco está acabando, porque antigamente tinham o caranguejo,

a ostra e hoje à gente anda muito para poder achar”. Dona Chica, de 48 anos e D. Nita,

de 72, saem do Teotônio Vilela e se deslocam até o bairro Iguape, fazendo um percurso

a pé de aproximadamente seis quilômetros em busca de marisco. Elas encontram cada

vez mais dificuldades para trabalhar, porque a quantidade de mariscos e peixes já não é

a mesma devido à quantidade de pessoas exercendo a atividade sem consciência, e em

conseqüência da poluição dos rios, mares e manguezais que vem destruindo as espécies.

Durante a entrevista as pescadoras e pescadores ressaltaram a sua preocupação

com o meio ambiente. Na comunidade do São Miguel, as grandes embarcações que

ultrapassam o limite de terra têm destruído as artes de pesca e varrido o fundo do mar

com os seus motores e a utilização de redes.

A pesca de barco a motor representou para a pescadora artesanal um empecilho

porque os barcos costumam destruir as suas redes e armadilhas de pesca deixadas no

mar. Eles enfrentam as intempéries do meio ambiente e concorrem com as novas formas

tecnológicas encontradas pelo homem para extrair os peixes e mariscos. A pesca de

arrastão é uma das mais prejudiciais para o meio. Mesmo porque, a área onde pescam é

berçário, e porque no rio os peixes desovam para depois encaminharem-se para o mar.

As pescadoras e os pescadores demonstram um conhecimento aprimorado das

Page 107: Fabiana Andrade

consequências que essas ações corrosivas podem causar e apresentam com riquezas de

detalhes como acontece esse processo.

Eles não respeitam o limite da área que eles devem pescar e o material que

eles pescam também tem áreas de pesca aí que eles já devastaram, é a pesca

de arrasto de balão. Pesca de arrasto motorizado, pesca de arrasto

motorizado. Então esse tipo de pesca aí, ele destrói com o sistema que a

gente tem. É uma coisa que tem no fundo do mar que ali serve de alimento

para o pescado, tanto para o camarão, o peixe que ta criando ali, como o

peixe que vem desovar aqui dentro. Então quando ele passa com aquelas

placas, aquela rede, ele tira todo o sedimento do fundo do mar, tirando,

aqueles sedimentos são levados pelas correntes marítimas, eles não ficam ali

naquele local, eles só ficam ali, fica tipo...uma plantação, tirou a plantação

fica só o chão limpo, aí se você não conseguir adubar ali, isso é feito pela

natureza mesmo, tá entendendo? 200

As comunidades artesanais de pesca possuem um conhecimento da natureza que

é adquirido a partir da experiência. Elas revelam um complexo sistema cultural,

engendrado por grande sabedoria das condições naturais da vida e integrado à

natureza.201

O pescador e a pescadora artesanal possuem um modo próprio para explicar

o processo de degradação no meio natural.

Essa adubação, de fundo de mar, dessa localidade, é feita pela natureza, são

materiais orgânicos, digamos, em decomposição, que é encontrada dentro do

rio mesmo, geralmente em época de chuva o rio enche, elas se depositam no

fundo dessa baía aí, e aí com o passar de um ano, um ano e pouco, isso aí,

esses sedimentos vão servir de alimentos para o pescado. 202

Para a pescadora Zó, os chamados “barcos de arrastão” tem significado o fim da

pesca de Calão, porque o pescador joga a rede no mar e não consegue pegar peixes. Para

D. Eliúdes, ficam as lembranças da pescaria do tempo de infância, onde a pesca de calão

ainda era movida pela solidariedade e compadrio. Os pescadores de Calão garantiam

também a alimentação da comunidade ao distribuir peixes e mariscos, mas esse costume

não é tão comum como era antigamente. A fartura do marisco também era a garantia de

uma boa vendagem para a pescadora e o pescador que vendia o seu próprio produto sem

precisar se submeter à figura do atravessador, que compra do pescador para vender o

seu produto para o mercado a partir de um preço estipulado pelo mesmo. A pescadora

ressaltou o seguinte:

200

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

201

Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação: Novos rumos para a proteção da natureza nos

trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004, p 109. 202

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Page 108: Fabiana Andrade

Mas foi certa época porque a pescaria agora, meu filho, não tá mais dando

nada não! No meu tempo de infância, o pescador não fazia nem questão,

porque enchia-se uma canoa, de peixe, ia para o porto de Ilhéus, com a

canoa cheia, vender lá no porto. Hoje em dia, a pesca não dá mais para

fazer isso. Porque devido também ter muito barco motorizado, arrasta

camarão, o peixe se afugenta. Não tem mais aquela facilidade como eu me

criei aqui. 203

As diversas medidas implantadas pela administração pública para sanar os

problemas ambientais são apenas paliativos para contornar a difícil situação. Através

dos estudos das atividades artesanais percebemos que, muitas vezes, nas comunidades

de pesca a simbologia dá lugar para o conhecimento científico que impõe regras e

modelos que geralmente não são eficazes e não fazem parte dos seus costumes e dos

valores vivenciados.

A pescaria hoje, pra calão, ela num tá dando mais, normalmente, pra

comer, porque não pega a quantidade mais que era, antigamente pegava

canoa de peixe camina, peixe grande, quando dava o lanço, para quem

tinha ali, o cardume tava dando, aí aquele lanço às vezes não dava nem

pra chegar em terra, que rompia a rede com tanto peixe, ali às vezes eles

não faziam nem questão, eles davam peixe grande, assim, ó, o peixe que

deu. 204

A pescadora com muito saudosismo lembra-se da variedade de peixes que

conseguiam na pesca de rede e de Calão, da grande fartura que rompia a linha da rede.

Os pescadores chegavam a distribuir até mesmo os peixes maiores que conseguiam

pegar. Ela conta com entusiasmo a descrição da pesca de Calão e como essa atividade

pesqueira garantiu a manutenção de muitas famílias da sua Comunidade.

