fabiana andrade
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
FEIRA DE SANTANA
JULHO/2010
FABIANA DE SANTANA ANDRADE
TECER REDES, TECER HISTÓRIAS: As experiências de vida e
trabalho das pescadoras em Ilhéus - BA, 1980-2007.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Feira de
Santana, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Prof. Dra. Márcia Maria
da Silva Barreiros Leite.
FEIRA DE SANTANA
JULHO, 2010
TECER REDES, TECER HISTÓRIAS: As experiências de vida e
trabalho das pescadoras em Ilhéus - BA, 1980-2007.
FABIANA DE SANTANA ANDRADE
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________
Charles D’Almeida Santana
Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
_________________________________________________
Cecília Conceição Moreira Soares
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
____________________________________________________________
Márcia Maria da Silva Barreiros Leite. (orientadora)
Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (PUC/SP)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Dedico aos meus pais, Adelaide e
Pedro e as pescadoras de Ilhéus.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a imensa energia positiva, ao criador, a quem as
culturas estimam de formas diferentes e que na minha conheço por Deus e Jesus Cristo.
E aos grandes colaboradores desse trabalho, as pescadoras e pescadores artesanais que
abriram as portas do seu lar e das suas lembranças, há vocês muito obrigada.
Foram tantos caminhos percorridos durante esse período de pós-graduação que
não sei como vou poder repartir esses agradecimentos com todas as pessoas que fizeram
parte dessa etapa. Nas minhas viagens de Canavieiras para Feira, durante o estudo nas
disciplinas, contei com a compreensão e incentivo dos meus colegas professores do
Colégio Modelo de Canavieiras e as pessoas que dividir a casa na cidade de
Canavieiras, obrigada pelo incentivo, cuidado e atenção.
Ao meu grande amigo e irmão Rodrigo Osório e a sua mãe D. Silva, por
acolherem a mim em sua casa na cidade de Feira de Santana, saibam que vocês
tornaram a minha pós-graduação possível. Obrigada também pelos momentos de
diversão, onde rimos bastante e nos alegramos. A minha grande amiga, uma segunda
irmã, Ana Paula que pude contar em todos os momentos de angústia e necessidade,
muito obrigada. Aos meus queridos amigos Alexandre, Raquel e Eliane a quem
compartilhei e compartilho momentos felizes. Ao meu amigo Philipe que sempre esteve
disposto a ler o meu trabalho e contribuir, obrigada pela força. Aos meus colegas,
amigos e amigas do Mestrado, que mesmo distante me deixavam informada de todos os
acontecimentos e pelos momentos de discussão e aprendizado. Á Julival funcionário do
Mestrado que muito paciente e educado atendeu e procurou ajudar em todas as horas.
Aos meus mestres, um agradecimento especial ao professor Luiz Blume, meu
eterno orientador, foi com o seu incentivo que comecei a desenvolver a pesquisa, por
isso esse trabalho divido também com ele. Ao prof. Elvis Barbosa que sempre esteve na
torcida pela continuidade do trabalho. Ao prof. Lira pelas contribuições e sempre
disponibilidade e atenção que me dedicou. Ao prof. Charles por ser o educador que é,
pelo apoio e por suas leituras minuciosas dos textos. Ao prof. Wellington pelos
comentários substanciais ao texto de qualificação, obrigada. A prof. Ione e ao prof.
Reinaldo, pelos momentos de aprendizado e contribuição a pesquisa em sala de aula, e
ao prof. Coelho e a prof. Elizete por todo o estímulo, obrigada! A minha orientadora, a
prof. Márcia Barreiros, pela suas enriquecedoras contribuições e pelas suas palavras de
incentivo e experiência, um agradecimento especial.
Meus eternos agradecimentos a minha mãe Adelaide e ao meu pai Pedro por
toda a paciência, cuidado e amor que sempre me dedicaram. Aos meus irmãos Fernanda
e Fábio por incentivarem a minha luta e esforço. Aos meus tios Pedro e Ednaide que
encorajavam o meu empenho e as minhas primas Maiara e Maraisa por todo o apoio e
atenção. Agradeço a toda a minha família que apoiou o meu esforço. Agradeço também,
aos meus queridos vizinhos e amigos do Bairro da Conquista que acompanharam meu
empenho e ao grupo Jovem Vinde e Verde pelos momentos de oração e pela paz que
sempre transmitem nos seus encontros. Obrigada a todas as educadoras e educadores,
corpo discente, ex-alunas e ex-alunos que fazem parte da Escola Família Agrícola
Comunitária Margarida Alves, por compartilharem comigo a experiência de uma
educação diferenciada e entenderem como esse trabalho é especial. Agradeço pelo
aprendizado, compreensão e pela oportunidade de fazer parte dessa grande família.
Agradeço especialmente, as pescadoras e pescadores artesanais que tornaram
esse trabalho possível, retorno principalmente a D. Nita e D. Chica em que compartilhei
momentos de descoberta e alegria no mangue. Para D.Chica, “a pescadora granfina”,
como ela divertidamente me chamava nos momentos em que pude acompanhá-la na
pescaria. A D. Tertulina, D. Júlia, e Sr. Gileno e a sua filha Helena, pela disponibilidade
e atenção, com que me receberam na realização da minha primeira entrevista. A D.
Cátia e D. Inês, por terem me dado à oportunidade de vivenciar momentos de
descoberta na coroa. A D. Dulciene o seu irmão, o Sr. José Rodrigues, por
compartilharem comigo as suas lembranças e pela atenção que passaram a me dedicar.
A D. Dinalva, D. Flávia, e Maria de Cássia, pela disponibilidade. Ao Sr. Márcio Vargas,
assessor técnico da Colônia de Pesca Z-34 e ao seu Presidente o Sr. José Neguinho pela
atenção com que recebem as pessoas na instituição. Ao Sr. José Carlos, a D. Orenice, a
sua filha Isarildes, e a D.Eliúdes, pelas tardes aprazíveis de diálogo nas suas residências,
muito obrigada! Sintam-se abraçadas todas as pessoas que contribuíram direta e
indiretamente para a concretização desse trabalho.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
CEPLAC - Centro Executivo do Plano da Lavoura Cacaueira
CEDOC - Centro de Documentação e Memória Regional
IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis
INSS - Instituto Nacional de Seguridade Social
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
OIT - Organização Internacional do Trabalho
SETRAB - Secretaria do Estado do Trabalho
SEAP- Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca
SUDEP- Superintendência de Desenvolvimento da Pesca
INDÍCE DE FIGURAS
FIGURA I: Mapa das Comunidades de Pesca.............................................................p.26
FIGURA II: Formação do Bairro Teotônio Vilela.......................................................p.29
FIGURA III: Ida de barco para a coroa, 2009.............................................................p.51
FIGURA IV: Mulheres pescando muapen na coroa, 2009..........................................p.52
FIGURA V: Inês na coroa em posição de trabalho, 2009..........................................p. 53
FIGURA VI: Pescadora no Manguezal, 2004.............................................................p. 54
FIGURA VII: Pescando Aratu, 2004...........................................................................p.55
FIGURA VIII: Munzuá, 2004..............................................................................................p.55
FIGURA IX: Pescadora catando siri..........................................................................p.62
FIGURA X: Pescadoras com o barco..........................................................................p.66
FIGURA XI: Pegando uma isca................................................................................p.100
FIGURA XII: Pescadora pegando a mututuca .........................................................p.100
RESUMO
Esse trabalho trata das histórias de vida e dos modos de fazer das mulheres que
pescam aratu, peixe, que extraem as ostras dos paus de mangue ou capturam a lambreta
do fundo do mar; que capturam o caranguejo, o siri, costura as redes de pesca, como
também realizam o beneficiamento do produto e a sua venda. Essas mulheres são
pescadoras artesanais da cidade de Ilhéus, município localizado no sul da Bahia que
possui um número considerável de trabalhadoras da pesca. A variedade de práticas
desenvolvidas pela pescadora pode ser considerada uma peculiaridade do gênero
feminino no setor pesqueiro. A partir dos seus depoimentos são discutidas as
transformações no seu modo de vida e as memórias da sua vida no campo, já que muitas
pescadoras são oriundas da zona rural. Ao morar na cidade as pescadoras agricultoras
procuram organizar o seu modo de vida e manter as suas práticas e fazeres na cidade.
Mas no seu cotidiano travam uma antidisciplina ao que é imposto em defesa dos seus
costumes e também pela sobrevivência. Para darmos visibilidade as suas história de
vida e trabalho são utilizados os depoimentos orais, a iconografia e fontes escritas:
como as atas da Colônia da Pesca Z-34, jornais da região e diagnósticos produzidos
sobre a pesca do município.
Palavras Chave: Trabalho, Pescadoras, Gênero.
ABSTRACT
This essay talks about the life story and the how-to of women who fish aratu,
extract oysters from the poles of the mangrove, capture scooter fish from the deep sea,
as well as crab and crayfish, who sew fishing nets and moreover reap the benefits of the
product and the sale of the product. These women are artisanal fisherwomen from
Ilheus, a city in the south of Bahia that has a considerable number of women working in
the fishing industry who survive off of what nature has to offer. A variety of practices
developed by the fisherwomen who partake in this activity may be considered a oddity
of the female gender in the fishing industry. Using their testimonies as a starting point,
discussions are made about the transformations in their way of life and the memories of
their lives on the farm, as many of them come from a rural area. By living in the city,
the fisherwomen look to organize their way of life and maintain their practices in the
city. However, in their daily life there is a resistance that they impose in defense of their
customs and survival. To give visibility of the work history of the fisherwomen, the
following were used: oral testimonies, iconography, as well as written sources such as
minutes from the Fishing Colony and journals and Diagnostics from the region
published about fishing in the city.
Keywords: Work, fisherwomen, gender.
Sumário
CONSIDERAÇÕESINICIAIS.....................................................................................12
CAPÍTULO I
AS PESCADORAS E AS COMUNIDADES DE PESCA.................................... .......26
O TEOTÔNIO VILELA..................................................................................................28
O SÃO MIGUEL.............................................................................................................32
ENTRE O RURAL E O URBANO................................................................................35
CAPÍTULO II
AS LEMBRANÇAS DO LAZER E DO FAZER .......................................................... 63
OS ESPAÇOS OCUPADOS: AS FEIRAS, RUAS E AVENIDAS NA CIDADE. ...... 69
AS LUTAS COTIDIANAS E POLÍTICAS....................................................................79
CAPÍTULO III
A PESCADORA ARTESANAL E A NATUREZA......................................................98
AS LEIS NATURAIS E A VIDA NA MARÉ. ............................................................ 114
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................121
REFERÊNCIAS: .......................................................................................................... 124
FONTES ....................................................................................................................... 130
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O fazer historiográfico implica nas reflexões postas entre a teoria e a prática
historiográfica. Muitas vezes, nas nossas pesquisas passa despercebido que o nosso
trabalho de contato com as fontes e os questionamentos que estabelecemos através da
pesquisa nos possibilita pensar que a construção historiográfica se dar através de
diversos níveis: teoria, problema, método e a perceptividade do historiador.
A pesquisa, geralmente vem imbuída de uma herança teórica por parte do
historiador, que muitas vezes, direciona o olhar e indica os problemas pensados. O
trabalho do historiador é como uma construção onde o plano de cada um, pensado
através de um problema, precisará de vários instrumentos para a sua construção. Muitas
vezes, ficamos de fora vendo como podemos colocar as peças, outras vezes nos
permitimos participar realmente da sua construção.
As pesquisas são muitas e variadas, assim também damos as formas as nossas
casas e ficamos preocupados em como vamos dar início as obras. Diante disso, muitas
vezes, estive pensando como construiria a história de vida e trabalho das mulheres
pescadoras da cidade de Ilhéus, localizada no sul da Bahia. O município parece ter a sua
memória fincada na cultura do cacau e de um passado onde os senhores coronéis eram
os donos do cacau e senhores do poder no local. A construção historiográfica da cidade
está repleta dos personagens da alta elite do cacau, pensada através das obras do escritor
Jorge Amado, que escreve também a história dos homens do cacau. Mas como falar dos
grupos sociais que, em sua maioria, não detêm o conhecimento da língua escrita? Os
métodos historiográficos nós permite tratar desses grupos, a partir de diversos tipos de
fontes que estão a nosso favor, mas, muitas vezes não a reconhecemos.
Durante um longo período a historiografia enxergou apenas as fontes
documentais como algo verossímil para o entendimento da realidade, mas quando
passou a visualizar realidades plurais o conhecimento se ampliou e se intensificou ainda
mais através da História Oral. Isso porque esse procedimento permite ao historiador
perceber passagens indescritíveis de serem retratadas por documentos escritos, que
podem ser percebidos nos gestos e na própria forma de construir a narrativa. Na década
de 60, os historiadores tradicionais passaram a criticar a História Oral em virtude da
falta de confiabilidade da memória devido ao seu esquecimento. Mas os pesquisadores
que trabalhavam com os depoimentos orais baseados na psicologia e na antropologia
apresentaram que a tendenciosidade da memória, o seu esquecimento e os mitos devem
ser vistos pelo historiador como instrumentos para a compreensão do que está nas
entrelinhas da narração. Para Alessandro Portelli, a entrevista acaba avivando a
autoconsciência do entrevistado para aspectos da sua experiência a respeito dos quais
ele nunca pensou ou falou seriamente. 1
Aprender com a história oral é reconhecer que o outro tem uma história de vida
que nós desconhecemos e que quando ouvimos as suas experiências percebemos que
tem muito a nos ensinar. A cena comum de ver uma mulher de canoa no rio ou puxando
rede nas praias de Ilhéus me levaram a pensar na relação de trabalho entre as pescadoras
e pescadores artesanais do município. As pescadoras que foram entrevistadas trabalham
no mar, rios, lagos, mangues e coroas do município.
A temática sobre a mulher pescadora surgiu ainda no período da graduação
quando fui instigada a trabalhar no Projeto de Pesquisa do Professor Luiz Blume da
UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz) com a História dos Pescadores Artesanais
e o Processo de Modernização da Pesca em Ilhéus. Durante a graduação escrevi um
projeto de Iniciação Científica, financiado pela FAPESB, em que problematizei a
questão da invisibilidade da mulher pescadora, como foram poucas as pesquisas
encontradas sobre a atividade pesqueira na região busquei nos trabalhos de antropólogos
a discussão sobre pesca feminina. Back, Maldonado, Woortman2 e outros autores
colocam que existem poucos estudos sobre a atividade da mulher no setor pesqueiro.
Por dividir as atividades entre a casa e a maré, a mulher não tem o trabalho reconhecido
porque, muitas vezes, não se traduz em renda monetária sendo definido apenas como
coleta manual em algumas Colônias de Pesca3.
Em virtude da grande quantidade de comunidades pesqueiras na cidade trabalhei
na monografia de graduação com a comunidade do Teotônio Vilela, por está entre os
locais onde reside um grande número de trabalhadoras e trabalhadores da pesca. A
discussão sobre a invisibilidade do trabalho da pescadora continua presente no texto de
dissertação, mas as problemáticas e o campo de pesquisa são ampliados. Além de
trabalhar com comunidade do Teotônio Vilela, entrevistei também algumas mulheres da
1 Alessandro Portelli. História Oral como Gênero, 1981.
2 Trabalhos de Antropologia encontrados no Nupaub (Núcleo de Populações e Áreas Úmidas do Brasil).
3 O Estatuto de fundação das duas Colônias da cidade de Ilhéus noticiados no Diário Oficial, 1985,
explica que as Colônias são associações civis daqueles que fazem da pesca sua profissão ou meio
principal de vida, criadas com prazo indeterminado de duração e tendo por finalidade a representação e a
defesa dos direitos e interesses dos associados.
comunidade do São Miguel, por ser um dos bairros mais tradicionais na atividade
pesqueira.
A cidade de Ilhéus possui vários lugares de manguezal acompanhados por rios, o
que possibilita a existência de cerca de vinte comunidades de pesca4. As mulheres
dessas comunidades realizam a arte da pesca artesanal5 porque fabricam os seus
próprios instrumentos e pegam pouca quantidade de mariscos e peixes. O seu trabalho é
considerado “arte” se pensarmos na prerrogativa de que é uma atividade humana básica
necessária, e na medida em que não é forçado, deformado ou alienado, constitui uma
atividade criativa livre. Visto dessa forma toda atividade criativa do homem realizada
no seu trabalho pode ser considerada “arte”. 6
As mulheres entrevistadas eram cadastradas à Colônia de Pesca Z-347,
instituição que representa os pescadores e pescadoras do município. Nas pesquisas
realizadas aos arquivos da Colônia ainda na Iniciação Científica pude observar que o
número de mulheres associadas à instituição aumentou consideravelmente a partir da
década de 1980. 8
Compreender o porquê do crescimento das mulheres colonizadas a
partir desse período foi um dos objetivos traçados para a pesquisa.
O que encontrei nas fontes escritas é que o interesse no cadastro á Colônia
estava vinculado às ações políticas desenvolvidos pela SETRAB e a promulgação da
constituição de 1988 que garantiu as pescadoras e pescadores os direitos aos benefícios
previdenciários. A SETRAB (Secretaria do Estado do Trabalho), por exemplo,
disponibilizou no ano de 1989 uma série de recursos visando o desenvolvimento da
4 Destacam-se as comunidades de pesca do São Miguel, Mascote, Rio Pardo, Itajuípe, Rio Almada, Itapé,
Rio Cachoeira, Banco da Vitória, Salobrinho, Iguape e Vila Olímpia. 5 Segundo Jussara Cristina Vasconcelos Rego no seu trabalho Etnoecologia dos Pescadores de velha
Boipeba-BA, do Costero a Berado. Salvador, 1994, a pesca artesanal é caracterizada por sua
sustentabilidade ecológica, possibilitada pelo conhecimento empírico acumulado pelos pescadores acerca
do ambiente com que interagem, e utiliza como matéria prima de seu instrumento os próprios recursos
naturais do lugar. 6 Janet Wolff. A produção social da arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p 29.
6No município de Ilhéus temos duas Colônias que representam a categoria das pescadoras e pescadores a
Z-19 e Z-34. Está última foi fundada em 12 de janeiro de 1947 e localizava-se no bairro do São Miguel
também conhecido como barra do Itaípe. Atualmente a sede da Colônia está fixada na Avenida Antônio
Carlos Magalhães situada no bairro do Malhado. A Colônia de pescadores Z-34, ou do Malhado, tem
cerca de 3.000 associados, possui frigorífico e auxilia aos associados para a obtenção de benefícios na
Previdência Social.
7Através do estudo das fichas de cadastrados pude observar um aumento considerável de mulheres que
passam a fazer parte da instituição a partir da década de 1980.
pesca no Estado. Uma notícia do jornal Diário da Tarde apresentou a seguinte
chamativa:
Os pescadores e marisqueiras que ainda não se regularizaram junto às
Colônias de pescadores do Estado, que já tem cadastrados mais de 90 mil
profissionais dessas atividades, devem faze-lo o mais rápido possível. É que
a Secretaria do Trabalho (SETRAB), e a Federação dos Pescadores do
Estado da Bahia, com o apoio das prefeituras de vários municípios
produtores de pescado, estão desenvolvendo ações visando incrementar a
pesca em todo o estado. Dentre os benefícios (...) estão os destinados à
aquisição de redes de náilon, cursos ministrados às diretorias das Colônias,
com a finalidade de agilizar o seu funcionamento e prestar melhor
assistência aos seus associados (...) 9
Entretanto, aliada à vontade política e a luta dos movimentos sociais, estava o
interesse das mulheres em serem reconhecidas enquanto profissionais, e ao próprio
processo de saída, “expulsão”, dos trabalhadores do campo para a cidade, e a
apropriação dos seus direitos enquanto trabalhadoras. Em uma discussão mais
aprofundada no texto de dissertação podemos compreender como o trabalho das
pescadoras ganha as disposições legais e a luta pela igualdade de direitos e
sobrevivência cotidiana.
Ás mulheres é atribuído o título de marisqueiras porque geralmente são elas que
capturam tipos diferentes de mariscos (ostras, lambretas, sururu etc). Existe uma ideia
pronta que trata o pescador apenas aquele que trabalha em alto mar na captura do peixe.
Entretanto, muitas das mulheres entrevistadas estão longe dos ideais de
profissionalização da mulher que geralmente inscrevem-se no prolongamento das
funções maternais, naturais e domésticas que são as características das profissões
elencadas como adequadas para o ideal de mulher que cuida e consola. Como explica
Michelle Perrot, nos idos do século XIX, as profissões de enfermeira, assistente social e
professora primária eram descritas como atividades de mulher.
Qualificações reais fantasiadas como “qualidades” naturais e subsumidas a
um atributo supremo, a feminilidade: tais são os ingredientes da profissão de
mulher, construção e produto da relação entre os sexos. 10
As dificuldades das pescadoras em serem reconhecidas enquanto profissionais
da pesca também é conseqüência da sociedade misógina. A história das mulheres
9 Pescadores e Marisqueiras beneficiados pela SETRAB Nº 16.227. Diário da Tarde. Ilhéus-BA. Quarta-
feira, 27 de setembro de 1989. 10
Michele Perrot. As Mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p 253.
entrevistadas é uma história de privações ao acesso a educação, ao lazer, e também
porque casam cedo ou engravidam no início da puberdade. Muitas já deixam à
adolescência na condição de mãe solteira, e as que casam não ficam muito tempo ao
lado dos seus maridos. Por dividir as atividades entre o lar e atividade pesqueira não são
tidas, muitas vezes, como trabalhadoras da pesca.
Nas comunidades pesqueiras elas criam alternativas para sobreviver à crise do
pescado e aos períodos em que o peixe não pode ser capturado em virtude da desova. As
mulheres costumavam manter a sua família com as atividades de artesanato e com a
captura do marisco. Muitas vezes o Ministério do trabalho costuma registrar a mulher
como marisqueira para não ter que pagar seguro já que não existe defeso para o
marisco11
. O sistema de gênero limita a participação das mulheres à esfera privada e
consequentemente o seu acesso aos direitos.
No Estado da Bahia a pesca é eminentemente artesanal, devido à extensão de
suas águas e também das suas características fisiográficas12
e da sua ictiofauna13
. Tendo
em vista que possui uma das maiores reservas de peixe na região costeira, o fundo do
mar raso e acidentado é habitat de espécies nobres como: vermelhos, badejos, garoupas,
chernes e lagostas. A captura dessas espécies geralmente fica limitada ao uso de linhas
simples, espinhéis e armadilhas, o que favorece e condiciona a atuação da pesca
artesanal, ao tempo que limitam o uso de determinadas embarcações e métodos de pesca
representados basicamente por aparelhos estáticos (redes de malhar). 14
A variedade de práticas desenvolvidas pela pescadora que, muitas vezes, é mãe,
esposa e trabalha na atividade pesqueira, pode ser considerada uma peculiaridade do
gênero feminino no setor pesqueiro. Entretanto, as políticas públicas não abarcam as
diversidades das atividades executadas pelas mulheres nas comunidades pesqueiras.
Elas sempre trabalharam, seja na ordem doméstica ou em outras funções. Entretanto,
nem sempre exerceram ofícios reconhecidos que trouxeram remuneração e as suas
atividades domésticas eram invisíveis.15
As trabalhadoras da pesca entrevistadas buscam
as suas próprias definições, que diferem das encontradas nos órgãos públicos16
. O
11
Rogéria Araújo. Pescadoras exigem direitos. Disponível em: www.edital.com.br. 12
Descrição da natureza, da terra e dos fenômenos naturais; geografia física. 13
Em ecologia e ciências pesqueiras, chama-se ictiofauna ao conjunto das espécies de peixes que existem
numa determinada região biogeográfica 14 GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Diagnóstico Subsetorial da Pesca artesanal. Salvador,
Agosto, 1994. 15
Michelle Perrot. Minha história das mulheres. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2008. 16
Estou fazendo referência a Colônia de Pesca Z-34 que tende a definir geralmente as mulheres como
marisqueiras e aos Diagnósticos de 1975, 1994 que também rotulam as mulheres de marisqueiras.
Diagnóstico Subsetorial da Pesca artesanal17
, de 1994, elaborado pelo Estado da Bahia,
ressalta o seguinte:
“O setor pesqueiro é traduzido em duas atividades, a pesca e a mariscagem.
A distinção entre elas se dá em função do produto capturado e do sexo da
pessoa que exerce a atividade. Enquanto a pesca é exercida basicamente
pelos homens que utilizam embarcações e apetrechos de pesca, capturando
peixes e crustáceos, a mariscagem é uma atividade considerada feminina
embora muitos homens a exerçam, resultando na captura de moluscos e
crustáceos manualmente ou utilizando armadilhas”.
Algumas entrevistadas fazem uso da definição “pescadeira” como uma
atribuição própria das atividades que desenvolvem. A pesca no feminino parece existir
apenas como um complemento ao trabalho exercido pelas atividades do homem no mar
e nas águas estuarinas, ao ponto do trecho ressaltar que o homem pesca, enquanto a
mulher é reservada a função de mariscar. À mulher é excluída a terminologia de
pescadora, aquela que captura também peixes e crustáceos.
Ao longo do processo histórico essa isenção está acompanhada dos mitos que
reservam para as mulheres o espaço de terra, porque apenas as Deusas podem habitar e
dominar as diversas águas18
. Elas são excluídas da pesca de alto mar, em alguns locais,
porque crenças míticas sinalizam que elas provocam azar nas pescarias. Ou a mulher
não devia entrar nos botes e nem devia tocar nas redes, arpões, ou anzóis, para não atrair
prejuízos à atividade masculina. Em outras comunidades tal contato só é considerado
perigoso, no momento da menstruação ou puerpério.19
As dificuldades no mar, as péssimas condições do barco, o cuidar dos filhos são
motivos que afastaram as mulheres da atividade no alto mar. Algumas pesquisadoras
ressaltam que a pesca é considerada e percebida apenas como um trabalho masculino
porque é resultado da construção social do que foi feito com o pescador no país.
17
Um acordo assinado pelos Ministros do Meio Ambiente e da Agricultura instituiu um grupo de trabalho
cujo objetivo era formular uma Política Nacional da Pesca, que possibilitasse ao Governo definir para o
país, ações concretas não só do aproveitamento do seu potencial pesqueiro marinho, estuarino e
continental, mas principalmente, da potencialidade da sua costa e de águas interiores no desenvolvimento
da Aqüicultura. 18
Neuza Maria de Oliveira no seu texto Rainha das águas, dona do mangue: um estudo do trabalho
feminino no meio ambiente marinho. Ver. Bras. Estudos Pop. Campinas, 1983. Disponível em
www.abep.org.br. Acesso em 21/07/2006. Apresenta que nas figuras mitológicas as mulheres são tidas
como as rainhas e protetoras do mar, como o exemplo de Iemanjá, Oxum, Janaina, Mãe D’água, Nanã e
as sereias. São tidas como donas das águas doces e do mar, são representadas por mulheres belas,
vaidosas que protegem os pescadores e mantêm com estes uma relação amorosa simbólica, não toleram
outra presença feminina nas suas águas, e esta seria a explicação simbólica do impedimento da mulher
pescar no alto mar . 19
Silmone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípio. São Paulo: Ática, 1986, 19.
Segundo Lidiane Góes20
a nomeação mulher pescadora é resultado de processos sociais,
históricos e culturais. A autora recorre à literatura sobre a História dos Pescadores no
país de 1840 a 1930, e ressalta que mesmo sendo consideradas pescadoras naquele
período foram excluídas dos planos do governo. Porque a regularização e
profissionalização da pesca realizada pela marinha, tinha como objetivo formar um
contingente de homens e de barcos disponíveis para garantir a segurança do país e essa
atividade não incluía mulheres. Segundo a autora no trecho 137 do livro de Silva21
consta um relatório de 1852 no qual existe o insucesso do Cadastramento da Marinha no
Pará, em virtude de os trabalhadores da pesca serem constituídos principalmente por
mulheres.
As diversas concepções e teorias da epistemologia feminista nos ajudam a
pensar o porquê da invisibilidade da mulher no setor pesqueiro. As teorias feministas,
baseadas na filosofia pós-moderna, propõem novas relações e novos modos de lidar
com processo de produção do conhecimento não mais voltado para a síntese das
determinações marxistas, mas para a descrição das dispersões22
Nessa perspectiva, Joan
Scott, vai dizer que o discurso misógino construiu uma divisão de trabalho que
privilegiou o homem.
O discurso masculino do início do século XIX exalta o homem e considera a
mulher como sexo frágil. Mas como explicita Joan Scott23
os historiadores não devem
ficar presos a esses discursos que afunilam para assim poder enxergar as diversas
experiências das mulheres trabalhadoras na história. Destaca ainda que a evidência não
existe em si, porque consiste numa construção da narrativa. Procuramos então, nesse
trabalho, a evidência por si mesmo e a construção dos sujeitos enquanto trabalhadoras e
trabalhadores da pesca.
Ao falar das suas experiências de vida, as pescadoras contam que são filhas de
pequenos agricultores e agricultoras que viviam da plantação da mandioca, como
20
Lidiane de Oliveira Góes. Os usos da nomeação mulher pescadora no cotidiano de homens e mulheres
que atuam na pesca artesanal. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2008. 21
Esse trecho encontra-se na obra de Luiz Geraldo Silva que escreveu: Os pescadores na História do
Brasil (Colônia e Império). 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1988,168 p. 22
Margareth Rago. Epistemologia Feminista: Gênero e História. In: Pedro, Joana Maria e Grossi, Miriam
Pillarm (orgs). Masculino, Feminino, Plural: Gênero na Interdisciplinaridade. Florianópolis, Ed:
Mulheres, 1998. 23
Joan Scott. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, n 20, v. 2, 1995, p
86.
também do trabalho nas lavouras de cacau e da pesca. Na cidade de Ilhéus nos temos
diversas tradições na arte de pesca. Tínhamos os trabalhadores que pescavam e
plantavam que são oriundas da zona rural e os pescadores que moravam nas zonas
ribeirinhas e costeiras. As pescadoras do Teotônio Vilela recordam da vida no campo,
do tempo em que conseguiam reunir toda a família para plantar e pescar. Enquanto que
no São Miguel, elas remontam ao tempo em que viver no bairro era partilhar o peixe
fresco na mesa que conseguiram com a pesca de calão, realizada no mar. A crise da
monocultura do cacau, a principal fonte de renda do município, gerou grandes
conseqüências para a cidade, como a concentração da população nos perímetros
urbanos.
Ao lado dos engenhos de açúcar a cultura do cacau foi plantada e desenvolvida
com base na experiência pessoal, ao longo do século XIX, a cidade viveu um grande
desenvolvimento econômico com o cultivo da lavoura cacaueira. Mas a economia da
cidade de Ilhéus começa a sofrer um grande abalo com a quebra da Bolsa de Valores de
Nova York em 1929 e teve a sua situação agravada a partir de 1957. A diminuição das
taxas de lucro do cacau devido à expansão da cacauicultura no Sudeste da Ásia
(Indonésia e Malásia) com alta produtividade, e a praga conhecida como vassoura de
bruxa (Crinipellis perniciosa) que atingiu a planta, provocou o desequilíbrio da
economia na região cacaueira. O abalo na economia do município ocasionou um grande
número de desemprego, de subemprego, expulsão dos trabalhadores do campo e
migrações do meio rural para a cidade.
O bairro do Teotônio Vilela surgiu na década de 1980, sendo ocupado por várias
famílias e grande parte da vegetação de manguezal foi aterrada para a construção de
casas. Já o São Miguel é conhecido como um típico bairro de pescadoras e pescadores
artesanais, local que passou por um processo de especulação imobiliária, por ser ponto
de parada de muitos turistas no verão e que atualmente luta para não desaparecer, em
virtude do processo de erosão, invasão das águas do mar.
Através das histórias de vida e trabalho das pescadoras percebemos o quanto os
seus papéis informais, as improvisações do dia a dia revestem-se em práticas que vão de
encontro ao poder disciplinador. Nas suas narrativas encontramos meios para refletir
como os significados atribuídos ao gênero perpassam pelas relações de poder vigente na
família, nas comunidades de pesca e no ambiente de trabalho. Ser mulher e pescadora
terão significados diferentes para o homem e para a mulher nas suas comunidades.
No Primeiro Capítulo ressalto a história de vida e trabalho das mulheres na sua
comunidade de pesca. Apresentando através das suas lembranças como era o seu
cotidiano na roça e como foram construindo as novas relações de trabalho. As suas
memórias ressoam uma determinação para o trabalho no campo diferente das atividades
desenvolvidas na cidade. A atividade da pesca que geralmente era desenvolvida por
toda família na roça torna-se um meio de sobrevivência para muitas mulheres na cidade.
A pesca para muitas mães solteiras representou uma alternativa de vida e uma prática
que lhes garantiu a liberdade e manutenção da sua família.
No Segundo Capítulo, trato das mudanças dos modos de fazer e de estar na
cidade a partir do que pensam a respeito das suas transformações. Como também elas se
reconhecem enquanto pescadoras e profissionais da pesca. Nas suas falas percebemos
como elas insistem na descrição das suas atividades diárias, como uma tentativa de
afirmação do seu trabalho. Apresento os costumes e os modos de fazer específicos das
pescadoras na feira, nas ruas, e como o seu comportamento e as suas relações de
trabalho são conduzidas pelas famílias de pesca.
