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  • Traduo de Geni Hirata

  • Para Phoenixmeu querido filho

  • Demnios no existem da mesma forma que deuses no existem, sendo apenas oproduto da atividade psquica do homem.

    SIGMUND FREUD

    A maior pea que o diabo j nos pregou foi nos convencer de que ele no existe.CHARLES BAUDELAIRE

  • SUMRIO

    Dedicatria

    Epgrafe

    Captulo 1: Ruen

    Captulo 2: Sonho acordado

    Captulo 3: A sensao

    Captulo 4: Quem lhe deu esta cicatriz?

    Captulo 5: Diga a ela quem eu sou

    Captulo 6: Um preo alto e silencioso

    Captulo 7: O fantasma

    Captulo 8: Caa aos demnios

    Captulo 9: Invisibilidade

    Captulo 10: A fragilidade da crena

    Captulo 11: Colheita de morangos

    Captulo 12: As pinturas

    Captulo 13: O amigo rejeitado

    Captulo 14: Nvoas da mente

    Captulo 15: O maior sonho de todos os tempos

    Captulo 16: O lado amargo da liberdade

    Captulo 17: Lembre-se de mim

    Captulo 18: As perguntas de Ruen

    Captulo 19: Fuga

  • Captulo 20: Cano de amor para Anya

    Captulo 21: Inferno

    Captulo 22: O compositor

    Captulo 23: As coisas que so reais

    Captulo 24: Os jornais

    Captulo 25: Jogo de bafo-bafo batendo figurinhas

    Captulo 26: A chamada

    Captulo 27: O poo

    Captulo 28: As respostas

    Captulo 29: Um amigo

    Agradecimentos

    Nota da autora

  • 1

    RUEN

    Alex

    As pessoas me olham de um modo engraado quando eu digo a elas que tenhoum demnio.

    Voc quer dizer que tem demnios, no?, perguntam. Como um problemacom drogas ou uma nsia de esfaquear seu pai? Eu respondo que no. Meudemnio chama-se Ruen. Ele tem pouco mais de um metro e sessenta e suascoisas preferidas so Mozart, tnis de mesa e pudim de po.

    Eu conheci Ruen e seus amigos h cinco anos, cinco meses e seis dias. Foi namanh em que mame disse que papai tinha ido embora, e eu estava na escola.Um bando de criaturas muito estranhas surgiu no canto da sala, ao lado do muralsobre o Titanic que havamos feito. Algumas delas se pareciam com pessoas,embora eu soubesse que no eram professores nem os pais de ningum, porquealgumas pareciam lobos, porm com pernas e braos humanos. Uma dasfmeas possua braos, pernas e orelhas que eram todos desiguais, como setivessem pertencido a pessoas diferentes e tivessem sido unidos como o monstrode Frankenstein. Um de seus braos era peludo e musculoso, o outro era finocomo o de uma menina. Eles me assustaram, e eu comecei a chorar porquetinha apenas 5 anos.

    A srta. Holland veio at a minha carteira e perguntou o que havia de errado.Falei para ela dos monstros no canto da sala. Ela tirou os culos muito lentamentee empurrou-os para cima da cabea, em seguida perguntou se eu estava mesentindo bem.

    Olhei de novo para os monstros. No conseguia afastar os olhos do que notinha rosto, mas apenas um enorme chifre vermelho, como o chifre de umrinoceronte, s que vermelho, na testa. Ele tinha corpo de homem, mas cobertode pelos, e suas calas pretas estavam presas com suspensrios feitos de aramefarpado e gotejando sangue. Ele segurava um pau com uma bola de metal notopo, de onde saam espiges, como um ourio. Levou um dedo aonde seus lbiosestariam, se os tivesse, e ento uma voz surgiu em minha mente. Ela soou muitomansa, mas ainda assim rouca, exatamente como a de meu pai:

    Sou seu amigo, Alex.Ento, todo o medo desapareceu de mim, porque o que eu queria mais do que

    tudo no mundo era um amigo.Descobri mais tarde que Ruen possui maneiras diferentes de se apresentar, e

    essa era a que eu chamava Cabea de Chifre, que muito assustadora,

  • especialmente quando vista pela primeira vez. Felizmente, ele no aparece assimcom muita frequncia.

    A srta. Holland perguntou o que eu estava olhando to fixamente, porque euainda fitava os monstros, e me perguntava se seriam fantasmas, j que algunsdeles pareciam sombras. Essa ideia me fez comear a abrir a boca e eu senti umrudo comear a sair, mas, antes que ficasse alto demais, ouvi a voz de meu painovamente em minha cabea:

    Fique calmo, Alex. No somos monstros. Somos seus amigos. No quer quesejamos seus amigos?

    Olhei para a srta. Holland e disse que eu estava bem, e ela sorriu, disse OK evoltou para sua mesa, mas continuou a virar-se para me olhar com um ar muitopreocupado.

    Um segundo depois, sem atravessar a sala, o monstro que falara comigoapareceu ao meu lado e me disse que seu nome era Ruen. Disse que era melhoreu me sentar ou a srta. Holland iria me mandar falar com uma pessoa chamadaPsiquiatra. E isso, Ruen assegurou-me, no envolveria nada divertido, comorepresentar, contar piadas ou desenhar esqueletos.

    Ruen conhecia meus passatempos favoritos, ento eu soube que havia algumacoisa estranha acontecendo ali. A srta. Holland continuava a me olhar como seestivesse muito preocupada, enquanto prosseguia com a aula sobre como enfiaruma agulha atravs de um balo congelado e por que isso era uma importanteexperincia cientfica. Sentei-me e no falei nada a respeito dos monstros.

    Ruen explicou-me muita coisa sobre quem ele e o que faz, mas nunca porque eu consigo v-lo quando ningum mais consegue. Acho que somos amigos.A questo que o que Ruen me pediu para fazer me faz pensar que ele no absolutamente meu amigo. Ele quer que eu faa algo muito ruim.

    Ele quer que eu mate uma pessoa.

  • 2

    SONHO ACORDADO

    Alex

    Querido Dirio,

    Um garoto de 10 anos entra em uma peixaria e pede uma perna de salmo. Osbio pescador ergue as sobrancelhas e diz:

    Salmo no tem pernas!O garoto volta para casa e conta ao pai o que o peixeiro disse, e o pai desata a

    rir. OK diz o pai do menino. V loja de ferragens e compre tinta para

    pintar xadrez escocs.Assim, o menino parte para a loja de ferragens. Quando retorna, sente-se

    muito humilhado. OK, OK, desculpe-me o pai diz, embora esteja rindo tanto que quase

    molha as calas. Tome esta nota de cinco. V comprar dedos de peixe fritopara ns e use o troco para comprar batatas fritas para voc.

    O menino atirou a nota de cinco na cara do pai. Ei, o que foi isso? o pai gritou. Voc no me engana! o garoto gritou de volta. Peixes no tm dedo

    algum!

    Este um novo dirio que minha me comprou para mim pelo meu aniversrioquando eu fiz 10 anos. Quero comear cada registro com uma nova piada, paraque eu possa me sentir no personagem. Isso quer dizer que eu posso lembrarcomo ser a pessoa que estou representando, que um menino chamadoHorcio. Minha professora de arte dramtica, Jojo, disse que reescreveu umapea famosa, chamada Hamlet, como uma recontagem contempornea daBelfast do sculo XXI, com rap, gangues de rua e freiras camicazes, e, ao queparece, William Shakespeare est de acordo com isso. Mame me disse queentrar para a companhia de teatro realmente um grande feito, mas pediu queeu no contasse para ningum em nossa rua, porque posso ser espancado.

    Estamos encenando a pea na Grand Opera House, na cidade de Belfast, oque bom, pois fica apenas a dez minutos a p de minha casa e, assim, posso iraos ensaios todas as quintas e sextas-feiras depois da escola. Jojo disse que possoat inventar minhas prprias piadas. Acho que esta piada mais engraada doque a ltima sobre a velha e o orangotango. Eu a contei a mame, mas ela no

  • riu. Ela est triste de novo. Comecei a perguntar-lhe por que fica triste, mas acada vez a razo diferente. Ontem, foi porque o carteiro estava atrasado e elaestava esperando uma Carta Realmente Importante do servio social. Hoje, porque ficamos sem ovos.