A pesca de Calão era feita através do remo e sempre tivera a presença de um

mestre para guiar o local onde deveria ser lançada a rede do mar. Sendo que um grupo

esperava em terra, enquanto outro remava para longe em busca de um local que

rendesse uma boa pescaria. No seu depoimento, ela descreve o momento como se

estivesse visualizando mais uma jogada do Calão no mar. Portanto, vejamos como ela

descreveu a atividade fazendo uma memória fotográfica do momento:

Eles remavam assim, um lá e outro cá, assim, né... seis, três de um lado

três de outro. Um saltador, o no remo, o que chamam o mestre, vai com o

remo sozinho. A canoa tem o pau, que a gente chama [vogue], e aí tem a

corda, tinha uma coisa assim, de sola, ali que botavam o remo para que

203

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.

204 Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.

Page 109: Fabiana Andrade

fizessem isso, então deixa eu ver... remar, era assim, a tração, era a

tração...Aí, fazia o jogo, fazia assim, chama o lanço, bota o saltador,

segura a corda, que vai caindo sozinha. Aí eles vão jogando! Aí, quando

chega cá, eles dividem, metade para lá, metade para cá, e eles puxam, quer

dizer, o espaço da rede é onde vem uma malha é bem miudinha, para que

o peixe não saia. 205

O pescador José Rodrigues, da comunidade do São Miguel, enfatizou que já

pescou muito de Calão com os seus irmãos e que a atividade praticada no verão era,

muitas vezes, suficiente para manter a sua família na época do inverno pela quantidade

de peixes que conseguiam capturar. A pesca industrial e a degradação do meio

provocaram a instabilidade no modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais. Ele

disse ainda que: “ser pescador é ter amor à natureza, é continuar aquilo que meu pai fez

de bom, para mim e os meus irmãos”. Ou seja, o cuidado com a natureza está em

guardar os costumes, e as maneiras de fazer e viver deixado como herança pelos seus

pais.

Cada lugar tem um valor intrínseco ao seu modo de viver pela proximidade que

mantêm com o meio natural. Assim como os recursos naturais entra em extinção o seu

trabalho que também é parte do meio natural que está em declínio. A pesca de Calão é

tida pelas pescadoras e pescadores artesanais como uma atividade que está fadada a

desaparecer. Em virtude principalmente dos barcos industriais que têm retirado toda a

produtividade da pesca de Calão, diferente da atividade artesanal e manual que não

causa tanto impacto ao meio ambiente, a exemplo da pesca de arrastão. Para o pescador

Zé Neguinho206

, “o homem não pode chegar a cavar a areia, mas o motor cava”. Ele

enfatiza ainda que a potencialidade da pesca do homem não é a mesma do motor,

porque este trabalha “de dia e de noite” e o homem precisa descansar, assim como “o

mar precisa descansar”.

Nas memórias das pescadoras está presente o tempo em que pescavam o

camarão de todas as espécies, era o “branco, o vergê, o de sete barbas” e que

conseguiam de dez a quinze sextos só de camarão. Mas diversas ações acometidas,

muitas vezes, pela própria sociedade, pelo homem “forasteiro” e grandes empresas207

que visam apenas o lucro e não possuem medidas para combater o impacto ambiental,

205

Idem. 206

Entrevista realizada com Reinado Oliveira em 2008 pelo prof. da UESC Luiz Blume. O pescador

Reinaldo Oliveira, conhecido como Zé Neguinho, é presidente da Colônia de Pesca Z-34 desde 1999. 207

As pescadoras e pescadores nos seus depoimentos denunciam as ações de derramamento de dejetos

pela Petrobras no litoral ilheense, como também das fábricas que instalam-se no município e utilizam as

água do mar ou do rio para jogar o seu lixo.

Page 110: Fabiana Andrade

essas ações gerais são apresentadas pelo pescador como algo que foge da sua

responsabilidade.

Segundo o pescador Zé Neguinho208

, o “crescimento da cidade” contribuiu para

provocar a destruição da natureza. Em virtude, das invasões e do aterramento aos

manguezais, os esgotos na beira dos rios e o lixo que desce dos morros da cidade para

os rios e o mar. A fartura que existia já não conseguem obter mais. Para ele: “Hoje tá aí,

nós puxando o lanço e um pouquinho nós leva, pois foi destruído o que era nosso. E

tudo causado por esses impactos ambientais que realmente se deixaram criar”. O seu

depoimento representa o sentido de pertencimento ao lugar e a noção de que forma

pessoas alheias aos seus costumes provocaram a situação de desgaste na natureza.

Ele coloca ainda, que “o rio é o berçário onde o pescado vem desovar, mas

“muita gente não conhece isso”. Os pescadores e pescadoras aprendem com o meio e

são grandes observadores dele. Ficou registrado também o tempo em que presenciaram

o siri caminhando pela beira do rio. Elas apresentam que houve a redução e extinção de

várias espécies. As pescadoras colocam, muitas vezes, como se já esperassem a situação

em virtude do próprio modo de tratar o ambiente pelas “outras” pessoas que ocuparam o

espaço e pelas diversas ações contrárias à exploração sustentável do meio.

Caranguejo já acabou, tem muito tempo que o mangue foi destruído, pelas

pessoas que vêm de fora. Principalmente com invasão. Também por causa

da destruição do, que o porto causou, muita gente correu, da beira da praia

para a beira do rio, e aí, foi destruindo tudo. 209

A construção do Porto do Malhado na cidade em Ilhéus na década de 1960

acentuou o processo de erosão marítima no bairro São Miguel. A instalação do Porto na

Enseada das Trincheiras no Malhado provocou o bloqueio da divisa litorânea de

sedimentos, que ficavam retidos ao sul do Porto, estendendo a praia da Avenida Soares

Lopes e dando origem a praia do Cristo. Ao mesmo tempo, o trecho norte do Porto

experimentou a partir desse período um drástico recuo da linha da costa, provocado pela

erosão costeira junto aos bairros São Miguel e São Domingos. 210

208

Idem,1999. 209

Dulciene Costa Santos. (42 anos). Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada

na sua residência no dia 09.01.2009. 210

Apoluceno. D.M. A influência do Porto de Ilhéus-BA nos processos de acresção/erosão desenvolvidos

após sua instalação. Dissertação de Mestrado em Geologia. Instituto de Geociências, Universidade

Federal da Bahia, Salvador, 1998.