Segundo Raquel Rolnik a cidade é um continente das experiências urbanas, além
de um registro, uma escrita, e uma materialização da própria história.24
A história das
mulheres parece seguir caminhos e percursos diferentes dentro do limite que
denominamos cidade. As maneiras de fazer, modificadas e reapropriadas muitas vezes
são postas para driblar as regras de conduta estipuladas pelas políticas públicas para as
pescadoras e pescadores no município. Para Michel Certeau25
, essas táticas e práticas
aplicadas pelos sujeitos em seu dia-a-dia são chamadas de antidisciplina. Diferente da
concepção de Michel Foucault de que tudo é controlado pelo poder disciplinador.
Os consumidores têm o poder de burlar e criar estratégias de resistência em
defesa da manutenção dos seus fazeres. Não estou pensando na teoria de Certeau como
um modelo de análise que servirá de molde para refletir sobre os modos de vida das
mulheres pescadoras, mas a sua percepção sobre as práticas cotidianas será um caminho
norteador para apresentar a pluralidade das suas experiências. As “artes de fazer”
também estão presentes na definição da cidade pelo sujeito que constrói o seu traçado
segundo os diversos caminhos escolhidos para serem percorridos em seu cotidiano26
.
24
Raquel Rolnik. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. 25
Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-
Petrópolis, R.J; Vozes, 1994. 26
Idem.
No Terceiro Capítulo pensarei na relação mantida entre as pescadoras e a
natureza. O que é ser pescadora e pescador artesanal diante de uma realidade em que o
meio ambiente degrada-se cada vez mais? De acordo com o Projeto GEPAM27
várias
experiências internacionais têm demonstrado que as mulheres se preocupam mais com a
situação do meio ambiente do que os homens. Há nessa perspectiva uma questão
vigente que envolve as particularidades de gênero que concebe a mulher como aquela
que cuida, a figura da mãe, a qual preserva o que é importante para os seus filhos. A
proximidade das pescadoras e pescadores artesanais com o meio ambiente garante um
conhecimento experimental que é característico da sua profissão?
A Etnobiologia tem demonstrado que os pescadores artesanais de águas
marinhas conseguem distinguir e reconhecer facilmente algumas espécies de animais,
devido à prática do manejo, do saber lidar com essas espécies. Em virtude dessa
aproximação com o meio ambiente, as pescadoras em Ilhéus também possuem um
conhecimento específico da natureza, portanto, vou procurar compreender quais as
particularidades dessa relação ao acompanhar as transformações que vêm acontecendo
nos seus modos de vida e trabalho.
Os saberes e valores das mães solteiras, trabalhadoras que criaram os seus filhos
a partir da atividade pesqueira são relembrados e discutidos. Cada história guarda
experiências únicas, mas que dialogam quando apresentamos o que é o conhecimento da
pescadora e do pescador artesanal, que é adquirido a partir dos costumes da sua família.
Os pescadores que vieram do campo realizam a atividade como um momento de
distração e mais um recurso que a natureza tinha para lhes oferecer. Mas a necessidade
muda à relação que essas pessoas tinham com o rio, o mar e a atividade pesqueira. As
relações de troca, solidariedade não são as mesmas entre as pescadoras e pescadores
artesanais. Nas entrevistas, as mulheres falam com sentimento dos momentos que
vivenciaram em seu cotidiano de luta e conquistas diárias. A vida dessas mulheres é
uma poesia de esforço diário pelo amor a vida e aos filhos.
Tecendo as redes de Informação
27
PROJETO GEPAM. Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional: Gênero, Cidadania e
Meio Ambiente. Prefeitura Municipal de Santo André. São Paulo: Linear B, 2004
O fato de o conhecimento historiográfico partir de uma construção ideológica
significa que ele está sendo constantemente retrabalhado por todos aqueles que, em
diferentes graus, são afetados pelas relações de poder, pois tanto os dominados quanto
os dominantes tem suas próprias versões do passado para legitimar suas respectivas
práticas28
. Segundo Alessandro Portelli em conferência proferida na Anpuh Nacional de
2009, o poder do historiador converte-se no poder que concebemos aos entrevistados de
falar a verdade e tal poder consiste em uma tarefa específica da História Oral.
Para a construção desse trabalho algumas entrevistas aconteceram de forma
descontraída nos quintais das casas, na sala de estar das mulheres pescadoras, e muitas
vezes no momento em que estavam catando o marisco. As depoentes mostraram-se bem
dispostas a realizarem as entrevistas. O número de depoentes foi se formando a partir da
indicação das entrevistadas. Muitas vezes, as pescadoras narraram as suas experiências
de vida de forma mais detalhada e elucidada fora das suas residências, quando faziam o
percurso em direção ao trabalho.
As palavras ditas pelo outro podem ter significado simbólico bem diferente e
representar sentimentos muito diversos daqueles que os historiadores orais pensam que
elas transmitem. As mulheres quando falaram das suas experiências no trabalho
expuseram mais abertamente sobre a sua labuta diária, e como aprenderam a “arte da
pesca”. Entretanto, a relação com os filhos e marido, geralmente não eram citadas pelas
mães que eram solteiras, ficaram resguardados esses momentos e sentimentos na sua
memória.
Por isso, o trabalho com História Oral requer a leitura das minúcias, dos gestos e
das maneiras de ser das pessoas que podem estar abertas ou não ao diálogo. Mesmo
porque lembrar do que, muitas vezes, querem esquecer é um momento de reflexão e
desgaste intelectual e sentimental para o entrevistado. Podemos considerar que realizar
uma entrevista em muitas situações pode torna-se até mesmo uma “invasão de
privacidade” onde não sabemos até que ponto se pode adentrar nas suas memórias. Nos
depoimentos das pescadoras temos situações de explosão de felicidade e de tristeza.
Para tornar o diálogo agradável e satisfatório é preciso saber lidar e respeitar todas as
circunstâncias e aprender com elas.
28
Jenkin Keith. A História Repensada. 2°ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 4.
Nos depoimentos das pescadoras estão os seus sonhos a sua maneira de viver e
as vivências passadas que também ensinam. Na história oral, o problema
epistemológico, como os historiadores utilizam as suas fontes é também um problema
de relações humanas.29
Para que a pesquisa realmente aconteça é necessário que o
pesquisador saiba lidar com os diversos momentos da realização de uma entrevista.
Porque a subjetividade do entrevistado está, muitas vezes, repletas de conflitos, anseios
que precisam ser compreendidos.
No desenvolvimento da pesquisa, por exemplo, houve mulheres que a princípio
não queriam falar, só quando adquiriram confiança que concederam o depoimento.
Outras gostaram de narrar as suas histórias e o ouvir gerava um sentimento de
reconhecimento e descoberta da sua identidade. As entrevistas foram realizadas, muitas
vezes, quando as mulheres catavam a carne do siri ou aratu, ou no momento que
limpavam peixe. A sua dinâmica de trabalho permanecia enquanto lembravam das suas
vivências. Essas entrevistas aconteciam de forma mais enriquecedora ainda, porque era
espontâneo o seu contar, mais do que se tivéssemos interrompido o seu trabalho para
conversarmos exclusivamente. A conversa saia com naturalidade, sem preocupação com
o gravador, o que quebrava de maneira satisfatória o nervosismo e preocupação pelo
depoente em se expor para os outros.
Uma das entrevistadas que a princípio não quis conversar pertence à comunidade
do São Miguel. Segundo a pescadora, a Universidade Estadual de Santa Cruz têm
desenvolvido muitas pesquisas na sua comunidade, mas sem retorno algum. Disse
ainda, que estava decidida a não conceder mais entrevistas aos pesquisadores da
Universidade Estadual de Santa Cruz. Estive na sua residência com uma representante
das Cáritas de Ilhéus e uma integrante da Pastoral da Pesca de Salvador que veio a
Ilhéus a convite das Cáritas, para ministrar um curso sobre os direitos previdenciários
para as pescadoras. Ela nos recebeu com uma deliciosa mariscada, foi quando estabeleci
o contato com a pescadora. Quando conversei com ela a princípio, estava decidida a não
conceder entrevista, mas no final do curso a pescadora terminou se dirigindo a mim e
disse que conversaríamos.
29
Memória Popular: Teoria, Política, Método. Grupo Memória Popular. Muitas memórias, outras
histórias. Déa Fenelon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida, Yara Aun Khoury. Editora
Olho D’água, 2005.
A história oral das mulheres reconhece as memórias de vários sujeitos sociais e
ao mesmo tempo faz com que elas próprias possam se reconhecer 30
. As mulheres
utilizaram o momento da entrevista para enfatizar também os seus direitos de cidadania.
Podemos perceber que a história oral permite explorar aspectos da experiência humana
que raramente são registrados tais como a vida doméstica, os costumes, e os
significados do que está sendo narrado.
Esse trabalho parte principalmente dos depoimentos das pescadoras, mas não
deixa de utilizar outros tipos de fontes, como as iconográficas e as fontes escritas. Elas
são utilizadas não para provar o que elas relatam nas suas entrevistas, mas para ajudar
na compreensão das mudanças e permanências dos seus modos de vida e trabalho. As
imagens são utilizadas, algumas vezes, somente como uma obtenção visual da
informação, como também é problematizada ao longo do texto.
Através dos estudos que foram elaborados pelas CEPLAC (Centro Executivo do
Plano da Lavoura Cacaueira) criada em 20 de fevereiro de 1957 para auxiliar os
cacauicultores na crise da monocultura do cacau, serão discutidos alguns aspectos
específicos sobre a pesca na região. A Instituição elaborou vários Diagnósticos sobre a
Pesca artesanal em Ilhéus, datados de 1946, 1975 e 1997. Esses documentos oferecem
muitas informações sobre as maneiras de pescar e os problemas relacionados à pescaria
Baiana. Os Diagnósticos estão voltados principalmente para o estudo da pesca marítima,
mas não deixa de apresentar dados importantíssimos sobre os instrumentos de pesca e,
também, sobre a condição e o modo de trabalho das pescadoras e pescadores artesanais.
Desenvolvi também pesquisa nos Arquivos da Colônia de Pesca, onde digitalizei
algumas Atas da instituição e estudei os cadastros dos pescadores que ainda não estão
digitalizados. Nos arquivos do CEDOC- Centro de Documentação e Memória Regional
da UESC, as notícias foram pesquisadas no Jornal Diário da Tarde, e no Arquivo
Municipal da Cidade de Ilhéus foram realizadas pesquisas no jornal Diário de Itabuna.
A imagem de formação do bairro Teotônio Vilela faz parte do arquivo da Associação do
Bairro, onde também foi pesquisada as Atas de Fundação e as outras imagens é
resultado da pesquisa de campo. As imagens utilizadas no texto não são utilizadas como
fonte, mas como uma ilustração que nos ajuda a pensar e compreender modo de vida
das mulheres pescadoras.
30 Silvia Salvatici. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. In: História Oral.
(vol. 8) (n.o1). Revista da Associação Brasileira de História Oral. Jan.jun.2005. p. 29-42
I CAPÍTULO
AS PESCADORAS E AS COMUNIDADES DE PESCA:
TEOTÔNIO VILELA E SÃO MIGUEL.
A gente começou a trabalhar nova, com dez anos
a gente capinava, a gente via o nosso pai e mãe
fazendo aí a gente fazia também. Quando a maré
estava cheia a gente trabalhava na roça quando
secava a gente ia trabalhar na maré.
Maria Helena de Castro
As pescadoras e as comunidades de pesca
As pescadoras realizam atividades das mais diversificadas nas comunidades do
Teotônio Vilela e São Miguel. A primeira está localizada na zona oeste no município e
possui uma extensa área de manguezal banhada pelo Rio Cachoeira e Rio Santana. A
comunidade do São Miguel, localizado na zona norte da cidade, consiste em um
alongado perímetro de terra banhado pelo Rio Almada e pelo Oceano Atlântico.
FIGURA 1: Localização da Área de Estudo (SEI e Adaptado do Programa Habitar
Brasil)
O município de Ilhéus é encoberto por vegetação de Mata Atlântica e possui
várias zonas alagadas de manguezais. As áreas mais representativas de mangue estão no
perímetro urbano e ao longo das margens e porções estuarinas dos rios Cachoeira,
Santana, Fundão e Almada. A forma irregular de relevo que compõe a estrutura do
município fez com que uma das formas de extensão urbana tenha acontecido através do
entulhamento do Manguezal.
Nos tempos áureos da lavoura do cacau a região atraiu muitos imigrantes e a
população crescia tão rápido que num período de trinta anos teve um aumento de mais
de 700%, saltando de 7.629 em 1890 para 63.912 em 1920 (Andrade, 2003). Mas o que
antes era de outras cidades vizinhas para as fazendas do município passou a ser do
campo para a cidade, em virtude da crise do cacau, o que causou o aterramento de várias
zonas de mangue e o surgimento de novos bairros31
, a exemplo do Teotônio Vilela,
bairro que surgiu a partir de uma invasão e que teve várias de suas zonas de mangue
aterradas.
Os pescadores camponeses que viviam da agricultura e da pesca familiar
migraram para a cidade em busca de outras oportunidades e, muitos deles, encontraram,
na pesca, uma fonte específica de renda. A crise econômica da lavoura, juntamente com
a crença de que a vida na cidade é melhor e a ausência de uma política que assegurasse
a permanência das famílias no campo gerou um processo de migração das famílias
rurais para áreas próximas do perímetro urbano.
O Diagnóstico Sócio-Econômico da Região Cacaueira de 1975 apresenta dados
indicativos do crescimento da população pesqueira localizada na sede do município em
virtude da transferência da produção agrícola das famílias para a captura do pescado32.
O Diagnóstico informa que nas concentrações localizadas nas áreas rurais existia um
número significativo de mulheres e crianças que participavam da captura do pescado
para consumo próprio.
As mulheres que pescam no município trabalham tanto no “mar de dentro”,
como no “mar de fora”. O mar, muitas vezes, é percebido como domínio do homem em
oposição à terra que é de domínio feminino. O mar subdivide-se em mar de fora, espaço
da pesca marítima e em mar de dentro (entre a praia e os arrecifes) onde tanto homens
como mulheres exercem as suas atividades.
Entre os pescadores brasileiros observa-se uma visão de mundo em que é
muito marcada a separação dos domínios da terra e do mar. No mar alto,
31
Ao longo das décadas de 1960 a 1990 nós temos a continuação dessa expansão onde são ocupados os
manguezais do Malhado, Avenida Princesa Isabel, Avenida Esperança, ao norte A Barra do Itaípe ou São
Miguel, Jardim Savóia e ao Sul encontramos zonas aterradas ao longo da estrada Ilhéus - Olivença. No
final da década de 1980 temos a formação do Bairro do Teotônio Vilela, a Rua da Palha e Vila Nazaré. 32
Pesquisa sobre a pesca artesanal em Ilhéus realizada pela CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da
Lavoura Cacaueira) no ano de 1994.
também chamado mar de fora, dá-se a atividade, por excelência, dos grupos:
a pesca de alto. No mar raso-mar de dentro, ou mar de terra-, além da pesca
de rede, que em muitos grupos também é uma atividade masculina, as
mulheres e crianças complementam a renda familiar com tarefas que vão
desde o artesanato e a confecção de instrumentos de pesca até o trabalho em
pequenas roças, onde produzem comida para o consumo familiar. 33
As pescadoras entrevistadas das comunidades do Teotônio Vilela e São Miguel
dividem as atividades com os pescadores nos rios, mangues e águas litorâneas da
comunidade. Nos seus depoimentos o que fica mais evidente é que a pesca no alto mar é
considerada uma atividade masculina por excelência e o gênero que exerce a função é
considerado como pescador. Mas as mulheres não costumavam exercer atividades
complementares, pois era costume trabalharem em família na atividade pesqueira.
No São Miguel as mulheres pescavam com a siripóia o siri no rio, mergulhavam
em busca da ostra, pegavam o camarão e o peixe. Pescavam também de rede, algumas
se aventuravam a pescar de tarrafa na praia, além disso, realizavam a cata dos diversos
tipos de mariscos e peixes que compravam dos barcos de alto mar e da pesca de calão.
Já no Teotônio Vilela, as mulheres costumavam trabalhar no mangue catando a ostra, o
aratu, o caranguejo, como também costumavam trabalhar na coroa na cata do muapen,
como também no rio na pesca do rubalo, siri, e diversas espécies de peixes de água
doce.
Através dos seus depoimentos vamos perceber que a migração do campo para a
cidade gerou novas relações de trabalho e formas diferenciadas de ser pescadora e
pescador. Mas ao longo do texto, também vamos discutir como as mulheres tornaram-se
pescadoras reconhecidas, colonizadas e vem lutando pela manutenção dos seus direitos
nos mais diversos setores da atividade pesqueira no município de Ilhéus. Ao passo que
ainda vem sofrendo de um preconceito construído pela sociedade que ainda tende a
dicotomizar as relações de gênero e, consequentemente, as suas diversas práticas.
“O pessoal foi construindo e colocou o nome de Teotônio Vilela”.
O Teotônio Vilela, lugar onde as pescadoras entrevistadas moram foi ocupado
por muitas famílias pobres que não tinham moradia própria e provenientes das roças de
33
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.
cacau. Para muitas pescadoras entrevistadas a ocupação do lugar significou um processo
de conquista pela moradia própria, as retaliações sofridas por parte do Governo não
foram suficientes para atenuar a luta que irá prosseguir pela melhoria do bairro.
O bairro está localizado na Rodovia Ilhéus – Itabuna e surgiu entre os anos de
1980 e 1990. No período de 1978 era apenas um aglomerado de pequenos sítios e
formado de terras devolutas do Estado. Os sitiantes viviam da produção de piaçava,
mandioca, caça, pesca e demais produtos agrícolas. No ano de 1985 era conhecido como
Gomeira34
, sendo formado de aglomerados de pequenas barracas, choupanas de palha
ou de tabunas e até mesmo de papelão como está demonstrado na imagem abaixo:
Figura 2: Formação do Bairro Teotônio Vilela (Fonte: Associação de
Moradores do Bairro).
Nas memórias das pescadoras entrevistadas do Teotônio Vilela, como
D.Tertulina (59 anos), D.Chica (54 anos), D. Cátia (34 anos), Helena (32 anos) e Sr.
Gileno (75 anos), D.Orenice (58 anos) e D. Inês (46 anos) estão presentes as histórias de
formação e crescimento do bairro.
34
Essa informação está registrada na Ata de reuniões dos membros da Igreja Católica Santíssima
Trindade localizada no bairro Teotônio Vilela.
A pescadora Cátia, 34 anos, filha de pequenos agricultores, morou e trabalhou
no campo durante a sua infância. 35
Além de trabalhar na agricultura com os seus pais e
os seus irmãos, costumava também pescar com a sua família durante os finais de
semana. Ela recorda com saudosismo da infância quando tinha toda a família unida no
trabalho e fala das primeiras impressões que teve quando se estabeleceu no bairro.
Segundo ela no tempo em que era “Gomeira não tinha casa nenhuma era tipo um sítio,
bicho de porco pra caramba, aí o pessoal foi construindo e colocou o nome de Teotônio
Vilela”.
O lugar deixou de ser sítio quando um grupo de duzentas pessoas ocupou o
espaço e durou cerca de vinte dias sendo desmobilizada pela polícia municipal. O bairro
ficou conhecido como Gomeira (em virtude da grande quantidade de goma de mandioca
que produziam) seria inicialmente, demarcado e dividido em lotes para serem
distribuídos entre as famílias carentes. Como todos os inscritos não foram alocados
gerou-se total insatisfação, iniciando um movimento de ocupação.
Foram várias as possibilidades pensadas pela política local pela utilização a sua
maneira do espaço. A Prefeitura Municipal pensou também em implantar um Centro
Administrativo Municipal, mas a população passou gradativamente a ocupar e tomar o
espaço. A luta e a reivindicação dos grupos populares permanecem pela melhoria do
lugar que conquistaram.
Os ocupantes para terem a situação regularizada frente à Prefeitura Municipal
realizaram várias passeatas pelas ruas centrais da cidade, exigindo também melhores
condições de habitação. O bairro formou-se a partir do processo de ocupação liderado
por pessoas representantes de Movimentos Sociais na cidade e devido ao rápido
crescimento da população e ao movimento de reivindicação por direitos o bairro foi
reconhecido oficialmente pelo Governo municipal em 11/07/1989 com o nome de
Teotônio Vilela.
Nos registros do jornal Diário da Tarde36
constam movimentos de protestos da
população onde organizaram passeatas e abaixo assinados reivindicando investimento
em infra-estrutura para garantir melhores condições de moradia no local, como
abastecimento de água, energia elétrica, posto médico, sistema de esgoto, transporte e
35
Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada em sua residência no dia 03.01.2009.
36
Moradores do Teotônio Vilela fazem passeata pelo centro. Diário da Tarde. Ilhéus, quarta-feira, 18 de
março de 1987./ Invasores do Teotônio Vilela querem garantia de habitação. Diário da Tarde. Ilhéus,
sábado e domingo, 26 e 27 de junho de 1986.
segurança. O bairro Teotônio Vilela cresceu e melhorou a sua infraestrutura em razão da
luta de representantes da população local. Para que as suas reivindicações estivessem
mais organizadas foi criada a Associação dos Moradores. Muitas das pescadoras
entrevistadas fizeram parte desse processo de formação do bairro, o que significou para
a sua família um momento de conquista pela moradia própria. Os seus depoimentos
relatam esse princípio como motivador para o processo de migração dos moradores
rurais do campo para a cidade. D. Inês diz o seguinte:
(...) a gente morava na roça, na casa dos outros, aí disse que teria um
negócio de uma invasão aqui, e aí a gente entrou nessa invasão também,
sabe; porque quem não tinha casa veio todo mundo para aqui, porque ia ter
cada qual seu pedacinho de chão e fazer a sua casinha. Aí agente veio assim
por isso. Porque isso aqui era um pedaço de terra isolado não morava
ninguém aí o pessoal resolveu invadir, aí veio todo mundo aí eu vim no
meio. 37
No Teotônio Vilela, nós temos uma junção de camponeses pescadores que
trabalhavam no regime de agricultura familiar assim como também pescavam para o
consumo familiar e para vender o produto nas feiras livres durante os finais de semana.
A migração desses pescadores camponeses para as áreas periféricas da cidade fará com
que a pesca se torne o seu principal modo de vida. Os grupos de trabalho dos pescadores
agricultores formam-se dentro da unidade familiar. Nas suas narrativas a pescadoras
apresentam que mesmo trabalhando na roça pescavam para o consumo e para vender na
feira nos finais de semana, gerando, portanto, um excedente de produção.
Os camponeses pescadores que migraram para a cidade salientaram nos seus
depoimentos que a atividade da pesca era intermitente as atividades no campo ou
realizadas para o consumo como para ajudar na renda da família. As diferentes relações
de trabalho no campo vão criar experiências outras de valor de uso da prática pesqueira.
Nas famílias em que os pescadores prestavam serviço nas fazendas, a atividade
pesqueira era realizada todos os finais de semana ou nos dia que não tinham serviço.
Essa atividade garantia uma renda extra para a família das pescadoras que recebiam
pelas diárias nas fazendas.
Entre as famílias que eram donas de pequenos sítios a atividade pesqueira era
realizada geralmente para o consumo diário. Já para as famílias que eram meeiras38
nas
37
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 38
O meeiro é aquele que tem contrato escrito com o proprietário da terra e desenvolve atividade
agropecuária, dividindo meio a meio as despesas e os rendimentos obtidos.
grandes fazendas a atividade pesqueira significava mais um meio de renda que eram
realizados tantos nos finais de semana, como nos momentos de descanso da atividade
pesqueira. A pluralidade de experiências e a necessidade que envolve a atividade
pesqueira no município de Ilhéus demonstram que não podemos ficar presos, mais uma
vez, à dicotomias que modela e generalizam tantos os modos de trabalho, como as
diversas experiências.
Por isso, através das histórias de trabalho procuro construir a história do
cotidiano da pescadora e das suas particularidades no trabalho da pesca, que enquanto
mulher sofre uma série de represálias no âmbito das representações públicas que ainda
estão impregnadas pelas representações misóginas de ser pescadora e da prática
pesqueira, que envolve na verdade uma variedade de atividades.
Eu morava em uma Ilha de pescadores...39
As pescadoras do São Miguel entrevistadas foram D. Nita (72 anos), D. Flávia
(56 anos), D. F. Júlia (60 anos), D Zó (44 anos), D.Dulciene (42 anos) e Sr. Antônio, D.
Omerita (71 anos), D. Valdecir (57 anos), José Carlos (58 anos). Nessa comunidade as
famílias viviam da pesca artesanal simples em que praticavam o artesanato, fabricavam
apetrechos de pesca e dedicavam-se a comercialização do peixe na sua comunidade, por
ser um local bastante requisitado pelo turismo.
Entre as mulheres entrevistadas temos as que aprenderam a pescar com outro
pescador ou pescadora artesanal e as que nasceram em famílias que sempre tiveram a
pesca como meio de sobrevivência. As pescadoras e pescadores do Teotônio Vilela,
como do São Miguel são considerados artesanais porque recolhem pouca quantidade de
mariscos e peixes e também por fabricarem a sua própria arte de pesca, como explicado
abaixo:
A pesca se caracteriza pela simplicidade da tecnologia e pelo baixo custo da
produção. Este tipo de pescador tem na pesca a sua principal fonte de renda,
e a produção volta-se para o mercado, sem perder, contudo seu caráter
alternativo, podendo destinar-se tanto ao consumo doméstico como à
comercialização. 40
39
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 40
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.
D. Eliúdes, filha de pescadores, cresceu no São Miguel em meio a pesca de
Calão e de rede no mar. O seu pai, migrante do estado de Pernambuco trabalhou em
diversas fazendas de Ilhéus até o dia que se estabeleceu como pescador no São Miguel.
Ela teve uma participação direta no espaço público da atividade pesqueira, pois durante
muito tempo trabalhou na Colônia de Pesca Z-34 como secretária. Ela entrou para a
colônia em 1966, como funcionária e, em 1984, foi eleita “pelos pescadores” como fez
questão de dizer, ao cargo de Secretária da Colônia de Pescadores Z-34.
Ao lembrar do tempo em que foi morar no São Miguel ressalta que muitos
pescadores estabeleceram-se no local com o consentimento da família Lavigne,
proprietária das terras, e construíram os seus barracos feitos de palha de coqueiro.
Segundo a pescadora também morou com a sua família em um desses barracos feitos de
palha que foi construído pelo seu pai e enfatizou que naquela época morava em uma
“ilha de pescadores”.
O São Miguel era matagal, coqueiral, sabe? Era o tempo em que à família
Lavigne era dona dessas terras todas, como chamar, para lá do Iguape, para
cá, São João, tudo era dessa família. E essa família, eles, não era assim,
gananciosa, porque o pescador chegou por aqui, e fazia o barraquinho deles
por aqui, em qualquer local, dessas terras, que era só de pescadores mesmo,
ilha de pescadores. 41
A comunidade do São Miguel é formada principalmente por famílias de
pescadores que sobrevivem da pesca artesanal. O povoamento do bairro data de 1896
quando pescadores fizeram, na restinga do São Miguel, uma favela de barracos cobertos
de palhas de coqueiro42
. Esse bairro viveu um processo de especulação imobiliária por
está localizado próximo ao mar e possuir uma riqueza natural privilegiada.
O bairro está sendo invadido pelas águas do mar, em virtude dos efeitos da
erosão que se intensificaram com a construção do Porto Internacional de Ilhéus na
década de 1960. Após a sua implantação e posterior ampliação, a praia de São
Sebastião, a sul do Porto sofreu crescimento e o seu trecho norte enfrentou um drástico
recuo da linha da costa43
. Para contornar a força do mar a população levantou proteções
por conta própria, mas no final da década de 1990 a Prefeitura construiu quatro espigões
em posição transversal para aplacar as forças das águas, porém não tem surtido tanto
41
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 42
Maria Palma Andrade. Ilhéus: passado e presente. Ilhéus: EDITUS, 2003. 43
Amon Chystian de Oliveira Teixeira. Caracterização do Processo Erosivo na praia do São Miguel,
Ilhéus, Monografia- UESC, 2006, p 08.
efeito segundo as pescadoras e pescadores do local. Vejamos o que diz a notícia datada
de 1988:
A prefeitura de Ilhéus vai iniciar no próximo mês de março a primeira obra
de enroscamento do bairro São Miguel, na zona norte da cidade, que há
mais de dez anos vêm sofrendo prejuízos estruturais em virtude da erosão
marítima provocada a partir da construção do prolongamento do Porto em
mar Aberto. 44
O relato da pescadora Dulciene e o seu irmão José Rodrigues, nos remete as
mudanças nos costumes e nas formas de pescar que são vividas em virtude das
transformações no setor econômico e ao mesmo tempo cultural. Eles são filhos de
pescadores que cresceram morando na beira do mar e acompanhando diariamente as
pescarias na comunidade do São Miguel. D. Cica, como é conhecida no lugar, recorda
do tempo em que era criança, e que esperava a pesca de calão para ganhar os peixes
miúdos para comer ou secar e vender nas redondezas da cidade.
As atividades desenvolvidas pelas mulheres no São Miguel geralmente
concentravam-se na aquisição do peixe pequeno pela pesca de arrastão e na confecção
de redes. Desde criança, eles aprenderam com os seus pais a serem pescadores, vendo
os mais velhos pescando e ao acompanhá-los nas pescarias diárias.
As pescadoras e pescadores entrevistados lembram com saudosismo das festas
que aconteciam todos os anos para o padroeiro São Miguel e no dia de São Pedro,
padroeiro dos pescadores. A festa era organizada com o apoio da Colônia Z-34 e dos
políticos locais. Um dia antes do acontecimento tinha a preparação do que as mulheres
chamaram de “profano” 45 que era o momento de oferendas á Iemanjá, a rainha das
águas. No dia da festa tinha a procissão e as brincadeiras como torneio de futebol,
gincana de pesca com tarrafa, corrida de canoa e a famosa procissão com as
embarcações. Além das barracas que vendiam comidas típicas e bebidas.
Era uma festa que resgatava a raiz do pescador e era esperada todo ano.
Eram brincadeiras, torneio de pesca e as mulheres cuidavam do lado
profano da festa (..) A festa acabou porque quiseram fazer da festa algo
que desse lucro. 46
44
Anunciamos o início das obras de enroscamento do bairro São Miguel. Diário da Tarde, Ilhéus, sexta-
feira, 27 de fevereiro de 1998. 45
Dulciene Costa Santos. (42 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009 46
Idem.
Para o pescador José Rodrigues (38 anos) esse costume significa hoje um “lado
morto da história” porque não realizam mais a comemoração. Os pescadores do São
Miguel apresentaram como justificativa para o fim da festa a morte dos antigos
organizadores, a falta de apoio da Colônia de Pesca e pela festa ter se tornado um objeto
de interesse estritamente financeiro. Vejamos a reportagem:
Numa promoção da Prefeitura Municipal de Ilhéus, Adebanorte e Colônia
de Pesca Z-34 prosseguem as festas em louvor a São Miguel, padroeiro da
bairro...O encerramento da festa será no dia 30, com maratona (7hs),
torneio de futebol (8hs), gincana de pesca com tarrafa (9hs), missa (10hs).
À tarde haverá corrida de canoa e a tradicional procissão marítima que
deverá contar com cerca de 20 embarcações. 47
A organização da festa por pessoas que não eram da comunidade fez com que o
evento fosse destinado ao turismo local e perdesse a sua identidade de festa religiosa
pensada e elaborada pela própria comunidade. Além disso, o que era mítico, a devoção
à padroeira e as forças da natureza podem ter deixado de ser tão contempladas por uma
geração que não quer seus filhos como pescadores ou pescadoras. Mas as pescadoras
entrevistadas insistem na ideia de que a invasão das águas do mar no São Miguel é
consequência do fim do festejo do padroeiro.
Como o pessoal disse aqui é mar, o mar tem dono né! E a gente sabe que
um dia vamos ter que sair daqui. O que eu penso é que depois que a festa
acabou o São Miguel começou a acabar, porque enquanto tinha essa festa
de lago aí, corrida de canoa, pescador que ajudava a Igreja, pescador
contribuía com a Igreja e tudo, a pesca era maravilhosa. 48
Os costumes religiosos que deixam de ser praticados reflete a mudança nos seus
modos de vida e a percepção dos grupos enquanto povo que constrói significados e que
precisam lutar pela sua manutenção que, muitas vezes são vistos no âmbito dos afazeres
e das práticas cotidianas.
47
Pescadores animados para a festa do São Miguel. Ilhéus- BA, Diário da Tarde, Ilhéus-BA, quarta-
feira, 26 de setembro de 1984.
48
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.
Entre o rural e o urbano
Nas suas lembranças as mulheres voltam para o tempo de infância, para as
recordações do trabalho na lavoura e na pescaria. Charles Almeida, na sua obra “Fartura
e Ventura Camponesas”, explica que contrárias a qualquer formatação do tempo as
memórias negam a cronologia rígida e linear do passado antes do presente, e este
precedendo o futuro.49
Nos seus depoimentos ficamos atentos para o vai e vem da
memória, dos sentimentos que afloram e das lembranças que permanecem pelas
experiências de uma vida no campo.
A maneira como constroem o seu passado ressaltam vivências plurais e
reafirmam a dificuldade no trabalho e as suas formas diárias de luta. A pescadora Cátia,
filha de pequenos agricultores morou e trabalhou no campo durante a infância. Recorda
que a sua família dividia as atividades entre a agricultura, durante a semana, e a pesca
nos fins de semana. Quando ela e os seus familiares vieram morar no bairro Teotônio
Vilela, ela tinha onze anos de idade. Na condição de mãe solteira manteve e ainda
mantêm o seu filho através da pescaria.
