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ENTRE O HUMOR E A CRÍTICA: ABORDAGENS DE O AMIGO DA ONÇA (1943 – 1974) Ana Flávia Dias Zammataro Co - autor: Alberto Gawryszewski Mestrado em História Social (UEL) Palavras-chave: Amigo da Onça, crítica, humor CONTEXTUALIZANDO A ANÁLISE: A REVISTA O CRUZEIRO A revista O Cruzeiro foi fundada em 1928, pelo jornalista Assis Chateaubriand, no Rio de Janeiro. Integrava os “Diários Associados”, uma rede de comunicações nascida no ano de 1924 e que, em 1959 chegou a congregar “dezenas de jornais, as principais estações de televisão, 28 estações de rádio, as duas mais importantes revistas para adultos do país, doze revistas infantis, agencias de propaganda (...)” (MORAIS, 1994: 32). Seu lançamento foi um fato marcante, obtendo uma tiragem de 50.000 exemplares só no primeiro número e teve como pano de fundo, políticas pró Vargas, que fizeram com que suas edições girassem em torna da figura varguista e sua candidatura à presidência da época. O êxito inicial da revista foi devido a seu formato original – a primeira revista “impressa em papel couchê de primeira classe” (NETTO, 1998: 37) – com um conteúdo rico em reportagens ilustradas, com partes impressas à cores. As ilustrações aproximavam a público leitor da revista, tanto com suas imagens fotográficas, quanto com seus desenhos de humor 1 , passando, então, a ser referência cultural entre as pessoas, fundando valores, conceitos. 1 Como desenhos de humor entendemos as charges, as caricaturas e as caricaturas de costumes, os cartuns. Essas imagens apareciam freqüentemente na O Cruzeiro, geralmente dedicando uma seqüência da revista para a publicação das mesmas. Para um maior aprofundamento do tema, ler: LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963. 4 Volumes; NERY, João Elias. Charge e Caricatura na construção de imagens públicas. São Paulo: PUC/SP. Tese de doutoramento em Comunicação e Semiótica. 1998; NETO, Accioly. O Império de Papel – os bastidores de O Cruzeiro, Porto Alegre: Sulina, 1998

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ENTRE O HUMOR E A CRÍTICA: ABORDAGENS DE O AMIGO DA ONÇA (1943

– 1974)

Ana Flávia Dias Zammataro

Co - autor: Alberto Gawryszewski

Mestrado em História Social (UEL)

Palavras-chave: Amigo da Onça, crítica, humor

CONTEXTUALIZANDO A ANÁLISE: A REVISTA O CRUZEIRO

A revista O Cruzeiro foi fundada em 1928, pelo jornalista Assis Chateaubriand,

no Rio de Janeiro. Integrava os “Diários Associados”, uma rede de comunicações

nascida no ano de 1924 e que, em 1959 chegou a congregar “dezenas de jornais, as

principais estações de televisão, 28 estações de rádio, as duas mais importantes revistas

para adultos do país, doze revistas infantis, agencias de propaganda (...)” (MORAIS,

1994: 32). Seu lançamento foi um fato marcante, obtendo uma tiragem de 50.000

exemplares só no primeiro número e teve como pano de fundo, políticas pró Vargas,

que fizeram com que suas edições girassem em torna da figura varguista e sua

candidatura à presidência da época.

O êxito inicial da revista foi devido a seu formato original – a primeira revista

“impressa em papel couchê de primeira classe” (NETTO, 1998: 37) – com um conteúdo

rico em reportagens ilustradas, com partes impressas à cores. As ilustrações

aproximavam a público leitor da revista, tanto com suas imagens fotográficas, quanto

com seus desenhos de humor1, passando, então, a ser referência cultural entre as

pessoas, fundando valores, conceitos.

