eis o homem - michael moorcock

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Eis o Homem

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

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  • Ao Tom Disch

  • Este homem no detm o poder material dos deuses imperadores; apenas um squito depescadores e gente do deserto. Chamam-lhe deus; e ele acredita. Os discpulos de

    Alexandre diziam: Ei-lo invencvel, e por isso um deus. Os discpulos deste homem malpensam sequer; ele o seu acto de criao espontnea. Guia-os agora, este nazareno louco

    chamadoJesus.

    E falou-lhes, dizendo: Sim, na verdade fui Karl Glogauer eagora sou Jesus, o Messias, o Cristo.

    E assim foi.

  • I

    A mquina do tempo era uma esfera cheia de fluido leitoso, no interior da qual flutuava oviajante, encerrado num fato de borracha e respirando por uma mscara ligada parede doaparelho por um tubo. A esfera rachara-se na aterragem e o fluido transbordava sobre a terra,que o absorvia. Movido pelo instinto, Glogauer enrolou-se numa bola, enquanto o lquidoescoou e ele foi ao fundo, ao encontro do plstico macio do revestimento interno da mquina.Os instrumentos, crpticos, pouco convencionais, permaneciam mudos. A esfera tremeu erebolou para o lado, com o pouco lquido remanescente a pingar do enorme rasgo. Aos poucos, Glogauer foi abrindo e fechando os olhos. Escancarou a boca numa espcie debocejo, sacudiu a lngua e soltou um gemido que logo se transformou num uivo. Ouviu-se a si prprio. a Voz das Lnguas, pensou. A linguagem do inconsciente. Contudo,no fazia idia do que estava a dizer. O corpo ficou dormente e ele estremeceu. A viagem no tempo no tinha sido fcil, e nem olquido espesso o protegera por completo, embora lhe tivesse indubitavelmente salvo a vida.De certeza que tinha costelas partidas. Dorido, Glogauer esticou os braos e as pernas ecomeou a rastejar pelo plstico escorregadio em direco abertura na mquina. Contra aluz de um sol inclemente, viu um cu com reflexos de ao. Arrastou-se meio para fora dafenda, fechando os olhos fora incandescente do sol. Perdeu a conscincia. Primeiro perodo, 1949. Tinha nove anos, nascido dois anos aps a chegada do pai aInglaterra vindo da ustria. As outras crianas riam s gargalhadas no cascalho do recreio. A brincadeira tinhacomeado com bastante entusiasmo e Karl, um tanto nervoso, juntara-se-lhe no mesmoesprito. Chorava agora. Ponham-me no cho! Pra, Mervyn, por favor! Tinham-no atado de braos abertos rede de arame da vedao. A rede curvava-se parafora com o peso e um dos postes ameaava soltar -se. Mervyn Williams, o rapaz que sugeriraa brincadeira, comeou a abanar o poste para que Karl balouasse com fora para trs e paraa frente na rede. Pra! Viu que os gritos s os encorajavam e cerrou os dentes, calando-se. Deixou pender o corpo, fingindo perder os sentidos; as gravatas da escola que tinhamusado para o atar cortaram-lhe os pulsos. A vozeada das crianas esmoreceu. Ele est bem? Era Molly Turner quem sussurrava. Est s a brincar respondeu Williams, sem grandes certezas. Karl sentiu-lhes os dedos a desatar os ns com alguma atrapalhao. Propositadamente,deixou-se cair, primeiro de joelhos, esfolando-os no cascalho, e depois de cara contra o cho. Em parte convencido pelo prprio engodo, pareceu-lhe ouvir ao longe as vozes aflitas doscolegas. Williams sacudiu-o.

  • Acorda, Karl. Pra l de fingir. Deixou-se ficar, perdendo a noo do tempo, at que ouviu a voz do Sr. Matson elevar-sedo rebulio geral. Mas que diabo se passa aqui, Williams? Estvamos a brincar ao Senhor Jesus, Sr. Matson. Karl era Jesus. Atmo-lo vedao.A idia foi dele, Sr. Matson. Estvamos s a brincar. O corpo de Karl estava rgido, todavia conseguiu permanecer quieto, respirando devagar. Ele no nenhum matulo como tu, Williams. J devias saber isso. Desculpe, Sr. Matson. A srio. Williams falava como se estivesse a chorar. Karl sentiu levantarem-no; sentiu o triunfo...

    ***

    Estava a ser carregado. A cabea e a ilharga estavam to doridas que se sentiumaldisposto. No tivera ainda oportunidade de descobrir onde, ao certo, a mquina do tempoo tinha deixado, mas, virando a cabea, pde constatar pela forma como o homem sua direitase vestia que ao menos se encontrava no Mdio Oriente. O seu objectivo era o ano 29 d.C. no deserto para l de Jerusalm, nos arredores de Belm.Estariam agora a lev-lo para Jerusalm? Encontrava-se numa padiola aparentemente feita de peles de animais; tal indicava que, nomnimo, tinha ido parar ao passado. Dois homens carregavam a padiola aos ombros. Outroscaminhavam de ambos os lados. Cheirava a suor e gordura animal e a qualquer coisa bafientaque Glogauer no conseguiu identificar. Dirigiam-se para uma fileira de montes distantes. Glogauer encolhia-se a cada solavanco da padiola, e a dor na ilharga aumentava. Desmaiouuma segunda vez. Acordou por instantes ao escutar vozes. Falavam no que era bvio tratar-se de um dialectodo aramaico. Parecia ser noite, j que estava muito escuro. Tinham parado. Glogauer sentiupalha debaixo do corpo. Ficou aliviado. E adormeceu.

    E naqueles dias apareceu Joo Baptista, pregando no deserto da Judeia, E dizendo:Arrependei-vos, porque chegado o reino dos cus. Porque este o anunciado pelo profetaIsaas, que disse: Voz do que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor, endireitai asSuas veredas. E este Joo tinha o seu vestido de plos de camelo, e um cinto de couro emtorno dos seus lombos; e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Ento ia ter com eleJerusalm, e toda a Judeia, e toda a provncia adjacente ao Jordo; E eram por elebaptizados no rio Jordo, confessando os seus pecados.

    (S. Mateus 3:1-6)

    Lavavam-no. Glogauer sentiu a gua fria escorrer-lhe pelo corpo nu. Tinham conseguidodespir-lhe o fato protector. De encontro s costelas do lado direito, tinha agora camadas de

  • tecido espesso, presas por cintas de couro. Sentia-se muito fraco, e cheio de calor, mas menos dorido. Encontrava-se no interior de um edifcioou qui uma caverna, estava demasiado escuropara se perceber qual deitado num monte de palha saturado de gua. Dos seus cntaros debarro, dois homens jorravam grandes quantidades de gua sobre Glogauer. Homenscarrancudos, de barba, e vestes de algodo. Teve curiosidade em saber se conseguiria formular uma frase que pudessem entender. Osseus conhecimentos de aramaico escrito eram fortes, mas no tinha certezas acerca dedeterminadas pronncias. Pigarreou. Ondeserestelugar? Os homens franziram o sobrolho, acenando negativamente com as cabeas e baixando oscntaros. ProcuroumnazarenoJesus... Nazareno. Jesus. Um dos homens repetiu as palavras, embora no lhe parecessemdizer nada. Encolheu os ombros. O outro, no entanto, limitou-se a repetir a palavra nazareno, devagar, como se contivesseum significado especial. Murmurou umas quantas palavras ao outro homem, entre dentes, edirigiu-se para a entrada do quarto. Karl Glogauer continuou a tentar dizer algo que o homem que tinha ficado pudessecompreender. Queanodeo Imperador Romanoem Roma? Tinha conscincia de que era uma pergunta confusa. Sabia que Cristo havia sidocrucificado no dcimo quinto ano do reinado de Tibrio, e era por isso que a fazia. Procurouexpressar-se melhor. Quantosanosreina Tibrio? Tibrio? O ouvido de Glogauer comeava a ajustar-se pronncia, e o viajante esforou-se porsimul-la melhor. Tibrio. O imperador dos romanos. Quantos anos j reinou? Quantos? O homem abanou a cabea. No sei. Ao menos, Glogauer tinha conseguido fazer-se entender. Que lugar este? perguntou. o deserto atrs de Maqueros respondeu o homem. No sabes? Maqueros ficava a sudeste de Jerusalm, para l do Mar Morto. No havia dvidas de quese encontrava no passado e que a poca correspondia do reinado de Tibrio, uma vez que ohomem tinha reconhecido o nome sem grande dificuldade. O companheiro regressava agora, trazendo consigo um indivduo enorme, de braospeludos e musculados, e grandes peitorais. Trazia um cajado grande numa das mos.Envergava peles de animais e tinha, vontade, um metro e oitenta de altura. O cabelo negro eencaracolado era comprido, e tinha uma barba farta e escura que lhe cobria a parte superiordo peito. Movimentava-se como um animal, e os seus olhos castanhos, grandes e penetrantes,observavam Glogauer com ponderao. Quando falou, foi numa voz grossa, porm demasiado rpida para Glogauer a conseguir

  • acompanhar. Foi a vez de Glogauer abanar a cabea. O gigante agachou-se a seu lado. Quem s tu? Glogauer hesitou. No planeara ser descoberto desta maneira. Tencionara disfarar-se deviajante srio, na esperana de que os sotaques regionais fossem suficientemente diversos paraexplicar as suas prprias dificuldades com a lngua. Resolveu que o ideal seria manter-se fiel sua histria e esperar que as coisas corressem pelo melhor. Sou do norte disse. E no do Egipto? perguntou o gigante. Era como se esperasse que Glogauer fosseda. Glogauer concluiu que, se o homem pensava assim, ento mais valia dar-lhe razo. Sa do Egipto h dois anos afirmou. O gigante acenou com a cabea, aparentemente satisfeito. s, ento, um mago do Egipto. Tal como pensvamos. E chamaste Jesus, e s onazareno. Procuro Jesus, o nazareno corrigiu Glogauer. Como te chamas, ento? O homem pareceu desiludido. Glogauer no podia revelar o seu prprio nome. Soaria demasiado estranho aos ouvidosdesta gente. Instintivamente, deu-lhes o nome do pai. Emanuel respondeu. O homem acenou com a cabea, de novo satisfeito. Emanuel. Glogauer apercebeu-se, tarde demais, de que a escolha de nome fora infeliz dadas ascircunstncias, uma vez que Emanuel significava Deus connosco em hebraico, e que semdvida encerrava um significado mstico para o seu interlocutor. E tu, como te chamas? perguntou. O homem endireitou-se e, cismtico, olhou Glogauer do alto. No me conheces? Nunca ouviste falar de Joo, chamado o Baptista? Glogauer fez por ocultar a surpresa, mas era bvio para Joo Baptista que o seu nome erareconhecido. O gigante acenou com a cabea hirsuta. Vejo que me conheces. Bem, mago, agora preciso decidir, eh? Decidir o qu? perguntou Glogauer, com algum nervosismo. Se s o amigo das profecias ou o falso aliado acerca do qual nos avisou Adonai. Osromanos tencionam entregar-me nas mos dos meus inimigos, os filhos de Herodes. Porqu? Deves saber porqu, j que maldigo os romanos que escravizaram a Judeia, e maldigoos crimes de Herodes, e vaticino uma era em que todos os injustos sero destrudos e o reinode Adonai reposto na Terra, tal como afirmaram os antigos profetas. Digo s multides:Preparai-vos para o dia quando pegardes na espada para cumprir a vontade de Adonai. Osmprobos sabem que iro cair nesse dia, e por isso querem-me destrudo. Apesar da intensidade das palavras, o tom na voz de Joo era neutro. No havia qualquerindcio de demncia ou fanatismo na sua cara ou postura. Mais parecia um vigrio anglicano,lendo um sermo cujo significado para si j tinha perdido toda a veemncia. Karl Glogauer apercebeu-se de que, na essncia do que ouvira, Joo Baptista agitava asmassas para expulsar os romanos e o seu fantoche, Herodes, e estabelecer um regime mais