Ela lembra com saudosismo da roça, lugar onde ela e os seus irmãos brincavam
em frente ao rio e trabalhavam na lavoura e no beneficiamento do marisco. A pescadora
diz o seguinte sobre as lembranças do tempo de infância: “(...) eu gosto da roça, eu
gosto da roça, se eu encontrasse um sítio para trocar na minha casa, eu trocava. Eu gosto
de acordar com o canto dos passarinhos, é muito bom!” 50 Na roça, a sua família fazia
plantação de mandioca e de feijão e como o número de irmãos era bem extenso
costumavam, algumas vezes, dividir os grupos que iriam trabalhar no campo e os que
deveriam pegar ostra no mangue.
Já a pescadora Inês, 46 anos, mãe de seis filhos e filha de pequenos agricultores,
antes de se estabelecer na comunidade do Teotônio Vilela morou na zona rural da
cidade de Ilhéus. Ela costumava prestar serviço nas diversas fazendas da cidade.
Trabalhando de enxada, na plantação, raspagem e peneiração da massa de mandioca,
como em todo o processo de fabricação da farinha de mandioca. Ela aprendeu a pescar
com a sua mãe que tinha o costume de pescar no rio enquanto o seu pai trabalhava na
49
Charles D’Almeida Santana. Fartura e Ventura Camponesas: Trabalho, cotidiano e migrações: 1950-
1980. São Paulo: Annablume, 1998. 50
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.
roça. O seu pai recebia diárias pelo trabalho nas fazendas e quando não tinha oferta de
serviço também trabalhava na pescaria. A pescadora conta que:
Trabalhava de enxada, raspava mandioca...é peneirava a massa é
tudo...tudo que tinha de fazer mais leve assim a gente fazia...o mais
pesado era dos mais velhos...e os mais leve era trabalho nosso.51
Para poder vender o produto a sua família precisava acumular o pescado na
casca para conservá-lo, pois não tinham geladeira. No dia anterior à feira, salgavam o
pescado e no dia seguinte retiravam o sal para vender o produto. A dificuldade de
transporte tornava a venda muito exaustiva. Segundo D.Inês, no período em que
moravam na fazenda, o principal meio de locomoção da sua família era o barco. A
pescadora expõe “que hoje tudo é fácil, tem carro na porta, mas de primeiro tudo era de
canoa”52. Explica que depois de atravessarem o rio, tinham ainda que realizar uma longa
caminhada para chegar à feira do Malhado, quando não recorriam à carona de
caminhoneiros na beira da estrada.
Elas começaram a trabalhar ainda crianças, nas suas lembranças de infância
estão registradas as idas para o mangue com toda família. Ao lembrar da sua meninice
sente dificuldade de falar e a emoção torna-se presente em suas lembranças. Ela e os
irmãos pescavam com a sua mãe e o seu pai praticamente todos os dias.
A minha infância num foi boa não, pra falar a verdade do jeito que eu vejo
os meninos hoje, eu canso de dizer pros meus: -Vocês estão no céu. É por
que hoje em dia eles tem tudo pra aprender. Tem a ajuda do governo né!
Tem tudo isso e não querem nada...E a gente não. A gente tinha até vontade
de ir para a escola, mas não tinha ninguém para ensinar perto. Era roça...era
tudo mato. Então pra mim não foi muito boa não. A gente não tinha
liberdade, era só trabalhar mesmo e pronto (risos) quando a gente ia brincar
já estava sem graça. 53
A sua filha Rosa, pescadora e moradora do Teotônio Vilela conta que no período
que morou na Maria Jape, pescava ostra, muapen, siri e dividia o trabalho entre a roça e
a pesca. A sua família realizava a atividade pesqueira nos dias mais próximos dos fins
de semana, pois não tinham geladeira para armazenar e conservar o produto. Na sua fala
Rose utiliza o termo “trabalho” apenas para a atividade no campo.
51
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 52
Idem. 53
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.
As “crianças” das comunidades de pescadores camponeses, ou vice-versa,
tornam-se desde muito cedo adultas em relação à educação e ao trabalho, porque se
constituem aprendizes dos pais e assumem muitas responsabilidades nas tarefas diárias.
Nas experiências de vidas das pescadoras e pescadores artesanais percebemos como a
sua experiência de vida possui modos de fazer que se distancia de um modelo de
sociedade burguesa que ajudou a construir o que seria próprio ao período da infância.54
Durante as entrevistas muitas pescadoras relataram com lágrimas nos olhos que
não sabiam ler e escrever porque o seu pai não deixou e outras disseram que a distância
e o acesso à escola não permitiram que estudassem. A pescadora Inês, diz o seguinte: “a
gente tinha até vontade de ir para a escola, mas não tinha ninguém para ensinar perto,
era roça, era tudo mato!”55
A pescadora Rosa enfatiza o seguinte: “Tinha o dia da gente pescar e tinha o dia
de trabalhar” e explica também que era costume das mulheres agricultoras pescarem
porque, “era um tipo de bico que elas faziam né! Quando era chamada para trabalhar
elas iam, quando não era chamada ia pescar, era um tipo de bico.” Segundo a pescadora
nesse período era tudo muito difícil e diz não sentir saudades do campo. Além do lugar
onde morava não possuir energia elétrica era distante da cidade e para pescarem
precisavam fazer longas caminhadas. Quando não estavam pescando encontravam-se na
roça de cacau desenvolvendo várias atividades.
Nós trabalhávamos para os outros na roça de cacau, às vezes a gente
colhia o cacau, muitas vezes a gente capinava. Mãe ia com a gente e
colocava a gente tudo na roça lá cada qual com uma inchadinha. A gente
colhia cacau com podão, bandeirava. De tudo eu fazia!56
O trabalho de meeiro57
ou pagamento de diárias nas fazendas de cacau, sempre
representou para região cacaueira uma exploração excessiva da força de trabalho. O
modelo de latifúndio e monocultura que explorava e oprimia os trabalhadores e
trabalhadoras foram forças impulsionadoras que levaram a uma onda de migração na
zona rural para a cidade. Quando recordam do período em que trabalhavam na lavoura
discutem as alegrias de uma vida no campo, mesmo com tantas dificuldades. D. Rosa
54
Philippe Áries apresenta na sua obra: História Social da Criança e da Família (1981) que o sentimento
de infância foi construído ao longo da Idade Média pois na sociedade européia não existia a consciência
da particularidade infantil. Assim, a criança que tinha condições de viver sem a solicitude constante de
sua mãe ou de sua ama, ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes. 55
Idem, 2006 56
Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009. 57
Idem, op. cit., p.38.
ressalta que os melhores momentos de diversão eram as contações de histórias
realizadas nas casas dos mais velhos, na sua infância era costume aproveitarem a lua
cheia para a contação de histórias.
Era ajuntava todo mundo, assim do tempo que era lua cheia, aí juntava
aquela ruma de gente. Aí vinha todo mundo pra casa de um só, no caso lá
era o mais velho. Ai juntava todo mundo e íamos para lá ouvir as histórias
dos mais velhos. Fazíamos uma fogueira e ali ficávamos até a hora de
dormir. 58
Ao tempo que pensa nos bons momentos, a pescadora acentua que não gostaria
mais de voltar para a roça onde cresceu e trabalhou por muito tempo. Ela diz que não se
acostumaria mais com a falta de energia que ainda persiste e as intempéries da vida no
campo. As pescadoras constroem uma representação bucólica da vida no campo de um
passado de paz, simplicidade e sem ambição, e ressaltam as facilidades de uma vida na
cidade. Raymond Willians na sua obra “Campo e Cidade” remete as representações
construídas a respeito do campo e da cidade na Inglaterra precursora da Revolução
Industrial. O autor observa à construção de um mito de uma vida no campo inferior a
vida na cidade.
Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,
cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O
campo passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz,
inocência e virtude simples. À cidade associou-se a idéia de centro de
realizações - de saber comunicações, luz. Também constelaram-se
poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho,
mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e
limitação. 59
Nas falas das mulheres o ideal urbano é celebrado em relação ao campo,
contudo, os aspectos negativos levam as mulheres a buscarem a paz e o silêncio que
tinham na roça no seu trabalho na maré. Para a pescadora Maria de Cássia, filha de
pequenos agricultores e mãe de dois filhos, a pescaria era um momento de diversão para
ela e suas amigas. E “na roça era bom de viver, porque na rua é muita zuada, zuada de
som e na roça a gente não ver isso, por isso eu gostava de viver lá!”.60 O trabalho no
mangue lembra da vida na roça, pela tranqüilidade e silêncio que encontram no lugar.
Na coroa e no manguezal as mulheres estão longe da agitação da cidade e dos
58
Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009. 59
Raymond Williams. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p. 11. 60
Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.
problemas familiares. A pescadora Cátia ressalta que “é muito barulho onde a gente
mora e no mangue o silêncio é tanto que às vezes assusta” 61
Segundo as pescadoras hoje os seus filhos têm a oportunidade de estudar, de
brincar e “ser criança”, chance que não tiveram durante a infância. Elas começavam a
trabalhar ainda crianças, desenvolvendo as mais diversas atividades na lavoura e na
atividade pesqueira Algumas mulheres demonstraram-se constrangidas ao falar sobre as
suas brincadeiras de infância em virtude da falta de tempo que tinham para brincar. Elas
ressaltaram as dificuldades do seu tempo de criança e apresentaram que mesmo diante
das circunstâncias eram felizes porque tinham uma família para compartilhar as suas
alegrias e sofrimentos.
Maria de Cássia, entre sorrisos diz: “a gente não brincava muito não quando era
criança, eu não gostava de brincar não (...) nunca gostei de brincadeira.62
Já a pescadora
Orenice expõe que o trabalho na roça era muito exaustivo, por isso tinham pouco tempo
disponível para brincar. Ela tinha 58 anos quando foi realizada a entrevista, mãe de 8
filhos e 2 filhas mulheres, há quatorze anos trabalha na atividade pesqueira. Na roça a
sua família costumava pescar para o consumo.
Ela trabalhava na roça de “enxada, arrancando capim e fazendo plantação”.
Segunda ela, a sua vida era muito difícil e não tinham tempo para brincar, estudar e
muito menos namorar. Na entrevista, a pescadora fala entre risos quando lembrava que
precisava encontrar uma saída para fugir da forma controladora do pai para namorar
escondido. E ressaltou que foi a sua brincadeira favorita na roça: “namorar eu tinha que
namorar escondido, o velho era bravo minha filha, ele não deixada, até na feira quando
eu ia tinha que ir mais os meus irmãos.” 63
Ela enfatizou ainda que tentou voltar a
estudar quando veio morar no bairro Teotônio Vilela, mas não conseguiu continuar em
virtude da dificuldade de aprendizado.
A pescadora Helena ao lembrar da sua meninice diz que enquanto os seus pais
trabalhavam na roça de cacau, ela estava catando guaiamu, e com aproximadamente dez
anos de idade já ajudava os pais na roça e nas tarefas de capinar o terreno. Assim
recorda do dia-a-dia na roça.
Eu morava dentro da canoa. Não tinha nem casa perto onde ir...tinha que
trabalhar mesmo quando ela sai mais o pai. A gente ficava dentro do cacau
61
Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 03.01.2009. 62
Idem. 63
Orenice Paixão dos Santos. Entrevista realizada na sua residência no dia 05.01.2009
pegando guaiamu, eu não sabia ficar dentro do rio sozinha, ficava dentro do
cacau, fazia ratueira, ia pegar o guaiamu pela beira ali do rio. 64
Com cerca de dez anos de idade já trabalhava na roça de enxada, capinando e
também pescava. Segundo ela, “quando a maré estava cheia a gente trabalhava na roça
quando secava a gente ia trabalhar na maré”. As atividades eram realizadas por toda
família tanto no campo como na maré, as tarefas eram seguidas de acordo com a
observação do meio em que viviam e as necessidades da família. Na roça pescavam no
rio para o consumo, como também para vender nos finais de semana na feira da cidade.
Para a pescadora Júlia, mãe de Helena, o seu pai não gostava de pescar, mas a sua mãe
gostava por ter aprendido a “arte da pesca” com a sua avó. E ressalta que quando a sua
mãe não estava na roça com o seu pai ela encontrava-se na maré.
Quando saía da maré a gente ia pra roça pra plantar era milho, arroz, feijão,
abóbora. Após essa época a gente fazia um giral, ói, já tá em cima, lá fazia
de um ano para outro. Aí quando é hora da maré a gente tava na maré,
quando era hora da roça a gente tava na roça não perdia tempo não...Em
pescaria e roça, ninguém diz assim você não conhece isso não. Porque eu
conheço tudo. De manhã cedo meu pai dizia assim levanta, levanta que o
passarinho ta na roça. A gente era só pegar um paninho enrolar pelo braço,
molhava tudo. 65
A pescadora Júlia de Castro nasceu no ano de 1945 quando foi realizada a
entrevista ela tinha 60 anos. Ela é natural de Ribeira do Conde, fronteira de Sergipe.
Aprendeu a pescar com os seus pais e ao casar com o Sr. Gileno aos 25 anos de idade,
morou em uma fazenda em Ilhéus, localizada no Banco da Vitória, para depois morarem
no Teotônio Vilela. A sua filha Helena ao lembrar do tempo em que a sua família tinha
um sítio no Banco do Vitória, disse que tanto trabalhavam na roça como pescavam. Era
costume toda família participar das atividades, pois desde muito jovens precisavam
trabalhar tanto pela necessidade como pelo aprendizado. Segundo Maria Helena: “dez
anos, dez, nove, a gente começou a trabalhar nova! Com dez anos a gente capinava, a
gente via o nosso pai e mãe fazendo aí a gente fazia também”. 66
As pescadoras agricultoras viviam em um sistema intensivo de trabalho aliando
os afazeres no campo ao trabalho da pesca. As mulheres alternavam ainda o trabalho na
roça e no rio com o serviço doméstico. Elas lembraram com saudade da infância na roça
pela união que mantinham com toda a família, mas afirmaram que não tinham tempo
64
Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na residência no dia 12.11.2005. 65
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006. 66
Idem, 2005.
para brincar. A diversão para muitas das entrevistadas era trabalhar no mangue, ou no
rio com os seus pais. Mas não deixaram de ser criança e faziam do seu trabalho diário a
sua diversão. D Inês ao lembrar dos momentos de criança diz: a minha infância num foi
boa não, pra falar a verdade; do jeito que eu vejo os meninos hoje, eu canso de dizer
pros meus: vocês estão no céu!67
Muitas das pescadoras entrevistadas colocaram que estudar não era viável
porque, muitas vezes, a instituição de ensino ficava distante do local onde moravam e
porque a figura do pai não concordava que as suas filhas estudassem. Algumas
pescadoras falavam com lágrimas nos olhos da vontade que tinham de aprender a ler e
escrever. As mulheres dividiam as tarefas com os homens e ainda atuavam no serviço
doméstico, mas não possuíam os mesmos direitos de escolha na família.
Os pescadores agricultores e pescadoras agricultoras migram para a zona urbana
em virtude da falta de perspectiva que atravessavam no campo e em virtude do
desemprego que atingiu os trabalhadores rurais de forma acentuada a partir da crise da
monocultura do cacau na década de 1980. Nesse processo as mulheres são as primeiras
a perderem o emprego no campo. Uma notícia do Jornal Diário da Tarde datada de 1988
apresenta um movimento de protesto ressaltando essa prerrogativa:
As mulheres no setor de trabalho, apesar das conquistas que obtiveram com
a nova Constituição, ainda não promulgada, continuam em relação aos
homens em desvantagem, pelo menos na zona rural. É que os cacauicultores
simplesmente resolveram dispensá-las, ou então não admiti-las alegando que
o rendimento da mão de obra feminina é inferior a dos homens (...)68
.
O problema do fator desemprego na zona rural para essas famílias que viviam do
pluralismo econômico fez com que migrassem para a cidade em busca de melhores
oportunidades. O censo do IBGE 2002 apresenta que são 16 milhões de trabalhadoras
rurais e que enfrentam o trabalho mais precário e não remunerado. As que exercem
trabalho remunerado recebem 25% menos do que os homens, mesmo exercendo a
mesma função.69
Ao transferirem-se para a zona urbana, muitas mulheres exerceram no
município de Ilhéus a atividade da pesca por ser um costume já praticado no campo.
Nas suas atividades diárias continuam a usar os recursos da natureza no seu
cotidiano. Na cidade elas usam a lenha para ferver os mariscos e paus tirados do próprio
67
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 68
Lavoura Cacaueira dispensa mulheres. Diário da Tarde. Ilhéus, Sexta feira, 22 de junho de 1988. 69
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, Ilhéus, Bahia, 2002.
mangue para construir instrumentos de pesca. Mas o artesanato que antes era bastante
realizado pelas mulheres é substituído pelas linhas de nylon que podem ser compradas
prontas. Em muitas casas das pescadoras na comunidade do Teotônio Vilela os seus
quintais lembram à vida na roça pelo costume de criar aves e de plantar ervas
medicinais. As mulheres, mesmo vivendo na cidade mantêm determinados costumes
que praticavam no campo e defendem essa maneira de viver que está relacionada aos
seus modos de fazer e as suas experiências vividas ao longo do tempo.
A divisão das tarefas e a forma como as atividades pesqueiras passam a ser
praticadas ganha outro significado nas suas vidas e nas tarefas diárias. São diversas as
formas de organização ao nível do trabalho que inclui desde as atividades desenvolvidas
por toda a família, até o trabalho realizado pelas mulheres em suas comunidades de
pesca. As mulheres geralmente pescam acompanhadas por outras companheiras e essa
prática remete a atividade da pesca familiar. Muitas das entrevistadas são mães solteiras
que mantêm a sua família com o trabalho no mangue.
Elas possuem um saber peculiar que está relacionado à sua história de vida e a
maneira como fizeram-se pescadoras. Algumas entrevistadas, desde criança
trabalhavam na arte da pesca; para outras a atividade representou a forma de garantir a
manutenção da família. Os resquícios da dominação patriarcal estão presentes na
concepção que as mulheres possuem do trabalho e a crença de que ser pescadora tem
significados diferenciados. Em virtude da variedade dos modos de vida percebemos
como a convicção de ser pescadora parece tomar outra proporção quando voltam para o
momento presente. No discurso de D. Francisca está presente à afirmação de que o
trabalho na pesca começou quando passou a trabalhar com o marido na pescaria porque
foi assim que conseguiu adquirir o conhecimento da atividade pesqueira.
Bom...eu aprendi com o meu marido...o meu marido é pescador..aí ele me
levava ia tirar ostra...me levava aí eu não sabia remar ele me ensinou a
remar, me ensinou a tirar ostra da casca, me ensinou a ensacar. Aí o meu dia
a dia era com ele para cima e para baixo pescando.70
As mulheres, em alguns momentos da entrevista, tendem a consentir em sua fala
as representações dominantes da diferença entre os sexos. Elas tendem a reproduzir a
“violência simbólica” que mantêm a dominação do sexo masculino. As representações
de inferioridade masculina, incansavelmente repetidas e mostradas, inscrevem-se nos
70
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.
comportamentos e nas almas de umas e de outros.71
As pescadoras também estão
impregnadas da concepção dominante de que a “arte da pesca” é exclusividade do sexo
masculino.
A pescadora Francisca, também conhecida como D. Chica, ao recordar das
pescarias passadas lembra-se da coragem do seu companheiro falecido. Depois da morte
do seu marido, ela manteve os seus oito filhos através do trabalho na pesca. A pesca “é
um meio de vida” porque foi através desse trabalho que conseguiu sobreviver com os
seus filhos. As atividades que realizava anteriormente com o marido não é reconhecida
pela pescadora como um trabalho, mas é enfatizado como uma profissão por ela a partir
do momento em que ingressou na Colônia de pesca e tornou-se a principal mantenedora
da sua família.
O trabalho informal e sazonal realizado pelas pescadoras não é tido por D. Chica
como uma atividade profissional. Mas quando tornam-se as únicas beneficiárias da casa
é que começam a perceber-se enquanto trabalhadoras da pesca. Ela ressaltou que tentou
trabalhar em casa de família, mas que não conseguiu em virtude das exigências de
horário e do controle sobre o trabalhador.
Porque pra mim era melhor pescar do que trabalhar em casa de
família...porque a gente pesca tem aquele horário a gente ta em casa... se a
maré tá de manhã quando é uma hora duas horas a gente ta em casa...aí a
gente pesca ganha o dinheiro da gente
e também ganha o dinheiro da gente...olha os filhos...faz uma coisinha...lava
uma roupa...né...faz uma comida... então...para mim casa de família para
mim é mais ruim. 72
A atividade pesqueira possibilita as pescadoras uma maior liberdade e
disponibilidade para cuidar da casa e dos filhos. Longe da disciplina do trabalho em que
o empregador usa o tempo de sua mão de obra e cuida para não ser desperdiçado,
porque o que predomina não é a tarefa, mas os valores do tempo que é reduzido ao
dinheiro, às pescadoras possuem o controle do seu próprio tempo.73
A narrativa da pescadora Chica é repleta de emoção dos momentos de
dificuldade que vivenciou com o seu marido na pesca. Ela descreveu com entusiasmo os
71 Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.
Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995.
72 Francisca Maria dos Santos – Chica (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.
73 E. P. Thompson. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. Tempo, Disciplina
de Trabalho e Capitalismo Industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 268.
riscos, enfatizando sempre a coragem do seu marido. As narrativas das pescadoras são
acompanhadas de passagens sobre a virada do barco na maré forte, o risco de
afogamento no rio, o sumiço nos buracos do mangue ou o afogamento na travessia da
coroa. Para continuar o trabalho na pescaria ela passou a acompanhar a pescadora Nita.
Segundo Chica deslocavam-se juntos para a maré, mas “cada quem fazia a sua
pescaria”. A sua produção é individual e a sua cata, geralmente era realizada em família.
Já as pescadoras que geralmente costumavam ir com a mãe trabalhavam tanto na maré
como na cata do marisco.
A pescadora Nita, moradora da comunidade do Teotônio Vilela tinha setenta e
dois anos quando foi realizada a entrevista. Ela é filha de pequenos camponeses
proprietários de terra e mãe de doze filhos. Quando foi perguntada com quem ela
aprendeu a pescar, ela disse: “-Eu era pescadora desde menina, meu pai tinha calão...” O
costume de pescar no campo é trazida para a cidade com a saudade da vida na roça,
onde as redes de solidariedade eram outras. Segundo a pescadora, na fazenda da sua
família, plantavam, cultivavam, tinham criação e casa para fazer farinha e dendê. Eles
tinham uma pequena fazenda que ficava próxima à Ituberá, e depois que o seu pai
faleceu a família dela veio morar em Ilhéus. Na fazenda, além dos trabalhos da roça,
tinha também a pesca de Calão.
A gente trabalhava na roça, aí tinha dias que meu pai dizia assim: - Hoje a
gente não vai pra roça, hoje a gente vai pegar peixe. Ele tinha casa de fazer
farinha e fazer dendê. Então a gente fazia farinha, a gente fazia dendê.
Aquele beju dourado. 74
Segundo ela, toda a sua família juntamente com os trabalhadores da roça
trabalhava na pesca de calão. As relações de solidariedade entre os camponeses
pescadores eram comuns no seu cotidiano. Tanto o peixe pescado como o beiju e o
dendê feito era distribuído para os trabalhadores da fazenda. A pescadora sente saudade
do tempo que morava na roça e diz que naquele período viviam com muita fartura.
Vejamos a sua fala:
Não a gente fazia para dentro de casa mesmo, aí distribuía para os
trabalhadores. Ele criava aqueles porcos grandes e quando era São João ele
matava e distribuía com os trabalhadores. Era vida boa quando a gente era
mocinha que morava na roça, era vida boa, tudo barato, a gente não gastava
nada, não sabia quanto custava nada, era muito boa!75
74
Andrelita Caiu Batista- Nita (78 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 22.03.2009. 75
Idem, 2009.
A pescadora Omerita do São Miguel é mãe de dez filhos, como afirmou em
entrevista, criou os seus filhos “sem marido e sozinha”. Com setenta e dois anos
continua trabalhando na pesca do siri com uma de suas filhas. Ela trabalhou por muito
tempo prestando serviço em fazendas, até ser contratada em uma delas, onde
desenvolveu vários serviços como capinar e plantar. Mas nas horas que estava em casa
procurava pescar para a manutenção dos seus filhos. A pesca nesse período era garantia
da alimentação diária da família.
Ela diz que sempre trabalhou em roça, mas nunca deixou de ser pescadora,
porque aprendeu mesmo a pescar com a sua mãe no rio quando criança. Quando foi lhe
perguntado o que pescava; afirmou o seguinte: “quando eu comecei a pescar eu era
menina, pescava em rio de água doce. Sabe? Era beré, era traíra, piau, acari, era esses
peixes.” Assim como a sua mãe costumava pescar para a alimentação da família, ela
continuou pegando peixe quando podia para a alimentação diária. Depois a atividade
pesqueira passou a ser a sua principal fonte de renda. O sentimento de perda da vida que
tinham no campo é enfatizado pela pescadora, como também as dificuldades que passou
como empregada de outras fazendas.
A gente tinha uma rocinha, umas terras. Meu pai colocava roça pra gente,
plantava mandioca, plantava verdura, fazia farinha pra vender. Eu criava uns
porquinhos. E é assim que a gente viveu, se criou! Já no meu caso com os
meus filhos foi diferente, trabalhei muito em roça dos outros, muito, muito,
muito. As vezes eu chegava da roça, cinco horas da tarde, saia e ia pescar de
noite lá no pé de serra para poder pegar peixe para dar para eles comerem,
para no outro dia ir trabalhar de novo. Ah, minha filha, eu sofri! Tinha que
arrumar alguma coisa para deixar para eles comerem. Por isso eu digo que
eu já pesco a muito tempo. 76
A comparação que faz do tempo que morava na propriedade da sua família e
depois nas roças dos outros remete ao processo de migração dos trabalhadores rurais
para a cidade em busca de melhores condições de vida. Mesmo morando mais próxima
do perímetro urbana a pescadora continuou desenvolvendo e procurando trabalho nas
fazendas próximas da região. Algumas pescadoras costumavam enfatizar e se orgulhar
de terem criado sozinha os seus filhos. Essa necessidade de afirmação está relacionada,
em grande parte, à percepção da sociedade que, em muitas situações, age com
preconceito e torna invisível o trabalho feminino.
76
Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.
A pescadora Omerita lembrou também do tempo em que pescava de Jangada,
quando saia quatro horas da manhã e chegava ao escurecer. Ressalta ainda, que quando
pegava um peixe que precisava fazer muita força para retirá-lo de dentro da água tinha a
ajuda dos outros pescadores do barco. Ela faz questão de lembrar que pescou em alto
mar em situações difíceis e perigosas vivenciadas na pesca jangada. 77
Em uma notícia do Jornal Diário de Itabuna de 1958 o jornalista ressaltou que os
pescadores apresentavam uma mesma técnica utilizada pelos egípcios há dois mil anos
atrás. Ao tempo que faz uma crítica ao descaso do Governo que esquece dessa categoria
de trabalhadores, tendo em vista que devido aos ventos fortes as jangadas estavam
estacionadas na praia enquanto os navios japoneses, noruegueses e russos estavam
explorando o litoral brasileiro.
Ao olharmos o drama desses pescadores primários e pobres meditamos
sobre o nosso atraso e descaso do governo. Enquanto contemplamos as
Jangadas, encalhadas na praia, a duzentas, trezentas milhas da costa
brasileira navios japoneses, noruegueses e russos enchem os barcos
modernos na pesca do maior cardume de “atum” que se pode ter idéia.
Enquanto estrangeiros enriquecem na costa brasileira, pescadores nacionais
passam as maiores privações a que um ser humano está condenado. 78
Essas informações são importantes para pensarmos nas intempéries que os
pescadores e pescadoras artesanais têm enfrentado para manter a sua “arte da pesca”. D.
Omerita, discute as mudanças na “arte da pesca” como algo que é muito visível ao não
se ver mais jangadas estacionadas na beira das praias de Ilhéus. E com saudosismo diz
que “agora que inventaram o barco não tem mais pesca de jangada. Ali na rua do
sossego em Ilhéus, ali pescavam de Jangada.”79
A filha da pescadora Omerita apresenta o quanto é necessário às mulheres
acompanharem as mudanças nas artes da pesca. D. Valdecir conhecida como D. Val, é
pescadora, moradora do São Miguel e mãe solteira que tem sete filhos. Ela enfatiza que
quer um barco a motor e está trabalhando para isso, porque isso significa redução do
esforço que faz ao pegar no remo e andar longas distâncias pelas águas do rio. Enquanto
a sua mãe sente saudades das jangadas que ficavam estacionadas nas beiras das praias
da cidade, a sua filha afirma que quer um barco à motor.
77
Idem. 78
Diário de Itabuna. Na maravilhosa praia do Malhado. Itabuna, 11 de fevereiro de 1958, p.06. 79
Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.
As “artes da pesca” artesanais são repensadas por essas trabalhadoras que
continuam sobrevivendo à desigualdade da captura do pescado no mercado. O
beneficiamento do produto realizado por essas mulheres ao catar o siri e vender de
forma independente já é uma conquista delas no mercado da pesca. O que elas
produzem é tão específico que nenhuma grande empresa se colocou a tomar o seu
espaço.
Muitas “artes de pesca” são repensadas com o objetivo de melhorar a condição
de trabalho e, muitas vezes, com a capacidade de super explorar o meio ambiente. A
pescadora Omerita recorda do período em que foi morar no São Miguel e continuou
trabalhando na roça e na maré. Ao lembrar da pesca no São Miguel diz como era usual a
pesca de Calão nas praias do lugar. O que a mulher recebia do calão era sempre o peixe
pequeno e fresco em que preparavam os espetinhos às enfiadas. A pesca de calão é uma
das mais tradicionais da comunidade, ao descrever como era praticada tal arte, diz o
seguinte: “O Calão é uma rede bem grande. Aí eles vão, chega lá uns salta e vem
nadando para terra e eles lá vem soltando, soltando a rede. Depois vem pra terra, para
puchar a rede. Aí vem o peixe!”. 80
A pescadora Zó, filha de D. Omerita ao falar da infância conta com entusiasmo
que achava bonito e gostava de ver o peixe pegar no anzol. Depois que o seu pai
separou da sua mãe a pescadora disse que enquanto a sua mãe trabalhava na roça, ela
procurava pescar no rio para ajudá-la. Porque quando ela e os seus irmãos não tinham
nada para merendar procurava no rio a alimentação. A extração de peixes para as
agricultoras pescadoras era uma atividade praticada, principalmente, para a alimentação
da família. Inclusive a pescaria podia envolver todos os membros familiares sendo
também tida como um momento de descontração.
Algumas pescadoras entrevistadas ainda colocaram a pescaria como um
momento de diversão, tranqüilidade, onde esquecem os problemas e dificuldades do dia
a dia. O seu modo de trabalho é cansativo, mas está em contato com os lugares da pesca
possibilita às pescadoras o relembrar dos seus momentos lúdicos do tempo de infância,
ao passo que permite a elas estarem atreladas ao meio ambiente e aproveitar desse meio.
A produção que antes envolvia toda a família, agora está sendo executada por
alguns membros do grupo familiar que mantêm a tradição da arte da pesca. Através das
entrevistas percebe-se que nas famílias das pescadoras são poucos que seguem a
80
Omerita Maria de Jesus (71 anos). . Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010.
profissão de pescadores artesanais. Além disso, o que antes era tratado como uma
necessidade onde todos os integrantes da família participavam da atividade pesqueira,
agora é atividades de poucos dentro do círculo familiar. Poucos são os filhos e filhas
que acompanham os seus pais nas pescarias diárias.
A pesca no feminino
Na cidade de Ilhéus as pescadoras desenvolvem as suas atividades em diversos
lugares do manguezal da região, que possui um potencial relevante de crustáceos, tais
como: caranguejos, siris, guaiamus e aratus. Além de diversos tipos de moluscos como
ostra, sururu, mexilhões e outras espécies conhecidas regionalmente por lambretas,
muapen e sarnambi, encontradas em quantidade nas coroas81
. O espaço natural é um
local em que as pescadoras e pescadores artesanais conhecem e delimitam limites de
busca de extração de mariscos e também consiste em um espaço social e de domínios
compartilhados pelo gênero feminino e o masculino.
Para as pescadoras que trabalham na coroa e no manguezal só é viável trabalhar
durante a “maré morta” porque o mangue e a coroa precisam estar descobertos pelas
águas do rio. Elas referem-se ao Rio Cachoeira, ambiente de pesca, como “Maré”82
o
que está relacionado com a “maré de lançamento”, “maré baixa ou maré morta” e “cheia
ou maré grande”. Através do acompanhamento das marés as mulheres escolhem o
melhor local para desenvolver as suas atividades diárias.
A maré grande ela enche e vaza e a maré morta ela não vaza ela fica toda na
beirada do mangue, então ela não vaza, depois que a maré puxa lançamento
ela começa a encher, no horário certo ela fica toda seca. Então é o horário
melhor de pescar é quando ela vasa todinha ela fica no ponto do seu tempo
de sair 6:00 hs da manhã chega 2:00hs, né? 83
As pescadoras saem para o trabalho, orientadas pelo horário da maré, para
trabalhar na coroa ou no mangue e precisam saber qual é o horário da maré baixa para
realizarem a extração dos mariscos. Elas não seguem “o tempo do relógio” porque na
sua profissão existe uma interação de dependência em relação aos condicionamentos do
81
Pequenas ilhas de areia ou pedra que surgem quando as marés estão plenamente baixas. 82
Denominação referente às águas dos rios e mares. 83
Tertulina Ferreira Mota (59 aos). Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na residência de D.