    No posso imaginar uma razo mais tola para ficar triste. Eu me pergunto seela estaria mentindo para mim ou se realmente acha que normal irromper emlgrimas a cada cinco segundos. Acho que lhe farei mais perguntas sobre como a tristeza. por causa do meu pai?, eu quis perguntar hoje de manh, mas entotive aquilo que o orientador careca chamava de Sonho Acordado e me lembreida vez em que meu pai fez minha me chorar. Geralmente, ela ficava muito,muito feliz quando ele vinha nos visitar, o que no era com frequncia, e elapintava os lbios de vermelho e seus cabelos ficavam parecendo um sorvete,empilhados no alto da cabea; s vezes, ela usava seu vestido verde-escuro. Mashouve aquela vez em que ele veio e tudo que ela fez foi chorar. Lembro-me deestar sentado to perto dele que podia ver a tatuagem em seu brao esquerdo deum homem que papai disse ter morrido de fome de propsito. Ele dizia mame: No me faa sentir culpado, inclinado sobre a pia da cozinha para baterseu cigarro dentro da pia. Sempre trs batidas. Ta ta ta.

    Voc no est sempre dizendo que queria uma casa melhor do que esta? asua chance, querida.

    E exatamente quando eu estendia a mo para tocar em seu jeans, o joelhoesquerdo quase pudo onde ele sempre se apoiara para amarrar o lao dos meussapatos, o Sonho Acordado se desfez e restou apenas eu, mame e o som de seuchoro.

    Mame no fala de papai h um milho de anos, ento eu acho que ela deveestar triste por causa da vov, porque vov sempre cuidou de ns e era dura comassistentes sociais enxeridas, e, quando mame ficava triste, vov batia a mocom fora na bancada da cozinha e dizia coisas como Se voc no enfrentar avida com coragem, ela vai derrub-la. Mame, ento, parecia se recuperar.Mas vov j no diz isso, e mame s faz piorar.

    Assim, eu fao o que sempre fao, que ignorar mame enquanto ela rondapela casa com o rosto todo molhado e eu vasculho a geladeira, os armrios dacozinha e debaixo da escada cata de alguma coisa para comer, at finalmenteachar o que procuro: uma cebola e um pouco de po congelado. Infelizmente,no encontro nenhum ovo, o que uma pena, porque isso poderia fazer mameparar de chorar.

    Subo em um banquinho e pico a cebola embaixo da gua na pia como vovme ensinou, de modo que o sumo no faa os olhos lacrimejarem , e depois afrito com um pouco de leo. Em seguida, coloco tudo entre duas fatias de potorrado. Acredite-me, a melhor coisa do mundo.

    A segunda melhor coisa do mundo meu quarto. Eu ia dizer desenhar

  • esqueletos ou me equilibrar nas pernas de trs da minha cadeira, mas acho quevm em terceiro lugar, porque meu quarto fica to alto no topo de nossa casa queeu no ouo mame chorar e porque para onde eu venho quando quero pensare desenhar, e tambm escrever piadas para o meu papel como Horcio. gelado aqui em cima. Provavelmente, seria possvel guardar cadveres aqui. Avidraa est quebrada e no h carpete, e tudo que o aquecedor faz umagrande poa amarela no cho. Na maior parte do tempo, eu visto um suter extrae s vezes um casaco, chapu, meias de l e luvas quando venho aqui para cima,apesar de ter cortado as pontas dos dedos das luvas para poder segurar meuslpis. to frio que papai nunca se deu sequer ao trabalho de arrancar o velhopapel de parede, que ele disse estar ali desde que So Patrcio expulsou todas ascobras da Irlanda. prateado com muitas folhas brancas espalhadas por todo ele,embora eu ache que elas paream penas de um anjo. A ltima pessoa quemorou aqui deixou todas as suas coisas, como uma cama com apenas trspernas, um armrio e uma cmoda alta e branca com as gavetas cheias deroupas. A pessoa que as deixou provavelmente era apenas desleixada, mas atque foi bom, j que mame nunca tem dinheiro para comprar roupas novas paramim.

    Mas isso apenas o melhor do meu quarto. Sabe o que realmente o melhordo meu quarto?

    Quando Ruen vem, eu posso conversar com ele por muito, muito tempo. Eningum pode ouvir.

    Assim, quando descobri que Ruen um demnio, no fiquei com medo, porqueeu no sabia que um demnio era uma coisa. Achei que fosse apenas o nome daloja perto da minha escola que vendia motocicletas.

    Ento, o que um demnio? perguntei a Ruen.Ele era o Menino Fantasma, na ocasio. Ruen possui quatro aparncias:

    Cabea de Chifre, Monstro, Menino Fantasma e Velho. Menino Fantasma quando ele se parece comigo, s que de um modo engraado: ele temexatamente o mesmo cabelo castanho e a mesma altura que eu, e at os mesmosdedos com os ns salientes, o nariz borrachudo e as orelhas de abano, mas seusolhos so absolutamente negros e s vezes o corpo inteiro transparente comoum balo. Suas roupas tambm so diferentes das minhas. Ele usa calasbufantes e presas na altura dos joelhos, uma camisa branca sem gola, e estsempre com os ps descalos e sujos.

    Quando perguntei o que era um demnio, Ruen deu um salto e comeou alutar boxe em frente ao espelho atrs da porta do meu quarto.

    Demnios so como super-heris disse ele entre um golpe e outro. Humanos so como larvas.

    Eu ainda estava sentado no cho. Eu perdera nosso jogo de xadrez. Ruen me

  • deixara pegar todos os seus pees e bispos, e ento me deu um xeque-mateapenas com o rei e a rainha.

    Por que os humanos so como larvas? perguntei.Ele parou de boxear e virou-se para mim. Eu podia ver o espelho atravs

    dele, ento mantive o olhar fixo ali, ao invs de encar-lo, porque seus olhosnegros me davam uma sensao esquisita no estmago.

    No culpa sua que sua me o tenha dado luz disse ele, comeando adar saltos. Por ele ser como um fantasma, seus pulos pareciam rabiscos no ar.

    Mas por que os humanos so como larvas? insisti. Ao contrrio doshumanos, as larvas parecem unhas rastejantes e vivem no fundo de nossas latasdo lixo.

    Porque eles so burros disse ele, ainda pulando. Como os humanos so burros, ento? perguntei, levantando-me.Ele parou de pular e olhou para mim. Estava zangado. Olhe disse ele, estendendo a mo para mim. Agora, coloque a sua em

    cima da minha.Obedeci. No se podia ver o cho atravs da minha mo. Voc tem um corpo disse ele. Mas provavelmente vai desperdi-lo,

    tudo que pode fazer com ele. Exatamente como o livre-arbtrio. como dar umaLamborghini para uma criancinha.

    Est com inveja, ento, no ? perguntei, porque uma Lamborghini umbelo carro que todo mundo gostaria de ter.

    Uma criancinha dirigindo um carro esporte seria uma m ideia, no ?Algum tem que intervir, impedir que a criana cause mais dano que onecessrio.

    Ento, os demnios tomam conta das criancinhas? perguntei.Ele pareceu indignado: No seja ridculo. O que fazem, ento?E ento ele me lanou seu olhar Alex Burro. quando sorri, apenas com

    metade da boca, seus olhos se estreitam e endurecem e sacode a cabea comose eu fosse uma decepo para ele. o olhar que d um n no meu estmago efaz meu corao bater mais rpido, porque bem no fundo eu sei que sou burro.

    Ns tentamos ajud-los a ver alm da mentira.Pisquei. Que mentira? Vocs todos se acham to importantes, to especiais. uma falcia, Alex.

    Vocs no so nada.

    Agora que tenho 10 anos, sou bem mais velho, portanto sei mais a respeito dedemnios e Ruen no assim. Acho que todo mundo tem uma ideia errada dos

  • demnios, exatamente como tm a respeito dos rottweilers. Todos dizem querottweilers comem criancinhas, mas vov tinha um chamado Milo e ele sempreapenas lambia meu rosto e me deixava cavalg-lo como um pnei.