Page 111: Fabiana Andrade

Essa situação gerou o desconforto para os habitantes do lugar, em virtude disso,

muitas famílias retiraram as suas casas da beira do mar, e deslocaram-se para a beira do

rio. Isso ocasionou o aumento da poluição do rio, em virtude do mesmo servir de esgoto

para as famílias que residem no local. Além dos dejetos industriais e do lixo residencial

que, muitas vezes, são despejados diretamente no local.

Na verdade você está pescando e pode receber uma bolsa, um a sacola de

lixo na cabeça, porque as pessoas que moram nas mediações do rio

Almada joga o lixo todo dentro do rio, você pode ir na beira desse rio aí,

se você quiser um dia você vem, que eu vou te levar para você ver o que é

lixo. O caranguejo sumiu nesse mangue não tem, é sacola, é isopor, é mala

velha, é tudo, é geladeira velha, é tudo que você pode imaginar que você

encontra no lixo, você encontra nessas margens. Então os siris morrem por

causa do lixo, essa fábrica que tem aí despeja água escura. Então de uns

tempos pra cá, a pescaria ficou horrível. Então você pesca, mas você tem

que fazer outra coisa que a pescaria não dá para você sobreviver. 211

Em virtude da construção do Porto do Malhado o processo de erosão foi

acentuado e muitas famílias perderam as suas casas durante esse processo. Os jornais só

começaram fazer referência à erosão e destruição das barracas de praias e casas das

pescadoras e pescadores do local a partir da década de 1989. Mas as notícias do referido

ano apresentava que essa situação vinha de anos anteriores e que a Petrobrás sabia da

inviabilidade da construção do Porto na cidade.212

Os moradores com receio da destruição erosiva resolveram afixar pneus e sacos

de areia para amenizar a erosão costeira e impedir que a água do mar invadisse as suas

casas. Para amenizar essa situação a Prefeitura da cidade construiu dois espigões para

controlar o avanço das águas do mar, mas para a comunidade local isso não foi

suficiente para aplacar a ação da natureza. O processo de assoreamento do rio Almada

no São Miguel também vêm desorganizando o modo de vida das pescadoras e

pescadores artesanais, como o aterramento do manguezal, o aterramento da boca da

barra e as bombas de água construídas para puxar água de Ilhéus para Itabuna.

Hoje não dá mais o peixe com a fartura como dava, no inverno, quer dizer,

que no mar, a gente não podia pescar porque, no inverno sempre era mês

de temporal e para gente que é artesanal sair de canoa, é muito difícil,

porque o mar é muito perigoso, e a gente trabalhava mais na parte do rio,

hoje a gente não tem mais condições, que o rio ta todo assoreado, o rio tá,

o local que era três, quatro metros de fundura, cinco metros de fundura,

211

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.

212 Amon Chystian Teixeira de Oliveira. Caracterização do Processo Erosivo na praia do São Miguel,

Monografia de Graduação de Geografia, UESC, Ilhéus, 2006.

Page 112: Fabiana Andrade

hoje chega a um metro, um metro de água, quer dizer que não tem mais

aquele local para os peixes também, para eles andar, para eles procriar. 213

A pescadora Flávia apresenta de forma bastante detalhada e enfática as causas

da degradação do rio. Para ela, está se tornando cada vez mais difícil exercer a atividade

pesqueira e diz ainda que, “sai quatro horas da manhã debaixo de sol e chuva, pega

meio quilo, ou pega dois ou três robalos pequenininhos que não dá para fazer o almoço

só para vender”.214

A relação de uso e troca do pescado não é mais a mesma, o que antes

era utilizado principalmente para o consumo familiar é vendido para gerar renda para a

família, em virtude das suas necessidades e do valor comercial que atingiu o produto.

Nos depoimentos das pescadoras e pescadores artesanais do São Miguel está a

preocupação com a o rio Almada que já não é mais o mesmo, pois a sua profundidade

vem diminuindo e a margem do rio tem servido de moradia. Já os manguezais do

Teotônio Vilela foram tomados, em grande parte, pelos aterros. O Teotônio Vilela teve

os mangues invadidos por muitas famílias pobres que se estabeleceram no local para

sobreviver. Entretanto, o que as notícias demonstram que muitas dos aterros aos

manguezais aconteceram com a participação de pessoas ligadas ao poder público.

Técnicos do centro de políticas ambientais (CRA) denunciaram esta

semana que boa parte dos mangues de Ilhéus está sendo medido, aterrado

e loteado com a participação de servidores públicos e o uso irregular da

máquina administrativa...O comércio clandestino dos mangues de Ilhéus,

ainda segundo as denúncias é fácil e altamente rentável. O topógrafo mede

a área, que depois é desmatada e aterrada. Já prontos para serem vendidos

os lotes são oferecidos para pessoas de baixa renda que não tem outra

opção de moradia e resolvem compra-los a preços mais baratos. 215

Entretanto, nos últimos anos grande parte dos manguezais em Ilhéus,

particularmente na comunidade do Teotônio Vilela, foi destruída pela ação não só de

pessoas que não tinham onde morar, mas também pela ação “consciente” de pessoas que

não possuem o valor de uso e interação com o meio ambiente.

As pescadoras e pescadores das comunidades lembram com saudade do seu

tempo de infância, e expõem as diversas modificações no seu espaço tanto físico, como

dos costumes e práticas da sua comunidade. Nas suas lembranças estão que a jangada

na beira do mar e do rio deu lugar ás canoas, aos barcos de remo e barcos a motor.

213

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009. 214

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.

215

Mangues estão sendo Loteados. Diário da Tarde, Ilhéus, 22 e 23 de abril de 1989.

Page 113: Fabiana Andrade

Como também das festas do São Miguel, da festa de São Pedro e do tempo em que as

pescadoras e os pescadores conseguiam a rede cheia de peixes já na primeira armada.