Júlia e Sr. Gileno.
meio natural. A atividade extrativista das pescadoras depende justamente da dinâmica
da reprodução do mangue e do conhecimento que possuem do meio natural.
A “arte” da pesca é um conhecimento transmitido através da oralidade e do
acompanhamento da prática diária nos ambientes da pesca. Para exercer essa atividade o
indivíduo precisa saber lidar com os instrumentos de pesca e com a dinâmica dos ventos
e das marés. Esse conhecimento é passado de geração em geração e geralmente é
adquirido na família. Enfatizou a pescadora Inês, que todo o conhecimento que possui
da atividade pesqueira aprendeu com a sua mãe: “tudo o que estou falando eu aprendi
com ela, meu pai também pescava. Na idade de dez anos, doze anos, nós ia mais eles”.84
Nas suas lembranças da pescaria D. Júlia apresentou os conhecimentos herdados
da sua mãe. Ela explicou que dependia da prática diária escolher o marisco de
preferência para catar, das necessidades do mercado e de um conhecimento específico
para que a sua extração fosse bem sucedida.
No mês você pode pescar todos eles, e se você não puder pescar você só
pesca um. O sururu é um marisco bom, mas você para tirar uma quantidade,
ele fica enterrado na lama. Aí se você for tirar de dedo esbagaça a unha tem
que tirar na raiz da faca. A ostra não se fala que é agarrada na beira do
mangue, mas o sururu é o mais trabalhoso que tem. Então é uma pescaria
que você tira muito e não rende. 85
Os filhos das pescadoras e pescadores artesanais começavam a instruir-se “nos
segredos da maré” ainda crianças quando pescavam com os seus pais. Eles aprendiam a
remar, a nadar, qual a melhor maré para pescar, ou seja, na “maré morta” ou “maré alta”
e que marisco pescar em cada período. No regime de produção familiar todos os
integrantes da família participavam da atividade pesqueira. Na pesca a extração de
grande quantidade de marisco significava lucro para os familiares, então, quanto mais
pessoas exercendo a função melhor para a arrecadação familiar.
O seu cotidiano não era organizado por tempo definido porque é o tempo natural
que regulava as atividades que seriam realizadas. Embora inseridos na teia capitalista, é
o tempo natural, imprevisível e irregular que coordena o seu modo de vida. Elas se
fizeram pescadoras pelo profundo conhecimento do meio ambiente que foi adquirido na
prática cotidiana e pelo fato de sua família salvaguardar o conhecimento tradicional dos
84
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 (10 páginas). 85
Julia Dias de castro (60 anos). Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na residência de D. Júlia
e Sr. Gileno.
seus antepassados que é constantemente repensado e modificado. Para Thompson86
tradição envolve uma perpetuação de práticas e normas, que se reproduzem ao longo de
gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes.
A discussão a respeito da tradição foi a princípio secularizada pelo pensamento
cultural marxista, porque era compreendida apenas como uma permanência morta do
passado. Para Raymond Williams87
a tradição é o meio mais poderoso de uma prática de
um grupo não se subjugar às pressões dominantes, porque o que temos é uma “tradição
seletiva” que traz intencionalmente aspectos culturais de um passado no processo de
definição e identificação social e cultural.
Nas entrevistas das pescadoras percebemos como elas procuram identificar e
afirmar um passado na pesca através da sua lembrança cotidiana de uma vida no campo
em que praticavam a atividade para a venda e o consumo. Também percebemos como
os conhecimentos em relação ao meio ajudam como uma forma de afirmar a
continuidade do seu trabalho porque apresentaram o cuidado que possuíam com o meio
ambiente. Esses aspectos são intensificados com as críticas aos barcos pesqueiros, ou às
pessoas que recentemente ingressaram na atividade, e vem prejudicando a forma
artesanal de praticar a atividade pesqueira. Ao se apropriarem dessas “maneiras de
fazer” as mulheres procuram manter a sua forma de trabalho e a permanência do seu
modo de vida. Para Raymond Willians a tradição significa:
Um aspecto da organização social e cultural contemporânea, no interesse do
domínio de uma classe específica. São com freqüência pontos de recuo para
grupos na sociedade que foram deixados à margem por algum
acontecimento hegemônico particular. 88
As pescadoras artesanais através das suas práticas procuraram manter certos
costumes que estão atrelados as maneiras de ser pescadora e pescador artesanal. Com
isso, as pessoas que ingressaram na atividade precisaram estar atreladas aos interesses, e
comumente às maneiras de fazer e agir que dão significados aos seus modos de vida. As
pescadoras saíam para pescar, na maioria das vezes, acompanhadas pelos filhos ou pelas
companheiras de profissão. Pelo costume de pescar com toda a família e também em
virtude dos perigos que o meio natural oferece. De barco ou canoa e com instrumentos
86
Edward Palmer Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 87
Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar: Rio de Janeiro, 1979. 88
Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar: Rio de Janeiro, 1979, p.119.
de pesca específicos procuram o melhor local para a realização da cata do marisco ou
peixe. Essa imagem demonstra que é comum para a mulher pescadora sair em seu
barco, tendo como força motor do barco a sua própria experiência em manusear o remo
nas águas do rio.
FIGURA 3: Ida de barco para a coroa. (Fotografia de Pesquisa, 2009).
É comum também às pescadoras e pescadores artesanais dividirem o espaço no
mangue, na coroa e no barco de pesca. Podemos perceber na imagem que mesmo sendo
acompanhada por um homem no barco é a mulher detentora do seu barco de pesca que
assume a posição de guia e liderança do momento. Em cada espaço que circunda o rio
as mulheres e homens trabalham pegando uma determinada espécie de marisco. O
conhecimento herdado adquirido na família, ou com outra pescadora artesanal é que
lhes garante retirar uma boa quantidade do produto. O sururu, a ostra, o aratu e o
caranguejo são retirados do manguezal e cada um possui uma forma específica de
manuseio que garante a sua extração.
Algumas pescadoras quando lembram da infância, recordam o quanto foi difícil
aprender a pescar e catar determinado marisco. Nas entrevistas contam com entusiasmo
que quando crianças não conseguiam arrecadar nem um terço de marisco que
conseguiam na fase adulta.
Eu ia mais pescar, ia pra coroa com as minhas amigas (...) Nesse tempo
a gente só pegava pouquinho mesmo, a gente deixava para comer.
Nesse tempo eu não pegava muito, muito como eu pego agora não, eu
não tinha costume de pegar não (...) No dia que eu fui, eu peguei meio
litro de muapen (...) Hoje eu tiro quinze litros, dez, onze, doze. 89
Na coroa, as mulheres procuram afastar-se das outras no processo de extração
do marisco. Como é uma atividade que depende de muito empenho e esforço físico, elas
permanecem em silêncio trocando apenas algumas palavras ou cantarolando. Trabalham
com dedicação para catar o maior número possível de muapen enquanto o lugar
permanece descoberto pelas águas do mar. A pescadora Helena chegou a comparar o
local da Coroa a uma “feira” pela quantidade de pessoas trabalhando, e disse ainda que
o público incluía, muitas vezes, idosos e crianças.90
Figura 4: Mulheres pescando muapen na coroa. (Fotografia de pesquisa,
2009).
Pela imagem acima nota-se que a atividade depende de muito esforço físico e
causa sérios problemas de saúde, já que precisam ficar agachadas e cavar buracos na
areia para a retirada do produto. Muitas mulheres que trabalham nessa situação sofrem
de dores de coluna, nos braços, mãos e pernas pelo tempo prolongado do esforço e a sua
89
Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.
90
Maria Helena de Castro. Entrevista realizada na sua residência no dia 11.12.2006.
exposição ao sol dificulta ainda mais a condição de saúde. Elas ficam horas agachadas
durante a “maré baixa” cavando com pequenas enxadas os buracos em busca do
muapen. Na cata precisam ter manejo e rapidez na aquisição do marisco que facilmente
foge na areia. As mulheres procuram se proteger do sol, sempre com uma boina ou um
pano na cabeça. Além disso, precisam se resguardar da violência na coroa já que é um
local bastante isolado e propício aos riscos de todo tipo.
Figura 5: D. Inês na coroa em posição de trabalho.
(Fotografia de pesquisa 2009).
Elas costumam pegar mariscos como o sururu, siri, a ostra, e realizam a cata nas
suas residências com as suas filhas e filhos. Além de ajudarem, muitas vezes, as
pescadoras vizinhas que são as suas companheiras no serviço. Esse auxílio mútuo
facilita o trabalho árduo na cata do marisco e representa para as mulheres um momento
de socialização com os filhos, e, ou companheiras de trabalho. Depois de um longo dia
de trabalho, ao chegarem aos seus lares, dedicam-se aos fazeres domésticos, ao cuidado
com os filhos e no beneficiamento do produto através do seu cozimento e da sua cata.
Quando a maré dá de tarde a gente sai daqui mais tarde...Quando maré der
duas horas da tarde eu saio daqui dez horas do dia aí está com um pedaço do
mangue seco... Aí o resto do dia todo eu pego em casa, catando o marisco,
cozinhando, olhando os meus meninos, arrumando a casa e fazendo os
minhas coisas pra comer..né? Pronto...mais o meu dia a dia é no mangue...e
é um trabalho que eu tenho que é um trabalho fixo esse meu...porque eu não
tenho outro né? O certo é esse mesmo. 91
91
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.
Os riscos das picadas dos mosquitos levam as pescadoras a cobrir todo o seu
corpo no manguezal. Nesse ambiente deslocam-se com dificuldade, segurando pelos
paus de mangue, para chegar aos locais mais distantes e de fartura do marisco.
Geralmente vão acompanhadas para o mangue, a coroa, ou o rio, mas no momento que
estão no local cada uma assume um percurso individual.
Figura 6: Pescadora no Manguezal
(Fotografia de Pesquisa, 2004)
Na pesca do aratu, além de enfrentarem a dificuldade de locomoção no
manguezal, precisam ter muita paciência para esperarem o marisco pegar a isca e logo
depois jogam no balde. Sem fazer barulho enchem em questão de minutos o balde e
jogam toda a quantidade do marisco que vão arrecadando em um saco que irão carregar
pela lama, com muito sacrifício até a margem do rio. As mulheres do Teotônio Vilela
utilizam pequenos anzóis e esperam próximas às árvores do manguezal o animal sair
dos seus esconderijos.
No Teotônio Vilela costumavam percorrer vários espaços para escolher o local
de retirada do produto. Para isso, utilizavam diversos tipos de objetos, como enxadas,
foices, facão e faca. Segundo a pescadora Helena, a enxada é para o muapen, o facão é
para tirar ostra, a faca é para o sururu e o anzol tanto para pegar peixe como o aratu.92
Depois com seus sacos cheios do produto encontram-se para seguirem viagem de volta
para casa. Elas pegam no rio, o siri com a siripóia ou algumas espécies de peixes como
o robalo, ou curimam, peroá, carapeba ou traira etc.
FIGURA 7: Pescando aratu. (Fotografia de pesquisa, 2004).
As suas tarefas não estavam divididas porque participavam de todo processo,
desde o captura do marisco ou peixe, até a produção e à sua venda. As pescadoras e
pescadores artesanais mantêm os seus costumes também na permanência da utilização
de vários instrumentos de pesca que vem de um conhecimento passado de geração para
geração. A atividade pesqueira é realizada na região desde o período Colonial sobre a
influência da cultura negra, indígena e européia. Um tipo de armadilha de pesca
bastante utilizada pelas pescadoras e pescadores artesanais é o munzuá93
, apresentado na
foto abaixo. Armadilha feito de Canabrava, cipó retirado do próprio mangue, o munzuá
pega qualquer tipo de marisco ou peixe.
92
Maria Helena de Castro. Entrevista realizada na sua residência no dia 11.12.2006. 93
Consiste em uma armadilha feita de cana brava, traçada com malhas hexagonais, e figurando numa
seção de dois losangos unidos formando um ângulo.
FIGURA 8: Munzuá (Fotografia de pesquisa, 2004)
Carlos Ott94
encontra a identificação do munzuá como um tipo de armadilha
utilizada pelos pescadores da Bahia desde o período Colonial. Na cidade de Salvador e
nas cidades próximas é identificado o uso desses instrumentos de pesca pelos
pescadores locais. Nos depoimentos abaixo está inscrito qual a sua função e a descrição
de como o munzuá é produzido por uma pescadora.
Os pescadores da Penha (subúrbio baiano) nos informaram que, num
barco, levam grande número desses manzuás, atados uns aos outros,
colocando-os no fundo do mar, em lugares apropriados, que assinalam na
praia com uma palmeira ou outra qualquer marca bem visível, para que,
voltando a buscá-los no dia seguinte ou mesmo mais tarde, possam
encontrá-los facilmente. 95
Mede o tipo, o tamanho do manzoá, limpa a Canabrava depois você pega
aqueles taliscos coloca no chão e aí vêm com um nalho vai crescendo, vai
crescendo quando você vê que dá para você fechar ele no tamanho de
você colocar ele dentro da lama do mangue para fechar ele no tamanho de
você colocar ele dentro da lama do mangue aí você fecha, aí fica a entrada
do aratu, moréia. E aí atrás fica fechado, aí do lado você faz uma tampa
como mói de tirar o marisco que ta ali dentro. Tem que fechar duas
tampas tem uma no meio, uma aqui em cima na boca...e a outra em baixo. 96
As suas falas apresentam a sabedoria adquirida na prática diária discorrendo a
respeito da forma de uso de manejo dos instrumentos e a sua melhor utilização para uma
boa produção. As mulheres sempre foram artesãs dos instrumentos de pesca porque
costumavam fabricá-los tanto para o uso familiar como para a venda. As pescadoras e
pescadores sempre utilizaram vários tipos de instrumentos, inclusive a tarrafa,
costumeiramente utilizado na pesca que envolve toda a família porque é grande o
94
Carlos OTT (OFM). Os elementos culturais da pescaria baiana. Boletim do Museu Nacional. n. 4. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p.33. 95
Ibid,1944, p.33. 96
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.
esforço físico para jogar a rede ao mar. A tarrafa é um elemento cultural português, mas
que passou a ser bastante utilizado pelos povos indígenas. 97
Ao estudar a nomenclatura de crustáceos e moluscos dos pescadores do
Recôncavo, este autor constatou também que a influência da língua indígena é mais
acentuada. Através dos estudos dos viajantes, ele chegou a ressaltar que no século XVI,
pescadores do Recôncavo Baiano, saiam quase exclusivamente das aldeias indígenas.
Ele descreveu ainda que Gabriel Soares98
ao estudar a vila dos pescadores do
Recôncavo Baiano apresentou que bastava para os moradores da vila o peixe, a farinha
de mandioca e as bananas que eles mesmos cultivavam no local. Além disso, era muito
presente um sentimento comunitário entre os pescadores da Vila de São Francisco que
se ajudavam quando alguém sofria um problema de saúde.
Na Vila de São Francisco (...) conversando com um deles que estava
doente, perguntamos-lhe quem arranjava nesse tempo, os peixes para ele e
para a família. “Os outros” respondeu-me ele. Mas como o senhor compra
deles?“-Qual nada, não tenho dinheiro: eles me dão tantos peixes quantos
preciso, e, quando eu ficar bom, ajudarei a quem estiver doente! 99
As pescadoras demonstram essa solidariedade na sua prática cotidiana ao levar
a companheira das pescarias em sua canoa100
, ao emprestar a sua geladeira para a outra
guardar o seu marisco, ao ajudar na cata do marisco. Essas práticas são vivenciadas nas
comunidades e as famílias sempre recorrem às relações de compadrio ou vizinhança nos
momentos difíceis.
A primeira entrevista da pesquisa foi realizada na casa de D. Júlia e o Sr. Gileno
na comunidade do Teotônio Vilela. Na sua residência encontravam-se mais duas
pescadoras: a sua filha Helena e a pescadora Tertulina, uma vizinha. A forma como
trataram à entrevista lembra o trabalho que desenvolvem na pescaria, sempre em
grupos, deslocando-se para os ambientes de pesca.
As suas narrativas trazem muita riqueza de relatos, como a sua determinação
para o trabalho, o lucro com a pesca e como a atividade é a principal fonte de
subsistência para a família, mantenedora dos conhecimentos da arte. Ao comparar o
97
Segundo Carlos Ott a tarrafa é incontestavelmente um elemento cultural português, que propagou-se no
tempo pós-colombiano, com tal rapidez entre os indígenas brasileiros, que hoje em dia parece um
elemento cultural ameríndio, pois entrou até na mitologia indígena. 97
98
Através do estudo das cartas jesuíticas o autor procura compreender a partir das descrições de G.
Soares as características culturais do pescador do Recôncavo. 99
Carlos OTT (OFM). Os elementos culturais da pescaria baiana. Boletim do Museu Nacional. n. 4. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 100
São feitas de um tronco de árvore que dependendo do tamanho pode levar cerca de cinco pessoas.
ontem e o hoje D. Júlia expõe que foi agregado um valor maior ao produto que pescam,
contudo a quantidade de marisco que pegam é bem menor de quando começou a pescar.
Hoje o valor que conseguem arrecadar na venda do produto é melhor, entretanto, a
quantidade que conseguem retirar é menor.
Eu tô gostando daqui, porque ainda acho que o marisco sendo pouco, mas o
dinheiro é mais. E lá naquela época eu não pescava pra vender era pra gente
comer, só vinha mesmo o caboje, e o bobo, porque a gente secava ele e
vendia na feira. Quinhentos rés, dez tostões, naquela época, agora dez
tostões é um real. Tudo barato no início um tustão, .uma peça de farinha era
quinhentos rés, mil e quinhentos. 101
A sua filha Helena, nascida em 1973, recorda que quando criança o momento da
pescaria era um espaço para a diversão e, ao mesmo tempo, deixa implícito que essa
atividade exigia tempo, esforço e muita dedicação para ser executada. Ver a mãe
pescando já era um motivo para reproduzir e feito e passar a executar a atividade.
Era criança. Eu catava gaiamu, porque eu não sabia catar como cato aqui,
nem sabia pescar. Eu ia pescar mais os outros mais não sabia direito se ia
pro fundo, eu me esforçava porque eu era pequena, também pescava de rede,
eu ficava na beirada, então eu ia pescar pela beirada, não sabia remar, vim
aprender aqui. 102
Outro marisco retirado pelas mulheres é o sururu, extraído da lama do mangue,
pegam também a ostra de mergulho no rio ou podem removê-las das pedras dos
manguezais com pequenas marretas. A pescadora Eliúdes103
, moradora do São Miguel,
lembrou que no tempo em que pescava o muapen, o marisco, era conhecido como
“cochinhas” e que pescavam apenas para o consumo familiar. No São Miguel, o
pescado que geralmente as mulheres ganhavam dos pescadores que trabalhavam na
pesca de calão, era utilizado na venda do espetinho ou para consumo das famílias.
Nas comunidades pesqueiras as mulheres são encobertas culturalmente pela
identidade coletiva masculina, mas elas integravam a força de trabalho, seja
gerenciando o consumo da família ou produzindo alimentos e insumos para a pesca. Na
cidade de Ilhéus o esfacelamento da pequena produção no campo e o processo de
urbanização fez com que a prática da pesca artesanal passasse por mudanças que vêm
101
Julia Dias de Castro. Entrevista coletiva realizada na sua residência no dia 12.11.2004. 102
Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 103
Maria Eliúdes Oliveira da Silva (73 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 30/04/2007.
descaracterizando cada vez mais o perfil e os modos de vida das pessoas que praticavam
a atividade pesqueira.
No São Miguel as pescadoras e pescadores artesanais lembram que sempre
viveram da atividade pesqueira sendo pescando para o consumo, ou para atender as
outras necessidades. A pesca realizada por toda a família tinha na extração dos recursos
naturais a sua própria sustentação porque tudo que precisavam para pescar retiravam do
meio natural. Os instrumentos que as famílias de pescadores produziam ainda são
artesanais, mas a base desses instrumentos é composto de elementos industrializados.
Antigamente as marisqueiras utilizavam o barbante para cochar o fio, hoje é
industrializado; fazia com uma espécie de madeira nativa que dá na beira do
manguezal também, o que a gente chama de curtiça, que a gente utiliza
como bóia, que é para a rede flutuar, até as cordas que a gente utiliza para
fazer as tralhas da rede era tudo artesanal que era de tiçal. 104
Podemos perceber que o pescador atribui à mulher marisqueira a função de
cochar o fio que hoje é industrializado. O Sr. José Rodrigues, pescador artesanal da São
Miguel, nasceu e cresceu vendo os seus pais trabalharem na atividade pesqueira. A sua
mãe além de costurar a rede para a sua família, também produzia apetrechos de pesca
para vender e procurava alternativas que suprisse as necessidades da sua família, como
vender os peixes as enfiadas pelas praias do São Miguel, caminhando pelas ruas da
cidade, ou nas feiras durante os finais de semana.
As atividades das mulheres pescadoras nas comunidades de pesca eram bastante
diversificadas e sempre procuraram as mais variadas formas de obter o lucro. Essa
forma de lidar e de mudança das práticas ao longo do ano, provavelmente, provocou
também a invisibilidade do trabalho da pescadora. Elas fazem o trabalho da pesca
artesanal porque retiram da natureza os elementos necessários a sua sobrevivência e
confeccionam a mão os seus próprios instrumentos de pesca, e capturam um quantidade
baixa do produto. As pescadoras e pescadores artesanais continuam produzindo os seus
instrumentos de pesca, mas agora a base de nylon e de boias plásticas. Esse trabalho
realizado principalmente pelas mulheres levava horas para ser realizado e não deixava
de contar com a ajuda dos filhos e das filhas.
104
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
O modo de trabalho da comunidade permanece artesanal pela interação que os
sujeitos possuem com a natureza, pelo costume de pescar em pequenos barcos e lidar
com antigos instrumentos de pesca e pela própria construção da afirmação em ser
pescadora e pescador artesanal. Nesse ínterim, vamos perceber também que as relações
e as tarefas desempenhadas pelas mulheres e homens não serão as mesmas, ou
necessariamente, não serão percebidas da mesma forma.
II CAPÍTULO
A MULHER NA MARÉ: O COTIDIANO E OS
MODOS DE VIDA
Ser pescadora pra mim é uma profissão muito
boa..né, é você ser profissional. Alguma
pescadora pra dizer eu sou pescadora tem que
ser profissional, tem que ser colonizado, tem
que ter sua carteira de pesca né; e pra mim é
muito bom ser pescadora, muito bom!
Francisca Maria dos Santos
As Lembranças no tratar da pesca, do lar e dos filhos.
As mulheres desenvolvem atividades na pesca e no lar, além de cuidar dos filhos
e dos afazeres do lar, as pescadoras apresentaram nas entrevistas que sempre
trabalharam no reparo dos apetrechos de pesca, no beneficiamento do produto,
limpando e aprontando o peixe para a comercialização. Segundo a pescadora Eliúdes105
,
ela e os seus irmãos costumavam ajudar o seu pai na pesca de rede para pegarem o
peixe pequeno, que limpavam, secavam no varal e salgavam para vender o peixe seco
pela praia, caminhando pelas ruas ou nas feiras da cidade. O dinheiro arrecadado com a
venda desses peixes era utilizado principalmente pelas mulheres para comprarem o que
necessitavam.
As pescadoras do São Miguel recordam que não era costume pescar siri para a
comercialização, porque geralmente pegavam para o consumo familiar. A Srº Eliúdes,
trabalhou durante muito tempo como secretária da Colônia de Pesca Z- 34106
de Ilhéus e
em entrevista enfatiza que eram poucas as mulheres que realizavam o registro da
Colônia de Pesca, porque os direitos trabalhistas não eram iguais para os homens e
mulheres que trabalhavam na atividade pesqueira.
Antigamente, eu pescava de rede, eu pescava de anzol, agora, não era muito
de pegar caranguejo, se tivesse de andada pegava, agora aratu eu gostava de
pegar, mas aquilo ali tudo era pro consumo, consumo de marisco, né, era pro
consumo. 107
Os homens eram os únicos representantes legais das famílias de pescadores. A
partir da década de 1980, a Constituição de 1988 garantiu alguns direitos para as
mulheres e, em consequência de situações como a morte do marido ou separação e
conscientização de que os seus direitos também fossem garantidos, as pescadoras
gradativamente tornaram-se sócias da Colônia de Pesca Z-34. Mesmo exercendo
atividades com os seus maridos, as mulheres não tinham a preocupação em se
cadastrarem nas Colônias de pesca.
105
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 106
Colônia de Pesca localizada no bairro do Malhado em Ilhéus- BA, tendo como primeiro local de sede
o bairro do São Miguel depois que foi transferida. De acordo com pesquisas realizadas na Colônia de
Pesca durante a graduação e o Projeto de Pesquisa sobre “Os pescadores artesanais: Mudanças e
Permanências nos modos de vida e trabalho”, verificou-se que a partir da década de 1980 houve um
aumento no número de mulheres cadastradas à Colônia de Pesca Z-34. 107
Idem, 2007.
A situação de mãe e esposa levava à mulher a subalternidade na representação
da atividade profissional. A Srº Elíudes recorda que enquanto ela e seus irmãos
ajudavam o seu pai na pesca de rede no mar, a sua mãe costurava as redes, produzia os
instrumentos e cuidava dos afazeres domésticos. As atividades das mulheres estavam
dividas entre o pescar, o confeccionar as redes e os trabalhos no lar.
No tratar do beneficiamento do produto as pescadoras sabem que a forma não é
a mais adequada de higienização, porém, é a condição de trabalho que possuem. Na
imagem apresentada, a pescadora escolhe o próximo siri que será catado, com uma faca
de mesa elas apresentam muita rapidez nas mãos para a retirada da carne do marisco.
Figura 9: Pescadora catando siri (Fotografia de pesquisa, 2004).
O trabalho em casa é uma extensão do trabalho que realizam na maré, porque em
meio ao cuidado dos filhos e do lar, as mulheres terminam de preparar o produto para
ser comercializado. A divisão sexual do trabalho é considerada como um aspecto da
divisão social do trabalho e nela a dimensão opressão/dominação está fortemente
contida. Além disso, é acompanhada de uma hierarquia clara do ponto de vista das
relações sexuadas de poder, que gera relações de exploração e opressão entre duas
categorias de sexo socialmente construídas.108
Algumas entrevistadas continuam reproduzindo a idéia de separação das tarefas,
considerando especialmente como trabalho as atividades realizadas pelo gênero
masculino. As pescadoras mesmo realizando diversas funções na atividade pesqueira
108
Helena Hirata. Nova Divisão Sexual do Trabalho: Um olhar voltado para a empresa e sociedade. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
ainda não têm as suas atividades reconhecidas. Mesmo porque, muitas vezes, só é
considerado trabalho aquilo que se localiza na esfera produtiva da sociedade. Como as
mulheres não são tidas como pescadoras, elas não têm acesso a créditos e recursos
financeiros (barcos e apetrechos) e serviço de extensão a fim de aumentar-lhe a renda e
produtividade. Para a pescadora Chica a pescaria representou o meio que garantiu a
sobrevivência dos seus filhos depois que o seu marido faleceu.
Não dá para levar comida, como ia levar comida com um saco? Ou uma
coisa ou outra, então eu deixo de comer, o corpo já está habituado naquilo.
Às vezes eu chego do mangue, pergunte a minha menina, vou cozinhar
aratu, depois que eu cozinho meus aratu que eu boto para esfriar que é que
eu vou tomar um banho e às vezes eu vou catar o aratu...só vou comer na
hora de dormir! 109
O marisco que antes era destinado ao consumo das famílias, e era catado para
auxiliar nas despesas diárias nas casas das pescadoras-agricultoras, agora são catados
como a principal fonte de renda da família. A pesca familiar que era bastante comum
entre os pescadores artesanais do São Miguel que estava direcionada para a pesca do
peixe, passou a ser exercida por alguns membros da família, em virtude de terem
migrado para outras atividades. Ao passo que na atividade pesqueira a família passou a
pescar e catar tipos diferentes de mariscos, peixes e crustáceos.
A diversidade de produtos pescados fez com que a renda da família não ficasse
dependente de apenas um produto da maré. Com a implantação do defeso110
de
determinadas espécies, as famílias ficaram impedidas e condicionadas à proibição de
pescar a espécie escolhida. A variedade de produtos pescados também pode ser
considerada uma tática que encontraram para driblar e sobreviver às normas
condicionadas e evitar que determinadas espécies de peixes e crustáceos sejam extintas.
Pescar o siri, o camarão, o robalo, a tainha, a carapeba, é algo praticado entre
algumas famílias do São Miguel. De acordo com as necessidades do mercado e do seu
rendimento as famílias das pescadoras e pescadores concentram as suas atenções na
pesca de determinado produto. Mesmo no defeso elas procuram outras atividades que
garantam o sustento da família a partir do seu próprio trabalho e não apenas com o
auxílio garantido pelo Governo no período do defeso.
109
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 110
Época do ano em que as pescadoras e pescadores são proibidos de pescar determinado tipo de espécie
no período da sua reprodução.
As pescadoras possuem uma maneira particular de viver e de estar nos lugares
de pesca. Podemos perceber através dos depoimentos que a atividade pesqueira garante
às mulheres uma liberdade e que, muitas delas, não conseguem se adaptar a uma outra
maneira de fazer. É muito difícil para as mulheres serem vigiadas e controladas por um
poder que dita as regras de como devem agir. No trabalho da pescaria é construída uma
noção própria de controle do tempo e da divisão das tarefas entre a atividade e o lar.
Elas comentaram nas entrevistas que não conseguiram se adaptar as exigências e os
horários que deviam ser cumpridos ao exercerem outras atividades.
Pra mim era melhor pescar do que trabalhar em casa de família...porque a
gente que pesca tem aquele horário que a gente ta em casa... se maré dá de
manhã quando é uma hora duas horas a gente ta em casa...aí a gente pesca
ganha o dinheiro da gente e também olha os filhos...faz uma coisinha...lava
uma roupa...né? Faz uma comida... então...para mim casa de família para
mim é mais ruim porque casa de família para mim tem aquele horário não é
Tertulina? Chega sete sai seis entra oito...não tem aquele horário certo..E pro
baixo de ordens né? Tem que fazer o que o patrão manda né? E na pescaria
não (...).111
Eu gosto de pescar, teve uma vez que eu fui trabalhar numa casa de família e
não gostei. Tem uma que eu não gosto de ser mandada. Aí eu disse, eu vou
trabalhar numa coisa pra mim mesmo, eu não vou ser mandada. Eu só
trabalhei pros outros só seis meses. Saí até o dinheiro eu larguei lá, nem lá
eu fui buscar, mais, larguei o dinheiro metade do dinheiro lá e não fui mais
lá e continuei trabalhando nisso. 112
A atividade pesqueira permite as mulheres cuidar dos seus filhos, do lar, ao
tempo em que trabalhavam para sustentar a família. A não adaptação ao trabalho
disciplinar remete às táticas e maneiras de ser pescador e pescadora artesanal que tem a
liberdade como uma das principais contribuições e interiorizações dessa atividade.
Como explica Certeau113
o ser humano possui estratégias e táticas de sobrevivência em
seu cotidiano que jogam com os mecanismos de disciplina. As táticas pensadas pelo
autor não tem um lugar próprio porque resultam em algo que é praticado. Esses
procedimentos táticos estão relacionados às “maneiras de fazer” que fogem as relações
de poder que tentam controlar o espaço social.
Existe um saber já escrito nas práticas das mulheres pescadoras presentes nas
diversas maneiras de produzir, de ser, de falar e caminhar. No desenvolvimento das
narrativas as rotas e os caminhos que as levavam para o mangue, assim como o trabalho
111
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 112
Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 113
Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-
Petrópolis, R.J; Vozes, 1994.
no manguezal, nos corais e rios são lembrados com uma dualidade de emoção. Nas suas
reminiscências são ressaltadas as mudanças nos modos de vida e trabalho e as
estratégias cotidianas de sobrevivência. As comunidades de pesca possuem as suas
significações próprias e as maneiras de agir estão relacionadas à sua forma de trabalho.
Nas suas lembranças, muitas vezes, o lúdico se confunde com o medo dos
perigos que já vivenciaram. Quando lembram das pescarias as mulheres recordam
também os perigos que elas, seus pais, irmãos e irmãs já vivenciam nos lugares de
pesca. As mulheres contam nas suas entrevistas que o mangue tornou-se um local
perigoso, o refúgio dos bandidos e esconderijo dos marginais procurados pela polícia.
Elas relataram que atualmente ser pescadora é correr risco de vida.
(..) A pescaria antes era bem melhor, porque hoje faz até medo você entrar
no mangue, você encontra aí vagabundo com dois ou três revólveres na mão
tá entendendo...Faz medo mesmo! É Deus que eles passa por a gente e não
diz nada as vezes ousa e diz:- Ó tia se você ver a polícia aí atrás perguntar de
lá ele, , não vai me entregar não...é muito difícil... é muito difícil a pescaria,
muito difícil mesmo. 114
Algumas pescadoras quando narram essas situações contavam sorrindo os
perigos que já vivenciaram na pescaria. Outras preferiam não lembrar desses momentos
difíceis. Geralmente costumavam dizer que não recordavam de tais momentos. Para
D.Julia, pescadora aposentada, o mangue é um “lugar mal assombrado”115
, por isso
procurava ir sempre acompanhada para a maré. Segundo ela, qualquer barulho dentro
do mangue provocava grandes sustos, porque além do medo existia a dificuldade de
locomoção no mangue.