  • justo. A atribuio do plano a Adonai (um dos nomes falados de Jeov, e que significavaO Senhor) parecia, como muitos humanistas do sculo XX tinham adivinhado, uma forma deconferir a tais desgnios um peso suplementar. Num mundo onde a poltica e a religio seencontravam inexoravelmente ligados, at no ocidente, era necessrio imputar uma origemsobrenatural ao plano. De facto, pensou Glogauer, era bastante provvel que Joo acreditasse que a sua idiafosse inspirada por Deus, dado que os gregos no outro lado do Mediterrneo continuavamainda a discutir as origens da inspirao se tinha origem na cabea do homem ou se era lposta pelos deuses. Tambm no surpreendia Glogauer que Joo o tomasse por uma espciede mago egpcio. As circunstncias da sua chegada deviam ter parecido extraordinariamentemiraculosas e, ao mesmo tempo, aceitveis, em especial para uma seita como a dos essnios,que praticavam a autoflagelao e o jejum, e que j deviam estar bastante habituados s visesdo deserto escaldante. J no restavam dvidas de que estes eram os neurticos essnios,cujas ablues rituais o baptismo e a autoprivao, aliadas ao misticismo quaseparanico que os levava a criar lnguas secretas e afins, eram um slido indcio do seudesequilbrio mental. Tudo isto passou pela cabea de Glogauer, o psiquiatra frustrado; noentanto, Glogauer, o homem, dividia-se entre os plos do racionalismo puro e do desejo de sedeixar convencer pelo misticismo em si. Preciso de meditar anunciou Joo, dirigindo-se para a entrada da caverna. Preciso de rezar. Ficars aqui at que me seja concedida orientao. Abandonou a caverna, afastando-se rapidamente e a passos largos. Glogauer deixou-se cair na palha humedecida. Encontrava se, j no restavam dvidas,numa caverna de pedra calcria, e a atmosfera no seu interior era surpreendentemente hmida.Devia estar muito calor l fora. Glogauer sentiu-se sonolento.

  • II

    Fora h cinco anos. Quase dois mil anos na direco do futuro. Deitado na cama quente eencharcada de suor com Monica. Mais uma vez, a nova tentativa de fazer amor de formanormal tinha-se metamorfoseado no teatro de pequenas aberraes que parecia satisfaz-lamais do que outra coisa qualquer. O verdadeiro namoro e concretizao ainda estava por acontecer, no entanto. Comosempre, seria verbal. Como sempre, encontraria o clmax na fria de uma discusso. Calculo que me vs dizer que no ficaste satisfeito outra vez. Monica aceitou ocigarro aceso que Karl lhe passara no escuro. Estou bem respondeu ele. Fez-se silncio por um instante, enquanto fumaram. Ao cabo de algum tempo, e apesar de saber o que resultaria da se o fizesse, Karl deu porsi a falar. irnico, no ? comeou. Ficou espera da resposta. Monica ainda se demoraria um bocadinho. O qu? disse por fim. Tudo isto. Passas o dia todo a tentar ajudar neurticos sexuais a ficarem normais. Edepois passas a noite a fazer o mesmo que eles. No a mesma coisa. Sabes muito bem que tudo uma questo de grau. Se tu o dizes. Karl virou-se e observou a cara da namorada luz das estrelas que entrava pela janela. Erauma ruiva de rosto chupado, com a voz calma e profissionalmente sedutora que era a dapsiquiatra assistente social. Uma voz meiga, racional, e insincera. S s vezes, quando ficavaparticularmente ansiosa, que a voz comeava a indicar o seu verdadeiro carcter. As feiesnunca pareciam descansar, nem mesmo enquanto dormia. Os seus olhos estavam sempre alerta,e os movimentos s raramente eram espontneos. Cada centmetro do seu corpo encontrava-seprotegido, o que talvez explicasse a razo de sentir to pouco prazer no vulgar acto de fazeramor. No te consegues mesmo entregar, pois no? disse ele. Oh p, cala-te, Karl. Olha mas para ti, se andas procura de uma crise de nervos. Eram ambos psiquiatras amadores: ela, psiquiatra assistente social, e ele, nada mais do queum leitor, um curioso, embora tivesse feito um ano de estudos, h tempos, quando fizeraplanos de se tornar psiquiatra. Empregavam a nomenclatura psiquitrica de forma livre.Sentiam-se melhor quando conseguiam dar nomes s coisas. Karl voltou-lhe as costas e apalpou a mesa-de-cabeceira procura do cinzeiro, ao quevislumbrou um reflexo seu no espelho da cmoda. Karl era um livreiro judeu, plido, muitosrio e rabugento, com a cabea cheia de idias e obsesses por resolver, e um corpo plenode emoes. Perdia sempre nestas discusses com Monica. Nas palavras, quem dominava eraela. Karl ficava muitas vezes com a impresso de que este gnero de disputa era mais

  • perverso do que as suas relaes, onde ao menos desempenhava geralmente o papelmasculino. No fundo, apercebeu-se, era passivo, masoquista e indeciso. At os seus frequentesacessos de clera eram impotentes. Monica era dez anos mais velha, dez anos mais amarga.Como indivduo, Monica era, claro, muito mais dinmica do que ele, mas, como psiquiatraassistente social, tinha enfrentado tantos desaires quanto Karl. Continuava a mourejar,tornando-se cada vez mais cnica superfcie mas ainda assim esperando, talvez, unsquantos xitos estrondosos junto dos pacientes. O problema que se esforavam demasiado,pensou ele. Os padres do confessionrio ministravam uma panaceia; os psiquiatras tentavam acura e, na maior parte das vezes, falhavam. Mas ao menos tentavam, pensou, e tevecuriosidade em saber se tal seria, afinal de contas, uma virtude. J olhei bem para mim disse. Estaria ela a dormir? Voltou-se. Os olhos desconfiados de Monica continuavam ainda bemabertos e espreitavam pela janela. J olhei bem para mim repetiu. Da mesma maneira que Jung. Como posso euajudar estas pessoas se tambm sou um fugitivo, e qui tambm padea do morbus sacer deuma neurose? Foi o que Jung se perguntou a si prprio... O velho sensacionalista. O velho racionalizador do seu prprio misticismo. No admiraque nunca te tenhas tornado psiquiatra. No teria sido nada de jeito. No tem nada a ver com Jung... No me descarregues as culpas em cima... Tu prpria disseste sentir o mesmoachas que no vale a pena... Ao fim de uma rdua semana de trabalho, possvel que diga isso. D-me outro cigarro. Karl abriu o mao que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira e, levando dois cigarros boca, acendeu-os e deu-lhe um. De forma quase abstracta, constatou que a tenso estava a aumentar. A discusso era, comosempre, despropositada. Mas o importante no era a discusso; era apenas a expresso da suarelao essencial. Teve curiosidade em saber se tambm isso seria importante. No me ests a contar a verdade. Tinha conscincia de que j no podia parar, agoraque o ritual se encontrava em andamento. Estou a contar-te a verdade prtica. No tenho razes para largar o emprego. No queroser nenhuma falhada... Falhada? Ainda s mais melodramtica do que eu. s muito fervoroso, Karl. Fazia-te bem seres mais tolerante. Karl escarneceu. Se fosse a ti, largava o emprego, Monica. Tens tanto jeito para aquilo como eu.Ela encolheu os ombros. No passas de um sacaninha, tu. No tenho inveja de ti, se o que ests a pensar. Tu nunca irias compreender o queprocuro. O riso dela foi artificial, frgil. O homem moderno em busca de uma alma, eh? O homem moderno em busca de umamuleta, o que eu digo. Entende isso como quiseres. Estamos a destruir os mitos que fazem o mundo andar roda. E agora dizes: E que pomos ns no seu lugar? s chato e s estpido, Karl. Nunca

  • olhaste racionalmente para nada nem mesmo para ti. E da? Dizes que o mito no importa. A realidade que o cria importante. Jung reconhecia que o mito tambm pode criar a realidade. para que vejas o velho bbedo que ele era. Karl espreguiou as pernas. Ao faz-lo, tocou nas dela e encolheu-se. Coou a cabea.Monica continuava a fumar, embora sorrisse agora. V l disse ela. Venha da a cantiga de Cristo. Karl no respondeu. Monica entregou-lhe a beata de cigarro e Karl p-la no cinzeiro.Olhou para o relgio. Eram duas da manh. Por que fazemos isto? perguntou ele. Porque preciso. Monica ps-lhe a mo na nuca e puxou-o de encontro ao seio. Que mais podemos fazer?

    Ns, os protestantes, seremos mais tarde ou mais cedo obrigados a confrontar aseguinte questo: Deveremos entender a imitao de Cristo no sentido em que devemoscopiar a sua vida e, se me permitida a expresso, macaquear-lhe os estigmas; ou nosentido mais profundo, pelo qual devemos viver com a mesma verdade com que Jesus viveu,com tudo o que da advenha? No fcil viver imagem de Cristo, mas indescritivelmente mais rduo viver com a mesma verdade que ele. Quem o fizesse seria...incompreendido, achincalhado, torturado e crucificado... A neurose uma dissociao dapersonalidade.

    (Jung, O homem moderno em busca de uma alma)

    ***

    Joo Baptista esteve ausente um ms, durante o qual Glogauer viveu com os essnios,admirando-se com a facilidade, medida que as costelas foram melhorando, com que seadaptou ao seu dia-a-dia. A povoao dos essnios compunha-se de uma mistura de casas deandar nico, construdas em pedra calcria e tijolo de barro, e das cavernas que se podiamencontrar de ambos os lados do vale pouco profundo. Os essnios partilhavam os seus benscom a comunidade, e esta seita especfica tinha mulheres, embora muitos essnios levassemvidas completamente monsticas. Os essnios eram tambm pacifistas, rejeitando a posse e ofabrico de armas se bem que esta seita tolerasse o belicoso Baptista. possvel que o dioaos romanos fosse mais forte do que os seus princpios. possvel que no estivessemseguros das intenes de Joo no seu todo. Fosse qual fosse o motivo dessa tolerncia, poucasdvidas restavam de que Joo Baptista era, para todos os efeitos, o seu lder. A vida dos essnios consistia num banho ritual trs vezes por dia, oraes e trabalho. Otrabalho no era rduo. s vezes, Glogauer guiava o arado, que outros dois membros da seitapuxavam; outras, ficava a guardar as cabras que eram livres de pastar nas encostas. Era umavida pacata e ordeira, e mesmo os aspectos mais insalubres eram uma questo de rotina, tal