Nas coroas, local de cata dos mariscos, a facilidade de pegar o marisco e a

distância entre as pessoas que pescavam, deu lugar á superlotação de pessoas e a uma

quantidade reduzida da produção. O mar deixou de ser temido pelas fortes ventanias e

pelos deuses que o habitavam, agora as pescadoras e pescadores ficam receosos com a

forma como avança as suas águas, em virtude do processo de erosão. Os seus costumes

e modos de vida acompanham a “destruição” do espaço de terra sendo invadido pelas

águas que garantiram a sua sobrevivência.

Segundo as pescadoras além dos riscos da maré, a “violência urbana” tem

dificultado as suas idas para o mangue e para a maré. As árvores do mangue deixaram

de esconder apenas as apreciadas iscas e os diversos tipos de mariscos para acomodar

homens armados, que disputam o espaço de trabalho das pescadoras, como também as

suas canoas e barcos tornaram-se alvos de roubos constantes.

Para a pescadora Júlia de Castro216

da comunidade Teotônio Vilela, “de tudo o

que existia na maré ela gostava de pescar” e ficava fascinada quando conseguia capturar

e visualizar a sua rede cheia de camarão. Segundo Tertulina217

, a sua companheira de

pescaria, em outros tempos era fácil “arrumar dez a quinze baldes de sururu, mas hoje

está difícil”. Enfatiza ainda que no caso da ostra “nem piquititita tem mais, é o maior

trabalho para arrumar um litro de ostra”.218

Em virtude disso, disseram que incentivam

os seus filhos e filhas a estudarem e aprender outra profissão, porque já não está dando

para viver de tudo que a “maré tem para oferecer”.

A escassez de mariscos e peixes é anunciada nos seus depoimentos, a ponto de

pescador José Raimundo219

dizer que a “pesca artesanal é uma atividade que está

ficando inviável”, pela dificuldade que está sendo para os pescadores e pescadoras

artesanais manter as suas famílias única e exclusivamente a partir desse trabalho. Eles

demonstram consciência da valorização e rentabilidade dos frutos do mar no mercado,

ao passo que ressaltam que a quantidade de pescado vem diminuindo. Conforme D.

Inês:

216

Julia Dias de Castro. Entrevista realizada no dia 12.11.2004. 217

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 218

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 219

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Page 114: Fabiana Andrade

No tempo da minha mãe quando esse rio tomava uma água, que era a água

doce, quando ele enchia e depois secava, a gente ia pescar de rede. Menina

pegava tanto camarão, de encher...um monte mesmo. Pegava aquele bocado

mais não tinha valor de nada, vendia de graça, 50 centavos, 10 centavos.

Essas coisas eram baratinhas mesmo e quase não dava nada pra gente viver

direito. Assim... bem né (risos) passava uma situação que só Deus

sabe..(risos)..vendia baratinho, mas fazer o quê? Tinha que viver daquele

jeito mesmo. (risos). Há...hoje em dia tá fraco não tá mais assim farturento

não, num dá peixe, tudo sem fartura! Agora não sei que diacho tão

colocando no rio que até os caranguejos tão morrendo! 220

Para Sahotra Sarkar, existe um valor intrínseco e extrínseco na sociedade sobre o

meio em que vivem, mas o que prevaleceu foi o extrínseco. O autor explica que a

literatura atual, muitas vezes, discute e assume que a origem do valor perpassa por

preferências individuais. As desastrosas preferências são percebidas como estados

psicológicos que determinam à conduta no lugar social. Expõe ainda, que o mercado é

quem, muitas vezes, procura determinar qual a demanda atual de valor das coisas, dos

lugares. Porém explica que a biodiversidade é similar a liberdade humana e isto é de

longe tão importante quanto o que é tratado nos espaços públicos. 221

Portanto, qualquer que seja o recurso da natureza, para aqueles que têm esse

amor, a experiência da vida do homem e da mulher que possui uma relação direta com a

natureza é presumivelmente transformadora, porque cada lugar tem um valor intrínseco

para o ser humano. Por isso, como ressaltou a pescadora Dulciene, “a pesca depende da

natureza”, ou seja, o seu trabalho, a sua vida está diretamente relacionado com o meio

em que vivem. 222

As leis naturais e a vida na maré

As pescadoras e pescadores artesanais apresentam no seu modo de vida um

cuidado com o meio que perpassa pelo valor que adquiriram na sua família, a partir da

relação que mantém com a natureza. Ao passo, que as políticas públicas possuem um

valor extrínseco e acabam criando medidas de “sustentabilidade” que interferem, muitas

vezes, nas maneiras de viver dessas comunidades. Através das reportagens encontradas

nos jornais da região, das Atas da Colônia, e dos depoimentos, vamos discutir como as

220

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 221

Sahotra Sarkar. Biodiversity and Environmental Philosophy: Introduction. New York: Cambridge

University Press, 2005. 222

Dulciene Costa Santos. (42 anos)Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Page 115: Fabiana Andrade

comunidades de pesca artesanal lidaram com as propostas e as medidas criadas pelo

Governo com o objetivo de preservar o meio ambiente.

Segundo Diegues, as comunidades tradicionais possuem métodos cognitivos que

orientam os indivíduos na sua relação com a natureza. 223

Esse conhecimento acumulado

sobre o espaço marítimo, erguido pela experiência e intuição, permite ao pescador e

pescadora preservar a natureza exercendo de forma sustentável a sua profissão. Nas

discussões epistemológicas a respeito da natureza nós temos as diversas concepções a

respeito do que seja e de como agimos e devemos agir sobre o meio.

A natureza foi pensada e discutida a princípio pelos estudiosos como algo

intocável, distante do homem que a modifica e interfere no seu espaço. O homem

deixou de se sentir parte da natureza para experimentar ser exterior a ela. Essa divisão,

também provocada pelas necessidades do mercado gerou a exploração exaustiva dos

meios. A ciência moderna construiu a ideia da dicotomia homem natureza e baseada no

enfoque antropocêntrico passou a conceber o mundo natural como objeto do

conhecimento empírico racional que podia ser dominado e controlado pelo homem.224

Para contornar essa situação, alguns teóricos apostaram na ideia da separação do

homem e da mulher de algumas áreas que deveriam ser preservadas. Nos jornais da

região nós temos documentado as propostas de ecólogos e biólogos que visavam à

criação de reservas ecológicas, e parques marinhos onde a pesca deveria ser proibida

nesses ecossistemas.