1 Como desenhos de humor entendemos as charges, as caricaturas e as caricaturas de

costumes, os cartuns. Essas imagens apareciam freqüentemente na O Cruzeiro, geralmente dedicando uma seqüência da revista para a publicação das mesmas. Para um maior aprofundamento do tema, ler: LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963. 4 Volumes; NERY, João Elias. Charge e Caricatura na construção de imagens públicas. São Paulo: PUC/SP. Tese de doutoramento em Comunicação e Semiótica. 1998; NETO, Accioly. O Império de Papel – os bastidores de O Cruzeiro, Porto Alegre: Sulina, 1998

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O Cruzeiro atendia à classe média da população brasileira, sendo direcionada à

ambos os sexos, mas denotando uma atenção especial ao público feminino, contendo em

seu interior reportagens vinculadas a esse universo, com mulheres na capa, em sua

maioria. O Amigo da Onça, apesar da abrangência de suas anedotas, tinha como um dos

alvos principais, também, a figura feminina, seja no sucesso da conquista, ou na sátira

de sua “feiúra”.

Os exemplares da revista eram vendidos, e traziam muitas reportagens,

fotografias, artigos e desenhos de humor. A revista é de tamanho padrão 34 x 50 cm,

impressa com imagens coloridas – desenhos de humor e propagandas, no geral - mas

também apresentando imagens em branco e preto – fotografias em sua maioria.

Ao cartum “Amigo da Onça” O Cruzeiro lhe dedicava uma página inteira, haja

vista a imagem ocupar quase 100% do espaço da mesma. A página de sua publicação

varia de mês a mês, às vezes no início da revista, ou no fim da mesma. O desenho era

impresso à cores, variando, entretanto, quando em conformidade com a perspectiva da

abordagem dos artistas em uma determinada publicação.

As falas presentes nos balões aparecem corriqueiramente ou dão espaço a falas

soltas na imagem. As expressões lingüísticas estão de acordo com as temáticas

desenvolvidas e em consonância com as perspectivas da época com anedotas e

colóquios que faziam parte do cotidiano das pessoas.

A queda da O Cruzeiro se deu no ano de 1974, em razão de inúmeras dívidas

contraídas junto a seu criador, Assis Chateaubriand - somada às doenças que o mesmo

já houvera contraído e, portanto, debilitado sua saúde - que foram adquiridas ao longo

dos anos de publicação da revista.

Delimitamos esse trabalho aos anos que seguem de 1943 até 1974, anos esses

em que o Amigo da Onça fora publicado na revista O Cruzeiro. Deu início a essa

imagem o artista Péricles Maranhão até o ano de 1961, quando de seu falecimento.

Apesar de sua morte, Carlos Estevão deu continuidade à obra de Péricles, trabalhando

nos mesmos eixos paradigmáticos de seu criador. Em uma média de 1390 imagens,

selecionamos para essa apresentação, 3 delas, devido à elementos de ordem qualitativa e

também por serem imagens que abordam o cotidiano, tecendo uma crítica ou

provocando o riso.

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ENTRE O HUMOR E A CRÍTICA: ABORDAGENS DO AMIGO DA ONÇA

O trabalho com o humor visual nos leva à conceituá-lo, haja vista os vários

formatos existentes do mesmo (charge, caricatura, cartum). Analisando o Amigo da

Onça percebemos a cotidianidade de suas abordagens, os aspectos universais de seu riso

e de sua crítica, o que nos levou, portanto, a adotá-lo como “cartum”.

Observamos na imagem uma abordagem coletiva seja dos defeitos alheios, da

crítica institucional, da própria vitória do personagem principal – que dá nome ao

cartum – identificando, dessa forma, personagem e leitor, porém não se apropriando de

maneira direta do último. Acrescenta-se a isso, o fato de o cartum, abordar o coletivo de

uma forma particular, incorporando o todo, mas ao mesmo tempo o indivudual, quando

das críticas e dos costumes. Nesse sentido, afirma-se que “Cartum entre charge e

caricatura é o mais característico dos traços e também o mais anárquico, porque é

aquele que explora e vai fundo no delírio de ser, como fonte de consciência individual e

como objeto de comportamento social” (TEIXEIRA, 2005: 56).

Marcos Antonio da Silva, em “Prazer e Poder do Amigo da Onça” apesar de

trabalhar com a mesma imagem, toma outros direcionamentos. Trabalhando com

“limiares”, como o próprio autor define, ele toma o humor visual para fazer um estudo

da dimensão do imaginário social. Em seu desenvolvimento, percorre o campo da

política como campo necessário para compreensão de sua tese.