    Mame jamais v Ruen, e eu no lhe contei sobre ele nem sobre nenhumoutro demnio que vem nossa casa. Alguns so um pouco estranhos, mas eu osignoro. como ter um monte de parentes rabugentos andando pela casa,achando que podem ficar me dando ordens. Mas Ruen legal. Ele ignoramame e gosta de ficar bisbilhotando pela nossa casa. Ele adora o velho piano dovov, que fica no saguo. Fica parado ao lado dele por muito tempo, inclinando-se para olhar a superfcie mais de perto como se houvesse uma vila emminiatura vivendo nos veios da madeira. Em seguida, ele se abaixa parapressionar o ouvido contra a metade inferior, como se houvesse algum alidentro tentando falar com ele. Ele me diz que aquele foi um piano magnfico umdia, mas fica muito irritado pela maneira como mame o mantm pressionadocontra o aquecedor e no manda afin-lo. Soa como um cachorro velho, diz,batendo na madeira com os ns dos dedos, como em uma porta. Apenas dou deombros e digo: Grande coisa. Ento, ele fica to irritado que desaparece.

    Ruen s vezes se transforma no Velho quando fica irritado. Se eu ficar igual aele quando ficar velho, eu me mato. Quando ele o Velho, to magro eencarquilhado que parece um cacto com olhos e orelhas. Seu rosto compridocomo uma espada, com um monte de rugas sulcadas to fundo que ele pareceamarfanhado como papel de alumnio reutilizado. Tem um nariz comprido eadunco, e a boca me faz lembrar a de uma piranha. A cabea brilha como umamaaneta prateada e coberta de tufos esfiapados de cabelos finos e brancos.Seu rosto cinzento como um lpis, mas as bolsas sob os olhos so de um rosavivo, como se algum tivesse arrancado a pele. Ele realmente feio.

    Mas isso no to ruim quanto sua aparncia de Monstro. O Monstro comoum cadver que ficou submerso por semanas e arrastado para fora da guapela polcia, para cima de um pequeno barco, e todo mundo vomita porque suapele cor de berinjela e a cabea trs vezes o tamanho de uma cabeanormal. E isso no tudo: quando ele Monstro, o rosto de Ruen no um rosto.Sua boca parece um buraco feito por algum com uma arma de fogo e seusolhos so minsculos como os de um lagarto.

    E tem outra coisa: ele diz que tem 9 mil anos humanos. Ah, claro, zombeiquando me disse isso, mas ele simplesmente inclinou o queixo e passou a horaseguinte contando-me como podia falar mais de 6 mil idiomas, mesmo os queningum mais falava. Continuou falando sem parar, contando-me como os sereshumanos no sabem sequer sua prpria lngua, no de verdade, nem tmpalavras adequadas para coisas importantes, como culpa e mal, que era ridculoque um pas com tantos tipos diferentes de chuva tivesse apenas uma palavrapara isso, bl-bl-bl, at que bocejei por cinco minutos, sem parar, e ele enfiou

  • a carapua e partiu. Mas no dia seguinte choveu, e eu pensei: Talvez Ruen noseja to idiota afinal. Talvez ele realmente tenha razo. Algumas chuvas so comopeixinhos, outras, como grandes cusparadas, e outras, como rolims. Ento,comecei a pegar livros na biblioteca para aprender algumas palavras em vriaslnguas bacanas, como turco, islands e maori.

    Merhaba, Ruen, eu lhe disse um dia, e ele apenas suspirou e retrucou: h mudo, seu imbecil . Ento eu disse: Gda kvoldid, e ele rebateu: Aindaestamos no meio da manh. E, quando eu disse: He roa te wa kua kitea, eledisse que eu era obtuso como um gnu.

    Que lngua essa? perguntei. Ingls. Ele suspirou e desapareceu.Assim, comecei a ler o dicionrio para compreender as palavras estranhas

    que ele usa o tempo todo, como brouhaha. Tentei usar essa palavra com mamesobre os distrbios nas ruas em julho passado. Ela achou que eu estava caoandodela.

    Ruen tambm me contou muitas coisas sobre pessoas de quem nunca ouvifalar. Disse que um de seus melhores colegas durante muito tempo chamava-seNero, mas que Nero preferia ser chamado de Csar por todo mundo e aindafazia xixi na cama quando tinha uns 20 anos.

    Depois Ruen me contou que ficara em uma cela de priso com um sujeitochamado S-cra-tis, quando S-cra-tis recebera a pena de morte. Ruen disse aS-cra-tis que ele devia fugir. Ruen disse que at convencera alguns amigos deS-cra-tis a ajud-lo, mas S-cra-tis se recusou, e simplesmente morreu.

    Isso loucura eu disse. verdade concordou Ruen.Parecia que Ruen tinha centenas de amigos, o que me deixou triste, porque eu

    no tinha nenhum, exceto ele. Quem era seu melhor amigo? perguntei-lhe, esperando que dissesse que

    era eu. Wolfgang disse ele.Perguntei: Por que Wolfgang?, e o que eu queria dizer era por que Wolfgang

    era seu melhor amigo, e no eu, mas tudo que Ruen disse foi que ele gostava damsica de Wolfgang, e depois se calou.

    Sei o que est pensando: sou maluco e Ruen existe por inteiro em minha cabea,no apenas sua voz. Que eu vejo muitos filmes de terror. Que Ruen um amigoimaginrio que eu inventei porque sou solitrio. Bem, voc estaria redondamenteenganado se pensasse assim. Embora s vezes eu realmente me sinta solitrio.

    Mame comprou um cachorro para mim quando fiz 8 anos, e eu o chamei deWoof. Ele me faz lembrar um velho rabugento porque est sempre latindo earreganhando os dentes, e seu pelo branco e spero como o cabelo de um

  • velho. Mame o chama de banqueta uivante. Woof costumava dormir ao lado deminha cama e correr escada abaixo para latir para pessoas que entravam nacasa, para o caso de quererem me matar. Mas, depois que Ruen comeou aaparecer com mais frequncia, Woof ficou com medo. Ele simplesmente rosnapara o nada agora, mesmo que Ruen no esteja l.

    O que me faz lembrar outra coisa. Ruen me disse algo hoje que acheisuficientemente interessante para me dar ao trabalho de anotar. Ele disse que no apenas um demnio. Seu verdadeiro ttulo Azorrague.

    Quando ele disse isso, ele era o Velho. Sorriu como um gato, e todas as suasrugas esticaram-se como cabos telegrficos. Ele falou do modo como tia Bev dizs pessoas que ela mdica. Acho que isso significa muito para ela, porqueningum em nossa famlia jamais foi a uma universidade antes, ou dirige umaMercedes e comprou sua casa prpria como tia Bev.

    Acho que Ruen tem orgulho de ser um Azorrague porque isso significa queele algum muito importante no Inferno. Quando perguntei a Ruen o que eraum Azorrague, ele me disse para pensar no significado da palavra. Tenteiprocur-la no meu dicionrio, mas descrevia apenas um aoite, um flagelo, oque no fazia nenhum sentido para mim. Quando tornei a perguntar, Ruenperguntou se eu sabia o que era um soldado. Respondi: Hum, claro que sei, e eledisse: Bem, se um demnio comum um soldado, eu seria comparvel a umComandante-Geral ou Marechal de Campo. Ento eu disse: Quer dizer que osdemnios lutam em guerras? E ele respondeu: No, embora estejam semprelutando contra o Inimigo. Eu disse que isso parecia paranoico, e ele fez uma carafeia e disse: Os demnios so perpetuamente vigilantes, no paranoicos. Ele aindase recusa a me dizer o que um Azorrague, assim resolvi dar a minha prpriadefinio: um Azorrague um velho nojento que quer exibir suas medalhas deguerra e detesta que somente eu consiga v-lo.

    Espere. Acho que posso ouvir mame l embaixo. Sim, ela est chorandooutra vez. Talvez eu devesse fingir que no notei. Tenho ensaios para Hamletdentro de 72 minutos e meio. Talvez ela s esteja fazendo isso para chamarateno. Mas o meu quarto comeou a se encher de demnios, uns vinte delessentados em minha cama e amontoados nos cantos, sussurrando e dandorisadinhas. Esto todos tagarelando animadamente como se fosse Natal ou algoassim, e um deles acabou de pronunciar o nome de minha me. Sinto umasensao esquisita na barriga.