No ano de 1990, o Governo local pretendeu criar um Parque Marinho na cidade

para salvaguardar o mero canapu, espécie em extinção. Mas as pescadoras e pescadores

artesanais diante dessa situação realizaram protestos de repúdio a ação iniciada pelos

cientistas que acreditavam estar protegendo o meio ambiente. Eles denunciaram que os

maiores riscos contra o meio ambiente e a extinção da espécie estava na ação dos barcos

industriais de pesca.

“A provável criação de um parque marinho em Ilhéus, visando preservar o

mero-canapu na época de desova já começa a gerar os primeiros protestos.

Ontem, durante a sessão da Câmara Municipal, o vereador Cosme Araújo

apresentou um abaixo-assinado feito pelos pequenos pescadores do

município, com 258 assinaturas, onde eles acusam que o projeto não passa

de uma aberração política. Eles acreditam que 'não é necessário criar um

parque para proteger o mero, pois não é só o mero que habita nossas águas.

223

Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação; Novos rumos para a proteção da natureza nos

trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004. 224 Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996,

p 46.

Page 116: Fabiana Andrade

Há meros em todos os oceanos, acasalando e desovando em diversas

enseadas e baias, sem risco nenhum para extinção da sua espécie', sugerindo

que 'temos que lutar por uma Sudepe mais forte, antes que seja tarde demais

pois estes barcos que aqui chegam, já destruíram tudo em sua região de

origem, e agora devido a escassez daquelas áreas pesqueiras, vem destruir a

nossa.” 225

Os mitos, valores e normas presentes nessas culturas que regulam o acesso aos

recursos naturais, muitas vezes, são desconsideradas pelas formulações dos teóricos.

Diegues apresenta que Hardin, por exemplo, na sua teoria da “Tragédia dos Comuns”

considera a propriedade comunal como suscetível à destruição dos recursos naturais em

virtude da exploração excessiva pelos seus usuários, e não atenta para as práticas

culturais de grupos que preservam o meio ambiente. 226

Nas Atas da Colônia Z-34, estão presentes algumas discussões das pescadoras e

pescadoras do município que se referiram de forma contestatória nas reuniões a algumas

práticas que interferiam no seu modo de vida e ao mesmo tempo eram agressivas ao

meio ambiente. No registro, datado de 1981, consta a memória de uma reunião que

tinha como objetivo discutir a utilização de determinadas artes de pesca. Eles

reclamavam que a tarrafa e outros aparelhos de pesca estavam sendo usados por pessoas

“alheias à sua comunidade”, que porventura não conheciam os seus costumes.

No documento, os dirigentes da Colônia discorreram que não existia portaria da

SUDEP (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca) que proibisse a pesca de

tarrafa, portanto, a atividade era considerada legal. Porém alegaram que desde 1958,

existia um acordo firmado entre a Colônia que proibia o uso da tarrafa e de aparelhos

como: arpão, rede de andarinho, bombas e rede de batido.

No decorrer da reunião, por meio de votação, foi decidido que tais aparelhos de

pesca não podiam ser mais utilizados e que era permitido apenas, pescar de anzol, corda

e rede de espera. Segundo eles, as “pessoas alheias à comunidade” não conheciam a

tradição da prática de pesca que era mantida pela preservação e manutenção do seu

modo de vida. As pescadoras e pescadores contestam às influências externas em defesa

dos seus costumes e do seu modo de vida. Nos seus depoimentos apresentam ideias e

propostas para a preservação do meio que poderiam vim a ser efetuadas pelos poderes

públicos. O pescador José Rodrigues, ao falar sobre a degradação dos manguezais na

225

Pescadores contra a criação do Parque Marinho. Diário da Tarde: Ilhéus, quinta-feira, 08 de fevereiro

de 1990. 226

Antônio Carlos Sant’Ana apresenta na sua obra: O Mito Moderno da Natureza Intocada, p.67, critica a

proposição de Hardim (1968) em relação a Tragédia dos Comuns.

Page 117: Fabiana Andrade

comunidade do São Miguel explicou que a comunidade tentou criar uma área de

preservação.

A gente tá lutando, a gente está lutando há muitos anos para ser criado

uma área de preservação ambiental, dentro deste berçário que atinge lá da

boca da barra do São Miguel a o limite da Barra Nova na Ponta da Tulha e

até hoje a Colônia de pescadores não conseguiu mandar um ofício para o

IBAMA ou qualquer órgão competente para que fosse feito um estudo do

impacto ambiental que está acontecendo, neste berçário, e que fossem

tomadas algumas providências para diminuir esse tipo de impacto aí que

está havendo na localidade. 227

A importância da preservação dos berçários é uma defesa pela possibilidade de

reprodução e preservação de várias espécies de peixes e crustáceos. A partir da

experiência e do conhecimento adquirido na família existe um saber e um cuidado que

são próprios do seu trabalho. Eles procuram manter um equilíbrio ambiental, através das

maneiras de agir do cotidiano, que estão nos fazeres do lar, no trabalho, e nas formas de

organização e denúncia de determinadas atitudes.

Poluição e estragos irremediáveis na flora e fauna marítima com a pesca

predatória do camarão, da lagosta e do canapu (mero grande) ovados em

nossa costa. Os pescadores denunciaram que mais de trinta barcos de

camarão e cinquenta de lagostas estão explorando regularmente a nossa

costa e cometem diariamente verdadeiros crimes contra o equilíbrio

ecológico, capturando camarões em fase de desova, e lagostas com menos

de trezentas gramas. A fonte disse também que os barcos lagosteiros estão

poluindo o mar, citando que chegou a ver mais de cem litros de óleo

boiando na área do Porto, perto da pedra de Ilhéus. 228

A notícia divulga ainda que para os pescadores os grandes responsáveis pela

ameaça à flora e a fauna seria a própria SUDEP (Superintendência de Desenvolvimento

da Pesca), já que não tinham disponibilizados equipamentos e infraestrutura adequada

para fazer o controle ao longo da costa ilheense. Segundo Maldonado os pescadores

brasileiros pleiteiam a sua participação nos processos de decisão sobre os ciclos da

pesca e sobre a delimitação das áreas de acesso ao mar. 229

Mesmo porque, muitas das

resoluções e leis criadas pelos órgãos públicos ignoram o conhecimento que os

pescadores e as pescadoras detêm a respeito do meio em que vivem. O seu

227

Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009. 228

Pesca Predatória ameaça fauna marítima. Diário da Tarde. Ilhéus - BA, terça-feira, 28 de outubro de

1986. 229

Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.