  • que, ao fim de algum tempo, Glogauer mal reparava neles. Enquanto guardava cabras, ia deitar-se no cimo do monte, onde tinha vista para o desertoque no era bem um deserto, mas um mato pedregoso capaz de alimentar animais como cabrase ovelhas. O mato era interrompido por arbustos rasteiros e umas quantas arvorezitascrescendo ao longo das margens do rio que, sem dvida, desaguava no Mar Morto. Era terrenoacidentado. Em linhas gerais, tinha o aspecto de um lago tempestuoso, glido e castanho-amarelado. Para l do Mar Morto ficava Jerusalm. Era bvio que Cristo no tinha aindaentrado na cidade pela ltima vez. Joo Baptista teria de morrer antes que tal sucedesse. O modo de vida dos essnios era bastante tranquilo, apesar da simplicidade. Tinham-lhedado uma tanga de pele de cabra e um cajado, e a no ser pelo facto de o vigiarem noite e dia,pareciam terem-no acolhido como uma espcie de membro leigo da seita. Por vezes, interrogavam-no descontraidamente acerca do carro a mquina do tempo quetencionavam ir buscar ao deserto sem demora e ele respondia-lhes que o tinha trazido doEgipto para a Sria, e depois para ali. Aceitavam o milagre com serenidade. Tal comodesconfiara, j estavam habituados. Os essnios tinham visto coisas mais estranhas do que a sua mquina do tempo. Tinhamvisto homens caminhar sobre a gua e anjos descerem e subirem aos cus; tinham escutado avoz de Deus e dos Seus arcanjos, bem como a tentadora voz de Satans e dos seus favoritos.Escreviam tudo isto em rolos de pergaminho. Um registo do sobrenatural apenas, da mesmaforma que outros pergaminhos eram registos do seu dia-a-dia e das notcias que os membrositinerantes da seita lhes faziam chegar. Viviam constantemente na presena de Deus, falavam com Ele e Ele respondia-lhes quandoj tinham mortificado a carne, jejuado e entoado as suas oraes sob o insuportvel sol daJudeia. Karl Glogauer deixou crescer o cabelo e a barba. Mortificava a carne, jejuava e entoavaoraes ao sol, como os outros. Mas era raro ouvir Deus e s uma vez pensou ter visto umarcanjo com asas de fogo. Apesar da vontade que tinha de experimentar as alucinaes dos essnios, Glogauer estavadesiludido, porm surpreso por se sentir to bem, tendo em conta todo o sofrimento auto-infligido a que se tivera de submeter, sentindo-se tambm vontade na companhia desteshomens e mulheres que eram claramente loucos. Talvez por esta loucura no ser assim todiferente da dele, Glogauer deixou de pensar no assunto ao fim de algum tempo.

    ***

    Joo Baptista regressou certa tarde, ao anoitecer, transpondo os montes em grandespassadas, seguido por cerca de vinte discpulos. Glogauer viu-o enquanto se preparava paraguiar as cabras de volta caverna para passar a noite. Esperou que Joo se aproximasse.

    O rosto do Baptista vinha carregado, mas a sua expresso suavizou -se ao ver Glogauer.Sorriu e apertou-lhe o antebrao maneira dos romanos. Bom, Emanuel, s nosso amigo, tal como pensava. Mandado por Adonai para nos ajudara fazer a Sua vontade. Baptizar-me s pela manh, para mostrar a todos que Ele est connosco. Glogauer estava cansado. Tinha comido muito pouco e passado a maior parte do dia ao sol,

  • a guardar as cabras. Bocejou, custando-lhe responder. Apesar disso, estava aliviado. Jootinha estado em Jerusalm, a tentar descobrir se os romanos o tinham enviado como espio.Joo parecia agora tranquilizado e confiava nele. Preocupava-o, porm, a f do Baptista nos seus poderes. Joo comeou ele. No sou nenhum vidente... O Baptista mostrou-se por momentos preocupado, ao que se riu constrangido. No digas nada. Ceia comigo hoje noite. Trago mel silvestre e gafanhotos. Glogauer ainda no tinha provado desta comida, que era o alimento principal dos viajantesque no transportavam provises, vivendo antes custa do que iam encontrando pelo caminho.Havia quem a considerasse uma iguaria.

    ***

    Provou-a mais tarde, quando se sentou em casa de Joo. Havia apenas duas divises nacasa. Uma para comer, a outra para dormir. O mel e os gafanhotos estavam muito doces para oseu gosto, mas eram uma mudana agradvel da cevada e da carne de cabra. Sentava-se de pernas cruzadas diante de Joo Baptista, que comia com grande apetite.Tinha cado a noite. Da rua vinham murmrios baixos e os choros e gemidos dos que oravam. Glogauer demolhou outro gafanhoto na tigela de mel que se encontrava entre eles. Fazes planos de guiar o povo da Judeia numa revolta contra os romanos? perguntou. O Baptista pareceu incomodado pela franqueza da pergunta. Era a primeira do gnero queGlogauer lhe fazia. Se Adonai quiser disse ele, sem levantar os olhos ao debruar -se sobre a tigela demel. Os romanos sabem? No sei, Emanuel, mas o incestuoso Herodes decerto j os avisou de que falo contra osmprobos. E, apesar de tudo, os romanos no te prendem. Pilatos no se atrevepelo menos desde que enviaram a petio ao imperador Tibrio. A petio? Sim, a que Herodes e os fariseus assinaram quando o procurador Pilatos colocouescudos votivos no palcio em Jerusalm e tentou violar o Templo. Tibrio censurou Pilatos,e embora continue a odiar os judeus, o procurador trata-nos com mais cuidado desde ento. Diz-me, Joo, sabes h quanto tempo Tibrio governa em Roma? Nunca mais tiveraa oportunidade de voltar a fazer a pergunta. Catorze anos. Era o ano 28 depois de Cristo; a pouco menos de um ano de se dar a crucificao, e amquina do tempo estava destruda. Joo Baptista planeava agora uma revolta armada contra os ocupantes romanos, mas, aacreditar nos Evangelhos, no tardaria a ser decapitado por Herodes. Era certo que nenhumasublevao em grande escala tinha ocorrido naquela poca. Mesmo quem afirmava que aentrada de Jesus e dos seus discpulos em Jerusalm e a invaso do Templo eram os actosinconfundveis de rebeldes armados no tinha encontrado registos que sugerissem uma revoltasemelhante por parte de Joo.

  • Glogauer viera a simpatizar bastante com o Baptista. Tratava se obviamente de umrevolucionrio calejado, que h anos planeava uma revolta contra os romanos e que aospoucos reunira apoiantes suficientes para coroar de xito a tentativa. Fazia lembrar os lderesda resistncia na Segunda Grande Guerra. Assemelhava-se lhes na firmeza e no entendimentodas realidades da sua posio. Sabia que iria ter uma oportunidade apenas de esmagar ascoortes aquarteladas no pas. Se a revolta se prolongasse, Roma teria tempo suficiente paraenviar mais tropas para Jerusalm. E quando julgas tu que Adonai tenciona destruir osmprobos por teu intermdio? perguntou Glogauer com tacto. Joo lanou-lhe um olhar de divertimento. Sorriu. A Pscoa uma poca em que as pessoas andam inquietas e mais se afrontam comforasteiros disse. E quando a prxima Pscoa? Ainda faltam muitos meses. Que posso fazer para ajudar? s mago. No fao milagres. Joo limpou o mel da barba. No posso crer, Emanuel. A tua chegada foi um milagre. Os essnios ficaram sem saberse eras demnio ou mensageiro de Adonai. Nem uma coisa, nem outra. Por que me confundes, Emanuel? Eu sei que s o mensageiro de Adonai. s o sinal queos essnios procuravam. quase hora. O reino dos cus no tardar a instalar-se na Terra.Vem comigo. Diz s pessoas que falas com a voz de Adonai. Faz grandes milagres. O teu poder est a diminuir, no est? Glogauer lanou um olhar penetrante a Joo. Precisas de mim para renovar a esperana dos teus rebeldes? Falas como se fosses romano, com to pouca subtileza. Joo levantou-se, enfurecido.Era evidente que, semelhana dos essnios com quem vivia, preferia conversas menosfrancas. Havia uma razo prtica para tal, apercebeu-se Glogauer, dado que Joo e os seushomens receavam traio a todo o momento. At os registos dos essnios eram parcialmenteescritos em cifra, com uma palavra ou frase de aspecto inocente a significar uma coisacompletamente distinta. Desculpa, Joo. Mas diz-me se estou certo pediu Glogauer com brandura. No s mago, vindo do nada naquele carro? Joo gesticulava e encolhia os ombros. Os homens viram-te! Viram o brilho formar-se no ar, e abrir-se para te deixar sair. No magia? A roupa que envergavas seriam vestes terrenas? Os talisms no interior do carro no indicavam eles magia poderosa? O profeta disse que do Egipto chegaria um mago, e quese chamaria Emanuel. Assim vem no Livro de Miqueias! Ser tudo isto mentira? Nem tudo. Mas h explicaes... calou-se, incapaz de se lembrar da palavra maisparecida com racionais. Sou um homem vulgar, como tu. No tenho o poder de fazermilagres! No passo de um homem! Joo fez-se carrancudo. Quer isso dizer que no nos ajudas? Fico-te grato e aos essnios. Salvaste-me a vida, isso quase certo. Se puder retribuir... Joo anuiu estudadamente com a cabea.

  • Podes retribuir, Emanuel. Como? S o grande mago de que preciso. Deixa-me que te apresente a todos os que se tornaramimpacientes e viraram costas vontade de Adonai. Deixa-me que lhes conte como chegaste.Ento poders dizer que foi a vontade de Adonai e que se devem preparar para a fazercumprir. Joo olhou-o intensamente. Fazes isso, Emanuel? Fao-o por tua causa, Joo, E tu, mandas os homens buscar o meu carro o mais depressapossvel? Queria ver se ainda o podia consertar. Assim farei. Glogauer encheu-se de alegria. Comeou a rir. O Baptista olhou-o com algumaperplexidade. Depois juntou-se a ele. Glogauer continuou a rir. A Histria no faria meno disso, mas ele, e Joo Baptista,estavam a preparar a vinda de Cristo. Cristo ainda no tinha nascido. possvel que Glogauer o soubesse, um ano antes dacrucificao.

    E o Verbo se fez carne, e habitou entre ns, e vimos a Sua glria, como a glria dounignito do Pai, cheio de graa e verdade. Joo testificou Dele, e clamou, dizendo: Esteera Aquele de Quem eu dizia: O que vem depois de mim antes de mim, porque foi primeirodo que eu.

    (S.Joo 1:14-15)

    At na altura em que conheceu Monica tiveram longas discusses. O pai ainda no tinhamorrido nem deixado o dinheiro para ele comprar a Livraria do Oculto em Great RussellStreet, diante do Museu Britnico. Fazia toda a espcie de trabalhos temporrios e andavacom a moral muito em baixo. Na altura, Monica parecera-lhe uma grande ajuda, uma excelenteguia pela escurido mental que o tragava. Viviam ambos perto de Holland Park e iam lpassear quase todos os domingos no Vero de 1962. Aos vinte e dois anos, j andavaobcecado com o estranho misticismo cristo de Jung. Ela, que desprezava Jung, cedo comeoua denegrir-lhe as idias. Nunca chegou realmente a convenc-lo, mas, ao fim de algum tempo,tinha conseguido confundi-lo. Passar-se-iam mais seis meses at irem juntos para a cama. Estava um calor desagradvel. Sentavam-se sombra da cafetaria, enquanto assistiam de longe a uma partida de crquete.Mais perto deles, duas raparigas e um rapaz sentavam-se na relva, a beber sumo de laranja decopos de plstico. Uma das raparigas, que tinha uma guitarra ao colo, pousou o copo ecomeou a tocar uma cano popular, cantando numa voz aguda e suave. Glogauer tentouescutar a letra. Enquanto estudante, sempre apreciara canes populares tradicionais. O Cristianismo morreu Monica bebericou o ch. A religio est a morrer. Deusfoi morto em 1945. Pode ser que ainda se d uma ressurreio disse ele. Espero bem que no. A religio a criao do medo. O conhecimento destri o medo.Sem medo, a religio no pode sobreviver.