    Alguma coisa est acontecendo l embaixo. O que est havendo? perguntei a Ruen. Por que esto falando de minha

    me?Ele olhou para mim e ergueu uma de suas sobrancelhas cabeludas. Meu querido, a Morte bateu sua porta.

  • 3

    A SENSAO

    Anya

    O telefonema veio hoje de manh, s 7:30.Ursula Hepworth, a psiquiatra consultora snior da Unidade de Internao da

    Casa MacNeice de Sade Mental da Criana e do Adolescente, ligou para o meucelular e mencionou um garoto de 10 anos sob o risco de ferir a si mesmo ou aoutras pessoas. De nome Alex Broccoli, ela disse. A me de Alex tentara osuicdio ontem e fora submetida a uma cirurgia, enquanto o menino foi levadopara a unidade peditrica do Hospital Municipal. Alex estava em sua casa, aoeste de Belfast, e passara uma hora sozinho com ela, tentando obter ajuda. Porfim, uma senhora que viera pegar Alex para um grupo de teatro interveio e levouos dois para o hospital. Compreensivelmente, o menino estava em pssimoestado. Ursula informou-me que um assistente social chamado Michael Jones jfizera contato com o menino e estava preocupado com sua sanidade mental. Ame de Alex j tentara o suicdio pelo menos quatro vezes nos ltimos cincoanos. Oito de dez crianas que testemunham o suicdio de um pai ou mereproduzem a ao em si mesmas.

    Normalmente, seria eu a clnica responsvel no caso desse menino explicou Ursula, seu sotaque grego entremeado de tons da Irlanda do Norte. Mas, como nossa nova psiquiatra consultora da criana e do adolescente, penseiem passar o basto para voc. O que me diz?

    Sentei-me na cama com um salto, saudada por um mar de caixas espalhadaspor todo o assoalho do meu novo apartamento. um lugar de quatro cmodos naperiferia da cidade, to perto do oceano que eu acordo com o barulho de gaivotase o leve cheiro de sal. revestido de azulejos do cho ao teto, com ladrilhosvermelho-tomate que ardem como uma fornalha ao nascer do sol, devido ao fatode o apartamento dar para oeste e eu ainda no ter tido tempo de comprarcortinas. Tambm no tive chance de mobili-lo, tais tm sido as exignciasdeste novo emprego desde que me mudei de Edimburgo para c h duassemanas.

    Consultei meu relgio. A que horas precisa que eu esteja a? Em uma hora?O dia 6 de maio tem sido marcado com um crculo na minha escala de

    trabalho como dia de folga, nos ltimos trs anos, e foi aceito na ocasio daassinatura do meu contrato de trabalho. Sempre ser, pelo resto da minha vida

  • profissional. Neste dia, aqueles que considero meus melhores amigos chegamtrazendo oferendas de consolo, como torta de queijo, abraos carinhosos, lbunsde fotos minhas e da minha filha em pocas mais felizes, quando ela estava vivae relativamente bem. Alguns desses amigos no me veem em meses, mas,mesmo depois que a cor de seus cabelos mudou e outros relacionamentosterminaram, esses amigos aparecem minha porta para me ajudar a purgar estedia do meu calendrio por mais um ano. E ser sempre assim.

    Desculpe-me eu disse, e comecei a explicar sobre meu contrato, sobre ofato de ter marcado folga neste dia, e talvez ela pudesse entrevistar o meninohoje e eu pudesse retomar o caso amanh, a partir de suas observaes.

    Houve uma longa pausa. Isso realmente muito importante disse ela com severidade.H muitas pessoas que se sentem intimidadas por Ursula. Aos 43 anos, gosto

    de pensar que j superei coisas, como inferioridade, e, de qualquer modo, aespantosa realidade do quarto ano da morte de Poppy j me deixava beira daslgrimas. Respirei fundo e informei a Ursula, em minha voz o mais profissionalpossvel, que eu teria prazer em me reunir com o resto da equipe amanh demanh, no primeiro horrio.

    E ento alguma coisa aconteceu que eu ainda no sei explicar, algo que saconteceu algumas vezes antes e que to diferente de qualquer outra sensaoque eu a chamei, muito simplesmente, de A Sensao. No h palavras paradescrev-la, mas, se eu fosse tentar verbaliz-la, seria mais ou menos assim:bem no fundo do meu plexo solar, h um calor no incio, depois um fogo, emborano seja uma sensao de calor ou dor, que se insinua pelo meu pescoo emaxilar, toma conta do meu couro cabeludo, at meus cabelos ficaremarrepiados, e, ao mesmo tempo, eu a sinto nos meus joelhos, meus tornozelos, atno meu sacro, at eu ficar to consciente de cada parte do meu corpo que pareceque vou levitar. como se minha alma estivesse tentando me dizer alguma coisa,um recado urgente, ardente, que enche de tal forma minhas clulas e vasoscapilares que ameaa explodir, se eu no ouvir.

    Voc est bem? perguntou Ursula, e eu lhe pedi que me desse uminstante. Coloquei o receptor sobre a cmoda e esfreguei o rosto. Em dez anos deestudo, nunca me deparei com uma nica obra na literatura que me informassepor que isso s vezes acontece comigo, nem por que tende a acontecer na maissignificativa das ocasies. Sei apenas que tenho que ouvir. A ltima vez quedeixei de faz-lo, minha filha resolveu acabar com a sua vida e eu no pudeimpedi-la.

    Est bem eu lhe disse. Estarei a agora de manh. Fico agradecida, Anya. Sei que voc ser maravilhosa neste caso.Ela me disse que iria entrar em contato com o assistente social do menino,

    Michael Jones, e marcar para ele se encontrar comigo na recepo da Casa

  • MacNeice dentro de duas horas. Encerrei a chamada e olhei no espelho. Um dosefeitos da morte de Poppy que agora eu acordo frequentemente durante anoite, e o resultado so olheiras amareladas que nenhuma maquilagem conseguedisfarar. Examinei a cicatriz branca e irregular em meu rosto, a minha facenaquele ponto sugada para dentro como uma fita de tecido morto. Em geral, eupasso um tempo considervel toda manh arrumando meus longos cabelos pretosde forma a ocultar essa feiura. Entretanto, contentei-me em prend-los em umcoque no alto da cabea, fixado por uma caneta esferogrfica, e vesti a nicaroupa que eu havia desempacotado um terninho preto com uma camisa brancaamarrotada. Finalmente, claro, coloquei meu talism de prata em volta nopescoo. Em seguida, deixei um bilhete para os amigos que chegariam econstatariam, para sua surpresa e temor, que eu havia transposto a soleira daminha casa no aniversrio da morte de Poppy .

    Peguei a estrada costeira, em vez da autoestrada, na tentativa de me distrair eafastar pensamentos sobre Poppy. Talvez seja uma consequncia daproximidade da meia-idade, mas minhas lembranas dela nos ltimos temposno so visuais, mas feitas de sons. Sua risada, leve e contagiante. As melodiasque ela costumava compor em meu velho Steinway, em nosso apartamento emMorningside, Edimburgo, com um nico dedo. As expresses que usava paradescrever sua condio: como como um buraco, mame. No, como se eufosse um. Um buraco. Como se eu engolisse trevas.

    A Casa MacNeice uma antiga manso vitoriana localizada em um acre deterreno descampado, no alto das colinas que do para as pontes de Belfastbatizadas com nomes de monarcas ingleses. Recentemente reformada, a unidadehospitalar oferece internao e tratamento de um dia para crianas e jovensentre as idades de 4 e 15 anos sofrendo de qualquer doena mental registrada noslivros de medicina distrbios de ansiedade, perturbaes do espectro doautismo, distrbios comportamentais, distrbios depressivos, transtornosobsessivo-compulsivos, distrbios psicticos e outros. So dez leitos, uma salacomunitria com computadores, uma sala de arte, uma sala de terapia ou deentrevistas, um refeitrio, uma piscina, um pequeno apartamento para pais queprecisam pernoitar s vezes e um quarto de encarceramento estritamentechamado internamente de quarto do silncio. Os pacientes internos precisamde educao e, assim, h uma escola disponvel no local, com uma equipe deprofessores especializados. Depois de terminar meus estudos na Universidade deEdimburgo, trabalhei em uma clnica semelhante por dois anos, mas a reputaoda Casa MacNeice me atraa de volta para casa na Irlanda do Norte umamudana sobre a qual ainda estou hesitante.