Page 118: Fabiana Andrade

conhecimento assegura uma preservação ambiental que ao mesmo tempo entra em

conflito com as determinações que são impostas pelas leis governamentais.

Nos discursos das pescadoras podemos perceber que determinadas medidas não

são pensadas e investigadas para levar a sustentabilidade das espécies que interessa

principalmente ao mercado. A implantação do defeso, por exemplo, é algo bastante

citado pelas pescadoras como uma crítica a essa política, por só atingir as espécies de

grande valor comercial na região, como o robalo, o camarão. Elas questionam porque

não há o defeso dos mariscos como o siri, caranguejo, aratu, caranguejo, espécies que

também precisam ser preservadas.

Do siri não tem o defeso, mas poderia ter o defeso do siri. Tem o siri

mole, tem o tempo do siri miúdo e tem o tempo do siri ovado. Isso deveria

ter o defeso, mas aqui em Ilhéus não chegou. Como tem o defeso do

camarão, tem o defeso do robalo. Agora do siri não tem, poderia ter. Isso é

uma coisa errada. 230

A pescadora coloca a importância do defeso do siri não só como a garantia de

mais uma renda que teria por direito, mas como uma tentativa de garantir a reprodução

das espécies. Elas explicam que algumas pessoas quando pegam as fêmeas não

devolvem para o meio. Diferente do que costumam praticar com a sua mãe, já que

sempre que capturavam as fêmeas ovadas costumavam soltá-las no rio de volta para não

interromperem a sua reprodução. Ela ressalta ainda, que antes “tinha mais marisco e que

não estão pegando muito porque estão acabando com as fêmeas”.

O pescador do São Miguel José Rodrigues expõe em seu depoimento que a

pesca de arrasto foi proibida, pois retirava os nutrientes que alimentam as espécies do

fundo do mar. O pescador e a pescadora conhecem as consequências da má utilização

dos recursos pesqueiros. Explicam que a rede de arrasto é prejudicial, mas enfatizam

que nocivo mesmo ao meio ambiente são os motores dos barcos. Porque eles retiram os

sedimentos do fundo do mar que servem de alimento, esconderijo e crescimento das

espécies. As pescadoras afirmam ainda que os siris que os barcos capturam nas suas

redes são, muitas vezes, descartáveis e jogados mortos no mar, contribuindo ainda mais

para o processo de degradação da espécie.

Ainda na comunidade do São Miguel a pescadora Eliúdes, fala sobre a fartura de

outrora da pesca de Calão, da pesca de rede da Lagosta e aproveita o ensejo para colocar

a sua discordância ao encaminhamento das políticas de pesca no Estado e a atuação de

230

Valdenice. Entrevista realizada no dia 01.01.2010

Page 119: Fabiana Andrade

órgãos federais e estaduais. Ela faz referência à proibição da pesca de lagosta através da

rede. Disse que chegavam pescadores de Valente e de Ituberá que vinham para a

comunidade e alugavam as casas para explorar a lagosta. Entretanto, discorre que a

pesca de rede foi proibida porque a sua prática carrega o cascalho do fundo do mar,

dejetos que são importantes para a reprodução das lagostas.

Quando foi perguntado se a pescadora concordava com a proibição a respeito da

pesca da lagosta, ela não respondeu diretamente se era a favor ou não, apenas afirmou

que a pesca favorecia tanto o pescador e pescadora artesanal como o pescador dos

barcos industriais e enfatizou que apenas a pesca de manzuá está sendo aceita. Porém,

criticou as determinações dos órgãos de controle, visto que só os barcos maiores de oito

metros têm condições de colocar o instrumento, e mesmo assim eles enganam o

IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis) porque

colocam a rede no meio do manzuá.

A política de defesa ao marisco acabou favorecendo os grandes barcos

industriais de pesca e prejudicou os pescadores artesanais e a pesca mercantil simples.

Além disso, a comunidade perdeu a renda que conseguiam adquirir na época da pesca

de lagosta, pois recebiam pescadores de diversos lugares da região. Os cientistas criam

cotas e defesos e não consideram as suas variáveis culturais. Desde o século XVII, a

investigação científica foi marcada pelo paradigma cartesiano ou pelo positivismo

racionalista que tenta desagregar a realidade em componentes para reordená-los

posteriormente como generalizações ou leis. 231

As pescadoras e pescadores apresentam no seu modo de vida aspectos que

favorecem a sustentabilidade dos recursos naturais. No seu dia-a-dia os lugares de pesca

são sempre rotativos e variam também as espécies que costumam capturar a partir da

disponibilidade do meio. Os segredos dos mestres da Pesca de Calão, que de barco

adentravam no mar em busca dos terminais pesqueiros e sua rotação nesses lugares

pode ser tida também como uma forma de manutenção das diversas espécies. Os

recursos que exploram são móveis, sendo complicado delinear, manter e defender

fronteiras e territórios não havendo equivalência com o sistema de terra.232

O conhecimento que as comunidades tradicionais de pesca possuem precisa ser

interpretado. A ciência com seus paradigmas reducionistas, muitas vezes, só consideram

231

Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação; Novos rumos para a proteção da natureza nos

trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004. 232

Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. A imagem das águas. São Paulo: Hucitec. USP, 2000.

Page 120: Fabiana Andrade

como ciência aquilo que pode ser comprovado pelo método experimental. As

pescadoras e pescadores artesanais possuem costumes e táticas na forma de lidar com o

meio ambiente que são próprios do seu modo de vida. Para a pescadora Cátia é lindo

quando está no rio e consegue presenciar os golfinhos realizarem a sua pesca e

brincarem durante o momento da maré cheia.