  • E achas que no h medo hoje em dia? No do mesmo gnero, Karl. Nunca pensaste na idia de Cristo? perguntou-lhe ele, dando novo rumo conversa. O que isso significa para os cristos? O mesmo que a idia do tractor significa para um marxista respondeu ela. Mas o que surgiu primeiro? A idia ou a realidade de Cristo? Ela encolheu os ombros. A realidade, se que importa. Jesus foi um desordeiro judeu que organizou uma revoltacontra os romanos. Acabou crucificado em vo. tudo o que sabemos e tudo o queprecisamos de saber. Precisamente o que quero dizer, Monica. Gesticulou e ela afastou-se ligeiramente. A idia precedeu a realidade de Cristo. Oh, Karl, no insistas. A realidade de Jesus precedeu a idia de Cristo. Um casal passou por eles, e olhou-os de relance para os ver discutir. Monica reparou e calou-se. Levantou-se e ele tambm, mas ela abanou a cabeanegativamente. Vou para casa, Karl. Tu, fica. A gente v-se daqui a uns dias. Ficou a v-la descer o caminho largo em direco aos portes do parque. No dia seguinte, quando chegou a casa do trabalho, deu com uma carta dela. Devia t-laescrito assim que o deixou e enviado no prprio dia.

    Querido Karl, Conversar parece no ter grande efeito em ti, sabes. como se escutasses apenas o tomde voz, o ritmo das palavras, sem nunca ouvires o que se est a tentar comunicar. umpouco como um animal sensvel que no entende o que lhe dizem, mas que capaz deperceber se a pessoa est contente ou zangada e por a fora. E por isso que te escrevo para tentar passar a minha idia. Respondes deforma demasiado emocional sempre queestamos juntos. Cometes o erro de pensar que o cristianismo foi coisa que se desenvolveu ao longo depoucos anos, da morte de Jesus altura em que foram escritos os Evangelhos. Mas ocristianismo no era novidade nenhuma. S o nome era novo. O cristianismo foi apenas umestdio na metamorfose do encontro e dos intercmbios entre a lgica do Ocidente e omisticismo oriental. Repara como a prpria religio se foi modificando ao longo dossculos, reinterpretando-se para ir de encontro aos tempos em mudana. Cristianismo nofoi mais do que um nome novo dado conglomerao de antigos mitos e filosofias. Tudo oque os Evangelhos fazem recontar o mito do sol e truncar idias dos gregos e dosromanos. J no sculo II havia sbios judeus a denunciar a trapalhada que aquilo era!Chamavam a ateno para as ntidas semelhanas entre os mitos solares e o mito cristo.No aconteceram milagres esses foram inventados mais tarde, emprestados daqui e dali. Lembras-te dos vitorianos que diziam que Plato era na verdade cristo por terantecipado esse tipo de pensamento? Pensamento cristo! O cristianismo foi um veculopara idias que circulavam sculos antes de Cristo. Seria Marco Aurlio cristo? Escreviana tradio directa da filosofia ocidental. Da o cristianismo ter pegado na Europa, masno no Oriente! Com os teus preconceitos, devias era ter ido para telogo e no para

  • psiquiatra. E o teu amigo Jung tambm. V se tiras todo este disparate mrbido da cabea e trabalhars muito melhor.

    A tua, Monica

    Amarfanhou a carta e atirou-a fora. Nessa noite, ainda se sentiu tentado a l-la outra vez,mas resistiu tentao.

  • III

    Joo estava no rio com gua pela cintura. A maior parte dos essnios encontrava-se nasmargens, a observ-lo. Glogauer olhou-o do alto. No posso, Joo. No me compete. O Baptista resmoneou. Tens. Glogauer arrepiou-se ao vadear o rio at junto do Baptista. Sentiu-se tonto. Ficou a tiritar,incapaz de se mexer. Escorregou nas pedras do rio e Joo esticou-se para lhe agarrar o brao, segurando-o. No cu limpo, o sol encontrava-se no znite, e batia-lhe na cabea desprotegida. Emanuel! clamou Joo subitamente. O esprito de Adonai est contigo! Glogauer continuou a ter dificuldade em falar. Abanou ao de leve a cabea. Doa-lhe e malconseguia ver. Estava a ter o primeiro ataque de enxaquecas desde que chegara. Queriavomitar. A voz de Joo parecia distante. Oscilou na gua. Assim que comeou a cair na direco do Baptista, toda a cena em redor tremeluziu. SentiuJoo agarr-lo e ouviu-se a si prprio dizer em desespero: Joo, baptiza-me! Ao que a boca e a garganta se encheram de gua e ele comeou a tossir. A voz de Joo clamava. Quaisquer que tenham sido as palavras, auferiram resposta deambas as margens. O estrondear nos seus ouvidos intensificou-se, mudando de qualidade.Agitou-se violentamente na gua, e sentiu ento levantarem-no. Os essnios curvavam-se em unssono, com todos os rostos erguidos na direco do solofuscante. Glogauer comeou a vomitar na gua, cambaleando enquanto Joo lhe segurava os braos acusto e o conduzia para a margem. Um peculiar murmrio rtmico surgiu das bocas dos essnios enquanto se curvavam;intensificando-se quando pendiam para um lado, diminuindo quando pendiam para o outro. Glogauer tapou os ouvidos mal Joo o largou. Continuava com vmitos, mas eram secosagora, e piores do que anteriormente. Comeou a cambalear para longe, quase perdendo o equilbrio, fugindo, ainda a tapar osouvidos; fugindo pelo mato pedregoso; fugindo com o sol a latejar no cu e o calor a bater-lhena cabea; fugindo.

    Mas Joo opunha-se-Lhe, dizendo: Eu careo de ser baptizado por Ti, e vens Tu a mim?E Jesus, porm, respondendo, disse-lhe: Deixa por agora, porque assim nos convmcumprir toda a justia. Ento ele o permitiu. E sendo Jesus baptizado, saiu logo da gua, eeis que se Lhe abriram os cus, e viu o Esprito de Deus descendo como uma pomba, e vindosobre Ele.

  • E eis que uma voz dos cus dizia: Este o Meu Filho amado, em Quem Me comprazo.(S.Mateus 3:14-17)

    Tinha quinze anos, e dava-se bem no liceu. Tinha lido nos jornais que grupos de TeddyBoys vagueavam pelo sul de Londres, mas o estranho rapaz que vira com roupas pseudo-eduardianas tinha lhe parecido suficientemente estpido e inofensivo. Tinha ido ver um filme a Brixton Hill e decidira voltar a p para a sua casa em Streathamporque gastara o dinheiro do autocarro num gelado. Saram do cinema ao mesmo tempo. Malreparou neles quando o seguiram pela mesma colina abaixo. Ento, muito subitamente, tinham-no cercado. Rapazes plidos, com caras de mau, a maiorparte um ano ou dois mais velhos. Apercebeu-se de que conhecia vagamente dois deles.Frequentavam a escola grande na mesma rua do liceu. Partilhavam o campo de futebol. Ol disse ele, indeciso. Ol, filho disse o Teddy Boy mais velho. Mascava pastilha elstica, com um joelhoflectido, e sorria. Ento onde que vais? Para casa. Pracasa disse o maior, imitando-lhe a pronncia. E depois? Depois vou dormir. Karl tentou esgueirar-se pelo crculo, mas no o deixaram.Encostaram-no entrada de uma loja. Atrs deles, passavam os carros indolentes na estradaprincipal. A rua estava bem iluminada, com os candeeiros e o non das lojas. Passaram vriaspessoas, mas nenhuma parou. Karl comeou a entrar em pnico. No h trabalhos de casa para fazer, filho? disse o rapaz junto ao lder. Tinha cabeloruivo e sardas, e duros olhos cinzentos. Queres lutar com um de ns? perguntou outro rapaz. Era um dos que conhecia. No, que eu no luto. Deixem-me ir embora. Ests com medo, filho? perguntou o lder, sorridente. Com grande aparato, puxou umfio de pastilha elstica da boca e recolocou-o. Recomeou a mastigar. No. Por que havia eu de querer lutar convosco? Achas-te melhor do que a gente, achas, filho? No. Comeava a tremer. Vieram-lhe lgrimas aos olhos. Claro que no. Claro que no, filho. Voltou a lanar-se em frente, mas eles empurraram-no contra a entrada. Tu que s o gajo com nome de boche, n? disse o outro rapaz que ele conhecia. Gorgulho ou l o que . Glogauer. Larguem-me. A tua mam no gosta que chegues tarde? Mais parece nome de judeu. s judeu, filho? Parece judeu. s judeu, filho? s algum puto judeu, filho? s judeu, filho? Calem-se! gritou Karl. Lanou-se a eles. Um esmurrou -o na barriga. Karl gemeu dedor. Outro empurrou-o, deixando-o a cambalear.

  • As pessoas, cheias de pressa, continuavam a cruzar-se com eles no passeio. Olhavam ogrupo de relance ao passar. Um homem chegou a parar, mas a mulher obrigou-o a seguircaminho. So s os midos na brincadeira foi o que disse. Puxa-lhe as calas para baixo sugeriu um dos rapazes, a rir. Confirma-se j. Karl tentou passar por eles e desta vez no lhe resistiram. Desatou a correr colina abaixo. A gente d-lhe um avano ouviu um dos rapazes dizer. No parou. Comearam a segui-lo, sempre a rir. Ainda no o tinham alcanado quando entrou na avenida em que vivia. Chegou a casa ecorreu pela passagem escura que se abria ao lado. Escancarou a porta das traseiras. Nacozinha estava a madrasta. Que que te aconteceu? perguntou ela. Era uma mulher alta e magra; nervosa e histrica. Tinha o cabelo negro em desalinho. Passou por ela e entrou na sala de jantar. Que se passa, Karl? chamou. Tinha uma voz aguda. Nada disse ele. No queria uma cena.

    ***

    Estava frio quando acordou. A luz zodiacal era parda e ele no conseguia ver nada a noser baldios em todas as direces. No se recordava de quase nada acerca do dia anterior,excepto que tinha corrido muito.

    O relento acumulara-se-lhe na tanga. Molhou os lbios e esfregou a cara com a pele. Comosempre depois de um ataque de enxaquecas, sentia-se fraco e completamente esgotado.Passando os olhos pelo corpo nu, reparou quo magro tinha ficado. A vida com os essniosera a razo, claro. Teve curiosidade era saber porque entrara ele em pnico quando Joo lhe pedira para obaptizar. Seria apenas honestidade algo que o impedia de enganar os essnios, fazendo-oscrer que ele se tratava de uma espcie de profeta? Era difcil saber. Agasalhou as ancas com a tanga e deu-lhe um n apertado acima da coxa esquerda.Calculou que o melhor seria tentar regressar ao acampamento e procurar Joo para lhe pedirdesculpas, ver se podia remediar a situao. A mquina do tempo j l estava, tambm. Tinham-na arrastado at l, usando apenascordas de couro cru. Se conseguisse encontrar um bom ferreiro, ou qualquer outro arteso do metal, tinha aindahiptese de a conseguir reparar. A viagem de regresso seria perigosa. Interrogou-se se deveria regressar de imediato, ou tentar antes mudar-se para uma alturamais prxima da crucificao. No fora ao passado de propsito para assistir crucificao,mas para ficar com uma idia de Jerusalm durante a Festa da Pscoa, quando Jesus teriapresumivelmente visitado a cidade. Monica tinha sido da opinio que Jesus tomara a cidadede assalto com um grupo armado. Referira que todas as provas apontavam nesse sentido.