    Avistei um novo veculo estacionado ao lado do reluzente Lexus preto de

  • Ursula no estacionamento um surrado Volvo verde-garrafa, com uma placa delicenciamento de 1990 e me perguntei se o assistente social de Alex, MichaelJones, j teria chegado. Atravessei correndo o estacionamento de cascalhousando minha pasta como proteo contra a chuva torrencial, quando umhomem alto de terno azul-marinho saiu de trs dos pilares de pedra, abrindo umguarda-chuva enorme em minha direo.

    Bem-vinda! gritou ele. Entrei embaixo do guarda-chuva e ele meprotegeu at entrarmos, onde Ursula aguardava na recepo. Ela alta, com umar imperial, seu costume vermelho, a cabeleira espessa e preta com veiosgrisalhos la Diana Ross e uma bonita estrutura ssea grega mais sugestivos deuma exuberante mulher de negcios do que de uma psicloga clnica. Elatambm foi um dos membros da banca em minha entrevista para esse cargo, efoi por causa dela que eu tive certeza de que no tinha obtido o emprego.

    Originalmente voc estudou para se tornar clnica-geral. Por que a mudanapara psiquiatria infantil?

    Na entrevista, eu havia enfiado a mo direita sob a coxa, examinando osrostos da banca trs mdicos psiquiatras e Ursula, reconhecidainternacionalmente tanto por suas descobertas em psicologia infantil quanto porsua rispidez.

    Meu interesse original era em psiquiatria, havia respondido. Minha me travouuma longa batalha com a doena mental, e eu tinha vontade de descobrirrespostas para os enigmas colocados por sua doena. Se algum conhecia adevastao causada pela doena mental suas desonras e tabus sociais; suaterrvel, antiga associao vergonha das profundezas a que a mente humana capaz de mergulhar em si mesma esse algum era eu.

    Ursula me observara cuidadosamente por trs da mesa da banca. Pensei queo pecado capital de qualquer psiquiatra fosse supor que todas as respostas podemser encontradas, ela sugeriu displicentemente uma piada com uma estocada. Opresidente da banca John Kind, chefe do Departamento de Psiquiatria daQueens University olhou inquieto de Ursula para mim e tentou formular umapergunta a partir da piada sutilmente velada de Ursula:

    Acha que encontrou todas as respostas, Anya? Ou essa a sua inteno,assumindo este cargo?

    Meu corao disse Sim. Mas, na ocasio, sorri e dei a resposta que elesesperavam:

    Minha inteno fazer a diferena.Na recepo, Ursula me deu um sorriso escancarado, depois estendeu a mo

    e apertou a minha com firmeza pela primeira vez desde a minha entrevista. No incomum psiquiatras baterem de frente com psiclogos, devido disparidadeem nossas abordagens, embora eu tenha presumido pelo seu telefonema quequalquer que tenha sido o problema que ela teve comigo na entrevista foraresolvido. Ela virou-se de mim para Michael, que sacudia o guarda-chuva e o

  • pendurava. Anya, este Michael, o assistente social de Alex. Ele trabalha para o

    governo local.Michael virou-se e exibiu um sorriso enviesado. Sim disse ele. Algum tem que faz-lo.Ursula fitou-o atravs de plpebras pesadas antes de me encarar. Michael a colocar a par dos detalhes. Encontro-me com voc mais tarde

    para discutir o caso. Fez um curto cumprimento com a cabea para Michaelantes de comear a descer o corredor.

    Michael estendeu a mo para um cumprimento. Obrigado por vir em seu dia de folga disse ele.Eu queria contar a ele que se tratava de mais do que um dia de folga era o

    aniversrio da morte de minha filha , mas um n se formou em minha gargantapor conta prpria. Ocupei-me assinando meu nome no registro.

    Sabe, ns j nos encontramos disse-me ele enquanto pegava a caneta daminha mo.

    mesmo?Ele assinou o nome com um floreado ilegvel. No congresso de psiquiatria infantil em Dublin em 2001.O congresso ocorreu havia seis anos. Eu no tinha a menor lembrana dele.

    Vi que era alto e magro, de ombros largos, com olhos verdes duros e frios, queme fitavam alguns segundos a mais do que era aconselhvel. Calculei queestivesse perto dos 40 anos, e tinha um ar geral de enfado que eu j vira muitasvezes em assistentes sociais, um cinismo detectvel em sua linguagem corporal,na superficialidade de seu sorriso. Sua voz carregava a aresta spera de cigarrosem demasia e, pelo corte de seu terno e o brilho dos sapatos, eu suspeitava queno tivesse filhos. Usava os cabelos louros desgrenhados e longos sobre ocolarinho, mas um aroma de gel dizia-me que isso era deliberado.

    O que um assistente social estava fazendo em um congresso de psiquiatriainfantil? Virei-me para o corredor atrs de ns que levava ao meu escritrio.

    A psiquiatria era minha escolha original, aps uma rpida passagem pelosacerdcio.

    Sacerdcio? Tradio familiar. Gostei do seu artigo, por sinal. Sobre a necessidade de

    interveno em psicose na Irlanda do Norte, no? Pareceu-me empolgada emmudar as coisas por aqui.

    Mudar provavelmente um pouco ambicioso eu disse. Mas gostaria dever como lidamos com casos de psicose em pessoas jovens.

    Como assim?Limpei a garganta, sentindo uma velha atitude defensiva crescer. Acho que estamos deixando de ver muitos sinais de psicose e mesmo de

  • esquizofrenia de incio precoce, deixando essas crianas se debaterem e at seferirem quando o tratamento poderia facilmente ajud-las a viver uma vidanormal. Minha voz comeara a falsear. Ouvi em minha cabea os esforos dePoppy em nosso piano, sua voz suavemente cantarolando a melodia que elatentava reproduzir no teclado. Quando olhei novamente para ele, notei que fitavaa cicatriz em meu rosto. Eu devia ter deixado meus cabelos soltos, pensei.

    Chegamos porta do meu escritrio. Tentei me lembrar da minha senha deacesso, que me fora dada na semana anterior pela secretria de Ursula, Josh.Aps alguns segundos, digitei o cdigo na fechadura. Virei-me e vi Michaelolhando para cima e para baixo do corredor, a expresso desconfiada.

    Nunca esteve na Casa MacNeice? perguntei displicentemente. Sim. Receio que at demais. No gosta daqui? No concordo com instituies psiquitricas. No para crianas.Abri a porta. Esta no uma instituio psiquitrica, uma unidade de internaoEle exibiu um sorriso. Seis ou meia dzia, hein?Dentro do escritrio, Michael permaneceu de p, at eu indicar duas

    poltronas junto a uma mesinha branca e oferecer-lhe algo para beber, o que elerecusou. Servi-me de um ch de ervas e sentei-me na poltrona menor. Michaelainda estava de p, olhando extasiado para um pster na parede ao lado da minhaestante de livros.

    A suspeita sempre cria aquilo de que suspeita disse ele, lendo o pster.Havia uma interrogao em seu tom de voz.

    C. S. Lewis eu disse. De As cartas de um diabo ao seu aprendiz. J leu? Sim, eu conheo disse ele, o rosto se contorcendo numa careta ao ver

    meu ch de ervas. Estou me perguntando por que voc emolduraria umacitao como essa.

    Acho que foi uma dessas coisas que fez sentido na poca.Ele sentou-se. Eu tenho a camiseta com essa a.Fez-se uma pausa enquanto ele retirava um arquivo de sua pasta.O nome no topo dizia Alex BROCCOLI. Alex tem 10 anos disse-me Michael, a voz mais branda. Ele mora em

    uma das reas mais pobres de Belfast com a me, Cindy, de vinte e poucos anos,que o cria sozinha. A prpria Cindy tem tido uma vida muito difcil, embora issoprovavelmente seja uma conversa para outra hora. Deve saber que ela tentou osuicdio recentemente.