As pescadoras se referem à pescaria como uma “terapia” onde esquecem os

problemas e dificuldades da vida pela tranquilidade e o silêncio que encontram no seu

ambiente de trabalho. Por mais dificuldades que encontram na extração e captura das

espécies, elas apresentam a recompensa de manterem-se próximas da natureza. O que as

ecofeministas discutem em relação à preocupação e a sustentabilidades presente nos

modos de vida das mulheres também se fazem atuantes nas formas de agir dos

pescadores artesanais. A interação que tanto o gênero masculino e feminino mantém

como o meio ambiente ajuda a construir práticas e valores de sustentabilidade presente

no modo de vida e trabalho de ambos.

As diversas ideias do ecofeminismo defendem uma maior tendência do gênero

feminino para a manutenção do controle ambiental e ressaltam a luta das mulheres pela

preservação do meio ambiente.233

A liderança das mulheres em movimentos que

defendem a preservação do meio ambiente tem sido justificada como uma característica

própria do sexo feminino. O ecofeminismo surgiu no início da década de 1970, fruto de

diversos movimentos sociais ambientalistas, de mulheres e pacifistas. 234

O movimento

partiu da análise das feministas em relação às ações desenvolvidas pelas mulheres que

tinham como objetivo proteger o meio ambiente.

O projeto GEPAM235

, por exemplo, ressalta que as mulheres preocupam-se e

participam de muitas ações voltadas para a sustentabilidade das riquezas naturais. As

ideias feministas que estão relacionadas ao ecofeminismo em sua abordagem mais

construtivista defendem que a proximidade das mulheres com a natureza tem afinidade

com as responsabilidades de gênero na economia doméstica e na distribuição de poder.

233

Termo originalmente criado pela feminista francesa Françoise d’ Eaubonne em 1974 e simboliza a

síntese de ambientalismo e feminismo. 234

Rosângela Angelim. Gênero e Meio Ambiente: a atualidade do ecofeminismo. Revista Espaço

Acadêmico. Nº 58. Março, 2008. 235

Projeto de Gerenciamento participativo das áreas de mananciais desenvolvido em convênio com a

Prefeitura de Santo André e a Centre for Human Settlenments-Universidade British Columbia com o

financiamento da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional.

Page 121: Fabiana Andrade

Considerações Finais

Foi um longo caminho que percorri para escrever a história das trabalhadoras da

pesca em Ilhéus que pertencem às comunidades do Teotônio Vilela e São Miguel.

Através da pesquisa de campo, estive no mangue, na coroa, e nas casas das pescadoras

adentrando em suas memórias e atenta as suas subjetividades.

A mesma subjetividade que a princípio foi uma lacuna no desenvolvimento de

trabalhos a partir da oralidade por considerá-la volátil, passou a ser vista depois como

uma particularidade desse trabalho pela reflexão que os pesquisadores podem fazer da

forma como as questões são memoradas. A partir do trabalho com a oralidade e a

memória podemos perceber como as mulheres se apresentaram enquanto pescadoras e

como as questões de gênero que estão impregnadas na sociedade modelam as suas

memórias e intenções.

As pesquisas realizadas a partir da perspectiva de gênero ressaltaram a

necessidade de um discurso público capaz de admitir e acolher as

narrativas de diferentes sujeitos sociais, a necessidade de um arcabouço

público no qual as memórias de todos possam ser reconhecidas e, ao

mesmo tempo, elas próprias possam se reconhecer. A história oral de

mulheres tem destacado a urgência do “processo de democratização da

memória”, que é a condição básica para as democracias contemporâneas. 236

Algumas das entrevistadas passaram a se definir e se reconhecer pescadoras

depois que passaram a ser mães solteiras e precisaram manter a família. O trabalho que

realizavam antes com os seus maridos é tratado nas falas das mulheres apenas como

uma ajuda, ou um trabalho complementar as atividades desenvolvidas pelo pescador

artesanal. A história oral das mulheres nos permite perceber experiências que são

esquecidas e negligenciadas pela sociedade e instituições públicas que, muitas vezes,

não reconhece as diversas atividades realizadas pela mulher na atividade pesqueira

Nas suas falas algumas se definem como marisqueiras, outras, pescadeiras,

catadoras, como também pescadoras. A Colônia Z-34 instituição legal que representa as

entrevistadas também varia a definição das mulheres nos seus cadastros de pesca. Os

seus depoimentos apresentam como as mulheres resistem no seu cotidiano a essa idéia

que está fincada na sociedade de que pescador é apenas aquele que trabalha capturando

236 Silvia Salvatici. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. In: História Oral.

(vol. 8) (n.o1). Revista da Associação Brasileira de História Oral. Jan.jun.2005. p. 29-42

Page 122: Fabiana Andrade

o peixe em alto mar. Eram as mulheres que se deslocavam para a feira vender e

“pechinchar” o valor do peixe e do marisco com o freguês. Ao passo que também

percorriam as ruas, como era costume vender o peixe fresco, pelas ruas e praias da

cidade.

Mas o olhar sobre a mulher pescadora é marginal e excludente, porque ao

apresentarem-se arrumadas e vaidosas a Previdência Social tende a duvidar de que lugar

elas ocupam na sociedade. Nas entrevistas procuraram denunciar a situação de exclusão

e a forma como o seu trabalho, muitas vezes, não é reconhecido e valorizado. As

pescadoras enfatizaram as dificuldades no seu trabalho, os medos, angústias e

sofrimentos, como também colocaram a felicidade que sentiam quando trabalhavam no

campo e estavam distantes da agitação da cidade.

Além disso, acrescentaram que em nenhum outro trabalho conseguiriam adaptar-

se porque não teriam a mesma liberdade que possuem na maré. Para elas ser pescadora

“é ser livre e viver de tudo que tem na maré”, “é não ter horário para chegar e horário

para sair”. Segundo Thompson, esse descaso pelo tempo do relógio só é possível numa

comunidade de pequenos agricultores e pescadores, cuja estrutura de mercado e

administração é mínima237

. As pescadoras sentem-se livres para escolher a hora de

chegar e sair para o trabalho, diferente do cumprimento do horário a que estão sujeitos

muitas trabalhadoras e trabalhadores.