  • Certas provas apontavam de facto nesse sentido, mas ele no fora capaz de as aceitar. Estavaconvencido de que tinha de haver mais. Se ao menos pudesse conhecer Jesus. Pelos vistos,Joo nunca tinha ouvido falar dele, embora tivesse dito a Glogauer que, de acordo com aprofecia, o Messias seria nazareno. Tinham muitas profecias, muitas das quais incompatveis. Comeou a caminhar na direco do acampamento essnio. No se devia ter afastado tanto.Logo reconheceria os montes onde tinham as suas cavernas. No tardou a ficar muito calor e o cho a tornar-se mais rido. O ar sua frente tremia. Aexausto com que tinha acordado intensificou-se. Tinha a boca seca e as pernas fracas. Tinhafome e nada para comer. Nem sinal dos montes onde os essnios tinham o acampamento. Viu um monte, trs quilmetros para sul. Resolveu dirigir-se para l. Era possvel que dafosse capaz de se orientar, e qui at avistar uma povoao onde lhe dessem de comer. O solo arenoso convertia-se em poeira flutuante sua volta sempre que os ps o agitavam.Uns quantos arbustos primitivos agarravam-se com firmeza ao cho e rochas salientes faziam-no tropear. Estava coberto de sangue e ndoas negras quando comeou, penosamente, a trepar pelaencosta do monte. A viagem at ao cume (mais distante do que a princpio julgara) foi difcil. Escorregavanas pedras soltas da encosta, caindo de cabea, segurando-se com mos e ps feridos para seimpedir de escorregar at ao fundo, agarrando-se a tufos de erva e lquenes que cresciam aquie ali, abraando afloramentos rochosos maiores sempre que podia, descansando comfrequncia, corpo e mente tolhidos pela dor e pela fadiga. Transpirava debaixo do sol. A poeira pegava-se humidade do corpo seminu, cobrindo-odos ps cabea. Tinha a pele de cabra em farrapos. O mundo rido dava-lhe a impresso de andar roda, misturando-se o cu com a terra, arocha amarela com as nuvens brancas. Nada parecia quieto. Alcanou o cume e prostrou-se no cho, ofegante. Tudo se tornara irreal. Ouviu a voz de Monica, pensou avist-la por momentos pelo canto do olho. No sejas melodramtico, Karl... Dissera-o muitas vezes. Respondia-lhe agora a voz dele. Nasci fora do meu tempo, Monica. No h lugar para mim nesta idade da razo. Vaiacabar por me matar. Respondeu-lhe a voz dela. A culpa e o medo e o teu masoquismo. Podias ser um psiquiatra brilhante, mas cedestepor completo s tuas neuroses... Cala-te! Rebolou para se deitar de costas. O sol fulminava o seu corpo maltratado. Cala-te! A sndrome crist toda, Karl. No tarda convertes-te ao catolicismo, no tenho dvidas.Onde est a tua fora de vontade? Cala-te! Vai-te embora, Monica. O medo d forma aos teus pensamentos. No procuras uma alma ou mesmo umsignificado para a vida. O que procuras consolo. Deixa-me em paz, Monica! Tapou os ouvidos com as mos sujas. O cabelo e a barba estavam emaranhados e cheios de

  • p. O sangue tinha coagulado nas feridas menores que estavam agora por todo o corpo. Aoalto, o sol parecia vibrar em unssono com o seu corao. Ests cada vez pior, Karl, no vs? Cada vez pior. Compe-te. No s de todo incapaz depensar racionalmente... Oh, Monica! Cala-te! Tinha a voz spera e rachada. Uns quantos corvos descreviam crculos no cu por cimadele. Ouviu-os responder com uma voz no muito diferente da sua. Deus morreu em 1945... No estamos em 1945 estamos no ano 28 d.C. Deus est vivo! Que interesse pode ter para ti uma bvia religio sincretstica como o cristianismo judasmo rabnico, tica estica, mistrios gregos, rituais do Oriente... No importa! No importa para ti, nesse teu estado de esprito. Preciso de Deus! ao que tudo se resume, no ? Tudo bem, Karl, faz l as tuas muletas. Mas pensa noque poderias ter sido se tivesses chegado a acordo contigo mesmo... Glogauer ergueu o corpo destroado, pondo-se de p no cume do monte, e gritou. Os corvos sobressaltaram-se. Deram voltas no cu e voaram para longe. O cu escurecia agora.

    Ento foi conduzido Jesus pelo Esprito ao desertopara ser tentado pelo Diabo. E tendo jejuado quarenta

    dias e quarenta noites, depois teve fome.(S. Mateus 4:1-2)

  • IV

    O louco surgiu na cidade aos bordos. Os ps rojavam o cho, fazendo danar a poeira, e osces ladravam sua volta enquanto avanava mecanicamente, de cabea erguida para encararo sol, braos cados, lbios em movimento. Para os habitantes da cidade, as palavras escutadas encontravam-se num idioma familiar,mas eram proferidas com tal intensidade e convico que Deus bem podia estar a servir-sedesta criatura despida e emaciada para porta-voz. Perguntaram-se de onde teria surgido este louco. A cidade branca compunha-se principalmente de casas de pedra e tijolo de barro com umou dois andares, construdas em redor de um mercado defronte de uma vetusta e humildesinagoga, porta da qual se sentavam os velhos a conversar, envergando vestes negras. Erauma cidade prspera e limpa que vingava com o comrcio romano. Viam se apenas um ou doispedintes na rua, e mesmo estes estavam bem alimentados. As ruas seguiam os altos e baixos daencosta onde haviam sido construdas. Eram ruas sinuosas, pacatas e abrigadas; ruas deprovncia. Por todo o lado, pairava no ar o cheiro a madeira acabada de cortar e os sons decarpintaria, uma vez que a cidade era famosa pelos seus hbeis carpinteiros. Situava-se naorla da plancie de Jezreel, junto rota entre Damasco e o Egipto, e da estavam sempre apartir carroas, carregadas com o trabalho dos artesos. A cidade era Nazar. O louco encontrara-a perguntando a todos os viajantes que tinha visto onde era. Passarapor muitas outras vilasFiladlfia, Gerasa, Pella e Citpolis, seguindo pelas estradasromanassempre a fazer a mesma pergunta com o seu sotaque estrangeiro: Onde fica Nazar? Houve quem lhe tivesse dado de comer pelo caminho. Houve quem lhe tivesse pedido umabno, ao que ele imps as mos, falando naquela lngua estranha. Houve quem lhe tivessearremessado pedras para o afastar. Tinha atravessado o Jordo pelo viaduto romano e continuado para norte em direco aNazar. No tivera dificuldade nenhuma em dar com a cidade, mas fora-lhe difcil obrigar-se a lir. Tinha perdido grande quantidade de sangue e comido muito pouco na viagem. Continuaria acaminhar at cair prostrado e assim permanecer at encontrar foras para prosseguir, ou, comovinha acontecendo com maior frequncia, at algum o encontrar e lhe dar um pouco de po ouvinho amargo para o reanimar. Certa vez, pararam uns legionrios romanos que, com brusca benevolncia, lheperguntaram se tinha parentes a quem o pudessem levar. Dirigiram-se-lhe num aramaico detrapos e ficaram surpreendidos quando ele lhes respondeu, com estranho sotaque, num latimmais puro do que a lngua que os prprios falavam. Perguntaram-lhe se era rabino ou sbio. Ele disse-lhes que no era nem uma coisa nemoutra. O oficial dos legionrios ofereceu-lhe carne seca e vinho. Os homens faziam parte deuma patrulha que por ali passava uma vez por ms. Eram baixos e bronzeados, de rosto severo

  • e barba bem feita. Envergavam saiotes de couro sujos, couraas e sandlias, e tinhamcapacetes de ferro na cabea, e gldios embainhados cintura. Rodeando-o luz crepuscular,no pareciam sossegados. O oficial, cuja voz era mais branda do que a dos seus homens, masem tudo o resto igual excepo da couraa metlica e capa comprida, perguntou ao loucocomo se chamava. Por instantes, o louco hesitara, abrindo e fechando a boca, como se no se conseguisselembrar do nome. Karl disse por fim, incerto. Era mais uma sugesto do que uma afirmao. Parece quase um nome romano disse um dos legionrios. s cidado? perguntou o oficial. Mas a mente do louco delirava, era evidente. Desviou o olhar, resmungando para consigo. Subitamente, voltou a olh-los e perguntou: Nazar? Por ali. O oficial apontou a estrada que sulcava os montes. s judeu? Isto pareceu assustar o louco. De um salto, tentou esgueirar se pelos soldados. Rindo,deixaram-no passar. Era um louco inofensivo. Ficaram a v-lo correr estrada abaixo. Qui um dos seus profetas disse o oficial, caminhando para o cavalo. O pas estavacheio deles. Homem sim homem no que encontravam declarava estar a espalhar a mensagemdo seu deus. No armavam grandes confuses e a religio parecia distra los da revolta.Devamos estar agradecidos, pensou o oficial. Os homens continuavam a rir. Comearam a marchar pela estrada na direco oposta que o louco tinha tomado.

    ***

    Estava agora em Nazar, o louco, e as gentes da cidade olharam-no, curiosas e algodesconfiadas, quando ele se adentrou no mercado a cambalear. Talvez fosse um profetanmada ou talvez estivesse possudo por demnios. Era muitas vezes difcil distinguir. Osrabinos saberiam. Ao passar pelos magotes de gente junto s tendas dos mercadores, estes calavam-se at elese afastar. As mulheres, corpulentas, embrulhavam-se nos seus pesados xailes de l e oshomens aconchegavam as vestes de algodo para que ele no lhes tocasse. Normalmente, oinstinto lev-los-ia a acus-lo dos seus afazeres na cidade, mas havia uma intensidade naqueleolhar, uma vivacidade e vitalidade naquele semblante, que os fez trat-lo com respeito eafastarem-se. Chegado ao centro do mercado, parou e olhou em volta. Pareceu levar tempo a reparar naspessoas. Pestanejou e molhou os lbios. Passou uma mulher, que o olhou com desconfiana. Ele dirigiu-se-lhe, com voz meiga, epalavras cuidadosamente treinadas. Nazar aqui? anuiu ela e acelerou o passo. Um homem atravessava a praa. Envergava um manto de l s riscas vermelhas ecastanhas. Usava um solidu vermelho sobre o cabelo preto e encaracolado. A cara era

  • rechonchuda e jovial. O louco atravessou-se no caminho do homem e deteve-o. Procuro um carpinteiro. H muitos carpinteiros em Nazar. A cidade famosa pelos seus carpinteiros. Euprprio sou carpinteiro. Posso ajudar-te? A voz do homem era bem-humorada,condescendente. Conheces algum carpinteiro chamado Jos? Descendente de David. Tem uma mulherchamada Maria e vrios filhos. Um deles chama-se Jesus. O homem bem-disposto contraiu o rosto numa careta sisuda e coou atrs do pescoo. Conheo mais de um Jos. H um desgraado na rua acol. Apontou. Tem umamulher que se chama Maria. Experimenta a. Encontra-lo depressa. Procura o homem quenunca ri. O louco olhou na direco que o homem lhe apontara. Mal viu a rua, pareceu esquecer-sede tudo e para l se dirigiu a passos largos. Na rua estreita em que entrou, o cheiro a madeira cortada era ainda mais forte. Tinhaserradura pelos tornozelos. De todos os edifcios vinha o estrondear dos martelos, o arranhardas serras. Havia tbuas de todos os tamanhos encostadas s paredes plidas e abrigadas dascasas e muito pouco espao para passar entre elas. Muitos dos carpinteiros tinham banquinhos entrada. Havia mquinas de entalhar, accionando tornos primitivos, transformando a madeiraem todas as formas possveis de se imaginar. Levantaram o olhar quando o louco entrou pelarua e abordou um velho carpinteiro com um avental de couro que se sentava no seu banco atrabalhar uma estatueta. O homem tinha cabelo grisalho e parecia mope. Mirou o louco comolhos piscos. Que queres? Procuro um carpinteiro chamado Jos. Tem uma mulher Maria. O velho gesticulou com a mo que segurava a estatueta inacabada, Duas casas em frente, do outro lado da rua.