    Balancei a cabea. Onde est o pai de Alex?

  • No sabemos. No h nenhum nome na certido de nascimento de Alex.Cindy nunca se casou e se recusa a falar dele. No parece ter desempenhado umgrande papel na vida do filho. O que sabemos de fato que Alex estprofundamente preocupado com a sade da me. Ele tem uma atitude paternalem relao a ela, exibindo todas as caractersticas de uma crianaprofundamente mergulhada no trauma de uma tentativa de suicdio da me.

    Ele girou um documento sobre a mesa para ficar minha frente umacompilao de anotaes das consultas de Alex com vrios psiquiatraspeditricos diferentes.

    Entrevistas com sua me e professores assinalaram mltiplos episdiospsicticos, inclusive violncia contra um professor.

    Violncia?Michael suspirou, relutante em divulgar a informao. Ele atacou verbalmente o professor durante um acesso de raiva na sala.

    Alegou que estava sendo provocado por outra criana e que o professor no quisfazer nada, mas ainda assim ns registramos esses acontecimentos.

    Uma rpida olhada pelas anotaes disse-me que Alex tinha todos osclssicos sintomas de primeira linha de leve perturbao do espectro do autismode alto nvel funcional, tais como ter pensamentos absolutamente concretos,tendncia a mal-entendidos, repentes explosivos, linguagem ligeiramente maissofisticada para a idade, nenhum amigo e excentricidade. Notei um desvio sobresua alegao de ver demnios. Ento, vi que nenhum medicamento outratamento jamais tinha sido ministrado e, por um instante, fiquei sem palavras.Eu fora seguidamente avisada por colegas na Esccia que as coisas so diferentesna Irlanda do Norte, coisas sendo a prtica da interveno psiquitrica. Essaspalavras ressoaram em meus ouvidos enquanto eu examinava o arquivo.

    Aps alguns instantes, percebi que Michael me observava. Ento, o que a trouxe de volta Irlanda do Norte? perguntou quando notei

    seu olhar.Recostei-me em minha poltrona e bati as mos. Resposta curta, o emprego. E a resposta longa?Hesitei. Uma observao casual de uma candidata a PhD que fazia treinamento na

    clnica em que eu trabalhava em Edimburgo. Ela mencionou que mesmo ascrianas que nunca vivenciaram os conflitos na Irlanda do Norte, que nuncaforam pescadas de uma piscina e envoltas em papel de alumnio durante umaameaa terrorista, que nunca mediram a distncia pelo som de uma bomba eque nunca viram uma arma de fogo esto sentindo efeitos psicolgicos por causado que a gerao mais velha sofreu.

    Ele inclinou a cabea para o lado.

  • Impacto secundrio, no assim que chamado?Concordei. Por um instante, minha memria trouxe tona o som surdo e

    abafado de uma bomba. Da janela do meu quarto em Bangor um subrbiocosteiro na orla de Belfast eu podia ouvir as exploses; revoltantes, ocas. Umalembrana da qual nunca consegui me livrar.

    H uma predominncia maior de morbidade na populao adulta aqui doque em qualquer outro lugar do Reino Unido.

    Bem, isso explica muita coisa sobre meu trabalho. Ele esfregou os olhos,repentinamente absorto em seus pensamentos. Algum dia voc foi pescada deuma piscina durante uma ameaa de bomba?

    Duas vezes. Ento, voc acha que qualquer sujeito que se viu envolvido nos conflitos

    possui uma chance maior de um colapso mental?Sacudi a cabea. Ningum tem capacidade de avaliar o impacto de uma experincia na

    sade mental de uma pessoa. H muitos outros fatoresEle franziu a testa. Alex nunca esteve envolvido nos conflitos. No? Ns entrevistamos Alex e Cindy sobre isso. Quero dizer, sim, eles vivem

    num bairro violento, mas Cindy deixou bem claro que foram os abusos quesofreu em casa quando criana que a afetaram tanto.

    Outra forma de impacto secundrio, pensei. H quanto tempo est envolvido no caso de Alex? Tenho tido contatos espordicos com ele desde que tinha 7 anos. A situao

    de sua famlia muito vulnervel e suas condies de vida tambm no soexatamente ideais. As foras do governo ameaaram coloc-lo em lar adotivona ltima vez em que Cindy tentou o suicdio.

    Pareceu-me que essa podia no ser uma ideia to ruim quanto Michaelobviamente achava, embora eu tenha achado melhor lhe dar o benefcio dadvida por enquanto.

    Tamborilei os dedos no grosso mao de anotaes minha frente na mesa,pensando.

    O que necessrio? perguntei calmamente, notando que a voz de Michaelse tornara mais alta meno de lar adotivo, o rosto plido comeando a ficarvermelho nos maxilares.

    Uma Declarao de Necessidades Especiais, para comear. Fez umapausa. Quando eu soube que tnhamos uma nova psiquiatra infantil na cidadebem, pode imaginar meu alvio. Sorriu, e de repente tive medo de desapont-lo.

    Seja especfico, Michael. Por favor.Ele se inclinou para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, os olhos

  • recaindo em minhas pernas. Com uma tosse, ergueu os olhos para os meus. A questo , dra. Molokova, que sou defensor da Signs of Safety .Olhei para ele. Sabe, o modelo australiano de proteo infantil? Sei o que a Signs of Safety eu disse rispidamente. Fazia parte dos meus

    interesses tambm. A Signs of Safety um tipo de plano de proteo infantilbaseado em um trabalho estreito com as famlias para construir um sistema desegurana e, finalmente, um tratamento centralizado na famlia. A maioria dosdefensores desse modelo rejeita terminantemente os tipos de interveno queformam a base do meu trabalho.

    Olhe, preciso que me prometa que no vai separar esta famlia. Acredite-me, eles precisam um do outro, no de algum procedimento burocrtico, pautadopor regras, de respostas prontas, que coloque esse menino sob a guarda de

    Minha nica proposta descobrir de que tipo de tratamento o meninoprecisa. Disse isso devagar e de forma clara, na esperana de tranquiliz-lo. Seamos trabalhar juntos neste caso, tnhamos que rezar pela mesma cartilha.

    Ele me fitou com um certo nervosismo, quase uma splica. Esse meninosignificava muito para ele. E no apenas profissionalmente vi que Michaeltornara-se pessoalmente envolvido nesse caso. Notei tambm que ele tinha umtoque de complexo de heri o ar cansado, desgastado era resultado de suasfrustraes. Aps uma longa pausa, ele abriu um sorriso, antes de servir-se deuma caneca cheia do meu ch de ervas e tom-lo com um prolongadoestremecimento de repulsa.

    Levantei-me para sair, notando que nossa reunio com Alex estava marcadapara dali a vinte minutos. Michael arrumou suas anotaes e enfiou-ascuidadosamente dentro da pasta.

    Parece exausta disse ele, sorrindo para demonstrar que seu comentrioera de solidariedade, no de crtica. Quer que eu dirija?

  • 4

    QUEM LHE DEU ESTA CICATRIZ?

    Anya

    E assim partimos no Volvo de Michael cujo interior, estranhamente, tinha umforte cheiro de fertilizante para a unidade peditrica do Hospital Municipal deBelfast.

    Era importante que minha abordagem fosse delicada e fornecesse a Alex umalto grau de espao e confiana. Antes de deixar a Casa MacNeice, eu haviainstrudo Michael a entrar em contato com Alex para saber onde ele gostaria dese encontrar comigo e para confirmar que a hora era adequada, de modo queminha chegada no causasse ansiedade. Alex no parecera preocupado comnada disso; ele simplesmente queria saber como sua me estava passando equando poderia ir v-la no hospital. Com isso, foi-lhe prometida uma visita a eladepois que tivesse sido medicada.

    Michael entrou na sala primeiro, aps uma ligeira batida na porta. As salas deentrevistas de crianas em unidades psiquitricas so sempre iguais: um cantorepleto de brinquedos sensoriais e, invariavelmente, uma casa de bonecas. Nestecaso, a sala possua apenas uma casa de bonecas, um quadro branco de crianaem um cavalete, um sof azul surrado e uma mesa com duas cadeiras. Por cimado ombro de Michael, avistei Alex em uma cadeira atrs da mesa, balanando-se nos ps traseiros dela.