Aponta que no manguezal tem o “sumidor”, um tipo de lama movediça que se
uma pessoa cair pode ser tragado até desaparecer por completo. Pescar em grupo é uma
forma dos pescadores protegerem-se contra os perigos que podiam encontrar no
ambiente de trabalho. Dona Júlia aprendeu a pescar com a mãe e também ensinou os
seus filhos a pescar. Na sua narrativa estão as dificuldades e as marcas deixadas pelas
vivências na maré.
Quando vê minhas pernas são cheias, essas marcas. Tudo preto por aqui
tudo. Esse negócio preto tá vendo aí as costuras, tudo é ostra quando ela
corta, aí. Isso aqui pegou sete pontos, e abriu aí porque eu era diabética.
Estou fazendo tratamento que graças a Deus que eu saí do mangue. Minha
114
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 115
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006.
pressão é alta agora, problemas de diabete, então como é que fica. Se eu me
jogasse para isso ia ser pior. 116
A sua filha Helena reiterou que desde criança acompanhava os seus pais na
pescaria. D. Júlia, diz que tinha medo da situação íngreme do manguezal, enquanto a
sua filha Helena diz, “que faz medo entrar no mangue”117
, devido à quantidade de
homens armados que as mulheres se deparam no local. Os barcos das pescadoras,
muitas vezes, são roubados por ladrões que se utilizam dele para fugirem ou roubarem
os sítios que ficam localizados às margens dos rios. Além de enfrentarem os obstáculos
na natureza as mulheres se deparam com a violência urbana. A pescadora Chica conta
entre risos os perigos que já vivenciou na maré com D. Nita. Ela enfatiza a coragem e
determinação da sua amiga de pescaria que mesmo sem saber nadar, enfrentava os
riscos dos ventos fortes no rio. Mesmo sendo criada “na beira do rio” não sabia nadar,
mas tinha uma coragem desafiadora. A pescadora ressaltou que certa vez pensou que
iriam morrer porque durante o momento que estavam na maré pegaram um vento muito
forte, mas destemida a pescadora não recuou aos pedidos de retorno e seguiu em frente
remando o seu barco.
E eu: - Nita cuidado! E ela: - Calma Chica...calma, a gente vai chegar lá, a
gente vai chegar lá...Mais quando eu olhava vinha cada onda que chega a
espumar... E ela tira a água...tira a água...e eu nem olhava fazia assim
ô...(gesto com o rosto), para não ver a ribanceira de água que vinha...e lá
vai ela remano...e lá vai remano...Aí ela disse assim: - Tá vendo
abestalhada que a gente ia chegar. Eu nunca vi uma coragem daquela! 118
No depoimento acima e na imagem que segue estão descritas informações sobre
a importância das pescadoras irem acompanhadas para pescar. Na maré dividem
angústias e as dificuldades para colocarem o barco de volta para a água como também
outras situações inusitadas que inesperadamente surgem ao longo do caminho. Eles
carregam os seus instrumentos individuais e executam a pesca da mesma forma.
116
Idem. 117
Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006.
118
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.
Figura 10: Pescadoras com o barco.
(Fotografia de pesquisa, 2004).
Segundo D. Nita, ela nunca temeu entrar no mangue ou no rio para pescar.
Comenta ainda, que sempre acompanhou a marido nas madrugadas para pescarem de
“três maio”, arte de pesca que os seus pais utilizavam quando era menina, um tipo de
rede que colocavam no rio e ficavam aguardando os peixes caírem na armadilha. Nas
entrevistas, as mulheres fizeram o comentário desse tipo de armadilha durante as
lembranças de infância na pesca com a família.
Não, nunca eu tive medo. Eu pescava mais ele (marido), a gente colocava
três maio, a gente colocava lá no Rio do Engenho de noite assim, olha! Tudo
escuro a gente só via os vagalumes cantarem. Sem luz, sem nada. A gente
colocava a rede e ficava ali até amanhecer o dia..Tirava os peixes que
tivessem de tirar e quando era de manhã a gente ia pra lá. 119
As pescadoras do São Miguel contam com muito entusiasmo como era pescar no
bairro e através das suas rememorações podemos perceber as mudanças nas práticas e
arte de pesca. Os pescadores costumavam pescar de canoa no alto mar e isso
representava um grande perigo para o pescador, pois tinha que enfrentar os ventos
fortes. Segundo D. Eliúdes, antigamente era canoa, não era, não era barco, eram
canoinhas, que cabiam dois, com remos, enfrentavam o mar por aí (...). Para a pescadora
o barco a motor possibilitou uma segurança maior para os pescadores que se aventuram
no alto mar.
119
Andrelita Caio Batista- Nita (78 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 22.03.2009.
Teve uma época que meu irmão ia sair para pescar (...)e o tempo mudou,
vento forte, dando a hora dele chegar, e nada de chegar, e vai dando a hora,
vai dando meio-dia, e nós ficamos aflitos. Porque aí sabíamos o horário e ele
não chegou. Vento forte, aí o vento jogou eles para muito longe, não tinha
possibilidade de vir para a terra porque o vento puxava para fora, né, puxava
para fora, e foi uma angústia, uma angústia, rezava tanto, e Deus ouviu as
preces, de tardezinha eles fizeram e lutaram bastante, e conseguiram chegar
né; numa praia mais distante, e vieram para cá. Essa dificuldade toda, por
causa de pesca, hoje, eles continuam pescando, mas já tem o barco. 120
Ao mesmo tempo em que há um sentimento favorável à utilização dos barcos a
motor, algumas pescadoras entrevistadas demonstram uma forte indignação em relação
aos grandes barcos industriais de pesca, porque esses barcos acabam destruindo as artes
de pesca que são colocadas no mar pelos pescadores artesanais. A concorrência com os
grandes barcos pesqueiros tem diminuído a capacidade de pesca do trabalhador
artesanal. Além disso, o aumento do valor do produto no mercado tem feito com que
esses antigos laços de solidariedade e confiança entre os pescadores não sejam tão
comuns como eram.
Para a pescadora o seu tempo de infância era um tempo de fartura, época que as
mulheres e crianças recebiam gratuitamente dos barcos de pesca que chegavam: a
lagosta, o camarão e vários tipos de peixes pequenos que utilizam na alimentação ou
para vender na praia e pelas ruas da cidade. Segundo D. Eliúdes, o camarão hoje é
“ouro” para os pescadores, por isso não é mais comum distribuírem parte da sua
produção entre os moradores locais.
Antigamente quando os calãos davam aí, o camarão, até eles davam para
nóis, não faziam questão. Hoje, o camarão é ouro. E aí depois com os barcos
motorizados, tem o camarão defumado, não é? Num dá mais, não. Ai eu
presencio, ás vezes eu vou na praia, vou fazer caminhada, conheço todo
mundo lá, aí, “ô, dona Eliúdes, leva um peixinho para a senhora?”, e tal, e os
camarões, “ah, deixa um camarão que eu quero”, “camarão aí”, camarão
hoje é ouro, a gente via o camarão antigamente, ói, um peixe vivo! Ia comer
o peixe vivo, peixe vinha se batendo na linha, nó em terra, do pescador né? 121
Segundo Isarildes, mais conhecida como Zó, pescadora artesanal do São Miguel,
era costume do pescador conhecido como o Sr. Badú jogar o Calão para distribuir peixe
para a comunidade. Mas depois da sua morte os seus filhos continuam distribuindo
algumas vezes no ano o peixe para a comunidade. Esse laço de solidariedade permanece
120
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 121
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.
para manter a memória do Sr. Badú viva para os pescadores e pescadoras do local. As
mulheres passam a ocupar outros espaços e as redes de troca são enfraquecidas porque o
que antes era recolhido para atender as necessidades diárias da família passa a ter um
outro valor de troca, mas direcionado para os lucros do mercado.
A pescadora Zó colocou que nunca tentou pescar de Calão, em virtude da força
que precisa ser empreendida para ser jogada a rede no mar, mas ela pescava de rede e de
tarrafa. Disse através de risos que tinha muita dificuldade para pescar de tarrafa no mar.
No mar eu pescava de tarrafa e de rede, eu pescava com uma de oito quilos
de chumbo! Os pescadores ficavam danados, porque às vezes eu ia jogar e
não abria toda a tarrafa aí os peixes corriam, aí eles ia jogar e não pegavam
mais nada (risos). Mas eu estava tentando pegar para dar comida aos meus
irmãos, para ajudar a minha mãe. 122
As pescadoras passaram a disputar os espaços com os homens nas comunidades
de pesca. Essa relação algumas vezes conflituosa demonstra que as mulheres destemidas
procuraram aprender outras “artes de pesca” que possibilitassem um rendimento maior.
Mas a sua falta de experiência em determinadas artes tornava a relação com o outro
pescador um momento de conflito também porque não era compreensível e, muitas
vezes aceitável, para o homem, pescador ver a ousadia da mulher e ter que dividir o seu
espaço com o outro gênero. Nisso, o mais interessante é perceber como uma cultura
feminina se constrói no interior de um sistema de relações desiguais, como ela mascara
as falhas, reativa os conflitos e pensa nessas relações. 123
Os espaços ocupados nas ruas, avenidas, e feiras da cidade.
Através das lembranças das pescadoras à cidade vai sendo definida pelos modos
de ser e fazer. A cartografia das ruas e bairros é traçada a partir dos sentimentos de
pertencimento ao espaço praticado. Os lugares percorridos vão sendo objeto de
mudança e adquirem sempre uma nova significação. Em muitas situações, vamos
122
Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.
123 Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.
Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995, p.47.
observar que em defesa dos seus modos de viver procuram “formas de fazer” para
driblar as determinações dos poderes dominantes.
Para tratar dessas experiências recorremos à memória que muitas vezes é falha e
o seu tempo dissonante. A memória pode ser apropriada pelo historiador para a
compreensão dos modos de vida dos sujeitos, assim pode apresentar as suas minúcias,
os gestos de desesperos, apegos aos espaços, exageros, felicidades, conflitos, dúvida, e
ideia de tempo apresentada pelas pescadoras. A memória é um processo individual e
dinâmico que partilha dos elementos socialmente criados e compartilhados. Podemos
considerar que o instrumento da História Oral é essa “memória criativa” e que deve ser
pensada como fonte de uma subjetividade.124
Ecléa Bosi125
no seu trabalho “Memória de Velhos” nos ajuda a pensar como os
idosos e idosas organizam o tempo em sua memória, apresentando como as suas
lembranças seguem uma lógica própria. A percepção de tempo está presente nas
narrativas dos sujeitos, que podem seguir a noção das mudanças típicas dos seus modos
de fazer e viver. A percepção de tempo do grupo das pescadoras está relacionada às
modificações na sua labuta diária, ou percepção das mudanças dos seus costumes, ou
modos de fazer. Para dar ideia de temporalidade elas utilizam determinados trechos bem
característicos da sua conduta diária, como, “no tempo da minha mãe”, “no tempo em
que o rio enchia”, “no tempo que a gente pegava aratu com facilidade”, “no tempo que a
gente enchia a rede”.
Os seus depoimentos estão imbricados de significados que nos ajudam a
compreender o que é ser pescadora e quais as mudanças que interferiram no seu modo
de vida. A memória é constantemente remodelada devido às categorias de sentimento,
intenção e propósitos de vida experimentados pelo autor. A matéria da memória é
sempre modelada pelo presente que possui o desejo de explicação sobre o passado.
Sendo assim, como trabalhar com a memória das pescadoras diante dessas lembranças
que se amotinam a partir das vivências do presente? Os sentidos do passado produzido
pelas pescadoras estão imbricados tanto dos reais processos de dominação que adquirem
representatividade quanto pelo conhecimento produzido no transcorrer da vida
cotidiana. Segundo Déa Felenon, precisamos pensar na “memória popular” como um
objeto de estudo, mas também como uma dimensão da prática política. Já que os
124
Alessandro Portelli. História Oral como gênero. Projeto História: revista do programa de Estudos Pós-
graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
n° 0. São Paulo: Educa, 1981. 125
Ecléa Bosi. O Tempo Vivo da Memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo, Cia das Letras, 1994.
sentidos do passado são produzidos tanto pela memória privada como pelas
representações públicas. 126
Pensar nessas lembranças que se amotinam é avaliar o político, as formas de
dominação e de conduta dessas mulheres na sua prática cotidiana. Nas entrelinhas
podemos apreender de forma particular o quanto a maneira de pensar dessas mulheres
pode afirmar ou negar o seu papel de trabalhadoras da pesca, mães e esposas. Assim,
podemos compreender como as pescadoras percebem a si mesmas e a realidade que
fazem parte. Essas perguntas são importantes para dizer como o sujeito social se
comporta frente a sua realidade e percebe as mudanças que ocorrem ao longo da sua
experiência de vida.
A partir das suas lembranças a cidade adquire outra conotação, que segue as
introspecções das suas vivências urbanas. As “artes de fazer” também estão presentes na
definição da cidade pelo sujeito que constrói o seu traçado segundo os diversos
caminhos escolhidos para serem percorridos em seu cotidiano. É importante ressaltar
que a concepção de espaço no texto é diferente da idéia de lugar. O lugar é algo que não
possui um sentimento de pertencimento ou de estabelecimento para os sujeitos. Já os
espaços seriam os locais de pertencimento e identificação das mulheres pescadoras. De
acordo com as formulações de Certeau:
...espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por
um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo,
a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um
sistema de signos- um escrito. 127
O espaço ocupado pelos sujeitos é um lugar praticado, assim por mais que
existam definições geométricas da rua pelo urbanista é o pedestre que vai estabelecer as
suas formas. Segundo o autor é nas práticas do dia-a-dia que o sujeito articula a
oposição entre “lugar” e “espaço”. Apresenta ainda que o “fundar um lugar e dele fazer
a figura de um túmulo” não deixam de ser espaços que são condicionados pelas ações
de sujeitos históricos. O relato do espaço é ao mesmo tempo uma língua falada, isto é,
um sistema linguístico distributivo de lugares e ao mesmo tempo um ato que pratica.
126
Déa Ribeiro Fenelon. et.al. (orgs). Muitas Memórias Outras Histórias. São Paulo, Olho d’Água, 2005.
127
Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-
Petrópolis, R.J; Vozes, 1994, p. 202.
Ele faz essa relação utilizando os diversos relatos da memória sobre a rua, as
determinações, e os procedimentos de leitura dos mapas.128
Os lugares das pescadoras na cidade eram: as ruas, avenidas e as feiras da
cidade. A rua era lugar de trabalho da pescadora, que escolhia percorrer as ruas da
cidade, transcorrer os seus bairros e as avenidas: 2 de julho e 7 de setembro. As ruas e
avenidas eram mais um lugar de passagem do que um espaço de pertencimento. Elas
faziam longas caminhadas pelas ruas da cidade para vender os seus peixes e mariscos. A
pescadora Inês, filha de pescadores, através dos quais aprendeu a arte da pesca,
ressaltou em entrevista que a pescaria sempre foi a sua fonte de renda e que vender o
produto significava, muitas vezes, estabelecer um longo percurso a pé pelas ruas da
cidade.
....andando pelas ruas....assim...já fiz muito coisa (risos)...enchia os vasos
de muapen, ostra, camarão...agora não..agora to mais velha e não to
agüentando pegar peso para andar assim não. 129
As ruas consistiam no espaço dos transeuntes, dos vendedores ambulantes que
percorriam esses lugares à procura de compradores. As pescadoras procuravam
percorrer os bairros de Ilhéus, em busca de compradores específicos de cada lugar. Ao
passo que abasteciam a clientela local com a venda dos seus produtos, percorriam as
ruas do próprio local, ou esperavam até o Sábado para vender os produtos nas feiras da
cidade. Mas esses percursos deixam de acontecer com maior intensidade e as
pescadoras procuraram outras maneiras para venderem os seus produtos. Assim o seu
traçado vai ganhando um novo delineamento. Segundo Ana Lanna a cidade moderna
dividiu os grupos sociais.
Havia na cidade uma superposição de funções e coexistência dos mesmos
espaços de grupos sociais distintos. Isto era incompatível com uma
proposta burguesa de cidade. A cidade moderna pressupõe a separação
dos corpos e funções.130
O que permaneceu foi o ponto de encontro das pescadoras: “a feira na cidade”.
A resistência cotidiana, no seu lar e as suas táticas de venda e trabalho demonstrou
como os grupos de pescadores procuraram sobreviver diante de um poder disciplinador
128
Ibid, p. 202. 129
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 (10 páginas). 130
Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma Cidade na Transição: Santos: 1870-1913. São Paulo, HUCITEC, 1996,
p 119.
que cria normas para uma forma de ser pescadora e pescador artesanal. Nas
determinações do poder público de Ilhéus, percebemos a necessidade de organização e
separação dos espaços urbanos.
Durante o Governo de Antônio Olímpio, na década de 1980, são implantadas
várias medidas de remodelação urbana. O jornal “Diário de Itabuna” de 1981 enfatizou
as ações de Antônio Olímpio como o grande agente do progresso na cidade de Ilhéus.
Informou ainda, que uma das principais medidas do seu Governo foi à melhoria da
estrutura viária urbana que padecia de uma melhoria da sua situação devido a uma série
de deficiências. O prefeito realizou a pavimentação de um grande número de ruas do
bairro do Pontal, construiu um novo Mercado de Peixes distante do centro e bairros da
cidade, a construção do Terminal Coletivo Urbano, da Central de Abastecimento, entre
outras realizações. 131
A construção do Terminal Coletivo, localizado na Rua da Usina, tinha como
finalidade centralizar todo o sistema de transporte coletivo na área central da cidade. A
ideia do jornal é de que o trabalho de Antônio Olímpio proporcionou o melhoramento
das vias públicas e o “progresso” da cidade de Ilhéus. Além de melhorar a circulação do
centro urbano da cidade de Ilhéus já que contava com ruas estreitas e um número grande
de veículos estacionados ao longo dos meios-fios que atrapalhava o trânsito de pessoas
e de veículos.
A construção do Centro de Abastecimento, também realizado durante o governo
do prefeito Antônio Olímpio, teve como objetivo deslocar a feira livre localizada na
Avenida 2 de julho, no centro da cidade, para uma zona periférica. Efetuando assim, a
demolição do antigo Mercado Municipal. Segundo as informações do jornal, a feira
livre representava um “obstáculo ao desenvolvimento da cidade, impedindo inclusive a
possibilidade de aproveitamento, a nível turístico de uma das regiões mais privilegiadas,
porque fica próximo da enseada”.132
O seu Governo parecia seguir a política
nacionalista que pensava em promover um melhor funcionamento dos locais públicos
da cidade. As pescadoras se referem à feira da Avenida 2 de julho como a “feira velha”
onde a princípio vendiam os seus mariscos e depois da mudança foram vender no
Guanabara para depois serem deslocadas para o Malhado.
As políticas públicas na cidade de Ilhéus procuraram organizar um espaço que
era dos feirantes e que muitas vezes fogem aos padrões de higienização e de conduta
131
Antônio Olímpio coloca Ilhéus na rota do progresso. Diário de Itabuna. Sábado, 27 de junho de 1981.
132 Idem.
estabelecidos. A feira é um lugar fétido para alguns, insalubre, onde os órgãos públicos
institucionalizam várias maneiras dos grupos feirantes lidarem com os seus produtos.
No jornal essa problemática é destacada a partir das seguintes afirmações:
O centro servirá também para resolver o sério problema da feira do
Malhado, que se constituía num verdadeiro atentado a saúde, inclusive com
esgotos estourados e calçamento de terra bruto. Alí se reúnem mais de mil
feirantes vendendo os seus produtos, sobretudo, aos domingos, sem as
menores condições de higiene e de conforto. 133
No ano de 1891 a Prefeitura Municipal de Ilhéus iniciou a construção da Central
de Abastecimento com o objetivo principal de transportar os feirantes do Guanabara e
da Avenida 2 de Julho para o Malhado. A sua medida determinou também que os
vendedores ambulantes deixassem de estabelecer parada na Praça Cairú localizada no
centro da cidade. Os vendedores ambulantes foram obrigados a localizarem-se em zonas
mais distantes dos principais lugares do centro da cidade. Essa mudança fez com que os
feirantes procurassem instrumentos que possibilitassem a permanência no local. Junto
aos meios de comunicação os vendedores inconformados denunciam a decisão da
Prefeitura e as ações abusivas dos seus fiscais.
Peixeiros e vendedores ambulantes que costumam fazer parada na Praça
Cairu, próximo ao bar no Guanabara, procuram a nossa reportagem para
denunciar que estão sofrendo as mais diversas pressões por parte da
Prefeitura Municipal de Ilhéus, que através de fiscais totalmente
desqualificados para o serviço os estão impedindo de trabalharem naquele
local. Segundo os reclamantes, do jeito que a vida está difícil, a mudança de
local implicaria na perda de praticamente de todos os fregueses. 134
Os vendedores criticaram a arbitrariedade utilizada pelos fiscais para fazer com
que a determinação não fosse cumprida. A notícia também apresenta que segundo “os
reclamantes” para os consumidores de peixes, mariscos, frutas e outros gêneros da
determinação da Prefeitura constitui-se como um ato totalmente “injusto e de cunho
anti-social”, já que dezenas de donas de casa não teriam condições de se deslocarem
para a Avenida Itabuna ou do Malhado pela grande distância. Os feirantes do local vão
defender a sua permanência no espaço insistindo também que a feira do Guanabara é
um ponto tradicional e que abastece muitos consumidores de baixa-renda.
133
Antônio Olímpio coloca Ilhéus na rota do progresso. Diário de Itabuna. Sábado, 27 de junho de 1981 134
Prefeitura pressiona vendedores ambulantes do Guanabara. Diário da Tarde. Ilhéus - BA, quinta-
feira, 04 de fevereiro de 1982.
As pescadoras recordaram da dificuldade de transporte para se deslocarem até
centro da cidade. Se perdessem o ônibus ou o caminhão no dia de feira tinham que
esperar no centro até o dia seguinte. Além disso, recordam-se da retirada pelo governo
da “feira velha” estabelecida na rua 2 de Julho, com o propósito de “não enfear o centro
da cidade”. A pescadora Zó diz o seguinte: “Antigamente a feira era na 2 de Julho. Ai
acabou a feira de lá e veio para o Malhado. O prefeito tirou de lá né; porque é um cartão
postal de Ilhéus né! Uma feira ali; naquela bagunça danada!” 135
A cidade é pensada, muitas vezes, para atender aos interesses de um grupo social
e não há um poder de disciplinarização e higienização. O que parece mesmo é que “a
cidade e não os cidadãos seria a instância de referência”. Mas os modos de fazer das
pescadoras driblam as condutas programadas em permanência dos seus locais de venda.
Os diversos grupos sociais possuem maneiras de fazer plurais, que podem ser lidos
como os alicerces dos seus modos de vida.
Mudar os seus costumes, mesmo em termos de conduta, talvez represente a
tentativa de mudar o que possui uma significação própria a sua forma de viver. Para
alguns autores, a exemplo de Thompson136
, a resistência dos grupos populares ingleses
do século XVIII estava relacionada à luta pela manutenção dos seus costumes frente à
ameaça do sistema capitalista. Tendo em vista que existia uma complexa rede de
relações sociais, em termos de crenças, tradições e práticas. Ele demonstrou que o povo
inglês tanto se acomodou quanto resistiu às inovações econômicas e sociais implantadas
pelo sistema capitalista.
Para Michel Certeau os grupos populares fazem usos diversos dos significados
recebidos que podem ser percebidas nas suas distintas “maneiras de fazer” presentes em
seu cotidiano. Os grupos populares se apropriam do que é determinado pelos poderes
dominantes e inventam as suas diversas formas de viver a partir das estratégias e táticas
cotidianas. Segundo a sua concepção os grupos populares resistem às estipulações do
poder a partir das “diversas maneiras de fazer” do dia-a-dia denominadas de
“antidisciplina”. 137
Os discursos das pescadoras ressaltam que a feira do Guanabara ainda é um
local bastante frequentado pelas pescadoras, pescadores e vendedores ambulantes. Mas
a feira que antes estava concentrada na praça Cairú, atualmente se estabeleceu em dois
135
Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 136
E. P. (Edward Palmer) Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 137
Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-
Petrópolis, R.J; Vozes, 1994.
lugares do centro de Ilhéus. Localiza-se na rua 7 de setembro, nas quintas, terças e
sábados e na mesma Avenida Cairú, mas precisamente atrás do prédio da CEPLAC,
principalmente aos Sábados. Como ressalta Ana Lanna percebemos nesse processo de
emergência uma nova maneira de estar na antiga cidade.138
A feira também é um lugar de táticas de sobrevivência, solidariedades e diversas
maneiras de agir. Os feirantes antigos estabelecem os seus espaços de venda e resistem
quando novas pessoas procuram um lugar para venderem os seus produtos. A
manutenção dos espaços na feira pode estar relacionada à rede de relações mantidas
entre os feirantes e a sua clientela, e até mesmo para manter apenas a vendagem de seus
produtos nos espaços que já estão delimitados. Helena, pescadora de 32 anos, filha de
D. Júlia, 61 anos, pescadora aposentada respondeu em entrevista com muita entonação
de que sua mãe trabalhava na feira do Guanabara, mas que ela não gostava. A pescadora
Tertulina, de 59 anos, explica porque não costumava vender na feira antiga do
Guanabara, localizada no centro da cidade.
Porque lá a feira é um local pequeno, aí o povo fica com muita confusão,
aqueles fereiros velhos que já está lá! É muita confusão, você chega e bota o
marisco. -Não aqui não quero, tira daí. Aí com isso fica chocado e não vai
mais lá. Então, aí na feira do Malhado tem como tudo nós vender. Aí, nós
vamos vender na feira do Malhado porque é grande a feira, às vezes o fiscal
é legal com a gente, bota a gente no local. Então na feira do Malhado tem
como vender tudo. Então a gente faz o ponto de venda ali. Aí na hora que
alguém vai procurar, mas também trabalho no Guanabara, é... lá nas sete
portas eu não gosto muito não.139
Nas feiras antigas os vendedores estabelecem territórios que fogem das regras
criadas pelo poder público nos novos locais de venda. Além da apropriação dos espaços
que são estabelecidos os feirantes também criam táticas para venderem os seus
produtos. Em entrevista a pescadora Inês de 52 anos, filha de pescadores ressaltou que o
valor do produto depende de como o comprador apresenta-se na negociação, pela
possível condição econômica do mesmo, ou pela demanda de procura dos mariscos no
dia140
. Desta forma, a pescadora não possui um valor fixo para o seu produto, porque a
própria indicação de valor do seu produto é uma tática utilizada para tirar proveito em
138
Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma Cidade na Transição: Santos: 1870-1913. São Paulo, HUCITEC,
1996. 139
Julia Dias de Castro (60 anos). Maria Helena de Castro dos Santos (32 anos); Tertulina Ferreira Mota
(59 aos), Gileno Ferreira dos Santos (75 anos) Entrevista coletiva realizada no dia 12.11.2004, na
residência de D. Júlia e Sr. Gileno, (32 páginas). 140
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006
determinadas situações que são favoráveis ou desfavoráveis à venda do produto. Ela diz
o seguinte:
A gente vende o litro de muapen por dois reais, um e cinqüenta, às vezes um
real; também quando a feira ta muito ruim, vende também por um real. A
ostra é quatro, cinco, seis, não tem preço certo. É assim...as vezes é mais
caro um pouco...quando a pessoa é mais coisa a gente vende mais barato
(risos) é assim. 141
Das suas lembranças evocam as riquezas de relatos de como a pesca tornou-se
mais lucrativa e a principal fonte se subsistência para a sua família que é mantenedora
dos conhecimentos da atividade artesanal.
Eu tô gostando daqui, porque ainda acho que o marisco sendo pouco mas o
dinheiro é mais. E lá naquela época eu não pescava pra vender era pra gente
comer, só vinha mesmo o caboje, e o bobo, porque a gente secava ele e
vendia na feira. Quinhentos rés, dez tostões, naquela época, agora dez
tostões é um real. Tudo barato no início um tustão...uma peça de farinha era
quinhentos rés, mil e quinhentos. 142
A pescadora Helena salienta que não eram todos os dias que ela vendia o seu
produto na feira. Ela pescava uma boa quantidade para vender no Malhado durante o
Sábado e Domingo, explicou que na feira do Guanabara são todos os dias que
funcionava a vendagem de peixes e mariscos, mas no Malhado o comércio concentrava-
se nos finais de semana. Segundo Helena, as suas irmãs costumavam vender também na
feira do Guanabara ao contrário dela que só vende na Central de Abastecimento. Ela diz
que para vender o seu produto espera os finais de semana e recebe a ajuda das suas
irmãs que se concentram em pontos diferentes na feira.143
As pescadoras formam grupos de solidariedade, familiar ou não, que indicam
onde devem comprar os produtos que estão sendo buscados pelos consumidores,
traçando assim táticas para a venda. O homem mesmo imbricado num sistema plural
constrói “modos de fazer” que se diferenciam de um lugar, de uma comunidade para
outra.144
Mesmo controlado por uma lei o homem sem sair do lugar tem uma imensa
capacidade de improvisação e criatividade ou para forjar a realidade almejada, ou para
viver uma vida mais digna, ou até mesmo como uma resistência ao que lhe é imposto.
141
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006 142
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista coletiva realizada na sua residência no dia 12.11.2004. 143 Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2006. 144
Michel Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. tradução de Ephraim Ferreira Alves.-
Petrópolis, R.J; Vozes, 1994
Entre as famílias entrevistadas do bairro Teotônio Vilela muitos dos seus
membros incluindo mulheres e homens que herdaram a arte da pesca com seus pais
praticavam a atividade artesanal. As táticas de solidariedade são geralmente
estabelecidas entre a família e os grupos das pescadoras para driblar as dificuldades do
dia a dia. Para a pescadora Cátia145
vender na Feira tornou-se muito complicado em
virtude da autorização legal que precisavam adquirir. Quando ela precisava
comercializar na feira utilizava o ponto de venda da sua irmã que também é pescadora
artesanal e uma outra irmã sua utilizava a mesma estratégia. Mesmo precisando vender
o seu produto na feira elas apresentaram particularidades que faziam parte do costume e
das suas práticas diárias.
A liberdade é o sentimento que faz parte da maneira de ser e agir dos grupos de
pesca que pode ser percebido nas suas manobras cotidianas. Elas geralmente não
escolhiam a feira para venderem os seus produtos porque não gostavam da delimitação
do espaço e da disciplina que precisavam seguir. Segundo a pescadora Orenice vender
na feira é “um fedor danado, uma zoada” e ressaltou ainda que:
A pescaria a gente vai na hora que quer e vêm na hora que quer não é não?
Deu fome, deu vontade de vim embora...se tiver de barco vem, se tiver a pé
vêm e naquele castigo ela disse que estava indo cinco e meia para chegar na
hora que o povo abre a feira né? Pra sair de lá as cinco da tarde, quando ela
sai de lá eu já peguei o meu marisco, já tratei já embalei e já estou
descansando. 146
As mulheres preferem escolher os lugares para vender os seus produtos o que
lhes garante mais praticidade e liberdade. Podemos perceber que até mesmo as
pescadoras que vendiam na feira não costumavam seguir uma rotina diária, já que
preferem vender mais pelas ruas da cidade caminhando e delimitando os principais
locais de venda.
Na feira não...eu nunca gostei...eu nunca gostei...eu nunca gostei de entregar
no Malhado...na feira. Por causa do enxame, fica lá aquela vida toda
esperando um filho de Deus para comprar! É muito mais fácil...eu já
chegava aqui com os meus muapens e minhas ostras e não esquentava
lugar...já chegava para o freguês tal dia tem o marisco..tem? tem! 147
As pescadoras do São Miguel ressaltaram que era costume as mulheres irem
para a beira do mar ganhar os peixes menores resultados da pesca de calão. Com esses
145
Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 03.01.2009. 146
Orenice Paixão dos Santos. Entrevista realizada na sua residência no dia 05.01.2009. 147
Idem.
peixes as mulheres tratavam, colocavam para secar no varal ou coqueiro e pegavam os
palitinhos da palha de coqueiro para espetarem os peixes e assim saíam pela praia e ruas
do bairro vendendo o peixe assado. A pescadora Eliúdes explicou que enquanto o seu
pai vendia peixe na feira-livre, os peixes menores eram vendidos “às enfiadas”148
.
Grande parte dos peixes conseguidos pelas pescadoras era utilizada para o consumo
próprio e antes o peixe que era vendido nos palitos de coqueiro, agora é comercializado
nas latas e manuseados pelas pescadoras.
D. Elíudes enfatizou que era mais disposta do que suas irmãs, pela sua coragem
e pela boa relação que mantinham com os pescadores. Segundo ela, sua mãe e as suas
irmãs faziam geralmente o serviço doméstico e cuidavam da limpeza e preparação dos
mariscos e ela sempre muito “danada”149
trabalhava diretamente na pesca dos peixes e
cata de mariscos. Ela apresenta que sempre foi muito disposta para o trabalho e a sua
disposição fez com que se destacasse das suas irmãs enquanto pescadora.
A construção histórica da divisão de trabalho segundo os sexos provocou uma
submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica. As mulheres
incorporaram a linguagem de dominação, mas ao mesmo tempo resistiram à mesma
dominação. Podemos perceber que a pescadora Eliúdes afirma uma idéia de que a sua
mãe e as suas irmãs desenvolviam atividades domésticas e de “ajuda” nas atividades da
pescaria, enquanto ela realmente pode ser considerada pescadora já que era disposta ao
trabalho do mar. Como nos afirma Roger Chartier:
Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina
tomam a forma de dilacerações espetaculares, nem se exprimem sempre pela
irrupção singular de um discurso de recusa e rejeição. Elas nascem com
freqüência no interior do próprio consentimento, quando a incorporação da
linguagem da dominação se encontra reempregada para marcar uma
resistência. 150
Já no seu cotidiano as mulheres possuíam estratégias próprias de compra e
venda que resistem também aos padrões do mercado. As pescadoras entrevistadas
lembram que muitas das suas freguesas já morreram, mas elas têm conseguido outros
consumidores para os seus produtos. Elas também possuem vários lugares de venda
como a beira da praia, no centro, restaurantes, barracas de praia, e nas feiras da cidade.