    ***

    A casa a que o louco chegou tinha poucas tbuas encostadas parede, e a qualidade damadeira parecia mais pobre do que a restante que tinha visto. O assento entrada estavaempenado num dos lados e o homem de costas arqueadas a sentado a remendar um banquinhoparecia igualmente disforme. Endireitou-se quando o louco lhe tocou no ombro. Tinha a caracheia de rugas e descada da misria. Os olhos estavam cansados e a barba rala tinha vestgiosprematuros de grisalho. Tossiu ao de leve, qui surpreso por o terem incomodado. s Jos? perguntou o louco. No tenho dinheiro. No quero nadas fazer algumas perguntas. Sou Jos. Que queres saber? Tens algum filho? Tenho vrios, e filhas tambm. A tua mulher, chama-se Maria? s da linhagem de David. O homem acenou com a mo, impaciente.

  • Sim, no que me tenham valido de muito, qualquer das duas... Desejo encontrar-me com um dos teus filhos. Jesus. Podes dizer-me onde est? Esse imprestvel. Que fez ele agora? Onde est ele? Os olhos de Jos tornaram-se mais calculistas ao observarem o louco. s algum vidente? Vieste curar o meu filho? Sou uma espcie de profeta. Consigo predizer o futuro. Jos ergueu-se com um suspiro. Podes v-lo. Anda. Conduziu o louco pelo porto ao quintal apertado da casa.Estava atravancado com pedaos de madeira, moblia e ferramentas partidas, sacas de aparasputrefactas. Entraram na casa escura. Na primeira diviso obviamente uma cozinha estava uma mulher junto a um grande forno de barro. Era alta e barriguda. O longo cabelonegro estava solto e oleoso, tombando sobre grandes olhos lustrosos que traziam ainda o calorda sensualidade. Olhou o louco de alto a baixo. No h comer para os pedintes resmungou. Ele j come que chegue. Fez sinal com a colher de pau na direco de uma pequenafigura sentada nas sombras a um canto. A figura mexeu-se quando ela falou. Ele vem procura do nosso Jesus disse Jos mulher. Talvez venha para nosaliviar este fardo. A mulher olhou de lado para o louco e encolheu os ombros. Passou a lngua grossa peloslbios vermelhos. Jesus! A figura ao canto levantou-se. A o tens disse a mulher com alguma satisfao. A figura era disforme. Tinha uma corcunda acentuada e estrabismo no olho esquerdo. Orosto era inexpressivo e apatetado. Tinha um pouco de baba nos lbios. Dava risadinhasquando lhe repetiam o nome. Avanou com passos incertos. Jesus disse. A palavra era arrastada e indistinta. Jesus. tudo o que sabe dizer. A mulher sorriu com desprezo. Sempre foi assim. Foi o castigo de Deus disse Jos amargamente. Que se passa com ele? Havia uma nota pattica e desesperada na voz do louco. Sempre foi assim. A mulher voltou-se novamente para o forno. Se quiseres, fica comele. aleijado por dentro e por fora. Estava prenha dele quando os meus pais me casaramcom esse homenzinho... Sua desavergonhada Jos deteve-se assim que a mulher o olhou, irada. Voltou-seento para o louco. Que queres com o nosso filho? Queria falar com ele. Eu... No nenhum orculo nenhum vidente chegmos a pensar que fosse. Ainda hgente em Nazar que vem c para que ele os cure ou lhes diga a sina, mas ele s se ri e repeteo nome vezes e vezes sem conta... Tm a certeza de que no h nada nele em que no tenham reparado? Ento no! bufou Maria sardonicamente. O dinheiro j nos faz falta como . Seele tivesse poderes mgicos, sabamos.

  • Jesus voltou a dar risadinhas e foi a coxear para outra diviso. No pode ser murmurou o louco. Podia a Histria ter mudado? Estaria ele numaoutra dimenso em que Cristo nunca existira? Jos pareceu notar a expresso agonizante no olhar do louco. O que foi? perguntou. Que vs? Disseste que predizias o futuro. Dizes-nos comovamos passar? Agora no disse o profeta, voltando costas. Agora no. Correu da casa e pela rua com o seu cheiro a carvalho, cedro e cipreste aplainado. Correude volta ao mercado e estacou, olhando, desvairado, em redor. Viu a sinagoga mesmo emfrente. Dirigiu-se para l. O homem com que tinha falado antes continuava no mercado, a comprar tachos para dar filha como presente de casamento. Acenou com a cabea na direco do estranho que entravana sinagoga. parente do carpinteiro Jos disse ao homem que estava ao lado. Profeta, no meadmiraria nada. O louco, o profeta, Karl Glogauer, o viajante no tempo, o neurtico psiquiatra frustrado, ohomem em busca de significado, o masoquista, o suicida, o homem do complexo messinico, oanacronismo, avanou, ofegante, sinagoga dentro. Tinha visto o homem que procurara. Tinhavisto Jesus, o filho de Jos e de Maria. Tinha visto um homem que reconhecera sem sombra dedvidas como um imbecil congnito.

    ***

    Todos os homens tm um complexo de messias, Karl tinha-lhe dito Monica. As recordaes eram agora menos completas. As suas noes de tempo e de identidadeconfundiam-se. Havia dzias de messias na Galileia naquela poca. Que tenha sido Jesus a carregar omito e a filosofia foi uma coincidncia histrica... No pode ter sido s isso, Monica.

    ***

    Todas as teras-feiras, na sala por cima da Livraria do Oculto, o clube de debate junguianoencontrava-se para levar a cabo sesses de anlise e terapia de grupo. No tinha sidoGlogauer a organizar o grupo, mas de bom grado cedera as instalaes e juntara-se-lhe comentusiasmo. Era um grande alvio, falar com gente da mesma opinio uma vez por semana. Umdos motivos que o levara a comprar a Livraria do Oculto tinha sido o de poder vir a encontrarpessoas interessantes como as que frequentavam o grupo de debate junguiano. A obsesso por Jung congregara-os, mas cada qual tinha as suas obsesses particulares. ASra. Rita Blenn traava rotas de discos voadores, embora no fosse claro se acreditava nelesou no. Hugh Joyce acreditava que todos os arqutipos junguianos eram derivados da raaoriginal da Atlntida que havia perecido milnios antes. Alan Cheddar, o mais novo do grupo,interessava-se por misticismo indiano, e Sandra Peterson, a organizadora, era grande

  • especialista em bruxaria. James Headington estava interessado no tempo. Era o orgulho dogrupo; Sir James Headington, inventor do tempo da guerra, muito rico e com todo o tipo decondecoraes pela sua contribuio para a vitria aliada. Tivera a reputao de grandeimprovisador durante a guerra, mas depois tornara-se numa vergonha para o Ministrio daGuerra. Era maluco, pensavam eles, e pior, exibia a maluquice em pblico. De quando em quando, Sir James falava da sua mquina do tempo aos demais elementos dogrupo. Estes no o contrariavam. A maior parte prestava-se a exagerar as experinciasrelacionadas com os seus diferentes interesses. Certa tera-feira noite, depois de todos terem sado, Headington contou a Glogauer que asua mquina do tempo estava pronta. No acredito disse Glogauer, sem mentir. o primeiro a quem eu conto. Porqu eu? No sei. Simpatizo consigo e com a loja. No contou nada ao governo.Headington rira-se por entre dentes. Contar para qu? Pelo menos no at a testar completamente. Bem feita para eles, nome tivessem posto na gaveta. No sabe se funciona? Estou certo que sim. Quer v-la? Uma mquina do tempo. Glogauer esboou um sorriso dbil. Venha da v-la. Porqu eu? Pensei que lhe interessasse. Sei que no defende a viso ortodoxa da cincia... Glogauer teve pena dele. Venha da v-la disse Headington. No dia seguinte, foi a Banbury. No mesmo dia, deixou 1976 e chegou a 28 d.C.

    ***

    A sinagoga era fresca e sossegada, com um subtil aroma de incenso. Os rabinosconduziram-no ao ptio. semelhana das pessoas da cidade, no sabiam o que pensar dele,mas estavam certos de que no era um demnio que o tinha possudo. Era costume daremabrigo aos profetas vagabundos que se viam por toda a Galileia, embora este fosse maisestranho do que os restantes. Tinha o rosto imvel e o corpo hirto, e escorriam-lhe lgrimaspelas faces sujas. Nunca antes tinham visto tanta agonia no olhar de um homem.

    ***

    A cincia pode explicar como, mas nunca pergunta porqu dissera ele a Monica. No pode responder. Quem que quer saber? respondera ela.

    Eu Bom, mas tu nunca vais descobrir, ou vais?

  • ***

    Senta-te, meu filho disse o rabino. Que pretendes de ns? Onde est o Cristo? perguntou ele. Onde est o Cristo? No lhe entendiam o idioma. Ser grego? perguntou um, mas outro houve que abanou negativamente com a cabea. Kyrios: O Senhor. Adonai: O Senhor. Onde estava o Senhor? Franziu as sobrancelhas, olhando inexpressivamente em volta. Preciso de descansar proferiu na lngua deles. s de onde? No foi capaz de pensar numa resposta. s de onde? repetiu um rabino. Ha-Olam Hab-B... murmurou por fim. Os rabinos entreolharam-se. Ha-Olam Hab-B repetiram. Ha-Olam Hab-B; Ha-Olam Haz-B: O mundo vindouro e o mundo que . Trazes-nos uma mensagem? perguntou um dos rabinos. Estavam acostumados aprofetas, certo, mas nenhum como este. Uma mensagem? No sei disse o profeta em voz rouca. Preciso de descansar. Tenho fome. Vem. Dar-te-emos comida e um stio para dormir. Conseguiu comer apenas um pouco da farta refeio, e a cama com o colcho de palha erademasiado macia. No estava habituado. Dormiu mal, e gritou durante o sono, enquanto que, porta do quarto, os rabinos puseram-se escuta, mas sem conseguirem perceber muito do que dizia.

    ***

    Karl Glogauer permaneceu vrias semanas na sinagoga. Passou a maior parte do tempo aler na biblioteca, procurando, nos longos rolos de pergaminho, uma resposta ao seu dilema.As palavras dos Testamentos, em muitos casos passveis de uma dzia de interpretaes,acabavam por o confundir ainda mais. No tinha nada a que se agarrar, nada que o informassedo que tinha corrido mal. Na sua maioria, os rabinos mantiveram-se distncia. Tinham-no acolhido como homemsanto. Estavam orgulhosos de o ter na sinagoga. Estavam certos de que era especial, um dosescolhidos por Deus, e aguardavam pacientemente que ele lhes viesse falar. Mas o profeta era de poucas falas, limitando-se a resmungar consigo mesmo em fragmentosda sua lngua e fragmentos de uma outra, incompreensvel, que usava com frequncia, mesmo

  • quando se lhes dirigia. Em Nazar, o povo mal falava de outra coisa a no ser do misterioso profeta na sinagoga,mas os rabinos recusavam-se a dar resposta s perguntas. Diziam s pessoas para irem s suasvidas, que havia coisas que no lhes competia ainda saber. Desta maneira, e semelhana doque sempre haviam feito os sacerdotes, evitavam as perguntas s quais no sabiam responder,ao mesmo tempo que aparentavam ter muito mais conhecimento do que na realidade possuam. Ento, num sbado, o profeta apareceu na parte pblica da sinagoga e sentou-se com osoutros que tinham vindo para orar. O homem que lia do pergaminho sua esquerda atrapalhou se quando vislumbrou o profetapelo canto do olho. O profeta permaneceu sentado a ouvir, com uma expresso distante no rosto. O ministro fitou-o, incerto, ao que fez sinal para que passassem o rolo de pergaminho aoprofeta. Assim o fez, hesitante, um rapaz, que colocou o pergaminho nas mos do profeta. O profeta ficou muito tempo a observar as palavras e s ento comeou a leitura. O profetaleu sem primeiro compreender o que lia. Era o livro de Isaas.