Em nossa pesquisa identificamos as situações de humor e de crítica feitas pelo

Amigo da Onça. Seja em um âmbito social, moral ou mesmo político o riso que essas

circunstancias poderiam causar no público leitor está, pois, ligado ao inesperado, à

revelação daquilo que se pretende esconder, mas que o Amigo da Onça faz questão de

mostrar.

Por revelar o inesperado, o Amigo da Onça se enaltece em suas anedotas, em

detrimento dos personagens que sofreram as revelações, daí o sentido de ser “vitorioso”.

Desse modo, ele se torna portador das verdades gerando críticas morais, sociais,

políticas. A sua vitória tem seu deleite nas adversidades alheias, quando da exposição de

elementos que se pretende esconder.

Ele representa o anti-herói brasileiro, aquele que a todo momento fazia

travessuras para comprometer o caráter dos demais personagens. Ora, ele é o próprio

“amigo da onça”, aquele que mente, que trai, que expõe o outro ao ridículo enquanto

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mantinha sempre uma postura superior, seja em seu porte físico - um sujeito de porte

atlético, bem vestido e bem penteado – seja em seu porte psicológico – sujeito sempre

vitorioso, o mais inteligente, o mais esperto, mais audaz, o mais atraente. Notemos que

mesmo sendo o “anti-herói” o leitor torcia por ele já que, seja fazendo uma crítica ao

próximo, ou comprometendo a vida alheia, provocava o riso.

As criticas que poderia tecer, apesar de virem acompanhadas de humor, traziam

elementos que colocariam o leitor a fazer uma reflexão. Um personagem sempre

disposto a desnudar, trazendo à tona verdades que não se quer mostrar, invadindo

espaços privados, como o da família, revelando traições conjugais ou colocando a nu

desmazelos políticos. Nesse sentido, Saliba já nos diz que:

“O humor ocupou um significativo espaço na sociedade brasileira, mas

foi – ou ainda é – um espaço peculiar misturado à prática da vida e que

por isso regride sempre à ética individual, desmascarando as morais

sociais dos interesses privados, explorando ou acentuando seus

contrastes com o impessoal e com o público” (SALIBA, 2002: 303)

Em seu sentido de humor, o Amigo da Onça acompanhava os paradigmas das

páginas da O Cruzeiro, que trazia em seu interior inúmeras publicações de humor

visual, acompanhando as demandas da indústria cultural já que “(...) no começo do

século, a expansão da caricatura e das páginas de humor esteve na razão direta de

mudanças editoriais e iniciativas gráficas pioneiras.” ( Op. cit. p. 43).

Numa perspectiva de crítica, o Amigo da Onça ainda mantinha essa sua postura

superior em relação ao outro com a intenção,

porém, de desvelar as fissuras institucionais.

Observemos, por exemplo a seguinte

imagem – ela é de 1968 e foi feita por Carlos

Estevão: sendo toda ela condicionada pelo

Amigo da Onça, encontramos nesse cartum

uma crítica política, com a figura de um

prefeito presente e uma saudação ao mesmo

através de seus companheiros, no plano de

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fundo, e da homenagem com um quadro que seria seu auto-retrato. A solenidade do

acontecimento pode ser observada pela vestimenta dos personagens, todos de terno,

muito bem vestidos. A presença das duas únicas mulheres também seguem esse padrão:

a que aparece de perfil no plano de fundo, alem de bem vestida está maquiada e a outra,

que seria a “primeira dama”, se apresenta bem penteada, de vestido preto, com muitas

jóias, caracterizando aí, uma certa ostentação.

Notemos, também, a impressão de hierarquia que os próprios elementos da

imagem nos passa: além dos companheiros estarem atrás do personagem que seria o

prefeito na imagem, a própria postura deste e de sua esposa primeira – dama, os

caracteriza como superiores. Nessa noção de superioridade, o Amigo da Onça está, pois,

no mesmo patamar do prefeito e de sua esposa, já que sua roupa é muito semelhante a

do último: terno azul, gravata borboleta, sapatos pretos.