    Ol, Alex disse Michael alegremente. Ao ver Michael, o menino abaixoua cadeira de novo sobre os quatro ps com um baque e gritou:

    Desculpe!Michael abanou a mo no ar para indicar que no tinha importncia. Ento,

    estendeu as duas mos para mim como se apresentasse o prmio em umprograma de perguntas e respostas.

    Gostaria de apresent-lo dra. Molokova disse ele a Alex, que balanou acabea e deu um sorriso educado em minha direo.

    Chame-me de Anya eu disse a Alex. Prazer em conhec-lo. An-ya repetiu ele, e em seguida abriu um largo sorriso. Analisei-o

    rapidamente. Notei que tinha um ar de moleque de rua: cabelos cor de chocolateprecisando de um corte e uma boa lavada; pele clara, da Irlanda do Norte;grandes olhos cor de anil; um nariz gorducho como um cogumelo salpicado desardas. Mais surpreendente era sua noo de vestimenta: uma camisa de homemgrande demais, de listras marrons, abotoada de modo errado; cala de tweedmarrom com as bainhas dobradas vrias vezes; uma gravata quadriculada de

  • homem e sapatos escolares pretos cuidadosamente engraxados. Atirados sobre osof, avistei um colete e um blazer. No teria ficado surpresa se tivesse visto umabengala e um cachimbo. Alex obviamente j era independente havia muitotempo e tentava ser muito mais velho do que a idade que tinha. Para apoiar ame, imaginei. Eu estava ansiosa para descobrir se isso era uma manifestao deoutra personalidade ou se ele era simplesmente excntrico. A sala estava tomadapelo cheiro de cebolas.

    Michael puxou uma cadeira para perto da porta e sentou-se, tomando cuidadopara no interferir no meu encontro com Alex. Dirigi-me mesa.

    bem confortvel aqui, no?Alex me observava, tentando sorrir educadamente. Minha me est bem? perguntou ele. Olhei para Michael, que balanou a

    cabea afirmativamente. Acho que ela est s e salva, Alex eu disse, escolhendo cuidadosamente

    as palavras: minha principal resoluo sempre ser honesta com meuspacientes, mas, quando se trata de crianas, o tato muito importante. Mas Alexme vira hesitar e olhar para Michael, e me devolveu um sorriso marcado depreocupao. O que no era de surpreender, considerando-se o que ele haviapassado. raro eu trabalhar com crianas que tiveram uma infncia agradvel,mas, apesar do catlogo de histrias de vida traumtica que destrinchei at agora,ainda acho perturbador fazer parte de mais uma narrativa marcada por tantosdanos em uma idade to tenra. Muitas vezes, sei de imediato qual vai ser o finalda histria e jamais consigo apagar o rosto daquelas crianas da memria. Eume vejo ruminando sobre suas experincias de vida durante meu sono.

    Mas Alex no parecia o que no campo da psiquiatria chamamos deembotado. Seus olhos eram vivos, indagadores e assombrados.

    Uma consulta psiquitrica um pouco como uma entrevista com umacelebridade: move-se em espirais direcionadas para dentro, dando voltas aoredor da questo crucial por meio de uma srie de tpicos relacionados. Noentanto, uma consulta psiquitrica tem que alcanar isso permitindo que oentrevistado guie a conversa. Procurei pistas. No quadro branco ao lado da casade bonecas, via-se o desenho recente de uma casa, feito com marcador azul,com extremo capricho. Apontei para ela.

    Que belo desenho. a sua casa?Alex sacudiu a cabea veementemente. uma casa que j viu antes?Ele levantou-se da cadeira e caminhou cuidadosamente na direo do quadro

    branco. a casa que eu compraria para a minha me, se tivesse dinheiro

    explicou, apagando uma linha desgarrada em volta da porta da frentecuidadosamente arqueada. Tem teto amarelo, flores no jardim da frente e

  • muitos quartos.Apressei-me em perseguir esse tpico, ao ver seus ombros comearem a

    arriar: Quantos quartos? perguntei. No sei bem. Ele pegou o marcador azul e continuou a fazer acrscimos a

    casa com surpreendente habilidade artstica, um cata-vento na forma de galo notelhado, dois pequenos arbustos ao lado da porta da frente, um cachorro correndopelo caminho de entrada. Continuei observando, sem dizer nada, tomando notasmentalmente.

    Ele desenhou um pequeno crculo no jardim da frente da casa e encheu-o depontinhos um canteiro de morangos, disse, porque sua av costumava plant-lospara fazer geleia. Seu ltimo acrscimo ao desenho foi um enorme par de asasno topo da figura, no cu.

    O que isso? perguntei. Um anjo disse ele. Para nos proteger de coisas ruins. Apesar de eu

    nunca ter visto um anjo. Assim que disse isso, ele pareceu se trancar, evitandocontato visual e levando a mo boca, como se temesse ter revelado algumacoisa.

    Perguntei a Alex se estava tudo bem se eu abrisse uma janela. Acho queabrir uma janela sempre d aos pacientes a sensao tranquilizadora de que noesto presos, de que h uma sada fsica, caso precisem, mesmo sendonecessrio um conjunto de escadas e a destreza do Homem-Aranha para descerpor estas janelas. Ele assentiu e respirou fundo. J estava relaxando. Passo um.

    Sentei-me com as pernas cruzadas no assoalho de placas de espumamulticolorida e retirei um caderno de anotaes e uma caneta de minha bolsa.Alex remexeu-se um pouco, olhando para Michael, sentado no sof do outro ladoda sala. Finalmente, Alex sentou-se diante de mim.

    Importa-se se eu fizer anotaes durante a nossa conversa, Alex?Ele instalou-se confortavelmente, cruzando as pernas e segurando os

    tornozelos. Assentiu: Eu tambm costumo escrever. Voc escreve? perguntei. Histrias? Poemas? Um dirio?Na terceira tentativa, seus olhos se iluminaram. Eu tambm. Acho que anotar as coisas me ajuda a clare-las eu disse,

    erguendo meu caderno de anotaes, mas ele ainda olhava fixamente para ocanto da sala, absorto.

    Como voc fez isso? perguntou, quando viu a cicatriz em meu rosto. No nada eu disse, passando os dedos pelo talho irregular em minha

    face, lembrando-me de manter minhas emoes sob controle. J caiu de suabicicleta?

    Cortei o joelho uma vez. Uma longa pausa enquanto ele refletia sobre

  • isso. Em seguida: Por que est usando uma tampa de garrafa como colar?Ele estava olhando para o talism de prata no meu pescoo. Mostrei-o a ele. No uma tampa de garrafa. chamado de talism SOS. para dizer s

    pessoas qual tratamento eu preciso no caso de ter algo chamado choqueanafiltico.

    Ele repetiu as palavras choque anafiltico. O que isso? Sou alrgica a nozes em geral.Seus olhos azuis se arregalaram. At amendoins? Sim.Ele parou para considerar. E pasta de amendoim? Tambm.Inclinou a cabea para o lado. Por qu? Meu corpo no gosta dessas coisas.Ele me manteve presa com mais fora sob seu escrutnio, inspecionando-me

    como se eu fosse explodir a qualquer momento ou fazer crescer uma segundacabea.

    Ento, o que aconteceria se voc comesse um Snickers ou algo assim?Provavelmente eu pararia de respirar, pensei, mas disse: Cairia imediatamente no sono.Seus olhos se arregalaram. Voc ronca?Dei uma gargalhada. Michael me disse que voc tem umas piadas timas. Eu adoro piadas. Pode

    me contar a sua favorita? Ele olhou de novo para mim e, aps um instante decontemplao, sacudiu a cabea devagar.

    No posso disse, com grande seriedade. Tenho muitas favoritas.Dei-lhe um minuto para pensar, depois disse: Quer que eu lhe conte uma das minhas favoritas? No, eu tenho uma disse ele, limpando a garganta. Estatisticamente, seis

    de sete anes no so Felizes.Levei um ou dois segundos para entender, mas, quando consegui, ri tanto que

    o rosto de Alex se iluminou como uma lanterna chinesa. No fui eu que escrevi essa disse ele rapidamente. Voc cria suas prprias piadas? para uma pea que estou ensaiando. Fao o papel de algum chamado

    Horcio. Est em Hamlet?