148
Termo utilizado em entrevista no dia 30.04.2007, para designar a forma como vendiam o peixe. 149
Termo utilizado pela pescadora 150
Roger Chartier. "Diferença entre os sexos e dominação simbólica. (nota crítica)". Cadernos Pagu.
Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995, p. 42.
As mulheres não faziam parte dos ambientes políticos quando esses não eram
propícios a sua conduta diária e continuam não fazendo parte desses ambientes em
virtude dos seus lucros não serem assim tão satisfatórios. Algumas mulheres
entrevistadas da cidade de Ilhéus e que são Cadastradas às Colônias151
de pesca
demonstraram que não vendiam e continuam não vendendo para a instituição. Porque o
valor que a Colônia para pelo produto está abaixo do valor do mercado. Elas passaram a
comprar o produto do pescador para revender aos comerciantes de peixe. O assessor
técnico da Colônia Z-34 discorreu sobre as diversas atividades realizadas pelas
pescadoras:
As marisqueiras tem um trabalho descascando o camarão, que ela pega, que
compra dos pequenos produtores de barcos, barcos de ida e volta, barcos de
arrasto, de pequeno porte, esses barcos saem de manhã e voltam à tarde,
outras catadeiras, marisqueiras, elas compram a produção, fazem o filé, e
vendem a colônia, a colônia muitas vezes recebe a produção dessas
marisqueiras, não de todas porque são muitas, mas de algumas a gente
recebe. 152
Ao entrevistar as mulheres também chamadas de marisqueiras vamos perceber
que as suas atividades nas comunidades de pesca são bastante diversificadas. Além de
cuidar dos filhos, das tarefas domésticas, elas sempre exerceram diversas atividades no
setor pesqueiro, desde a confecção dos instrumentos de pesca, limpeza do pescado,
venda do produto, até a pesca de rede e do anzol no rio.
O assessor técnico da Colônia destacou principalmente as atividades das
mulheres que estão ligadas ao setor da pesca mercantil simples, o que consiste nas
atividades resultantes da pesca de alto mar. Podemos perceber que existe uma
dominação masculina também na linguagem e na forma como caracterizam o trabalho
da pescadora como sempre subserviente ao trabalho do pescador de alto mar e não tão
pouco expõe e valorizam as atividades desenvolvidas pelas mulheres em outros setores
da atividade pesqueira.
Escrever a respeito dos grupos que mantêm uma tradição, ou seja, uma
permanência dos costumes torna ainda mais instigante essa luta diária contra as
determinações do poder, que Thompson colocaria no âmbito da resistência em defesa
151
Instituição que tem o objetivo de garantir os direitos e representar legalmente a categoria dos
pescadores e pescadoras. 152
Márcio Luís Vargas. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 27.08. 2004.
dos seus costumes.153
A partir dos pormenores das práticas cotidianas das pescadoras na
cidade podemos perceber como demonstram resistência as construções sociais que,
muitas vezes, determinam e negligenciam as diversas experiências de ser pescador e
pescadora artesanal.
As lutas cotidianas e políticas.
Ah, minha história. Se eu te contar a minha história, minha filha,
você nem acredita. A minha história foi de muito trabalho, eu
criei dez filhos, sem marido, sozinha e Deus. Criei tudo, está tudo
criado! 154
Na fala de Omerita, pescadora do São Miguel e mãe de dez filhos estão inscrita a
situação de muitas pescadoras entrevistadas das comunidades Teotônio Vilela e São
Miguel que mantiveram sozinhas as suas filhas e filhos. Nas suas narrativas preferem
não lembrar algumas situações que vivenciaram ao longo da sua trajetória de vida
conjugal, e procuram descrever um passado construído a partir de muita luta e esforço
pela sobrevivência e igualdade de direitos.
Durante as entrevistas as mulheres demonstraram que queriam apresentar as suas
reivindicações com diversas críticas direcionadas à sociedade, às políticas públicas do
Governo e à própria Academia. Como trata Portelli para o profissional da História Oral
uma entrevista é sempre uma lição de aprendizagem.155
As suas lembranças expressam
a historicidade das experiências pessoais, os papéis do indivíduo na sociedade como
também demonstram os conflitos e as disputas de poder entre os diversos grupos
sociais.
Através do processo de resistência cotidiana e reconhecimento dos seus direitos
as mulheres passam a se posicionar enquanto “profissionais da pesca”. Para muitas
pescadoras a atividade significou o único meio de sobrevivência da família, a sua
independência financeira, assim como tiveram uma maior liberdade de gênero. O seu
ingresso na Colônia de pesca fez com que elas se reconhecessem enquanto integrantes
de uma categoria profissional.
153
E. P. (Edward Palmer) Thompson. A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro, 1998. 154
Omerita Maria de Jesus (71 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010. 155
Alessandro Portelli. História Oral como gênero. Projeto História: revista do programa de Estudos Pós-
graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
n° 0. São Paulo: Educa, 1981.
As contradições de gênero são superadas, em parte, no cotidiano das
comunidades de pesca pelas mulheres que enfrentaram os riscos da pescaria para
sustentar os seus filhos, ou por aquelas que precisavam vender o produto. Nas histórias
contadas percebemos a tomada de empoderamento156
pelas pescadoras porque passam a
se identificarem enquanto trabalhadoras e travar um disputa pela igualdade de direitos e
também pelo reconhecimento do seu trabalho. Elas fazem do seu cotidiano momentos
de resistência e assim constroem uma história de luta e desafios.
A idéia de empoderamento está relacionada a uma proposta mais ampla tanto na
própria discussão do movimento feminista como nas lutas cotidianas empreendidas
pelas mulheres pela igualdade. Esse conceito surgiu com os movimentos civis nos
Estados Unidos nos anos setenta como uma forma de valorização da raça do negro e da
negra, e conquista por uma cidadania plena. No Brasil, o conceito passa a ser utilizado
pelas intelectuais feministas na década de 1980 visto que estas procuram demonstrar
que para enfrentar a sociedade patriarcal as mulheres estão disputando e negociando o
poder em várias instâncias do ambiente público e social com os homens.
O empoderamento aqui é utilizado no sentido de que as mulheres têm assumido
no seu discurso uma postura de luta pela igualdade nos diversos campos da atividade
pesqueira. No seu cotidiano as mulheres articulam meios para superar as dificuldades e
desigualdades, a princípio elas serão as grandes incentivadoras umas das outras para que
procurem os meios legais e se registrem na Colônia de Pesca. Ao passo que criam
associações e procuram apoderar-se da administração dos próprios órgãos legais para
terem os seus direitos atendidos.
Algumas mulheres do São Miguel como Dulciene, a sua mãe Sione e Flávia
apresentaram a pescadora Eliúdes como uma importante representação da mulher, já
que ela cadastrava as pescadoras a Colônia de Pesca quando ficavam viuvas e
reivindicavam a garantia dos seus direitos. Já a narrativa da pescadora foi voltada para o
contexto político local e as suas discordâncias em relação às ações tomadas atualmente
pela Colônia de Pesca Z-34. Nas suas lembranças as pescadoras ressaltaram que o
trabalho era uma prática comum na sua vida, mas exercer determinadas atividades como
a pesca de calão no mar junto aos pescadores de águas marinhas é descrita com uma
função desafiadora.
156
O termo empoderamento pode ser definido como um mecanismo de autonomia de pessoas,
organizações e ou comunidades inseridas em processos coletivos ou sociais que passam a controlar as
suas ações e decisões através da reivindicação de direitos e consciência de direitos.
D. Eliúdes, pescadora de 73 anos durante a realização da entrevista no São
Miguel, apresentou-se como uma mulher ousada e corajosa já que assim como o seu pai
e os seus irmãos passava o dia na beira do mar. Ela disse que diferente da sua mãe
costumava conversar com os pescadores e saía com o seu pai para puxar o calão157
no
mar, e ressaltou que era “pescadora” porque pescava de anzol, ciripoia e de rede no rio
com as “companheiras”.158
Durante o tempo que trabalhou na Colônia de Pesca Z-34 como secretária,
chegou a se candidatar a presidente, mas não foi eleita. Depois de vinte e dois anos de
trabalho na Colônia de pesca, ela deixou de prestar serviço a instituição. A pescadora
discute em seu depoimento os problemas que presenciou no tempo em que estava na
Colônia ao tempo que externa o não reconhecimento profissional do trabalho executado
pela sua mãe durante a sua infância.
Os momentos vividos antes não são lembrados ou preferem que sejam
esquecidos, pela dor da situação, ou porque a sua vida vai tomar uma outra acuidade
pelo aumento da responsabilidade e cuidado sobre os filhos. As mulheres procuraram
preservar determinados assuntos que estão relacionados geralmente a sua vida pessoal,
muitas das entrevistadas são mães solteiras e mostraram-se bem relutantes em falar da
relação com o marido e com os filhos, bem como em apresentar os seus sofrimentos, as
suas angústias e decepções, o que se tornava uma tarefa muito difícil para as
entrevistadas.
Tanto a pescadora Omerita, como Elíúdes, Dulciene e Flávia são mulheres que
demonstraram em suas falas um senso de liderança na luta pelo reconhecimento do
trabalho feminino no setor. A pescadora Flávia lembrou o seguinte: “Desde o período
que comecei a pescar eu mesma colonizei várias pessoas aqui do bairro São Miguel, tem
Luciene, tem Zó, um bocado de gente aqui que pesca siri”.159
As mulheres são solidárias com as colegas de trabalho e alertam a respeito da
importância de se cadastrarem as Colônias de pesca. Elas sempre exerceram um papel
importante na atividade pesqueira no bairro São Miguel, seja costurando as redes de
malhar, o calão, ou vendendo os peixes miúdos que ganhavam, mas foi com a
necessidade familiar e, muitas vezes, com a independência total dos seus maridos que as
pescadoras procuraram cadastrar-se na Colônia de Pesca.
157
Na pesca de calão a rede é arrastada pelos pescadores no mar. 158
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007. 159
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.
A pescadora Flávia criou os seus seis filhos através da pesca, depois que ficou
viuva conta que foi uma das primeiras mulheres do São Miguel a realizar a pesca e cata
do siri por iniciativa própria, e a possuir barco para trabalhar no mar e no rio. Ressalta
ainda, que era costume das mulheres pegarem peixe no rio e também no mar, não sendo
muito comum a pesca do siri. Quando foi perguntado se era costume pegar siri a
pescadora diz o seguinte:
Não, não. Ninguém pegava siri, nenhuma mulher pescava siri aqui para
vender, pegava robalo, pegava todo tipo de peixe, mas siri ninguém. Eu
entrego na colônia dependendo da necessidade, que se eu vou lá e entrego.
Desse período que comecei a pescar eu mesmo colonizei várias pessoas
aqui do bairro São Miguel, tem Luciene, tem Zó, um bocado de gente aqui
que pesca siri. 160
No seu depoimento só se afirma pescadora depois da separação do marido, e a
sua fala vai estar voltada para essa fase da vida. A pescadora conta que possuiu quatro
barcos à motor e realizava a pesca do peixe, siri e lagosta e enfatiza o seguinte: “Minha
vida de pescadora começou quando eu separei do marido e fiquei com seis filhos
pequenos aqui, antes eu não era bem de vida, aí eu fiquei sem nada”. O próprio olhar
das pescadoras artesanais a respeito da importância do seu trabalho está voltado para a
condição de manutenção de uma rotina diária e pela legalização da sua atividade junto
às representações do setor. Mesmo porque, muitas vezes, as atividades realizadas de
beneficiamento do produto não são tidas como um trabalho.
A pescadora sente a necessidade de afirmar que também pescava com os outros
pescadores das mesmas artes de pesca, por isso também deve ser chamada de
“pescadora artesanal”. D. Zó, moradora da comunidade do São Miguel, quando foi
perguntada sobre o que é ser pescadora e marisqueira diz o seguinte, “não tem diferença
nenhuma, porque o homem pesca se dá o nome de pescador e a mulher é pescadora.
Deram o nome de marisqueira porque não quiseram chamar de pescadora”. 161
Ao perguntar o que é ser pescadora algumas entrevistadas apresentaram que a
pesca representou o meio de subsistência que encontraram, e muitas outras falaram que
se tratava de uma profissão. A pescadora Chica, viúva e mãe solteira, depois do
falecimento do marido procurou cadastrar-se à Colônia Z- 34, para ter os seus direitos
garantidos.
160
Idem. 161
Isarildes de Jesus Reis (44 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.
Ser pescadora pra mim é uma profissão muito boa né! É você ser
profissional. Alguma pescadora pra dizer eu sou pescadora tem que ser
profissional, tem que ser colonizado, tem que ter sua carteira de pesca né? E
pra mim é muito bom ser pescadora! 162
As pescadoras artesanais se identificam com um grupo possuidor de uma
profissão, porque essa atividade é entendida como o domínio de um conjunto de
conhecimentos e técnicas que permitem ao produtor subsistir e se reproduzir enquanto
pescador e pescadora163
. D. Julia e o Senhor Gileno sempre pescaram no regime
familiar, depois de quase trinta anos de convivência no trabalho da pescaria. D. Júlia
associou-se a Colônia de Pesca. Mas sempre pescou com o Senhor Gileno, sem tanta
frequência porque a sua principal função era vender o produto na feira. A pescadora diz
o seguinte, “Era mais eu vendendo e ele pescando, ele mais os meus meninos”. 164
Segundo D. Júlia para atender as exigências da Colônia, já que foi colonizada
em um período muito próximo a aposentadoria, lembra o seguinte: “Quando eu estava
pagando eu tinha que fazer tudo se não eu não tinha direito a nada!” Ela precisava
manter uma rotina de trabalho e vender o produto para a Colônia já que tinha
necessidade de assegurar o seu benefício. Sendo assim, muitas pescadoras e pescadores
acabavam vendendo para a Colônia porque acreditavam que precisavam fazer isso para
facilitar o processo da aposentadoria.
A prática artesanal de confecção, beneficiamento e reparo dos apetrechos de
pesca é tida como uma atividade complementar às necessidades da família por isso
consideram nos seus discursos, muitas vezes, que pescadora é a mulher que pratica a
ação de pescar ou catar o marisco. Nas suas entrevistas apresentam que “ser pescadora é
viver de tudo que tem na maré”165
é saber remar, saber pegar o marisco, conhecer os
lugares no mangue, aprender a tratar o produto para a comercialização e a lidar com as
dificuldades do seu trabalho.
O fato das mulheres não realizarem atividades pesqueiras ligadas ao espaço do
mar, não permite, muitas vezes, que sejam reconhecidas enquanto pescadoras. A
“invisibilidade” do seu trabalho nas comunidades de pesca está, entre outros motivos,
relacionada ao status de complementaridade e informalidade do seu trabalho. Um estudo
sobre comunidades pesqueiras e relações de gênero apresenta a seguinte afirmativa:
162
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006. 163
Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo:
Ática, 1983. 164
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 165
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.11.2004
O trabalho e a produção das mulheres na pesca têm sido marcados por
grande invisibilidade (...) Mesmo que sua produção gere excedente e seja
colocada no mercado como produto de valor comercial, este aparece nas
estatísticas como coleta manual. 166
Fernandes167
, por exemplo, chega a enfatizar que na maioria das sociedades
pesqueiras em todo o mundo existe uma forte divisão sexual do trabalho e afirma que a
pesca marítima é uma atividade predominantemente masculina porque sugere que “a
pesca requer fibra e força e as mulheres presumivelmente não têm essas qualidades”. As
mulheres desempenham um esforço muito grande no trabalho de extração dos mariscos
e peixes devido às condições insalubres dos manguezais e em virtude da tamanha força
física que empenham durante as práticas cotidianas de pesca.
A pescadora Tertulina, nascida em 1946 e moradora do Teotônio Vilela,
aprendeu a arte da pesca com outro pescador. Como mãe solteira criou os seus dezesseis
filhos através dessa atividade. Durante a entrevista externou a sua indignação frente às
políticas públicas. Ela falava para a representação desse poder que estava atrelada ao
Estado já que havia um vínculo com a universidade pública. A entrevista soou como
uma oportunidade para apresentar o quanto existia uma distância entre as suas
vivências, os seus modos de vida e os estereótipos que perpassam nos ambientes
públicos sobre a mulher pescadora.
Eles lá o pessoal do INSS porque se a gente tem como provar que é
pescadora né, tem os documentos, tem a arte da pesca, sabe, tá
entendendo. Porque o melhor lá isso que cai. Não pagamos? Tudo bem.
Agora tem quantos aí que diz que pesca e ta aposentado e nunca pescou.
Agora quem pesca e tem como provar, tem essa dificuldade toda. 168
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como pescadores não
apenas os trabalhadores e trabalhadoras que se dedicam à captura de pescado e exercem
as funções de membros de tripulações de barcos costeiros, mas também os que fazem
tarefas específicas da pesca de água doce e águas costeiras. Fazem parte dessa definição
também os coletores de esponjas e pérolas, algas e sargaços, moluscos e crustáceos.169
166
Tailler latino americano sobre gênero e o trabalho da mulher em comunidades pesqueiras. Trabalho
da Mulher Pescadora em Comunidades Pesqueiras do Litoral de Pernambuco. Recife, 2000 167
Ideval Pires Fernandes. Estudo da situação sócio-econômica e tecnológica da Pesca Artesanal
Marítima de Peixes no Município de Ilhéus-BA. Mestrado em Desenvolvimento Ambiental e Meio
Ambiente-UESC, Ilhéus, 2003. 168
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 169
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática,1986, p.11.
Mas as mulheres ainda encontram muitos problemas nos órgãos públicos ao definirem-
se enquanto pescadora, em virtude da falta de reconhecimento e informação sobre as
suas atividades no setor pesqueiro.
O trabalho das mulheres em suas comunidades de pesca é bem diversificado. A
Lei da pesca, decreto 221 de 20 de fevereiro de 1967 diz que “pescador profissional é
aquele que, matriculado na repartição competente segundo as leis e regulamentos em
vigor, faz da pesca sua profissão ou meio principal de vida”. Essa Lei reconhece todas
as pessoas que fazem da pesca seu principal meio de vida como pescador (a)
profissional. Porem, a variedade de atividades desenvolvidas pelas mulheres na pesca,
que vai desde a captura, costura das redes, até o beneficiamento e venda do produto, não
garantia os mesmos direitos para as mulheres que realizavam apenas o beneficiamento
ou venda do produto.
Segundo a Lei de 1967 é considerado “pesca todo o ato tendente a capturar ou
extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente
meio de vida.” A atividade de captura que elas realizam também é reconhecida
legalmente como uma atividade de pesca. A denominação de marisqueira foi uma
atribuição criada para as mulheres em virtude da atividade de capturar crustáceos ser
exercida principalmente pelo gênero feminino. O termo de “marisqueiro” para o homem
pouco foi encontrado nos registros da Colônia Z-34 de Ilhéus, mesmo existindo um
número considerável de homens que executam a atividade de mariscar. A denominação
“marisqueira” termina por dificultar o acesso das mulheres aos créditos e direitos
trabalhistas já que as mulheres não são tidas como pescadoras.
A nova Lei da Pesca e Aqüicultura, Lei 11.959 de 29 de junho de 2009 revoga a
Lei de 1967. Dentro das suas disposições continua compreendendo a pesca “como toda
operação, ou ação tendente a extrair, colher, apanhar, apreender, ou capturar recursos
pesqueiros.” As mulheres pescadoras que capturam o siri e realizam a extração da ostra,
do sururu e do mupaen continuam a serem reconhecidas pelas determinações legais
como pescadoras. Diferente da antiga Lei essa reconhece nos seus artigos e define a
pesca artesanal como “toda atividade praticada diretamente por pescador profissional,
de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção
próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações
de grande porte.”
Nessa nova legislação da pesca um dos grandes avanços para o reconhecimento
do trabalho da mulher pescadora é o seu Art. 4 que considera atividade pesqueira
artesanal “os trabalhos de confecção, de reparos de artes e petrechos de pesca, os
reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto da
pesca artesanal.” Essas atividades nem eram citadas na outra legislação de pesca, mas
nessa as mulheres que realizam o reparo e beneficiamento do produto também devem
ser registradas como pescadoras artesanais.
A conquista dos direitos das pescadoras faz parte de um processo de luta recente
que está relacionado ao próprio movimento feminista que despontou no mundo na
década de 1960. A falta de reconhecimento pela sociedade e o pouco investimento que o
Governo brasileiro tem garantido ao setor da pesca artesanal agrava a “pouca
visibilidade” e importância ao modo de vida das trabalhadoras da pesca. Nas
entrevistadas as mulheres sentiam necessidade de apresentar e reafirmar que eram
pescadoras e algumas chegaram a se autodenominar “profissionais da pesca”. Os
homens, mesmo praticando a pesca em águas interiores, muitas vezes, denominavam-se
pescadores, mas as mulheres eram chamadas de “marisqueiras” nas narrativas do gênero
masculino.
O não reconhecimento do seu trabalho faz com que as mulheres tenham mais
dificuldade de garantir os seus direitos junto as representações legais, a exemplo do
direito a aposentadoria. As pescadoras são idealizadas, muitas vezes, pelos grupos
sociais, como uma mulher sem “vaidade, maltrapilha e suja”170
, em virtude das
condições do seu trabalho no mangue, local de muita lama. Ao apresentarem-se bem
vestidas, encontram dificuldades para serem reconhecidas enquanto pescadoras. De
sobremaneira, nas entrevistas, criticam a forma como o sistema previdenciário brasileiro
as trata, uma vez que devem provar, com sua aparência, que são pescadoras, em termos:
Lá no pessoal do INSS a gente tem que provar que é pescadora né, tem os
documentos, tem a arte da pesca, sabe? Tá entendendo? (....) Agora tem
quantos aí que diz que pesca e ta aposentado e nunca pescou. Agora quem
pesca e tem como provar, tem essa dificuldade toda. 171
O servidor que está lá na Previdência, trata o pescador como se ele fosse um
qualquer, um ninguém, principalmente a marisqueira, quando ela chega toda
pintadinha, toda arrumadinha, com relogiozinho, e tal, eles tratam ela como
se ela não fosse uma pescadora. Então eles queriam, eles querem que a
pescadora, ou a marisqueira, e o pescador, pra ele reconhecer, se ele estiver
cheio de lama, se tiver fedendo a peixe, se tiver, lá a mulher com o cabelo
todo esvaraçado, toda desgraçada, toda rasgada, aí eu acho que eles
170
Termos que são utilizados pelas pescadores nas suas entrevistas como uma crítica ao posicionamento
da sociedade. 171
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.
enxergam, não é, com uma facilidade maior. Então, mas não é por aí, eles
têm que enxergar o pescador, a pescadora, como um profissional. 172
O depoimento do pescador Reinaldo mais conhecido por Zé Neguinho,
presidente da Colônia Z-34 desde o ano de mil novecentos e noventa e nove, exprime a
dificuldade que as mulheres têm para conseguir a aposentadoria junto ao INSS173
em
virtude do próprio reconhecimento da atividade de pesca como um trabalho. Para o
pescador o próprio Governo Federal e Estadual não dispõe de políticas que atendam as
pescadoras e pescadores artesanais e, ao mesmo tempo, garanta uma maior segurança e
prestígio desse profissional. Essa falta de interesse e informação dificulta e situação da
mulher que não é contemplada na diversidade das suas funções. Os papéis
desempenhados por elas nos diversos setores da sociedade, mostram o quanto à
construção historiográfica negligenciou a sua ação. Em virtude disso:
Impõe-se a necessidade de documentar a experiência vivida como
possibilidade de abrir caminhos novos. Outras interpretações de identidades
femininas somente virão à luz na medida em que experiências vividas em
diferentes conjunturas do passado forem gradativamente documentadas, a
fim de que possa emergir não apenas a história da dominação masculina,
mas, sobretudo os papéis informais, as improvisações, a resistência das
mulheres. 174
Temos o surgimento de lideranças femininas na cidade de Ilhéus, a pescadora
Dulciene mais conhecida como D.Cica na Comunidade do São Miguel, filha de
pescadores artesanais, é uma das fundadoras da recente Associação de Pescadoras e
Pescadores da Comunidade. A Associação foi criada porque houve desentendimentos
dos moradores do lugar com a Colônia de Pesca Z-34. O problema foi gerado, porque a
Colônia está endividada com o Banco do Nordeste, dessa forma, a instituição não
conseguiu verbas para pequenos investimentos necessários à manutenção das
trabalhadoras e trabalhadores do setor de pesca.
Na entrevista realizada com Márcio Vargas, assessor técnico da Colônia, este
afirmou que a instituição nas décadas de 1970 e 1980, com a ajuda do Banco do
Nordeste, ofereceu diversas linhas de crédito para o pescador artesanal marinho. O
172
Reinaldo Oliveira-Zé Neguinho.Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 23.02.2008. 173
Instituto Nacional de Seguridade Social. 174
Maria Odila Dias. Novas Subjetividades Na Pesquisa Histórica Feminista: uma hermenêutica das
diferenças. In. Estudos Feministas. CFH/CCE/UFSC, Ano 2. N.2, 1994.
banco contou com a ajuda da CEPLAC175
instituição que realizou vários Diagnósticos
sobre pesca artesanal, porque entre os objetivos da instituição estava o de investir em
outros setores que contribuíssem para o desenvolvimento da região.
Entretanto, em virtude de alguns problemas gerados pelos serviços de uma
empresa contratada pela CEPLAC que não terminou o trabalho de reforma da Colônia, a
mesma tornou-se endividada. As pescadoras apresentam de forma crítica a ausência dos
direitos porque são cadastradas a uma instituição de pesca, mas muitas não se sentem
representadas.
A vida do pescador é uma vida sofrida, você não tem médico, a gente não
tem um auxílio doença. Quando você é colonizado e você adoecer, eles
podem até assim comprar um remédio, porque quando o meu marido
adoeceu, eles ajudaram muito...Eu pesco, chega de noite, chovendo, eu vou
ascender fogo embaixo de chuva, porque o lucro não dá para cozinhar no
gás, então vou ascender fogo embaixo de chuva, espero cozinhar, depois vou
tomar banho, daqui a pouco estou aí cheia de doença porque aqui no São
Miguel teria que ter um galpão, ta entendendo? A gente faz com o maior
cuidado, mas quem sabe lá, esse marisco pode pegar até um..né? 176
As pescadoras e pescadores artesanais estão assegurados pelos benefícios da
Previdência Social que concede a aposentadoria aos cinquenta e cinco anos para a
mulher e sessenta anos para o homem.177
A Previdência garante ao assegurado especial
o auxílio doença, aposentadoria por invalidez, auxílio acidente e salário maternidade.
Entretanto, esse o auxílio doença citado pela pescadora é concedido mediante exame
médico pericial e esse processo geralmente é bastante dificultoso para a pescadora.
Nos depoimentos, houve grande insistência de afirmação sobre as atividades que
executam e à falta de reconhecimento do seu trabalho no setor pesqueiro. A
profissionalização da mulher é uma construção social e produto das relações entre os
sexos. Ao longo do processo histórico as profissões das mulheres inscrevem-se no
“prolongamento das funções naturais” que eram atribuídas às mulheres como afeitas ao
cuidado do corpo e do indivíduo na figura da mãe, como enfermeiras, professoras e de
secretária, sempre disponível, intuitiva e discreta, adaptava-se mais facilmente as
175
Para atenuar a crise do cacau, o Governo, pressionado pelos cacauicultores, criou no dia 20 de
fevereiro de 1957 a CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), com o objetivo de
fornecer linhas de crédito para melhorar os métodos de produção, empregando tecnologia, modernizando
e ampliando suas lavouras. 176
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009. 177
A Lei nº 8.213 de 24 de Julho de 1991 estendeu os benefícios da Previdência com seguridade especial
a todos os Trabalhadores Rurais, como também o que explora atividade agropecuária, pesqueira ou de
extração de minerais.
facilidades do chefe.178
As mulheres trabalhadoras da pesca buscam a sua
profissionalização e a igualdade de direitos nas relações de gênero transformando as
“qualidades naturais” que lhes são atribuídas em um trabalho oficialmente registrado e
ávido pelo reconhecimento.
A mobilização dessas mulheres seja em nível de formação de uma instituição
ou nas “brechas” do cotidiano sempre fizeram parte das histórias de vida. São várias as
suas estratégias para burlar a “disciplinarização”, que está no cotidiano, em ser mãe,
mulher e trabalhadora da pesca. A pescadora Zó, ainda instiga a discussão e afirma que
pescador é aquele que vive da atividade pesqueira e por isso pesca todo tipo de mariscos
e peixe, por isso não existe a diferença em ser “pescador e marisqueira”.
Ser pescadora é pescar mesmo. Não é ficar com o pé enxuto, se colonizar
e dizer eu sou pescadora. Tem que cair no mangue, no rio, pescadora
pesca tudo. Não é aquele que diz: - Ah, eu pesco robalo, pescador se não
tiver o robalo pega o caranguejo, pega o guaiamu, pega o aratu, pega siri.
Esse é o pescador legítimo, pesca tudo!179
As mulheres por não estarem envolvidas com os ambientes políticos da pesca,
representadas pela Colônia, têm dificuldade de validar os seus direitos, e muitas vezes,
não possuem nem a consciência de tais direitos. Nos seus discursos percebemos as
mudanças dessas práticas e também as que permanecem e resistem ao longo do
processo histórico. Na fala da pescadora Zó, por exemplo, está presente a sua
indignação contra a dificuldade que possuem para adquirir determinados benefícios
enquanto pessoas que muitas vezes não são pescadoras têm os benefícios adquiridos.
Tem muita gente colonizada que não pesca. Tem gente colonizada que
nunca pisou o pé na água. Isso eu sou contra, porque eu pesco desde
menina e conheço muita gente que não pesca e está colonizada recebendo
do Governo o que não merece! Enquanto nos pescadores que estamos
precisando de um auxílio doença e não recebe.180
Algumas pescadoras entrevistadas procuraram instruir-se para lutar pelos
benefícios. Foi assim que D. Cica, contribuiu para a fundação da Associação de
Pescadoras e Pescadores do bairro, principalmente com o objetivo de conseguir
investimentos diretos do Governo. A pescadora Cica conseguiu os créditos oferecidos
178
Michelle Perrot. As Mulheres ou os silêncios da História. Bauru, SP: EDUSC, 2005. 179
Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 180
Idem.
pelos órgãos do governo, especialmente pelas políticas da SEAP (Secretaria Especial de
Aqüicultura e Pesca) que disponibiliza programas de incentivo a pesca simples. Para
isso, as pescadoras e pescadores artesanais resistiram às represálias da Colônia e
continuaram no processo de luta. Ela procura se inteirar dos Seminários referentes à
pesca em busca de alternativas que venham a contribuir aos diversos setores da
atividade.
A Colônia de Pesca Z-34 na qual estavam antes vinculados garante aos
pescadores a seguridade da aposentadoria e os benefícios do trabalhador. Além disso,
oferece aos barcos de motor que fazem a entrega do produto para a instituição um
adiantamento de crédito, para a compra de isca, gelo, mantimentos e combustível. A
Colônia acaba favorecendo o pescador marítimo que apresenta uma produção maior e
geralmente não compra a pouca produção das pescadoras. As atividades realizadas por
elas não são organizadas e não há investimentos que contribuam para a melhoria das
condições de trabalho.
As pescadoras e pescadores artesanais, mesmo tendo registro na Colônia de
Pesca, e serem cadastrados na marinha não se sentem seguras e muito menos com
credibilidade para exercerem o direito de compra na sociedade. Através dos seus
depoimentos podemos perceber que a antiga relação de troca e confiança no mercado
não é mais aceita no sistema capitalista da produção. Vejamos o depoimento do
pescador José Carlos:
Hoje o pescador às vezes que consegue um crédito na cidade. A gente vai
comprar na cidade, aí os caras perguntam a profissão. Aí a gente diz: -
Pescador. Aí já olha meio atravessado, rum! Pescador.. lá ele!rsrs. Aí para
comprar qualquer coisa dá um trabalho triste. Em terra não, a pessoa pode
trabalhar no que for. Você trabalha aonde? Sou empregado. Pronto. Aí
compra. Que paga ou não paga, mas eles têm prazer de vender. Às vezes
um pescador tem condições até de pagar, mas eles já olham atravessado
para vender! 181
O pescador José Carlos é morador da comunidade do São Miguel, possui quatro
filhos e no seu depoimento enfatiza que não gostaria que os seus filhos terminassem os
seus dias como pescadores, assim como os seus avôs e o seu pai. Segundo ele,
anteriormente os pescadores só tinham o fundo rural, e atualmente ainda possuem
alguns benefícios, mas que não são necessários para garantir o reconhecimento do
pescador e da pescadora artesanal.
181
José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 11.01.2010.