    O Esprito do Senhor sobre Mim, pois que Me ungiu para evangelizar os pobres,enviou-Me a curar os quebrantados do corao, A apregoar liberdade aos cativos e darvista aos cegos; a pr em liberdade os oprimidos; a anunciar o ano aceitvel do Senhor. E,cerrando o livro, e tornando-o a dar ao ministro, assentou-Se; e os olhos de todos nasinagoga estavam fitos n'Ele.

    (S. Lucas 4:18-20)

  • V

    Seguiam-no agora, enquanto se afastava de Nazar em direco ao Lago da Galileia.Envergava uma tnica de linho branco que lhe tinham dado, e embora pensassem que ele osguiava, eram eles, na verdade, que o obrigavam a seguir em frente. o nosso Messias diziam a quem lhes perguntasse. Corriam j rumores de milagres. Quando via os enfermos, tinha pena deles e tentava fazer o que podia, pois era o queesperavam dele. Muitos no tinham remdio, mas outros, padecendo de bvias condiespsicossomticas, podiam ser ajudados. Acreditavam no seu poder mais do que na prpriadoena. E ele desta maneira os curava. Chegado a Cafarnaum, umas cinquenta pessoas seguiram-no pelas ruas da cidade. Era j doconhecimento geral que ele estava de certa forma associado a Joo Baptista, que gozava deenorme prestgio na Galileia e tinha at sido declarado verdadeiro profeta por muitos fariseus.Contudo, este homem tinha, de certa forma, um poder maior do que o de Joo. No seria oorador que encontravam no Baptista, mas tinha feito milagres. Cafarnaum era uma cidade espraiada junto ao cristalino lago da Galileia, cujas casas eramseparadas por grandes hortas com vegetais destinados venda no mercado. Atracados aolongo do cais estavam barcos de pesca, bem como navios comerciais que serviam as cidades beira do lago. Ainda que se erguessem montes verdes a toda a volta, Cafarnaum tinha sidoconstruda em terreno plano e abrigado pelas colinas. Era uma cidade pacata e, como muitasoutras da Galileia, tinha grande populao de gentios. Mercadores gregos, romanos e egpciospercorriam as ruas e muitos tinham feito ali as suas residncias permanentes. Havia umaprspera classe mdia de mercadores, artesos e armadores, bem como mdicos, advogados eestudiosos, dado que Cafarnaum se encontrava na fronteira das provncias da Galileia,Traonites e Sria, e apesar de comparativamente pequena, era um ponto de encontro til paramercadores e viajantes. O estranho profeta insano, com a sua tnica de linho a adejar, seguido pela multidoheterognea, composta na maior parte por gente pobre mas onde tambm se viam homens dealguma distino, invadiu Cafarnaum. Espalhou-se a notcia de que este homem era realmentecapaz de prever o futuro, que j tinha previsto a captura de Joo por Herodes Antipas e que,pouco depois, Herodes encarcerara o Baptista em Pereia. No fazia as suas previses emtermos gerais, com palavras vagas como faziam os outros profetas. Falava do que aconteceriano futuro prximo, e descrevia-o ao pormenor. Ningum sabia o seu nome. Era simplesmente o profeta de Nazar, ou o nazareno. Houvequem afirmasse que era parente, filho talvez, de um carpinteiro de Nazar, mas era possvelque assim fosse porque as palavras escritas para filho de carpinteiro e mago eram quaseidnticas, da a confuso. Corria at um rumor muito incerto de que se chamava Jesus. O nometinha surgido uma ou duas vezes, mas quando lhe perguntavam se era assim, de facto, que sechamava, ele negava-o ou ento, sua maneira sonhadora, recusava-se de todo a responder. Os seus sermes no eram dados ao ardor dos de Joo. Este homem falava devagar, um

  • tanto vagamente, e sorria com frequncia. Falava de Deus de maneira estranha, tambm, eparecia ligado, como Joo, aos essnios, j que pregava contra a acumulao de riquezamaterial e falava dos homens como uma irmandade, tal como eles. Mas era nos milagres que o povo atentava enquanto o conduzia elegante sinagoga deCafarnaum. Nunca nenhum profeta antes dele curara os enfermos ou parecera compreender osproblemas de que as pessoas raramente falavam. Era sua simpatia que reagiam, e no spalavras que proferia. Pela primeira vez na vida, Karl Glogauer tinha-se esquecido de Karl Glogauer. Pelaprimeira vez na vida, fazia o que sempre procurara fazer como psiquiatra. Mas a vida no era a dele. Estava a dar vida a um mito uma gerao antes de esse mitonascer. Fechava uma espcie de circuito psquico. No mudava a Histria, mas dava Histria mais substncia. No lhe passava pela cabea que Jesus no tinha sido mais do que um mito. Estava ao seualcance fazer de Jesus uma realidade fsica, e no a criao de um processo de mitognese. Por isso falava nas sinagogas e falava de um Deus mais bondoso do que qualquer um delesconhecia, e sempre que se conseguia recordar, contava-lhes parbolas. E, aos poucos, a necessidade de justificar o que fazia extinguiu-se e a sua noo deidentidade tornou-se cada vez mais tnue e foi substituda por uma noo diferente deidentidade, em que dava cada vez mais substncia ao papel que tinha escolhido. Era um papelarquetpico. Era um papel que apelava a uma disciplina de Jung. Era um papel que ia alm dasimples imitao. Era um papel que teria agora de interpretar at ao ltimo e mais importantedos pormenores. Karl Glogauer descobrira a realidade que vinha procurando.

    E estava na sinagoga um homem que tinha o esprito dum demnio imundo, e exclamou emvoz alta,Dizendo: Ah! que temos ns contigo, Jesus, nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quems: o Santo de Deus.E Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai dele. E o demnio, lanando-o por terra, nomeio do povo, saiudele, sem lhe fazer mal. E veio espanto sobre todos, e falavam entre si uns e outros,dizendo: Que palavra esta, que at aos espritos imundos manda com autoridade e poder, e eles saem? E a suafama divulgava-sepor todos os lugares, em redor daquela comarca.

    (S. Lucas 4:33-37)

    ***

    Alucinaes de massas. Milagres, discos voadores, fantasmas, tudo a mesma coisa dissera Monica. possvel respondera ele. Mas por que os viram eles? Porque queriam.

  • Porqu? Porque tinham medo. Achas que s isso? No chega?

    ***

    Quando deixou Cafarnaum pela primeira vez, acompanhavam-no muitas mais pessoas.Tinha-se tornado impraticvel permanecer na cidade, j que o comrcio tinha sido quaseparalisado pelas multides que tentavam v-lo fazer os seus simples milagres. Ele falava-lhes nos espaos para l das cidades. Conversava com homens inteligentes eletrados que pareciam ter algo em comum consigo. Alguns eram donos de frotas de pesca entre eles Simo, Tiago e Joo. Um outro era mdico, e outro um funcionrio pblico que oescutara pela primeira vez em Cafarnaum. Tem de haver doze disse-lhes um dia. Tem de haver um Zodaco. No atentava ao que dizia. Muitas das suas idias eram estranhas. Muitas das coisas sobreas quais falava eram-lhes desconhecidas. Havia fariseus que pensavam que ele blasfemava. Certo dia, encontrou um homem que reconheceu como essnio, da colnia perto deMaqueros. Joo quer falar contigo disse o essnio. Joo ainda no morreu? perguntou ao homem. Foi aprisionado em Pereia. Penso que Herodes tem demasiado medo de o matar. Deixaque Joo vagueie pelo interior e jardins do palcio, deixa-o falar com os seus homens, masJoo receia que Herodes to tardar a ganhar coragem para o mandar apedrejar ou decapitar.Precisa da tua ajuda. Como posso ajud-lo? Ele vai morrer. No h esperana para ele. Sem perceber nada, o essnio encarou o profeta enlouquecido. Mas, senhor, no h mais quem lhe possa valer. Fiz tudo o que ele me pediu para fazer disse o profeta. Curei os enfermos epreguei aos pobres. Desconhecia este seu pedido. Agora ele quem precisa de ajuda, senhor. Podes salvar-lhe a vida. O profeta tinha puxado o essnio da multido. A sua vida no pode ser salva. Mas se no for, prosperaro os mprobos e o Reino dos Cus no ser reposto. A sua vida no pode ser salva. essa, a vontade de Deus? Se sou Deus, ento sim, a vontade de Deus. Desalentado, o essnio virou costas e comeou a afastar-se da multido. Joo Baptista teria de morrer. Glogauer no tinha a inteno de mudar a Histria, apenasfortalec-la. Prosseguiu, com o seu squito, pela Galileia. Tinha escolhido os seus doze homenseducados, e o resto que o seguia era, na sua maior parte, gente pobre. A esses, oferecia-lhes a

  • sua nica esperana de felicidade. Muitos eram os que j se tinham preparado para seguirJoo contra os romanos, mas agora Joo era prisioneiro. Talvez este homem liderasse arevolta, para pilhar as riquezas de Jerusalm, Jeric e Cesareia. Cansados e com fome, deolhos vtreos sob o sol abrasador, seguiram o homem de tnica branca. Precisavam daesperana e encontraram razes para a suportar. Viram-no fazer milagres cada vez maiores. Certa vez, pregou multido de um barco, como era seu costume, e regressando margempelos baixios, pareceu-lhes que caminhava sobre a gua. Vaguearam por toda a Galileia no Outono, ouvindo sempre notcias da decapitao deJoo. O desespero pela morte do Baptista refez-se em esperana neste novo profeta que otinha conhecido. Na Cesareia, expulsaram-nos da cidade os guardas romanos que estavam habituados aosselvagens que, com as suas profecias, erravam pelo pas. Foram banidos de outras cidades medida que a fama do profeta crescia. No s pelasautoridades romanas, mas tambm pelas judaicas, que pareciam relutantes em tolerar o novoprofeta da mesma forma que haviam tolerado Joo. O clima poltico estava a mudar. Tornou-se difcil encontrar comida. Subsistiam do que conseguiam encontrar, vivendocomo animais famintos. Ele ensinou-os a fingir que comiam para tirar a fome do pensamento. Karl Glogauer, curandeiro, psiquiatra, hipnotizador, messias. Por vezes, a sua convico no papel escolhido vacilava, e os que o seguiam ficavamagitados quando se contradizia. Frequentemente, agora, tratavam-no pelo nome que tinhamouvido, Jesus Nazareno. A maior parte das vezes, no os impedia de usar o nome, mas noutrasficava furioso e clamava um estranho nome gutural. Karl Glogauer! Karl Glogauer! Ao que eles diziam, Ei-lo que fala com a voz de Adonai. No me trateis por esse nome! gritava, e eles ficavam agitados e deixavam-no a ssat que cedesse a fria. Quando o tempo mudou e chegou o Inverno, regressaram a Cafarnaum, que se converteranum reduto para os seus discpulos. Em Cafarnaum deixou passar o Inverno, fazendo profecias. Muitas das profecias diziam respeito a si prprio e ao destino de quem o seguia.

    Ento mandou aos seus discpulos que a ningum dissessem que Ele era o Cristo. Desdeento comeou Jesus a mostrar aos Seus discpulos que convinha ir a Jerusalm, e padecermuito dos ancios, e dos prncipes dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitarao terceiro dia.