O local em que os personagens do plano de fundo aparecem também demonstra

a ostentação, haja vista o luxuoso lustre presente. A hierarquia da imagem se corrobora

ainda, através da presença dos personagens no primeiro plano da imagem, que aparecem

como “coadjuvantes”, fazendo um trabalho braçal de retirar o tecido da fotografia. Suas

roupas também acompanham esse parâmetro: utilizam uniformes de trabalho, são mais

simples.

A crítica advém do inesperado, causando uma surpresa em seus leitores. A foto

utilizada do prefeito é uma foto antiga, na qual aparece mais jovem. Por questões

políticas a fotografia jovem é para dar a sensação de trajetória, mostrando sua

experiência, de construção de uma carreira até chegar à idade e à ao destaque

profissional em que se encontra. Essa fotografia, por sua vez, desvela um passado que o

prefeito jamais gostaria que colocassem à nu. Sua roupa no quadro, se associa com

elementos de uma prisão, revelando, pois, que o mesmo já fora condenado, que

transgrediu as leis.

Desse modo, quando o Amigo da Onça diz: “Para inauguração de seu retrato Sr.

Prefeito, conforme me recomendou eu arranjei uma foto do Sr. bem mais jovem, ta?!”,

ele desvela uma instituição, revela as fissuras do sistema político ao demonstrar através

de uma fotografia, um homem – vulgo “Dr. Zilá Camboim, de 1968” - que apesar de ter

cometido crimes, de ter sido preso, está no poder, administrando o dinheiro público

através de seu cargo. O consentimento do prefeito através de seu gesto de “jóia”,

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enfatiza ainda mais o sintoma de surpresa que o Amigo da Onça busca provocar, já que

o prefeito, ao acreditar no último, contribuiu para o teor de sua crítica, mesmo sem ter

conhecimento disso.

Apesar de ser uma denúncia política, da forma que é feita, provoca o riso, já que

desvenda o secreto e ridiculariza o prefeito, satirizando-o. A respeito do riso provocado

pela sátira Vladimir Propp nos diz que: “A sátira age sobre a vontade daqueles que

permanecem indiferentes diante dos vícios humanos, ou que furgem em vê-los, ou que

são condescendentes ou mesmo que não sabem nada sobre eles” (PROPP, 1992: 94). Ou

seja, o risível da imagem é trazido com a revelação que o Amigo da Onça faz aos seus

leitores a respeito do passado do prefeito, expondo suas contradições e seus vícios.

Uma outra imagem também apresenta uma crítica, só que dessa vez num âmbito

mais particular e de um modo mais cotidiano. Ela é de 7 de dezembro de 1963, ano esse

em que Péricles Maranhão já havia falecido, e por isso da legenda da imagem: “Criação

imortal de Péricles. Original de equipe de O Cruzeiro”. Esse cartum aborda o universo

privado da família, tecendo sobre ela uma crítica. A temática desenvolvida gira em

torno da relação conjugal do casal. No plano de fundo, temos a presença da figura

masculina que pelas informações da imagem, seria o

marido.

O Amigo da Onça, fazendo uma antiga

brincadeira do “adivinhar quem é” tapando os olhos

da pessoa, faz com que a esposa confesse – mesmo

sem saber – a situação de traição no seu casamento.

Ao confundir as mãos do Amigo da Onça com as

mãos de outros sujeitos (Hélio, Arthur, Rodolfo,

Celso, Carlos), é surpreendida pelo marido, que ouve

tudo apresentando, pois, uma fisionomia de desconfiança com relação à fidelidade da

esposa, com um de seus olhos fechados, dentes cerrados e braços cruzados. Notemos,

desse modo, as estrelinhas em volta da cabeça do personagem, que tendem a

caracterizar nos quadrinhos, de um modo geral, a dor, pensamentos negativos.

Mais uma vez a situação de surpresa é toda preparada pelo Amigo da Onça, que

por meio da “inocência” de um dos personagens, (no caso, a mulher) entrega a

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infidelidade da mesma ao seu marido que, para os olhares desatentos e desconhecidos

das armações do Amigo da Onça, surgiria casualmente na imagem.