O pescador não é uma pessoa reconhecida, a pessoa que trabalha em uma
firma é reconhecida por muitos órgãos... é sindicato. E nos pescadores
temos sindicato? Temos malmente a Colônia. Então, se temos algum
problema para resolver ou nos temos conhecimento ou não temos porque a
Colônia só resolve os problemas da área dela. Então é difícil pra gente que
somos pescadores. 182
Para o pescador José Carlos a Colônia não assume a função de Sindicato para
lutar pela defesa dos direitos individuais e coletivos do grupo. Portanto, o grupo é uma
categoria que não possui a mobilização necessária para lutar pelos interesses do
pescador que sobrevive da pesca mercantil simples. As Colônias são entidades sem fins
lucrativos que assumem a função de “sindicato” e cooperativa”, mas nem sempre está
organizada para atender as necessidades e particularidades do grupo de trabalho. Mesmo
porque os lucros obtidos com a venda do pescado não são repartidos de forma
igualitária entre os pescadores e pescadoras. A instituição funciona mais como uma
intermediária na venda do pescado do que como uma cooperativa.
Segundo Eliúdes, pescadora e ex-secretária da Colônia, os pescadores foram
deixando de pagar regularmente a instituição, sendo que esse comportamento de
omissão junto à mesma está de alguma forma relacionada à sua atuação administrativa e
de representatividade. Mesmo porque o lucro obtido com a venda no mercado é maior
do que o preço pago pela Colônia.
Antigamente, o pescador era tão obediente, tão interessado, que eles
pagavam mesmo, a tarifa do peixe, seja o que for, ia pescar, chegava em
terra, aqui tinha uma casa, chamava “tarifa”, né, se eles pescavam no rio
de noite, e chegavam lá, pesavam o peixinho deles, ficavam lá, para no
outro dia ele pegar aquele peixe, pagava a tarifa dele lá. 183
A pescadora Cica aprendeu a pescar com os seus pais e vive da pesca, compra e
venda de peixes e mariscos. A sua principal atividade está relacionada ao
beneficiamento do produto, porque compra o peixe e marisco para vender ao mercado.
As mulheres passam a fazer parte dos ambientes políticos e disputam o poder entre os
homens até então os que se destacavam nesses espaços. As políticas públicas não são
concernentes à igualdade entre os gêneros, porque parte de um ideal de pesca
majoritariamente masculino. Nesse trabalho entendo como políticas públicas as
182
Idem, 2010. 183
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.
diretrizes elaboradas que indicam como as instituições devem operar em função do
alcance do bem público.184
As mulheres desenvolvem atividades diversificadas no setor e o seu trabalho é
proporcional ao desenvolvido pelos homens. Entretanto, os benefícios e o
reconhecimento da mulher enquanto “pescadora” não é percebido da mesma forma. O
pensamento jurídico é construtivo de realidades locais e não um mero reflexo dessas
realidades. Porque a normativa jurídica do mundo não é simplesmente um conjunto de
normas, regulamentos, princípios e valores limitados, que geram tudo o que tem a ver
com o direito, mas parte de uma maneira específica de olhar a realidade.185
As políticas
públicas voltadas para as pescadoras e pescadores artesanais, ainda estão imbricadas de
uma concepção misógina em relação ao trabalho da pesca.
184
Maria de Fátima Massena de Melo. Políticas Públicas entre pescadores artesanais: invisibilidade do
trabalho produtivo e reprodutivo, Fazendo Gênero 8- Corpo, Poder e Violência, 2008. Disponível em:
www.fazendogenero.ufsc.br 185
Clifford Gerrtz. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 10 ed. Petrópolis, R.j:
Vozes, 2008.
III CAPÍTULO
A PESCADORA ARTESANAL E A NATUREZA
Antigamente, você via, você ia pescar, ou você tava na
beira do rio, no fundo da sua casa, você via o siri,
camarão, e hoje a gente não tem nada, nada. Para você
ver um siri na beira do rio, chegando assim, é muito
difícil, muito difícil. Com o tempo aí a gente comenta,
pescar camarão para vender era muito bom, era bom.
Dulciene Costa Santos
As Pescadoras e a Natureza
Os problemas ambientais afetam de forma direta as pescadoras e pescadores
artesanais que sobrevivem dos recursos oferecidos pela natureza. Para as pescadoras, a
natureza torna-se compreensível através do víeis de suas representações culturais e
também de seus aspectos físicos e biológicos. A proximidade que mantêm com o meio
natural nos permite pensar que a relação e o significado que o meio representa para os
grupos de pesca é bastante diferenciado do que é concebido pelo modelo capitalista de
exploração. A partir dos recursos que, muitas vezes, são retirados da própria natureza
eles controlam a quantidade de peixes e mariscos que precisam capturar. Tanto as
mulheres como os homens possuem intrínsecos meios que ajudam na preservação do
meio natural.
O processo de expansão da cidade de Ilhéus e destruição dos manguezais186
,
principais berçários, demonstra que a relação do homem com a natureza têm sido algo
nocivo e desarmonizado. O homem necessita transformar as riquezas naturais através do
seu trabalho para sobreviver, mas esses mecanismos têm levado à exploração excessiva
desses recursos. As mulheres que praticam a pesca em Ilhéus deslocam-se nos rios com
seus barcos ou de canoas para pegar o siri ou peixe, para mergulhar e catar a ostra no
manguezal e na coroa capturam diversos tipos de mariscos.
Os lugares em que trabalham são sempre rotativos, o que contribui para garantir
a sustentabilidade das espécies. As construções dos significados em torno dos elementos
naturais nas suas atividades cotidianas revelam as complexidades dos seus costumes e
símbolos que são criados para tratar a natureza. Esse conhecimento, herança dos seus
familiares, vem acompanhado de diversas maneiras de como tratar a natureza.
O espaço natural é um local em que os pescadores artesanais conhecem e
delimitam limites de busca de extração de mariscos e também consiste em um espaço
social e de domínios compartilhados pelos sexos, feminino e masculino. As pescadoras
artesanais fazem parte de uma disciplina de trabalho voltado para a relação direta com a
natureza, por isso os valores de uso e troca possuem uma conotação diferenciada para as
186
FIDELMAN no seu trabalho: Impactos Ambientais: manguezais da zona urbana de Ilhéus (Bahia,
Brasil). In: CONGRESSO LATINO AMERICANO SOBRE CIÊNCIAS DEL MAR. Anais, Trujillo:
Colacemar, Peru, 1999, p. 843-844. Os manguezais do município ocupam uma área de aproximadamente
1274 ha. São formados por espécies do gênero Rhizahora, Avicennia e Lagunculária. As áreas mais
representativas estão na zona urbana do município e ao longo das margens e ilhas da porção estuarina dos
rios Cachoeira, Santana, Fundão e Almada.
comunidades de pesca. As consequências das ações de exploração sobre o meio têm
demonstrado que os valores de uso e troca superaram o de necessidade. Na prática da
pesca artesanal, muitas vezes a proximidade e equilíbrio com o meio denota uma
necessidade de cuidado e sustentabilidade das riquezas naturais.
A Etnobiologia187
preconiza que os pescadores artesanais de águas marinhas
conseguem distinguir e reconhecer facilmente algumas espécies de animais, devido à
prática do manejo, do saber lidar com essas espécies. Essas táticas surgem nos seus
“modos de fazer” mesmo de forma indireta, e envolvem mitos, crenças, normas e tabus
culturais que contribuem para o equilíbrio do ecossistema marinho. Nas entrevistas as
pescadoras em Ilhéus comentam a respeito dos poluentes que são jogados nos rios e no
mar pelo polo industrial do município, ressaltando que precisam percorrer lugares cada
vez mais distantes para realizarem as suas atividades e salientam que a quantidade de
pessoas que trabalham no mangues e rios é cada vez maior.
Você sabe até onde nós vamos pescar? Até a rodoviária, até a ponte do
Teotônio Vilela. Teve um dia que a maré estava tão cheia e o barco virou,
foi muita gente olhando, eu não sabia nadar, nesse dia eu aprendi. Por
Deus eu te juro. Foi Deus mesmo! Quando cai, não sabia remar, eu não
sabia nada.188
A pescadora Valdecir, mãe solteira de sete crianças, sempre pescou com a sua
mãe Omerita, 71 anos. Ela ressalta que hoje costumam remar para lugares cada vez mais
distantes para capturar o siri, o que torna a sua profissão muito mais arriscada. As
pescadoras do São Miguel dizem nas suas narrativas que a morte do Rio Almada tem
significado a destruição do seu modo de vida.
D. Zó189
, critica a falta de atuação das políticas públicas na sua comunidade. O
bairro não tem rede de esgoto, e apenas quem tem foça nas suas casas possuem a
alternativa para jogar os dejetos, mas quem não tem joga no rio. Essa poluição ocasiona
a morte de muitos peixes e fica inviável a pesca no local. Para a pescadora Zó, também
moradora da comunidade do São Miguel, muitos que pescam têm consciência que não
podem pegar o marisco pequeno, mas fazem isso por uma questão de necessidade
porque “precisam comer, vender e vivem da pesca”.
187
Estudo das formas como os diversos povos se relacionam com à biodiversidade. 188
Valdecir Maria de Jesus (53 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 01.01.2010. 189
Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009.
Do siri que não tem o defeso, mas poderia ter o defeso do siri. Tem o siri
mole, tem o tempo do siri miúdo e tem o tempo do siri ovado. Isso deveria
ter o defeso, mas aqui em Ilhéus não chegou. Como tem o defeso do
camarão, tem o defeso do robalo. Agora do siri não tem, poderia ter. Isso é
uma coisa errada.190
Nas suas lembranças estão marcadas o tempo da bonança em que viviam a partir
do que o meio oferecia. Durante o inverno as pescadoras e pescadores artesanais
conseguiam pescar várias espécies de peixes, como o robalo, a carapeba, o pitu, a
pilastra e o bagre de água doce, mas com o assoreamento e a poluição do rio a atividade
pesqueira foi prejudicada. Durante o inverno a pesca acontecia no rio porque no mar
tornava-se muito perigosa em virtude das fortes ventanias. Essa divisão possibilitava
manter a sua família em todas as estações do ano, como também que as espécies
tivessem um período maior para a sua reprodução. O seu próprio modo de vida garantia
uma sustentabilidade do meio. Entretanto, o seu trabalho tornou-se “migratório”, pois
ressaltaram em seus depoimentos que precisaram transportar as suas canoas em
caminhões para realizarem a pesca nas cidades vizinhas.
A gente faz o seguinte, a gente coloca um material no caminhão e se
desloca para Canavieiras, para Itacaré, para Una porque aqui mesmo nessa
área da gente aqui, a gente não está mais conseguindo trabalhar sossegado.
Inclusive essa pesca de arrasto motorizada tem cidades aqui no Brasil que
é proibida e onde ela foi inventada na Ásia tem lugares que devastou
tanto, tem certos tipos de devastação que não ocorre espécie nenhuma
nesse local que eles atuavam. 191
Nas narrativas, as pescadoras ressaltaram que durante a infância não tinham
barco motorizado, nem a rede que arrasta camarão e faz o peixe se afugentar. Esses
barcos destroem e varrem o fundo dos mares com os seus equipamentos destruindo os
grandes berçários marinhos, como também retiram as armadilhas de pesca colocadas
pelas pescadoras e pescadores artesanais em lugares próximos da costa. O mau uso dos
instrumentos de pesca em larga escala tem descaracterizado o modo de vida de pessoas
que também exploram os recursos naturais em baixo escala. Eles expõem que a pesca de
verão era suficiente para sustentar a sua família no inverno.
Todas as espécies foram extintas, não existe mais camarão, não existe
mais peixe, não existe mais nada naquele local. Então nos fomos
prejudicados está entendendo, porque naquela tempo era muita fartura era
190
Idem, 2010. 191
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
um tempo bom, que verão para gente era sinônimo de passar o inverno
tranqüilo, trabalhava três quatro meses no verão e tinha condições de
suportar o inverno, ta entendendo, com a ajuda que a gente achava na
beira do rio. 192
O cuidado com a natureza é apresentado em suas narrativas como algo
primordial para a captura do marisco assim como para a sua preservação. Para
conseguirem uma boa quantidade de mariscos ou peixes a pescadora precisa interagir
com o meio e conhecer as suas táticas, porque cada espécie possui as suas formas
específicas de serem pescadas. Quando descrevem as suas atividades de pescaria, elas
transportam as suas memórias para o seu ambiente de trabalho e ensinam com as suas
lembranças o quanto a arte da pesca exige um conhecimento minucioso do lugar e das
práticas.
Eu gostava muito de pescar era o robalo de espera. A gente encosta a
canoa, aí quando chegar em um lugar onde tem um remão fia, aquela água
ali parada, aí a gente encosta a canoa, pega o que está dentro da canoa e
joga do lado de fora. Aí você isca o anzol e joga! Assim que você joga se
o robalo tiver por ali ele vem logo! Ali ele pega no anzol, aí ele já vem na
flor da pele ai a gente dá linha para ele no mesmo instante a gente arrasta,
quando ele cansa. Se ele for grande você tem que ter uma marretinha para
jogar ele dentro da canoa. 193
As pescadoras falaram a partir das suas vivências como o meio é tratado por
aqueles que cuidam dele e enfatizaram que a atividade pesqueira está cada vez mais
difícil em conseqüência das ações de exploração sem a devida preocupação com os
recursos naturais extraídos do próprio lugar onde moram.
Hoje em dia você vai para o mangue...vai e não tira aratu que não ta tendo
porque é o povo tirando vara...é o povo tirando madeira...escorraçando os
mariscos tudo...é...arrebenta com os mangues...é mata os mangues...aí
pronto fica difícil.194
O aratu é um marisco que fica nas flechas dos paus de mangue, portanto, como
explica a pescadora se as árvores de mangue são destruídas esses mariscos não têm
como sobreviver no manguezal. Para elas, o valor de compra do pescado aumentou com
o interesse do mercado pelo seu produto, mas também a quantidade de marisco vem
diminuindo em virtude da degradação do meio ambiente.
192
Idem. 193 Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 194
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 15.08.2006.
O bairro Teotônio Vilela possui cerca de trinta mil habitantes195
, onde parcela
considerável da sua população sobrevive do trabalho da pescaria. As pescadoras
entrevistadas enfatizaram que têm aumentado o número de mulheres e homens
pescando. Nas entrevistas as pescadoras também disseram que o pescado é capturado de
acordo com a época propícia para a sua captura, entretanto, as pessoas que não possuem
essa informação acabam capturando o marisco no momento em que eles estão
desovando. Segundo as pescadoras, a falta de experiência desses pescadores recentes
tem prejudicado a reprodução das espécies dos mariscos. Ao passo que as pescadoras
entrevistadas da comunidade do São Miguel também colocam que o rio não comporta a
quantidade de pessoas que estão realizando a atividade da pesca.
Devido à poluição do rio e também é muita gente pescando, o rio é
pequeno demais para tanta gente, aí não dá tempo desovar e crescer. Aí
muita gente pega os pequenos, aí não dá tempo dos pequenos
reproduzirem, ai vai diminuindo a quantidade. 196
Os mariscos como os caranguejos estão morrendo no município em virtude da
quantidade de lixo industrial que é jogado nesses ambientes. A pescadora Tertulina da
comunidade do Teotônio Vilela colocou em entrevista que houve o tempo do
“caranguejo de andada” em que saiam para realizar a sua cata com um saco e de bota
para o mangue dizendo: “–Vamos catar caranguejo?”, mas essa experiência os seus
filhos e netos não podem vivenciar mais porque “o caranguejo de andada acabou”, ou
seja, não existe com a fartura que existiu na sua época.197
A pescadora D. Júlia, disse
que só via “os caranguejos acamados, acamados, parecendo sapo!”, enfatizou ainda que
a morte dos caranguejos teria sido por causa de um derramamento de Petróleo que
aconteceu no Rio do Engenho.198
As mulheres apresentaram também preocupação com a pesca predatória e
inconsciente por parte das pessoas que ingressam na atividade, mas que não possuem os
mesmos costumes que elas. Segundo as pescadoras, muitas pessoas pegam o animal no
seu período de desova, o que ocasiona um grande malefício para a reprodução da
espécie. A proximidade das pescadoras artesanais com a natureza permite criar
mecanismos de defesa intrínsecos em seus costumes e na forma de lidar com os
195
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, Ilhéus, Bahia, 2002. 196
Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia 31.10.2009. 197
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006.
198
O povoado Rio de Engenho está localizado 20 km ao sul de Ilhéus. O vilarejo é banhando pelas águas
do Rio Santana.
recursos naturais. A natureza é pensada, trabalhada e transformada pelo homem que
vive em sociedade. Para as pescadoras e pescadores, “tudo depende da natureza” e se
ela não é tratada a relação natural deixa de acontecer. Então, se o homem passa a
possuir outra concepção do que seria essa relação talvez tudo possa ser mudado,
transformado e preservado.
Os seus depoimentos demonstram a consciência em relação à ação do homem
sobre o meio, o que poderia ser feito para melhorar essa situação e como as medidas
implantadas pelo governo acabam sendo fonte de imposição, e muitas vezes,
resistências as suas ações. Por possuírem uma relação mais próxima com o meio
ambiente, as pescadoras e pescadores artesanais desenvolvem uma relação de uso e
troca diferente das pessoas que estão longe desse espaço, e influenciada
psicologicamente por outros valores.
Traditional economic valuation, perhaps the best-understood case of
quantitative valuation, begins by assuming that the source of values is the
felt preferences of individuals. Felt preferences are psychological states that
determine, at least on the average, individual behavior in the marketplace.
An entity has “demand value” if it can satisfy such a felt preference. The
market determines what the actual demand value of an entity is. Does
biodiversity get its value in this way? Certainly, those of us who are deeply
committed to biodiversity conservation are willing to pay a certain amount
for it. 199
Para o autor a valorização tradicional da economia assume que a origem do valor
perpassa por preferências individuais. As desastrosas preferências são percebidas como
estados psicológicos que determinam a conduta no lugar social. O mercado determina
qual a demanda atual de valor nisso. A falta de acesso imediato à "natureza" pode afetar
os nossos estados psicológicos, incluindo os nossos estados emocionais, de forma que
nós não compreendemos ainda a importância cientifica de cada lugar.
As pescadoras e pescadores artesanais extraiam da própria natureza os recursos
necessários para a prática da pesca artesanal. O pescador José Wellington recorda que as
Jangadas eram feitas na própria cidade a partir da retirada da árvore da mata. Segundo
ele “entrava aí, na mata, e tirava um pau, que servisse para fazer jangada, para a canoa,
e fazia assim, um rapaz ali construía." No Teotônio Vilela as mulheres costumam retirar
dos paus do mangue um tipo de marisco chamado de “almofadinha” para a pesca do
199
Sahotra Sarkar. Biodiversity and Environmental Philosophy: Introduction. New York: Cambridge
University Press, 2005, p.77.
aratu. A foto abaixo demonstra a pescadora Chica pegando a isca antes de iniciar a
pesca do marisco.
FIGURA 11: Pescadora pegando a isca
(Fotografia de pesquisa, 2004)
Outra isca bastante utilizada pelas pescadoras é a chamada “mututuca”, é uma
espécie que fica enterrada na areia e tem a aparência de uma cobra. Algumas pescadoras
consomem a espécie, outras utilizam apenas com isca na pesca do aratu, siri, e de
peixes. Durante a cata do aratu a pescadora pode encontrar a tal isca e precisam
empreender uma força muito grande para retirá-la da areia.
Foto 12: Pescadora pegando a mututuca
(Fotografia de pesquisa, 2009).
O processo de devastação das áreas de mangue tem feito com que as pescadoras
se encaminhem para áreas cada vez mais distantes para realizar a cata do produto. Para a
pescadora Helena, “o marisco está acabando, porque antigamente tinham o caranguejo,
a ostra e hoje à gente anda muito para poder achar”. Dona Chica, de 48 anos e D. Nita,
de 72, saem do Teotônio Vilela e se deslocam até o bairro Iguape, fazendo um percurso
a pé de aproximadamente seis quilômetros em busca de marisco. Elas encontram cada
vez mais dificuldades para trabalhar, porque a quantidade de mariscos e peixes já não é
a mesma devido à quantidade de pessoas exercendo a atividade sem consciência, e em
conseqüência da poluição dos rios, mares e manguezais que vem destruindo as espécies.
Durante a entrevista as pescadoras e pescadores ressaltaram a sua preocupação
com o meio ambiente. Na comunidade do São Miguel, as grandes embarcações que
ultrapassam o limite de terra têm destruído as artes de pesca e varrido o fundo do mar
com os seus motores e a utilização de redes.
A pesca de barco a motor representou para a pescadora artesanal um empecilho
porque os barcos costumam destruir as suas redes e armadilhas de pesca deixadas no
mar. Eles enfrentam as intempéries do meio ambiente e concorrem com as novas formas
tecnológicas encontradas pelo homem para extrair os peixes e mariscos. A pesca de
arrastão é uma das mais prejudiciais para o meio. Mesmo porque, a área onde pescam é
berçário, e porque no rio os peixes desovam para depois encaminharem-se para o mar.
As pescadoras e os pescadores demonstram um conhecimento aprimorado das
consequências que essas ações corrosivas podem causar e apresentam com riquezas de
detalhes como acontece esse processo.
Eles não respeitam o limite da área que eles devem pescar e o material que
eles pescam também tem áreas de pesca aí que eles já devastaram, é a pesca
de arrasto de balão. Pesca de arrasto motorizado, pesca de arrasto
motorizado. Então esse tipo de pesca aí, ele destrói com o sistema que a
gente tem. É uma coisa que tem no fundo do mar que ali serve de alimento
para o pescado, tanto para o camarão, o peixe que ta criando ali, como o
peixe que vem desovar aqui dentro. Então quando ele passa com aquelas
placas, aquela rede, ele tira todo o sedimento do fundo do mar, tirando,
aqueles sedimentos são levados pelas correntes marítimas, eles não ficam ali
naquele local, eles só ficam ali, fica tipo...uma plantação, tirou a plantação
fica só o chão limpo, aí se você não conseguir adubar ali, isso é feito pela
natureza mesmo, tá entendendo? 200
As comunidades artesanais de pesca possuem um conhecimento da natureza que
é adquirido a partir da experiência. Elas revelam um complexo sistema cultural,
engendrado por grande sabedoria das condições naturais da vida e integrado à
natureza.201
O pescador e a pescadora artesanal possuem um modo próprio para explicar
o processo de degradação no meio natural.
Essa adubação, de fundo de mar, dessa localidade, é feita pela natureza, são
materiais orgânicos, digamos, em decomposição, que é encontrada dentro do
rio mesmo, geralmente em época de chuva o rio enche, elas se depositam no
fundo dessa baía aí, e aí com o passar de um ano, um ano e pouco, isso aí,
esses sedimentos vão servir de alimentos para o pescado. 202
Para a pescadora Zó, os chamados “barcos de arrastão” tem significado o fim da
pesca de Calão, porque o pescador joga a rede no mar e não consegue pegar peixes. Para
D. Eliúdes, ficam as lembranças da pescaria do tempo de infância, onde a pesca de calão
ainda era movida pela solidariedade e compadrio. Os pescadores de Calão garantiam
também a alimentação da comunidade ao distribuir peixes e mariscos, mas esse costume
não é tão comum como era antigamente. A fartura do marisco também era a garantia de
uma boa vendagem para a pescadora e o pescador que vendia o seu próprio produto sem
precisar se submeter à figura do atravessador, que compra do pescador para vender o
seu produto para o mercado a partir de um preço estipulado pelo mesmo. A pescadora
ressaltou o seguinte:
200
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
201
Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação: Novos rumos para a proteção da natureza nos
trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004, p 109. 202
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
Mas foi certa época porque a pescaria agora, meu filho, não tá mais dando
nada não! No meu tempo de infância, o pescador não fazia nem questão,
porque enchia-se uma canoa, de peixe, ia para o porto de Ilhéus, com a
canoa cheia, vender lá no porto. Hoje em dia, a pesca não dá mais para
fazer isso. Porque devido também ter muito barco motorizado, arrasta
camarão, o peixe se afugenta. Não tem mais aquela facilidade como eu me
criei aqui. 203
As diversas medidas implantadas pela administração pública para sanar os
problemas ambientais são apenas paliativos para contornar a difícil situação. Através
dos estudos das atividades artesanais percebemos que, muitas vezes, nas comunidades
de pesca a simbologia dá lugar para o conhecimento científico que impõe regras e
modelos que geralmente não são eficazes e não fazem parte dos seus costumes e dos
valores vivenciados.
A pescaria hoje, pra calão, ela num tá dando mais, normalmente, pra
comer, porque não pega a quantidade mais que era, antigamente pegava
canoa de peixe camina, peixe grande, quando dava o lanço, para quem
tinha ali, o cardume tava dando, aí aquele lanço às vezes não dava nem
pra chegar em terra, que rompia a rede com tanto peixe, ali às vezes eles
não faziam nem questão, eles davam peixe grande, assim, ó, o peixe que
deu. 204
A pescadora com muito saudosismo lembra-se da variedade de peixes que
conseguiam na pesca de rede e de Calão, da grande fartura que rompia a linha da rede.
Os pescadores chegavam a distribuir até mesmo os peixes maiores que conseguiam
pegar. Ela conta com entusiasmo a descrição da pesca de Calão e como essa atividade
pesqueira garantiu a manutenção de muitas famílias da sua Comunidade.
A pesca de Calão era feita através do remo e sempre tivera a presença de um
mestre para guiar o local onde deveria ser lançada a rede do mar. Sendo que um grupo
esperava em terra, enquanto outro remava para longe em busca de um local que
rendesse uma boa pescaria. No seu depoimento, ela descreve o momento como se
estivesse visualizando mais uma jogada do Calão no mar. Portanto, vejamos como ela
descreveu a atividade fazendo uma memória fotográfica do momento:
Eles remavam assim, um lá e outro cá, assim, né... seis, três de um lado
três de outro. Um saltador, o no remo, o que chamam o mestre, vai com o
remo sozinho. A canoa tem o pau, que a gente chama [vogue], e aí tem a
corda, tinha uma coisa assim, de sola, ali que botavam o remo para que
203
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.
204 Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia 30.04.2007.
fizessem isso, então deixa eu ver... remar, era assim, a tração, era a
tração...Aí, fazia o jogo, fazia assim, chama o lanço, bota o saltador,
segura a corda, que vai caindo sozinha. Aí eles vão jogando! Aí, quando
chega cá, eles dividem, metade para lá, metade para cá, e eles puxam, quer
dizer, o espaço da rede é onde vem uma malha é bem miudinha, para que
o peixe não saia. 205
O pescador José Rodrigues, da comunidade do São Miguel, enfatizou que já
pescou muito de Calão com os seus irmãos e que a atividade praticada no verão era,
muitas vezes, suficiente para manter a sua família na época do inverno pela quantidade
de peixes que conseguiam capturar. A pesca industrial e a degradação do meio
provocaram a instabilidade no modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais. Ele
disse ainda que: “ser pescador é ter amor à natureza, é continuar aquilo que meu pai fez
de bom, para mim e os meus irmãos”. Ou seja, o cuidado com a natureza está em
guardar os costumes, e as maneiras de fazer e viver deixado como herança pelos seus
pais.
Cada lugar tem um valor intrínseco ao seu modo de viver pela proximidade que
mantêm com o meio natural. Assim como os recursos naturais entra em extinção o seu
trabalho que também é parte do meio natural que está em declínio. A pesca de Calão é
tida pelas pescadoras e pescadores artesanais como uma atividade que está fadada a
desaparecer. Em virtude principalmente dos barcos industriais que têm retirado toda a
produtividade da pesca de Calão, diferente da atividade artesanal e manual que não
causa tanto impacto ao meio ambiente, a exemplo da pesca de arrastão. Para o pescador
Zé Neguinho206
, “o homem não pode chegar a cavar a areia, mas o motor cava”. Ele
enfatiza ainda que a potencialidade da pesca do homem não é a mesma do motor,
porque este trabalha “de dia e de noite” e o homem precisa descansar, assim como “o
mar precisa descansar”.
Nas memórias das pescadoras está presente o tempo em que pescavam o
camarão de todas as espécies, era o “branco, o vergê, o de sete barbas” e que
conseguiam de dez a quinze sextos só de camarão. Mas diversas ações acometidas,
muitas vezes, pela própria sociedade, pelo homem “forasteiro” e grandes empresas207
que visam apenas o lucro e não possuem medidas para combater o impacto ambiental,
205
Idem. 206
Entrevista realizada com Reinado Oliveira em 2008 pelo prof. da UESC Luiz Blume. O pescador
Reinaldo Oliveira, conhecido como Zé Neguinho, é presidente da Colônia de Pesca Z-34 desde 1999. 207
As pescadoras e pescadores nos seus depoimentos denunciam as ações de derramamento de dejetos
pela Petrobras no litoral ilheense, como também das fábricas que instalam-se no município e utilizam as
água do mar ou do rio para jogar o seu lixo.
essas ações gerais são apresentadas pelo pescador como algo que foge da sua
responsabilidade.
Segundo o pescador Zé Neguinho208
, o “crescimento da cidade” contribuiu para
provocar a destruição da natureza. Em virtude, das invasões e do aterramento aos
manguezais, os esgotos na beira dos rios e o lixo que desce dos morros da cidade para
os rios e o mar. A fartura que existia já não conseguem obter mais. Para ele: “Hoje tá aí,
nós puxando o lanço e um pouquinho nós leva, pois foi destruído o que era nosso. E
tudo causado por esses impactos ambientais que realmente se deixaram criar”. O seu
depoimento representa o sentido de pertencimento ao lugar e a noção de que forma
pessoas alheias aos seus costumes provocaram a situação de desgaste na natureza.
Ele coloca ainda, que “o rio é o berçário onde o pescado vem desovar, mas
“muita gente não conhece isso”. Os pescadores e pescadoras aprendem com o meio e
são grandes observadores dele. Ficou registrado também o tempo em que presenciaram
o siri caminhando pela beira do rio. Elas apresentam que houve a redução e extinção de
várias espécies. As pescadoras colocam, muitas vezes, como se já esperassem a situação
em virtude do próprio modo de tratar o ambiente pelas “outras” pessoas que ocuparam o
espaço e pelas diversas ações contrárias à exploração sustentável do meio.
Caranguejo já acabou, tem muito tempo que o mangue foi destruído, pelas
pessoas que vêm de fora. Principalmente com invasão. Também por causa
da destruição do, que o porto causou, muita gente correu, da beira da praia
para a beira do rio, e aí, foi destruindo tudo. 209
A construção do Porto do Malhado na cidade em Ilhéus na década de 1960
acentuou o processo de erosão marítima no bairro São Miguel. A instalação do Porto na
Enseada das Trincheiras no Malhado provocou o bloqueio da divisa litorânea de
sedimentos, que ficavam retidos ao sul do Porto, estendendo a praia da Avenida Soares
Lopes e dando origem a praia do Cristo. Ao mesmo tempo, o trecho norte do Porto
experimentou a partir desse período um drástico recuo da linha da costa, provocado pela
erosão costeira junto aos bairros São Miguel e São Domingos. 210
208
Idem,1999. 209
Dulciene Costa Santos. (42 anos). Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada
na sua residência no dia 09.01.2009. 210
Apoluceno. D.M. A influência do Porto de Ilhéus-BA nos processos de acresção/erosão desenvolvidos
após sua instalação. Dissertação de Mestrado em Geologia. Instituto de Geociências, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1998.
Essa situação gerou o desconforto para os habitantes do lugar, em virtude disso,
muitas famílias retiraram as suas casas da beira do mar, e deslocaram-se para a beira do
rio. Isso ocasionou o aumento da poluição do rio, em virtude do mesmo servir de esgoto
para as famílias que residem no local. Além dos dejetos industriais e do lixo residencial
que, muitas vezes, são despejados diretamente no local.
Na verdade você está pescando e pode receber uma bolsa, um a sacola de
lixo na cabeça, porque as pessoas que moram nas mediações do rio
Almada joga o lixo todo dentro do rio, você pode ir na beira desse rio aí,
se você quiser um dia você vem, que eu vou te levar para você ver o que é
lixo. O caranguejo sumiu nesse mangue não tem, é sacola, é isopor, é mala
velha, é tudo, é geladeira velha, é tudo que você pode imaginar que você
encontra no lixo, você encontra nessas margens. Então os siris morrem por
causa do lixo, essa fábrica que tem aí despeja água escura. Então de uns
tempos pra cá, a pescaria ficou horrível. Então você pesca, mas você tem
que fazer outra coisa que a pescaria não dá para você sobreviver. 211
Em virtude da construção do Porto do Malhado o processo de erosão foi
acentuado e muitas famílias perderam as suas casas durante esse processo. Os jornais só
começaram fazer referência à erosão e destruição das barracas de praias e casas das
pescadoras e pescadores do local a partir da década de 1989. Mas as notícias do referido
ano apresentava que essa situação vinha de anos anteriores e que a Petrobrás sabia da
inviabilidade da construção do Porto na cidade.212
Os moradores com receio da destruição erosiva resolveram afixar pneus e sacos
de areia para amenizar a erosão costeira e impedir que a água do mar invadisse as suas
casas. Para amenizar essa situação a Prefeitura da cidade construiu dois espigões para
controlar o avanço das águas do mar, mas para a comunidade local isso não foi
suficiente para aplacar a ação da natureza. O processo de assoreamento do rio Almada
no São Miguel também vêm desorganizando o modo de vida das pescadoras e
pescadores artesanais, como o aterramento do manguezal, o aterramento da boca da
barra e as bombas de água construídas para puxar água de Ilhéus para Itabuna.
Hoje não dá mais o peixe com a fartura como dava, no inverno, quer dizer,
que no mar, a gente não podia pescar porque, no inverno sempre era mês
de temporal e para gente que é artesanal sair de canoa, é muito difícil,
porque o mar é muito perigoso, e a gente trabalhava mais na parte do rio,
hoje a gente não tem mais condições, que o rio ta todo assoreado, o rio tá,
o local que era três, quatro metros de fundura, cinco metros de fundura,
211
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.