Mas, as pescadoras e pescadores artesanais colocam que a sua profissão é uma

“atividade que está ficando inviável” e não querem que os seus filhos continuem na

mesma atividade. O pescador José Carlos da comunidade do São Miguel fica entre a

euforia e tristeza ao dizer que as suas filhas e filhos são pescadores. Para ele o pescador

não tem acesso a crédito no comércio da cidade porque a sua profissão também não é

reconhecida em termos legais.238

As pescadoras não querem mais levar os seus filhos e filhas na pescaria porque a

sua vontade é que estudem e tenham outra oportunidade de vida. Já que o marisco “está

acabando” e “é muita gente pescando”. As pescadoras e pescadores artesanais hoje tem

que conviver com a destruição das suas “artes de pesca” pelas grandes embarcações que

invadem o limite de pesca no mar do São Miguel.

237

E. P. Thompson. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. Tempo, Disciplina

de Trabalho e Capitalismo Industrial. São Paulo: Companhia das Letras,1998, p. 270. 238

José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 11.01.2010.

Page 123: Fabiana Andrade

Além disso, a pesca de Calão, da lagosta, já não é realizada como era, porque há

uma determinação legal que afirma a sua ação prejudicial ao meio ambiente. Porque

esse tipo de pesca varre o fundo do mar retirando os dejetos importantes para a

alimentação e reprodução de muitas espécies. Para as pescadoras e pescadores

artesanais o mais agravante é a ação dos barcos industriais que não respeitam a distância

de pesca e avançam para o litoral arrastando o fundo do mar com a rede e destruindo a

vida marinha. Para as pescadoras da comunidade do Teotônio Vilela, a quantidade de

homens, mulheres e crianças pescando têm aumentado porque muitas pessoas pescam

para matar a fome. Portanto, elas têm se deslocado para lugares cada vez mais distantes

em busca do marisco.

A vida das pescadoras e pescadores artesanais tem sido um movimento de luta e

resistência à manutenção dos seus costumes, das suas formas de pescar, e da sua labuta

do dia-a-dia. Os registros apresentados dos jornais demonstram como os grupos

populares resistem como uma “antidisciplina” as determinações que, muitas vezes, são

impostas por um poder controlador. As mulheres possuem uma forma específica de

enfrentar as dificuldades, é nas “penumbras do cotidiano” que elas enfrentam as

dificuldades e criam, muitas vezes, sozinhas as suas filhas e filhos e fazem-se

pescadoras.

As mulheres incentivam umas as outras a cadastrarem-se na Colônia de Pesca e

informam os direitos trabalhistas que serão garantidos com o seu registro. Aos poucos

elas ganham também as instituições legais e organizam também uma Associação de

Pescadores e Pescadoras no bairro do São Miguel. Elas lutam por incentivos que

venham favorecer as associadas e associados, assim aprendem através da experiência o

que é ser pescadora e quais os direitos garantidos. Como nos apresenta Thompson, a

dimensão política da experiência é trabalhada tanto no âmbito do pensamento, como

também no espaço maior da cultura que acompanha normas, valores e obrigações

familiares determinadas.239

A princípio não são reconhecidas pela Colônia de Pesca, Z-34, mas depois de

muito esforço e coragem são reconhecidas pela instituição. A partir daí muitas

benfeitorias são realizadas na comunidade do São Miguel, como o funcionamento da

Escola de Ensino Primário que estava desativada e o funcionamento do Posto de Saúde

239

E. P. THOMPSON. (Edward Palmer). A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro,

1998.

Page 124: Fabiana Andrade

da localidade. O passado e a ação do presente passam a construir as histórias de vida e

trabalho das pescadoras artesanais. As suas memórias constroem também as diversas

formas de ser pescadora e de manutenção dos seus modos de vida.

A pesca realizada em águas litorâneas na cidade de Ilhéus era uma atividade de

cunho familiar e envolvia diversas experiências no trabalho da pesca. Seja trabalhando

com a cata, a salga, e a venda do peixe que conseguiam pegar no Calão, desde

trabalhando com o anzol no rio e ajudando a pescar o rubalo, desde pegando o barco

para pescar de rede a noite, desde indo trabalhar na coroa e no mangue. Portanto, a

pescadora e o pescador sempre dividiram esses espaços ao lado dos filhos e filhas que

aprendiam desde cedo os conhecimentos da pesca artesanal que é passado de geração

para geração a partir da experiência.

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p.06.

Arquivo da Igreja Santíssima Trindade em Ilhéus - BA.

Ata de reunião dos membros da Igreja Católica Santíssima Trindade localizada no

bairro Teotônio Vilela.

Arquivo da Colônia de Pesca Z-34 em Ilhéus - BA.

Ata de reunião dos associados à Colônia de Pesca localizada na comunidade do São

Miguel e depois transferida para o Bairro do Malhado em Ilhéus.

Depoimentos

Andrelita Caio Batista-Nita (79 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

22.03.2009.

Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

03.01.2009.

Dinalva Alcântara de Carvalho (49 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

13.08.2006

Dulciene Costa Santos. (42 anos). Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos)

Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.

Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

15.08.2006.

Page 133: Fabiana Andrade

Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

04.04.2009.

Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia

31.10.2009.

José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

11.01.2010.

Julia Dias de Castro (60 anos). Maria Helena de Castro dos Santos (32 anos); Tertulina

Ferreira Mota (59 aos), Gileno Ferreira dos Santos (75 anos) Entrevista coletiva

realizada no dia 12.11.2004, na residência de D. Júlia e Sr. Gileno, (32 páginas).

Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006.

Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

12.11.2006.

Márcio Luís Vargas. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 27.08. 2004.

Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.

Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia

30.04.2007.

Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

12.08.2006.

Orenice Paixão dos Santos (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

05.01.2009.

Omerita Maria de Jesus (71 anos) e Valdecir Maria de Jesus (59 anos). Entrevista

realizada na sua residência no dia 01.01.2010.

Page 134: Fabiana Andrade

Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009.

Reinaldo Oliveira-Zé Neguinho. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia

23.02.2008.

Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

12.08.2006.

Valdecir Maria de Jesus (53 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia

01.01.2010

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