    (S.Mateus 16:20-21)

    ***

    Estavam a ver televiso no apartamento dela. Monica estava a comer uma ma. Eramumas seis ou sete da tarde num domingo de calor. Monica apontou para o ecr com a mameio comida. Olha para aquele disparate disse. Diz-me com franqueza que isto no significa

  • nada para ti. Era um programa religioso, sobre uma pera pop na igreja de Hampstead. A pera contavaa histria da crucificao. Bandas pop no plpito continuou. Que atraso de vida. Ele no lhe respondeu. De certa forma obscura, o programa parecia obsceno. No podiadiscordar dela. O cadver de Deus comea mesmo a apodrecer escarneceu. Pfui! Que pivete! Ento desliga disse ele calmamente. Como que se chama a banda? The Maggots? Tens muita graa. Vou desligar, posso? No, quero ver. Tem piada. V, desliga l isso! Imitao de Cristo! bufou ela. o estupor de uma caricatura. Um cantor negro, que interpretava o papel de Cristo num tom montono, ao som de umacompanhamento banal, comeou a debitar uma letra inerte sobre a irmandade do Homem. A cantar assim, no admira que o tivessem pregado cruz disse Monica. Ele esticou-se e desligou a televiso. Estava a ver isso. Falava num tom de desiluso fingida. Era um lindo canto decisne. Disse-lhe mais tarde com um vestgio de afeio que o preocupou: Seu bota-de-elstico. pena. Podias ter sido John Wesley ou Calvino ou algum. Nopodes ser messias nos dias que correm, no da maneira que tu queres. No tens quem te douvidos.

  • VI

    O profeta estava a viver na casa de um homem chamado Simo, embora o profetapreferisse trat-lo por Pedro. Simo estava grato ao profeta porque este lhe curara a mulher deuma doena da qual ela vinha padecendo h algum tempo. Era uma doena misteriosa, mas oprofeta curara-a quase sem esforo. Havia grande quantidade de estranhos em Cafarnaum naquela poca, muitos deles para vero profeta. Simo avisou o profeta de que alguns eram conhecidos agentes dos romanos ou dosfariseus. Os fariseus, de maneira geral, no antipatizavam com o profeta, emboradesconfiassem dos rumores de milagres que tinham ouvido. Contudo, a atmosfera polticaestava agitada e as tropas de ocupao romanas, de Pilatos e dos seus oficiais at aossoldados, encontravam-se tensas, aguardando uma insurreio mas incapazes de discernirsinais tangveis de que vinha a caminho. Pilatos ansiava por dificuldades em maior escala. Mostraria a Tibrio que o imperadortinha sido demasiado brando com os judeus no que dizia respeito aos escudos votivos. Pilatosseria vingado e o seu poder sobre os judeus alargado. De momento, estava de ms relaescom todos os tetrarcas das provncias em especial o instvel Herodes Antipas que emtempos lhe tinha parecido o seu nico apoiante. Para alm da situao poltica, a sua prpriasituao domstica estava em desalinho, visto a sua neurtica esposa estar outra vez compesadelos e exigir dele mais ateno do que a que ele lhe podia dar. Talvez houvesse a possibilidade, pensou, de provocar um incidente, mas teria de seacautelar para que Tibrio nunca descobrisse. Talvez este novo profeta pudesse servir defoco, mas at data ainda no havia feito nada contra a lei, quer dos judeus, quer dosromanos. No havia lei que proibisse uma pessoa de se afirmar messias, como alguns diziamque este tinha feito, e o novo profeta dificilmente incitava o povo a revoltar-se bem pelocontrrio. Olhando pela janela dos seus aposentos, com vista para os pinculos e minaretes deJerusalm, Pilatos ponderou sobre a informao que os espies lhe tinham trazido. Pouco tempo depois do festival a que os romanos chamam Saturnais, o profeta e os seusseguidores voltaram a deixar Cafarnaum e iniciaram uma viagem pelo pas. Havia menos milagres, agora que o tempo quente tinha passado, mas as profecias eram-lheansiosamente pedidas, Ele avisou -os dos erros que fariam de futuro, e de todos os crimes quese cometeriam em seu nome. Vagueou pela Galileia, e por Samaria, seguindo as boas estradas romanas em direco aJerusalm. Aproximava-se a altura da Pscoa. Em Jerusalm, oficiais romanos discutiam a festa que estava para chegar. Sempre fora umapoca de maior tumulto. J antes tinham ocorrido distrbios durante a Festa da Pscoa, edecerto haveria agitao este ano tambm. Pilatos falou aos fariseus, pedindo-lhes cooperao. Os fariseus responderam que fariam o

  • que estivesse ao seu alcance, mas que no podiam impedir as pessoas de se comportarem comdestempero. De sobrolho carregado, Pilatos mandou-os sair. Os seus agentes trouxeram-lhe relatos de todo o territrio. Alguns dos relatos referiam onovo profeta, mas afirmavam que era inofensivo. Pilatos pensou para consigo que podia ser inofensivo ento, mas que deixaria de o serquando chegasse a Jerusalm durante a Pscoa.

    ***

    A duas semanas da Festa da Pscoa, o profeta chegou cidade de Betnia, nos arredoresde Jerusalm. Vrios galileus que o seguiam tinham amigos em Betnia, e estes amigos de bomgrado se prestaram a acolher o homem de que tinham ouvido outros peregrinos falar a caminhode Jerusalm e do Grande Templo. A razo de terem ido a Betnia prendia-se com o facto de o profeta ter ficado preocupadocom o nmero de pessoas que o seguiam. Sois demasiados tinha dito a Simo. Demasiados, Pedro. O rosto de Glogauer estava agora macilento. Os olhos tinham -se afundado nas rbitas efalava pouco. s vezes, punha-se a olhar em volta com ar vago, como se no soubesse onde estava. Chegaram notcias casa em Betnia de que agentes romanos tinham andado a perguntarpor ele. Tal no pareceu incomod -lo. Pelo contrrio, acenou com a cabea, pensativo, comoque satisfeito. Certo dia, passeou pela regio com dois dos seus seguidores para observar Jerusalm. Asparedes amarelas vivas da cidade pareciam esplndidas luz da tarde. As torres e edifciosaltos, muitos dos quais decorados com mosaicos vermelhos, azuis e amarelos, podiam ver-sea quilmetros de distncia. O profeta deu meia volta para regressar a Betnia. Quando que vamos a Jerusalm? perguntou-lhe um dos seguidores. Ainda no respondeu Glogauer. Tinha os ombros arqueados, e apertava o peito comos braos e as mos como se tivesse frio. Dois dias antes da Festa da Pscoa em Jerusalm, o profeta levou os homens ao Monte dasOliveiras e a um subrbio de Jerusalm construdo na sua encosta e chamado Betfag. Trazei-me um jumento ordenou-lhes. Um asninho. Devo cumprir agora a profecia. Ento todos sabero que s o Messias disse Andr. Sim. Glogauer soltou um suspiro. Sentiu novamente medo, mas desta feita no era um medofsico. Era o medo de um actor prestes a entrar na ltima e mais dramtica das suas cenas, aqual no estava certo de conseguir interpretar bem. Suores frios acumularam-se no lbio superior de Glogauer. Limpou a boca. Contemplou, luz fraca, os homens que o rodeavam. Continuava sem estar certo de algunsdos seus nomes. No lhe interessavam os nomes, especificamente; apenas o seu nmero.

  • Estavam ali dez. Os outros dois andavam procura do jumento. Encontravam-se na encosta coberta de erva do Monte das Oliveiras, olhando paraJerusalm e para o Grande Templo mais abaixo. Soprava uma aragem quente. Judas? disse Glogauer, interrogativo. Havia um chamado Judas. Sim, senhor respondeu. Era alto e bem-parecido, de cabelo ruivo encaracolado eolhar neurtico e inteligente. Glogauer acreditava que fosse epilptico. Glogauer olhou pensativo para Judas Iscariotes. Quero que me ajudes mais tarde disse quando estivermos em Jerusalm. Como, senhor? Levars uma mensagem aos romanos. Aos romanos? Iscariotes pareceu consternado. Porqu? Tens de a levar aos romanos. No pode ser aos judeus esses usariam uma estaca ouum machado. Contar-te-ei o resto quando chegar a hora. O cu estava agora escuro, e as estrelas brilhavam sobre o Monte das Oliveiras. Tinhaficado frio. Glogauer tremia.

    Alegra-te muito, filha de Sio; exulta, filha de Jerusalm: eis que o teu rei vir a ti,justo e Salvador, pobre, e montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho de jumenta.

    (Zacarias 9:9)

    Osha'na! Osha'na! Osha'na Enquanto Glogauer entrava de jumento na cidade, os seus discpulos corriam em frente,atirando ao cho ramos de palmeira. Dos dois lados da rua estavam multides, avisadas pelosdiscpulos da sua chegada. O novo profeta podia agora ser visto concretizando os vaticnios dos profetas antigos emuitos estavam convencidos de que tinha vindo para os liderar na resistencia aos romanos.Quem sabe se estaria agora mesmo a caminho da casa de Pilatos para confrontar o procurador. Osha'na! Osha'na! Glogauer olhou em volta, desorientado. O dorso do jumento, apesar de aconchegado pelascapas dos discpulos, era incmodo. Guinava de um lado para o outro e ele agarrou-se scrinas do animal. Escutava as palavras, mas no as conseguia distinguir com clareza. Osha'na! Osha'na! Parecera-lhe hossana a principio, antes de se aperceber que o que gritavam era a palavraaramaica que significava Liberta -nos. Liberta-nos! Liberta-nos! Joo tinha planeado uma revolta armada contra os romanos naquela Pscoa. Muitoscontavam tomar parte na rebelio. Acreditavam que ele ocupava o lugar de Joo como lder rebelde. No segredou-lhes ao ver as caras expectantes que o cercavam. No, sou omessias. No vos posso libertar. No posso... No o ouviram, com a gritaria. Karl Glogauer entrou em Cristo. Cristo entrou em Jerusalm. A histria aproximava-se doseu clmax.

  • Osha'na! No estava na histria. No os poderia ajudar.

    Em verdade, em verdade vos digo: se algum receber o que Eu enviar, Me recebe aMim, e quem Me recebe a Mim, recebe Aquele que Me enviou. Tendo Jesus dito isto,turbou-Se em esprito, e afirmou, dizendo: Em verdade, em verdade vos digo que um de vsMe h-de trair. Ento, os discpulos olhavam uns para os outros, duvidando de quem Elefalava. Ora, um dos Seus discpulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seiode Jesus. Ento Simo Pedro fez sinal a este para que perguntasse quem era aquele dequem Ele falava. E inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-Lhe: Senhor, quem ?Jesus respondeu: aquele a quem Eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deua Judas Iscariotes, filho de Simo. E, aps o bocado, entrou nele Satans. Disse, pois,Jesus: O que fazes, faze-o depressa.

    (S. Joo 13:20-27)

    Irresoluto, Judas Iscariotes carregou o sobrolho ao sair da diviso para a rua apinhada degente, abrindo caminho em direco ao palcio do governador. Decerto tinha um papel adesempenhar num plano para iludir os romanos e fazer com que o povo se insurgisse emdefesa de Jesus, mas julgava o ardil imprudente. O nimo dos homens, mulheres e crianasque se acotovelavam nas ruas era tenso. Muitos mais soldados do que o habitual patrulhavama cidade.

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    Pilatos era um homem corpulento. Tinha a cara de algum que se dava a excessos e o seuolhar era duro e frvolo. Mirou desdenhosamente o judeu. No