212 Amon Chystian Teixeira de Oliveira. Caracterização do Processo Erosivo na praia do São Miguel,
Monografia de Graduação de Geografia, UESC, Ilhéus, 2006.
hoje chega a um metro, um metro de água, quer dizer que não tem mais
aquele local para os peixes também, para eles andar, para eles procriar. 213
A pescadora Flávia apresenta de forma bastante detalhada e enfática as causas
da degradação do rio. Para ela, está se tornando cada vez mais difícil exercer a atividade
pesqueira e diz ainda que, “sai quatro horas da manhã debaixo de sol e chuva, pega
meio quilo, ou pega dois ou três robalos pequenininhos que não dá para fazer o almoço
só para vender”.214
A relação de uso e troca do pescado não é mais a mesma, o que antes
era utilizado principalmente para o consumo familiar é vendido para gerar renda para a
família, em virtude das suas necessidades e do valor comercial que atingiu o produto.
Nos depoimentos das pescadoras e pescadores artesanais do São Miguel está a
preocupação com a o rio Almada que já não é mais o mesmo, pois a sua profundidade
vem diminuindo e a margem do rio tem servido de moradia. Já os manguezais do
Teotônio Vilela foram tomados, em grande parte, pelos aterros. O Teotônio Vilela teve
os mangues invadidos por muitas famílias pobres que se estabeleceram no local para
sobreviver. Entretanto, o que as notícias demonstram que muitas dos aterros aos
manguezais aconteceram com a participação de pessoas ligadas ao poder público.
Técnicos do centro de políticas ambientais (CRA) denunciaram esta
semana que boa parte dos mangues de Ilhéus está sendo medido, aterrado
e loteado com a participação de servidores públicos e o uso irregular da
máquina administrativa...O comércio clandestino dos mangues de Ilhéus,
ainda segundo as denúncias é fácil e altamente rentável. O topógrafo mede
a área, que depois é desmatada e aterrada. Já prontos para serem vendidos
os lotes são oferecidos para pessoas de baixa renda que não tem outra
opção de moradia e resolvem compra-los a preços mais baratos. 215
Entretanto, nos últimos anos grande parte dos manguezais em Ilhéus,
particularmente na comunidade do Teotônio Vilela, foi destruída pela ação não só de
pessoas que não tinham onde morar, mas também pela ação “consciente” de pessoas que
não possuem o valor de uso e interação com o meio ambiente.
As pescadoras e pescadores das comunidades lembram com saudade do seu
tempo de infância, e expõem as diversas modificações no seu espaço tanto físico, como
dos costumes e práticas da sua comunidade. Nas suas lembranças estão que a jangada
na beira do mar e do rio deu lugar ás canoas, aos barcos de remo e barcos a motor.
213
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009. 214
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 04.04.2009.
215
Mangues estão sendo Loteados. Diário da Tarde, Ilhéus, 22 e 23 de abril de 1989.
Como também das festas do São Miguel, da festa de São Pedro e do tempo em que as
pescadoras e os pescadores conseguiam a rede cheia de peixes já na primeira armada.
Nas coroas, local de cata dos mariscos, a facilidade de pegar o marisco e a
distância entre as pessoas que pescavam, deu lugar á superlotação de pessoas e a uma
quantidade reduzida da produção. O mar deixou de ser temido pelas fortes ventanias e
pelos deuses que o habitavam, agora as pescadoras e pescadores ficam receosos com a
forma como avança as suas águas, em virtude do processo de erosão. Os seus costumes
e modos de vida acompanham a “destruição” do espaço de terra sendo invadido pelas
águas que garantiram a sua sobrevivência.
Segundo as pescadoras além dos riscos da maré, a “violência urbana” tem
dificultado as suas idas para o mangue e para a maré. As árvores do mangue deixaram
de esconder apenas as apreciadas iscas e os diversos tipos de mariscos para acomodar
homens armados, que disputam o espaço de trabalho das pescadoras, como também as
suas canoas e barcos tornaram-se alvos de roubos constantes.
Para a pescadora Júlia de Castro216
da comunidade Teotônio Vilela, “de tudo o
que existia na maré ela gostava de pescar” e ficava fascinada quando conseguia capturar
e visualizar a sua rede cheia de camarão. Segundo Tertulina217
, a sua companheira de
pescaria, em outros tempos era fácil “arrumar dez a quinze baldes de sururu, mas hoje
está difícil”. Enfatiza ainda que no caso da ostra “nem piquititita tem mais, é o maior
trabalho para arrumar um litro de ostra”.218
Em virtude disso, disseram que incentivam
os seus filhos e filhas a estudarem e aprender outra profissão, porque já não está dando
para viver de tudo que a “maré tem para oferecer”.
A escassez de mariscos e peixes é anunciada nos seus depoimentos, a ponto de
pescador José Raimundo219
dizer que a “pesca artesanal é uma atividade que está
ficando inviável”, pela dificuldade que está sendo para os pescadores e pescadoras
artesanais manter as suas famílias única e exclusivamente a partir desse trabalho. Eles
demonstram consciência da valorização e rentabilidade dos frutos do mar no mercado,
ao passo que ressaltam que a quantidade de pescado vem diminuindo. Conforme D.
Inês:
216
Julia Dias de Castro. Entrevista realizada no dia 12.11.2004. 217
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 218
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 219
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
No tempo da minha mãe quando esse rio tomava uma água, que era a água
doce, quando ele enchia e depois secava, a gente ia pescar de rede. Menina
pegava tanto camarão, de encher...um monte mesmo. Pegava aquele bocado
mais não tinha valor de nada, vendia de graça, 50 centavos, 10 centavos.
Essas coisas eram baratinhas mesmo e quase não dava nada pra gente viver
direito. Assim... bem né (risos) passava uma situação que só Deus
sabe..(risos)..vendia baratinho, mas fazer o quê? Tinha que viver daquele
jeito mesmo. (risos). Há...hoje em dia tá fraco não tá mais assim farturento
não, num dá peixe, tudo sem fartura! Agora não sei que diacho tão
colocando no rio que até os caranguejos tão morrendo! 220
Para Sahotra Sarkar, existe um valor intrínseco e extrínseco na sociedade sobre o
meio em que vivem, mas o que prevaleceu foi o extrínseco. O autor explica que a
literatura atual, muitas vezes, discute e assume que a origem do valor perpassa por
preferências individuais. As desastrosas preferências são percebidas como estados
psicológicos que determinam à conduta no lugar social. Expõe ainda, que o mercado é
quem, muitas vezes, procura determinar qual a demanda atual de valor das coisas, dos
lugares. Porém explica que a biodiversidade é similar a liberdade humana e isto é de
longe tão importante quanto o que é tratado nos espaços públicos. 221
Portanto, qualquer que seja o recurso da natureza, para aqueles que têm esse
amor, a experiência da vida do homem e da mulher que possui uma relação direta com a
natureza é presumivelmente transformadora, porque cada lugar tem um valor intrínseco
para o ser humano. Por isso, como ressaltou a pescadora Dulciene, “a pesca depende da
natureza”, ou seja, o seu trabalho, a sua vida está diretamente relacionado com o meio
em que vivem. 222
As leis naturais e a vida na maré
As pescadoras e pescadores artesanais apresentam no seu modo de vida um
cuidado com o meio que perpassa pelo valor que adquiriram na sua família, a partir da
relação que mantém com a natureza. Ao passo, que as políticas públicas possuem um
valor extrínseco e acabam criando medidas de “sustentabilidade” que interferem, muitas
vezes, nas maneiras de viver dessas comunidades. Através das reportagens encontradas
nos jornais da região, das Atas da Colônia, e dos depoimentos, vamos discutir como as
220
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 12.08.2006. 221
Sahotra Sarkar. Biodiversity and Environmental Philosophy: Introduction. New York: Cambridge
University Press, 2005. 222
Dulciene Costa Santos. (42 anos)Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
comunidades de pesca artesanal lidaram com as propostas e as medidas criadas pelo
Governo com o objetivo de preservar o meio ambiente.
Segundo Diegues, as comunidades tradicionais possuem métodos cognitivos que
orientam os indivíduos na sua relação com a natureza. 223
Esse conhecimento acumulado
sobre o espaço marítimo, erguido pela experiência e intuição, permite ao pescador e
pescadora preservar a natureza exercendo de forma sustentável a sua profissão. Nas
discussões epistemológicas a respeito da natureza nós temos as diversas concepções a
respeito do que seja e de como agimos e devemos agir sobre o meio.
A natureza foi pensada e discutida a princípio pelos estudiosos como algo
intocável, distante do homem que a modifica e interfere no seu espaço. O homem
deixou de se sentir parte da natureza para experimentar ser exterior a ela. Essa divisão,
também provocada pelas necessidades do mercado gerou a exploração exaustiva dos
meios. A ciência moderna construiu a ideia da dicotomia homem natureza e baseada no
enfoque antropocêntrico passou a conceber o mundo natural como objeto do
conhecimento empírico racional que podia ser dominado e controlado pelo homem.224
Para contornar essa situação, alguns teóricos apostaram na ideia da separação do
homem e da mulher de algumas áreas que deveriam ser preservadas. Nos jornais da
região nós temos documentado as propostas de ecólogos e biólogos que visavam à
criação de reservas ecológicas, e parques marinhos onde a pesca deveria ser proibida
nesses ecossistemas.
No ano de 1990, o Governo local pretendeu criar um Parque Marinho na cidade
para salvaguardar o mero canapu, espécie em extinção. Mas as pescadoras e pescadores
artesanais diante dessa situação realizaram protestos de repúdio a ação iniciada pelos
cientistas que acreditavam estar protegendo o meio ambiente. Eles denunciaram que os
maiores riscos contra o meio ambiente e a extinção da espécie estava na ação dos barcos
industriais de pesca.
“A provável criação de um parque marinho em Ilhéus, visando preservar o
mero-canapu na época de desova já começa a gerar os primeiros protestos.
Ontem, durante a sessão da Câmara Municipal, o vereador Cosme Araújo
apresentou um abaixo-assinado feito pelos pequenos pescadores do
município, com 258 assinaturas, onde eles acusam que o projeto não passa
de uma aberração política. Eles acreditam que 'não é necessário criar um
parque para proteger o mero, pois não é só o mero que habita nossas águas.
223
Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação; Novos rumos para a proteção da natureza nos
trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004. 224 Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996,
p 46.
Há meros em todos os oceanos, acasalando e desovando em diversas
enseadas e baias, sem risco nenhum para extinção da sua espécie', sugerindo
que 'temos que lutar por uma Sudepe mais forte, antes que seja tarde demais
pois estes barcos que aqui chegam, já destruíram tudo em sua região de
origem, e agora devido a escassez daquelas áreas pesqueiras, vem destruir a
nossa.” 225
Os mitos, valores e normas presentes nessas culturas que regulam o acesso aos
recursos naturais, muitas vezes, são desconsideradas pelas formulações dos teóricos.
Diegues apresenta que Hardin, por exemplo, na sua teoria da “Tragédia dos Comuns”
considera a propriedade comunal como suscetível à destruição dos recursos naturais em
virtude da exploração excessiva pelos seus usuários, e não atenta para as práticas
culturais de grupos que preservam o meio ambiente. 226
Nas Atas da Colônia Z-34, estão presentes algumas discussões das pescadoras e
pescadoras do município que se referiram de forma contestatória nas reuniões a algumas
práticas que interferiam no seu modo de vida e ao mesmo tempo eram agressivas ao
meio ambiente. No registro, datado de 1981, consta a memória de uma reunião que
tinha como objetivo discutir a utilização de determinadas artes de pesca. Eles
reclamavam que a tarrafa e outros aparelhos de pesca estavam sendo usados por pessoas
“alheias à sua comunidade”, que porventura não conheciam os seus costumes.
No documento, os dirigentes da Colônia discorreram que não existia portaria da
SUDEP (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca) que proibisse a pesca de
tarrafa, portanto, a atividade era considerada legal. Porém alegaram que desde 1958,
existia um acordo firmado entre a Colônia que proibia o uso da tarrafa e de aparelhos
como: arpão, rede de andarinho, bombas e rede de batido.
No decorrer da reunião, por meio de votação, foi decidido que tais aparelhos de
pesca não podiam ser mais utilizados e que era permitido apenas, pescar de anzol, corda
e rede de espera. Segundo eles, as “pessoas alheias à comunidade” não conheciam a
tradição da prática de pesca que era mantida pela preservação e manutenção do seu
modo de vida. As pescadoras e pescadores contestam às influências externas em defesa
dos seus costumes e do seu modo de vida. Nos seus depoimentos apresentam ideias e
propostas para a preservação do meio que poderiam vim a ser efetuadas pelos poderes
públicos. O pescador José Rodrigues, ao falar sobre a degradação dos manguezais na
225
Pescadores contra a criação do Parque Marinho. Diário da Tarde: Ilhéus, quinta-feira, 08 de fevereiro
de 1990. 226
Antônio Carlos Sant’Ana apresenta na sua obra: O Mito Moderno da Natureza Intocada, p.67, critica a
proposição de Hardim (1968) em relação a Tragédia dos Comuns.
comunidade do São Miguel explicou que a comunidade tentou criar uma área de
preservação.
A gente tá lutando, a gente está lutando há muitos anos para ser criado
uma área de preservação ambiental, dentro deste berçário que atinge lá da
boca da barra do São Miguel a o limite da Barra Nova na Ponta da Tulha e
até hoje a Colônia de pescadores não conseguiu mandar um ofício para o
IBAMA ou qualquer órgão competente para que fosse feito um estudo do
impacto ambiental que está acontecendo, neste berçário, e que fossem
tomadas algumas providências para diminuir esse tipo de impacto aí que
está havendo na localidade. 227
A importância da preservação dos berçários é uma defesa pela possibilidade de
reprodução e preservação de várias espécies de peixes e crustáceos. A partir da
experiência e do conhecimento adquirido na família existe um saber e um cuidado que
são próprios do seu trabalho. Eles procuram manter um equilíbrio ambiental, através das
maneiras de agir do cotidiano, que estão nos fazeres do lar, no trabalho, e nas formas de
organização e denúncia de determinadas atitudes.
Poluição e estragos irremediáveis na flora e fauna marítima com a pesca
predatória do camarão, da lagosta e do canapu (mero grande) ovados em
nossa costa. Os pescadores denunciaram que mais de trinta barcos de
camarão e cinquenta de lagostas estão explorando regularmente a nossa
costa e cometem diariamente verdadeiros crimes contra o equilíbrio
ecológico, capturando camarões em fase de desova, e lagostas com menos
de trezentas gramas. A fonte disse também que os barcos lagosteiros estão
poluindo o mar, citando que chegou a ver mais de cem litros de óleo
boiando na área do Porto, perto da pedra de Ilhéus. 228
A notícia divulga ainda que para os pescadores os grandes responsáveis pela
ameaça à flora e a fauna seria a própria SUDEP (Superintendência de Desenvolvimento
da Pesca), já que não tinham disponibilizados equipamentos e infraestrutura adequada
para fazer o controle ao longo da costa ilheense. Segundo Maldonado os pescadores
brasileiros pleiteiam a sua participação nos processos de decisão sobre os ciclos da
pesca e sobre a delimitação das áreas de acesso ao mar. 229
Mesmo porque, muitas das
resoluções e leis criadas pelos órgãos públicos ignoram o conhecimento que os
pescadores e as pescadoras detêm a respeito do meio em que vivem. O seu
227
Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos) Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009. 228
Pesca Predatória ameaça fauna marítima. Diário da Tarde. Ilhéus - BA, terça-feira, 28 de outubro de
1986. 229
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.
conhecimento assegura uma preservação ambiental que ao mesmo tempo entra em
conflito com as determinações que são impostas pelas leis governamentais.
Nos discursos das pescadoras podemos perceber que determinadas medidas não
são pensadas e investigadas para levar a sustentabilidade das espécies que interessa
principalmente ao mercado. A implantação do defeso, por exemplo, é algo bastante
citado pelas pescadoras como uma crítica a essa política, por só atingir as espécies de
grande valor comercial na região, como o robalo, o camarão. Elas questionam porque
não há o defeso dos mariscos como o siri, caranguejo, aratu, caranguejo, espécies que
também precisam ser preservadas.
Do siri não tem o defeso, mas poderia ter o defeso do siri. Tem o siri
mole, tem o tempo do siri miúdo e tem o tempo do siri ovado. Isso deveria
ter o defeso, mas aqui em Ilhéus não chegou. Como tem o defeso do
camarão, tem o defeso do robalo. Agora do siri não tem, poderia ter. Isso é
uma coisa errada. 230
A pescadora coloca a importância do defeso do siri não só como a garantia de
mais uma renda que teria por direito, mas como uma tentativa de garantir a reprodução
das espécies. Elas explicam que algumas pessoas quando pegam as fêmeas não
devolvem para o meio. Diferente do que costumam praticar com a sua mãe, já que
sempre que capturavam as fêmeas ovadas costumavam soltá-las no rio de volta para não
interromperem a sua reprodução. Ela ressalta ainda, que antes “tinha mais marisco e que
não estão pegando muito porque estão acabando com as fêmeas”.
O pescador do São Miguel José Rodrigues expõe em seu depoimento que a
pesca de arrasto foi proibida, pois retirava os nutrientes que alimentam as espécies do
fundo do mar. O pescador e a pescadora conhecem as consequências da má utilização
dos recursos pesqueiros. Explicam que a rede de arrasto é prejudicial, mas enfatizam
que nocivo mesmo ao meio ambiente são os motores dos barcos. Porque eles retiram os
sedimentos do fundo do mar que servem de alimento, esconderijo e crescimento das
espécies. As pescadoras afirmam ainda que os siris que os barcos capturam nas suas
redes são, muitas vezes, descartáveis e jogados mortos no mar, contribuindo ainda mais
para o processo de degradação da espécie.
Ainda na comunidade do São Miguel a pescadora Eliúdes, fala sobre a fartura de
outrora da pesca de Calão, da pesca de rede da Lagosta e aproveita o ensejo para colocar
a sua discordância ao encaminhamento das políticas de pesca no Estado e a atuação de
230
Valdenice. Entrevista realizada no dia 01.01.2010
órgãos federais e estaduais. Ela faz referência à proibição da pesca de lagosta através da
rede. Disse que chegavam pescadores de Valente e de Ituberá que vinham para a
comunidade e alugavam as casas para explorar a lagosta. Entretanto, discorre que a
pesca de rede foi proibida porque a sua prática carrega o cascalho do fundo do mar,
dejetos que são importantes para a reprodução das lagostas.
Quando foi perguntado se a pescadora concordava com a proibição a respeito da
pesca da lagosta, ela não respondeu diretamente se era a favor ou não, apenas afirmou
que a pesca favorecia tanto o pescador e pescadora artesanal como o pescador dos
barcos industriais e enfatizou que apenas a pesca de manzuá está sendo aceita. Porém,
criticou as determinações dos órgãos de controle, visto que só os barcos maiores de oito
metros têm condições de colocar o instrumento, e mesmo assim eles enganam o
IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis) porque
colocam a rede no meio do manzuá.
A política de defesa ao marisco acabou favorecendo os grandes barcos
industriais de pesca e prejudicou os pescadores artesanais e a pesca mercantil simples.
Além disso, a comunidade perdeu a renda que conseguiam adquirir na época da pesca
de lagosta, pois recebiam pescadores de diversos lugares da região. Os cientistas criam
cotas e defesos e não consideram as suas variáveis culturais. Desde o século XVII, a
investigação científica foi marcada pelo paradigma cartesiano ou pelo positivismo
racionalista que tenta desagregar a realidade em componentes para reordená-los
posteriormente como generalizações ou leis. 231
As pescadoras e pescadores apresentam no seu modo de vida aspectos que
favorecem a sustentabilidade dos recursos naturais. No seu dia-a-dia os lugares de pesca
são sempre rotativos e variam também as espécies que costumam capturar a partir da
disponibilidade do meio. Os segredos dos mestres da Pesca de Calão, que de barco
adentravam no mar em busca dos terminais pesqueiros e sua rotação nesses lugares
pode ser tida também como uma forma de manutenção das diversas espécies. Os
recursos que exploram são móveis, sendo complicado delinear, manter e defender
fronteiras e territórios não havendo equivalência com o sistema de terra.232
O conhecimento que as comunidades tradicionais de pesca possuem precisa ser
interpretado. A ciência com seus paradigmas reducionistas, muitas vezes, só consideram
231
Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. Etnoconservação; Novos rumos para a proteção da natureza nos
trópicos. São Paulo: Hucitec, Nupaub, USP, 2004. 232
Antônio Carlos Sant’Ana Diegues. A imagem das águas. São Paulo: Hucitec. USP, 2000.
como ciência aquilo que pode ser comprovado pelo método experimental. As
pescadoras e pescadores artesanais possuem costumes e táticas na forma de lidar com o
meio ambiente que são próprios do seu modo de vida. Para a pescadora Cátia é lindo
quando está no rio e consegue presenciar os golfinhos realizarem a sua pesca e
brincarem durante o momento da maré cheia.
As pescadoras se referem à pescaria como uma “terapia” onde esquecem os
problemas e dificuldades da vida pela tranquilidade e o silêncio que encontram no seu
ambiente de trabalho. Por mais dificuldades que encontram na extração e captura das
espécies, elas apresentam a recompensa de manterem-se próximas da natureza. O que as
ecofeministas discutem em relação à preocupação e a sustentabilidades presente nos
modos de vida das mulheres também se fazem atuantes nas formas de agir dos
pescadores artesanais. A interação que tanto o gênero masculino e feminino mantém
como o meio ambiente ajuda a construir práticas e valores de sustentabilidade presente
no modo de vida e trabalho de ambos.
As diversas ideias do ecofeminismo defendem uma maior tendência do gênero
feminino para a manutenção do controle ambiental e ressaltam a luta das mulheres pela
preservação do meio ambiente.233
A liderança das mulheres em movimentos que
defendem a preservação do meio ambiente tem sido justificada como uma característica
própria do sexo feminino. O ecofeminismo surgiu no início da década de 1970, fruto de
diversos movimentos sociais ambientalistas, de mulheres e pacifistas. 234
O movimento
partiu da análise das feministas em relação às ações desenvolvidas pelas mulheres que
tinham como objetivo proteger o meio ambiente.
O projeto GEPAM235
, por exemplo, ressalta que as mulheres preocupam-se e
participam de muitas ações voltadas para a sustentabilidade das riquezas naturais. As
ideias feministas que estão relacionadas ao ecofeminismo em sua abordagem mais
construtivista defendem que a proximidade das mulheres com a natureza tem afinidade
com as responsabilidades de gênero na economia doméstica e na distribuição de poder.
233
Termo originalmente criado pela feminista francesa Françoise d’ Eaubonne em 1974 e simboliza a
síntese de ambientalismo e feminismo. 234
Rosângela Angelim. Gênero e Meio Ambiente: a atualidade do ecofeminismo. Revista Espaço
Acadêmico. Nº 58. Março, 2008. 235
Projeto de Gerenciamento participativo das áreas de mananciais desenvolvido em convênio com a
Prefeitura de Santo André e a Centre for Human Settlenments-Universidade British Columbia com o
financiamento da Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional.
Considerações Finais
Foi um longo caminho que percorri para escrever a história das trabalhadoras da
pesca em Ilhéus que pertencem às comunidades do Teotônio Vilela e São Miguel.
Através da pesquisa de campo, estive no mangue, na coroa, e nas casas das pescadoras
adentrando em suas memórias e atenta as suas subjetividades.
A mesma subjetividade que a princípio foi uma lacuna no desenvolvimento de
trabalhos a partir da oralidade por considerá-la volátil, passou a ser vista depois como
uma particularidade desse trabalho pela reflexão que os pesquisadores podem fazer da
forma como as questões são memoradas. A partir do trabalho com a oralidade e a
memória podemos perceber como as mulheres se apresentaram enquanto pescadoras e
como as questões de gênero que estão impregnadas na sociedade modelam as suas
memórias e intenções.
As pesquisas realizadas a partir da perspectiva de gênero ressaltaram a
necessidade de um discurso público capaz de admitir e acolher as
narrativas de diferentes sujeitos sociais, a necessidade de um arcabouço
público no qual as memórias de todos possam ser reconhecidas e, ao
mesmo tempo, elas próprias possam se reconhecer. A história oral de
mulheres tem destacado a urgência do “processo de democratização da
memória”, que é a condição básica para as democracias contemporâneas. 236
Algumas das entrevistadas passaram a se definir e se reconhecer pescadoras
depois que passaram a ser mães solteiras e precisaram manter a família. O trabalho que
realizavam antes com os seus maridos é tratado nas falas das mulheres apenas como
uma ajuda, ou um trabalho complementar as atividades desenvolvidas pelo pescador
artesanal. A história oral das mulheres nos permite perceber experiências que são
esquecidas e negligenciadas pela sociedade e instituições públicas que, muitas vezes,
não reconhece as diversas atividades realizadas pela mulher na atividade pesqueira
Nas suas falas algumas se definem como marisqueiras, outras, pescadeiras,
catadoras, como também pescadoras. A Colônia Z-34 instituição legal que representa as
entrevistadas também varia a definição das mulheres nos seus cadastros de pesca. Os
seus depoimentos apresentam como as mulheres resistem no seu cotidiano a essa idéia
que está fincada na sociedade de que pescador é apenas aquele que trabalha capturando
236 Silvia Salvatici. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. In: História Oral.
(vol. 8) (n.o1). Revista da Associação Brasileira de História Oral. Jan.jun.2005. p. 29-42
o peixe em alto mar. Eram as mulheres que se deslocavam para a feira vender e
“pechinchar” o valor do peixe e do marisco com o freguês. Ao passo que também
percorriam as ruas, como era costume vender o peixe fresco, pelas ruas e praias da
cidade.
Mas o olhar sobre a mulher pescadora é marginal e excludente, porque ao
apresentarem-se arrumadas e vaidosas a Previdência Social tende a duvidar de que lugar
elas ocupam na sociedade. Nas entrevistas procuraram denunciar a situação de exclusão
e a forma como o seu trabalho, muitas vezes, não é reconhecido e valorizado. As
pescadoras enfatizaram as dificuldades no seu trabalho, os medos, angústias e
sofrimentos, como também colocaram a felicidade que sentiam quando trabalhavam no
campo e estavam distantes da agitação da cidade.
Além disso, acrescentaram que em nenhum outro trabalho conseguiriam adaptar-
se porque não teriam a mesma liberdade que possuem na maré. Para elas ser pescadora
“é ser livre e viver de tudo que tem na maré”, “é não ter horário para chegar e horário
para sair”. Segundo Thompson, esse descaso pelo tempo do relógio só é possível numa
comunidade de pequenos agricultores e pescadores, cuja estrutura de mercado e
administração é mínima237
. As pescadoras sentem-se livres para escolher a hora de
chegar e sair para o trabalho, diferente do cumprimento do horário a que estão sujeitos
muitas trabalhadoras e trabalhadores.
Mas, as pescadoras e pescadores artesanais colocam que a sua profissão é uma
“atividade que está ficando inviável” e não querem que os seus filhos continuem na
mesma atividade. O pescador José Carlos da comunidade do São Miguel fica entre a
euforia e tristeza ao dizer que as suas filhas e filhos são pescadores. Para ele o pescador
não tem acesso a crédito no comércio da cidade porque a sua profissão também não é
reconhecida em termos legais.238
As pescadoras não querem mais levar os seus filhos e filhas na pescaria porque a
sua vontade é que estudem e tenham outra oportunidade de vida. Já que o marisco “está
acabando” e “é muita gente pescando”. As pescadoras e pescadores artesanais hoje tem
que conviver com a destruição das suas “artes de pesca” pelas grandes embarcações que
invadem o limite de pesca no mar do São Miguel.
237
E. P. Thompson. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. Tempo, Disciplina
de Trabalho e Capitalismo Industrial. São Paulo: Companhia das Letras,1998, p. 270. 238
José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia 11.01.2010.
Além disso, a pesca de Calão, da lagosta, já não é realizada como era, porque há
uma determinação legal que afirma a sua ação prejudicial ao meio ambiente. Porque
esse tipo de pesca varre o fundo do mar retirando os dejetos importantes para a
alimentação e reprodução de muitas espécies. Para as pescadoras e pescadores
artesanais o mais agravante é a ação dos barcos industriais que não respeitam a distância
de pesca e avançam para o litoral arrastando o fundo do mar com a rede e destruindo a
vida marinha. Para as pescadoras da comunidade do Teotônio Vilela, a quantidade de
homens, mulheres e crianças pescando têm aumentado porque muitas pessoas pescam
para matar a fome. Portanto, elas têm se deslocado para lugares cada vez mais distantes
em busca do marisco.
A vida das pescadoras e pescadores artesanais tem sido um movimento de luta e
resistência à manutenção dos seus costumes, das suas formas de pescar, e da sua labuta
do dia-a-dia. Os registros apresentados dos jornais demonstram como os grupos
populares resistem como uma “antidisciplina” as determinações que, muitas vezes, são
impostas por um poder controlador. As mulheres possuem uma forma específica de
enfrentar as dificuldades, é nas “penumbras do cotidiano” que elas enfrentam as
dificuldades e criam, muitas vezes, sozinhas as suas filhas e filhos e fazem-se
pescadoras.
As mulheres incentivam umas as outras a cadastrarem-se na Colônia de Pesca e
informam os direitos trabalhistas que serão garantidos com o seu registro. Aos poucos
elas ganham também as instituições legais e organizam também uma Associação de
Pescadores e Pescadoras no bairro do São Miguel. Elas lutam por incentivos que
venham favorecer as associadas e associados, assim aprendem através da experiência o
que é ser pescadora e quais os direitos garantidos. Como nos apresenta Thompson, a
dimensão política da experiência é trabalhada tanto no âmbito do pensamento, como
também no espaço maior da cultura que acompanha normas, valores e obrigações
familiares determinadas.239
A princípio não são reconhecidas pela Colônia de Pesca, Z-34, mas depois de
muito esforço e coragem são reconhecidas pela instituição. A partir daí muitas
benfeitorias são realizadas na comunidade do São Miguel, como o funcionamento da
Escola de Ensino Primário que estava desativada e o funcionamento do Posto de Saúde
239
E. P. THOMPSON. (Edward Palmer). A formação da classe operária inglesa. 2. ed Rio de Janeiro,
1998.
da localidade. O passado e a ação do presente passam a construir as histórias de vida e
trabalho das pescadoras artesanais. As suas memórias constroem também as diversas
formas de ser pescadora e de manutenção dos seus modos de vida.
A pesca realizada em águas litorâneas na cidade de Ilhéus era uma atividade de
cunho familiar e envolvia diversas experiências no trabalho da pesca. Seja trabalhando
com a cata, a salga, e a venda do peixe que conseguiam pegar no Calão, desde
trabalhando com o anzol no rio e ajudando a pescar o rubalo, desde pegando o barco
para pescar de rede a noite, desde indo trabalhar na coroa e no mangue. Portanto, a
pescadora e o pescador sempre dividiram esses espaços ao lado dos filhos e filhas que
aprendiam desde cedo os conhecimentos da pesca artesanal que é passado de geração
para geração a partir da experiência.
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Arquivo da Igreja Santíssima Trindade em Ilhéus - BA.
Ata de reunião dos membros da Igreja Católica Santíssima Trindade localizada no
bairro Teotônio Vilela.
Arquivo da Colônia de Pesca Z-34 em Ilhéus - BA.
Ata de reunião dos associados à Colônia de Pesca localizada na comunidade do São
Miguel e depois transferida para o Bairro do Malhado em Ilhéus.
Depoimentos
Andrelita Caio Batista-Nita (79 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
22.03.2009.
Cátia Sueli Neves dos Santos. (34 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
03.01.2009.
Dinalva Alcântara de Carvalho (49 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
13.08.2006
Dulciene Costa Santos. (42 anos). Antônio José Rodrigues dos Santos (38 anos)
Entrevista realizada na sua residência no dia 09.01.2009.
Francisca Maria dos Santos (54 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
15.08.2006.
Flávia Barbosa Lima (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
04.04.2009.
Isarildes de Jesus Reis (44 anos)- D.Zó. Entrevista realizada na sua residência no dia
31.10.2009.
José Carlos de Jesus Nascimento (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
11.01.2010.
Julia Dias de Castro (60 anos). Maria Helena de Castro dos Santos (32 anos); Tertulina
Ferreira Mota (59 aos), Gileno Ferreira dos Santos (75 anos) Entrevista coletiva
realizada no dia 12.11.2004, na residência de D. Júlia e Sr. Gileno, (32 páginas).
Julia Dias de Castro (60 anos). Entrevista realizada no dia 12.08.2006.
Maria Helena de Castro (32 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
12.11.2006.
Márcio Luís Vargas. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia 27.08. 2004.
Maria de Cássia Souza Bispo. Entrevista realizada na residência no dia 10.01.2009.
Maria Eliúdes Oliveira da Silva. Entrevista realizada na sua residência no dia
30.04.2007.
Maria Inês de Aquino (52 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
12.08.2006.
Orenice Paixão dos Santos (58 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
05.01.2009.
Omerita Maria de Jesus (71 anos) e Valdecir Maria de Jesus (59 anos). Entrevista
realizada na sua residência no dia 01.01.2010.
Rosa de Aquino. Entrevista realizada na sua residência no dia 22.10.2009.
Reinaldo Oliveira-Zé Neguinho. Entrevista realizada na Colônia de Pesca no dia
23.02.2008.
Tertulina Ferreira Mota (59 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
12.08.2006.
Valdecir Maria de Jesus (53 anos). Entrevista realizada na sua residência no dia
01.01.2010