Das imagens sem críticas diretas à instituições, sejam elas públicas ou privadas,

aparece o humor pelo humor, aquele riso despreocupado, dependente, porém, do meio

social em que está inserido.

Na próxima imagem, de 1963, um dos paradigmas utilizados parte da própria

caracterização física do Amigo da Onça. Como temos, em todas a imagens que até agora

analisamos, um personagem que vence, que entrega o outro, que é forte, que é esperto,

tem perspicácia, uma das crianças dessa imagem metaforizou o Amigo da Onça quando

pequeno. Notemos, então, o menino à esquerda, com seus cabelos pretos, seu nariz

adunco, os olhos grandes e redondos que

se aproximam das características do

Amigo da Onça conhecido.

Um dos sentidos para o humor da

imagem reside justamente nessa

metaforização física do Amigo da Onça

quando criança. Esse pequeno

personagem é o que se encontra em

situação de vantagem na imagem, vestido

de índio, em detrimento das outras crianças. Da menina de tranças, ele corre atrás com o

machado para cortá-las, enquanto mantém o menino preso a uma arara, se

caracterizando essa como uma árvore, num sentido metafórico; nessa arvore, as chamas

– verdadeiras - estão subindo pelas pernas do menino na intenção de queimá-lo.

A fisionomia dos personagens – o pequeno Amigo da Onça com cara de bravo, a

menina com a boca tapada e olhos arregalados, assustada, e o menino preso com uma

fisionomia de medo, compõe o sentido da anedota. A confirmação do humor vem, por

sua vez, com a fala do Amigo da Onça pai, no plano de fundo da imagem, que conversa

com o pai dos outros garotos, dizendo: “Ora, não se preocupe, as crianças estão se

dando bem!”. Essa confirmação nasce do paradoxo do que o Amigo da Onça diz, com o

que realmente está acontecendo no outro cômodo da figura.

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Trazendo, então, um riso solto, desprendido, o Amigo da Onça mais uma vez

surpreende através de seus diálogos, mas dessa vez, sem a crítica institucionalizada,

somente levando ao humor pelo próprio sentido do humor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As imagens, por serem compostas de relações entre seus elementos e aquele que

a produz, ou estabelecer relações paradigmáticas ou sintagmáticas em seu receptor são,

pois, condicionadas culturalmente. Desse modo, ao seu riso ou a sua crítica, são

estabelecidos sentidos que estão em conformidade com as premissas de uma época.

Saliba, dentre algumas conceituações de riso que faz em sua obra, cita Henri Bérgson,

autor para o qual o riso está ligado à dimensões sociais, dependente, portanto, do espaço

social que ocupa, o que, até o presente momento, tem se aplicado à análise do Amigo da

Onça. Assim, afirma que “Para entender o riso, impõe-se coloca-lo no seu ambiente

natural, que é a sociedade, impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma

função social.” (BERGSON, Apud SALIBA, 2002: 22).

A maneira como trabalhamos com Amigo da Onça, e as transformações sofridas

pelo mesmo, corroboram a perspectiva universal que o cartum carrega em sua essência,

uma vez que as críticas, a sátira, a ironia usada e abusada nessa imagem, pertencem ao

universo coletivo, onde os indivíduos se reconhecem, sem, no entanto, participar

diretamente da imagem. Ainda, desmistificando modos e costumes, o Amigo da Onça

revela o caráter mais intimo dos indivíduos, aquele a que todos negam, mas que acabam

por encontrar uma parcela de sua personalidade sendo representada, e se ligando,

mesmo que indiretamente à grande tiragem da revista O Cruzeiro.

Enquanto pesquisa histórica buscamos portanto, apontar a materialidade das

imagens, seu expressivo uso para expressar idéias, críticas, posicionamentos, denotando

sua natureza. E é especificamente através de o “Amigo da Onça” que se coloca essa

prática de análise das imagens, exemplificando-o, fornecendo suas principais idéias e

propostas e apontando suas abordagens, tenham elas sentidos de crítica ou de humor

propriamente, reconhecendo-o em diversos ambientes, em espaços sociais pluralizados.

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São Paulo: PUC/SP. Tese de doutoramento em Comunicação e Semiótica. 1998

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Alegre: Sulina, 1998

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