  • Ele me informou que a pea era uma verso moderna do original deShakespeare, que iria ser representada na Grand Opera House dentro de algumassemanas, e me perguntou se eu gostaria de ir assistir.

    Eu adoraria respondi, e estava sendo sincera. Aposto que sua me estmuito orgulhosa. J contou alguma de suas piadas para ela?

    Ele balanou a cabea e pareceu imensamente triste. Ela no ri h muito, muito tempo. s vezes, as pessoas no riem por fora tentei , mas mesmo assim riem

    por dentro.Ele refletiu sobre isso, mas notei que sua mo direita se insinuara at o

    colarinho de sua camisa e comeara a pux-lo como se de repente ele tivesseficado apertado demais. Deixei que o silncio fosse alm do ponto de causarmal-estar.

    Quer dizer, as pessoas riem internamente? disse Alex finalmente. Comorisada interna, em vez de hemorragia?

    A associao me desconcertou um pouco. Deixei que continuasse: Acho que sei o que quer dizer disse ele devagar. Eu costumava rir

    internamente quando meu pai ainda era vivo.Entrei com prudncia nesse assunto: Pode me contar o que voc quer dizer com isso?Alex olhou-me com desconfiana. No retirara a mo do colarinho. Era mais ou menos assim. Ou melhor, eu fazia as coisas que gostava de

    fazer, mas, quando ele estava por perto, eu fazia em silncio. Como escrever oudesenhar. Isso me deixava feliz aqui dentro e pressionou o punho fechadocontra o peito , apesar de minha av dizer que meu pai devia ir para o Infernopelo que fazia.

    Ele levou a mo boca como se tivesse revelado algo de si mesmo que noqueria revelar.

    Tudo bem assegurei-lhe. Pode dizer isso, no estou aqui para castig-lo.Ele balanou a cabea e remexeu-se na cadeira. Eu corro eu disse, para quebrar a tenso. Correr me faz feliz. Eu ri,

    mas o rosto de Alex se anuviou. Eu no quero disse ele, tenso.Inclinei a cabea. O qu?Ele olhou para o canto, como se houvesse algum l. Depois, deu um longo

    suspiro. OK disse resolutamente. Esperei que continuasse. Finalmente, abriu um

    sorriso cauteloso e disse: Ruen quer que eu diga ol.Olhei-o espantada. Ruin?

  • Ruen meu amigo disse Alex, com a voz um pouco confusa, como seesperasse que eu j soubesse. Meu melhor amigo.

    Ruin repeti. Bem, obrigada. Ol para Ruin tambm. Mas pode me dizerquem Ruin?

    Alex mordeu o lbio, o olhar caindo para os ps. Ruin um nome incomum eu disse. E depois de uma longa pausa: Ruin

    um animal?Ele sacudiu a cabea, os olhos focalizados alm de mim. Alguns deles so, mas Ruen no . Ele somos apenas amigos. Alguns deles? perguntei. Ele balanou a cabea, mas no disse mais nada.

    Amigos imaginrios, pensei. Pode me falar um pouco dele?Alex ergueu os olhos, pensando. Ele gosta do piano do meu av. E ele adora Mozart. Mozart?Alex balanou a cabea. Mas Ruen no sabe tocar piano. Pausa. Mas diz que voc sabe. Sim eu disse, meu sorriso fenecendo. Toco piano desde menina. Mas

    Mozart no meu compositor preferido. Meu favorito Ra Ravel disse Alex, terminando minha frase de maneira pragmtica. Ruen

    diz que Ravel era como um relojoeiro suo. Um relojoeiro suo? Sua preciso espantou-me. Havia dcadas Ravel era

    meu compositor favorito. Larguei a caneta e cruzei os braos. Este garoto eracheio de surpresas.

    Alex inclinou-se para o lado, como se ouvisse alguma coisa. Depois,endireitou-se e olhou fixamente para mim.

    Ele quer dizer que Ravel compunha sua msica como se estivesse fazendoum relgio muito caro. Ergueu as mos e girou discos imaginrios. Todas asengrenagens se encaixavam perfeitamente.

    No estava fora de questo que ele pudesse saber a respeito de Ravel,embora ainda fosse bastante surpreendente. Fiquei intrigada.

    E como Ruin sabe tudo isso?Alex nem pestanejou. Ruen tem mais de 9 mil anos de idade. Ele sabe muita coisa, apesar da

    maior parte ser realmente um tdio. Ele tambm conta piadas?Alex ergueu as sobrancelhas e comeou a rir, a cabea arriada para trs.

    Depois que se recobrou, disse: De jeito nenhum, Ruen acha minhas piadas idiotas. Ele mais srio do que

    o Exterminador do Futuro.Devo ter parecido perplexa, porque Alex leu a expresso do meu rosto e me

  • disse: Conhece? O filme? Com Arnie? Ele imitou a voz de Arnold

    Schwarzenegger de uma maneira surpreendente: da natureza de vocsdestruir a si mesmos.

    Dei uma boa risada, mas anotei como estranho seu interesse por filmes maisvelhos do que ele.

    Ruin se parece com Arnie tambm? No, ele Seus olhos vasculharam a sala. Ele diz que voc deleitvel.A voz de Alex tinha um tom de surpresa, e ele pronunciou deleitvel em

    tom baixo e com um sotaque levemente britnico. Sabe o significado dessa palavra, Alex?Ele rebuscou a mente. No disse. Pulei a maior parte da letra D. Comeou a puxar o

    colarinho outra vez. Podemos falar sobre outra coisa agora, por favor?Assenti, mas, quando ergui os olhos, compreendi que no era comigo que ele

    estava falando. Ainda se dirigia ao lugar vazio no canto. Podemos conversar sobre qualquer coisa que voc queira eu disse, mas

    ele comeara a sacudir a cabea furiosamente. Gritou: Pare com isso!Senti Michael levantar-se atrs de mim, e ergui a mo para impedir que ele

    interferisse. Calma, Alex eu disse serenamente. Seu rosto estava plido, os olhos

    desvairados. Ruin est perturbando voc?Ele balanava-se para frente e para trs agora, esfregando as mos uma na

    outra, como se tentasse fazer fogo com a frico. Coloquei uma das mos deleve em seu brao e ele esquivou-se com um salto.

    s vezes, ele faz isso disse ele, depois de se acalmar. Diz que umsuper-heri, mas na verdade apenas um chato.

    Um super-heri?Alex balanou a cabea. como ele descreve o que realmente . E o que ele ?Alex hesitou. Um demnio disse inocentemente. Meu demnio.Pensei nas anotaes que Michael me mostrara no meu escritrio. Uma

    meno a demnios, apesar de eu ter certeza de que a anotao era de trs anosantes, quando Alex tinha 7 anos. Parei, percebendo a ausncia de medo no tomde sua voz. Uma meno a demnios geralmente vem acompanhada decomportamento agressivo ou raivoso, mas Alex falou calmamente, na realidade:

    Ruin um personagem, como o que voc est representando em Hamlet?Ele sacudiu a cabea, depois parou. Dei-lhe tempo para refletir, mas ele

  • continuou inflexvel: Ruen real. Ele um demnio. Voc um excelente desenhista eu disse, indicando a figura da casa no

    quadro branco. Poderia fazer um desenho de Ruin para mim? O qu, como ele agora? perguntou Alex, e eu assenti.Ele respirou algumas vezes, considerando. Em seguida, levantou-se e

    relutantemente removeu o desenho da casa com o apagador. Quando o quadrobranco ficou limpo, comeou a desenhar um rosto. Enquanto desenhava, fizalgumas anotaes sobre o ambiente, meus pensamentos durante a entrevista eum lembrete para investigar super-heris chamados Ruin.

    Pronto disse ele, alguns instantes depois.Olhei para a imagem no quadro e franzi a testa. Era um autorretrato de

    Alex, completo, com culos de sol. Esse Ruin? perguntei.Alex balanou a cabea. Mas ele se parece muito com voc eu disse. No, ele muito diferente. Ele o Alex mau e eu sou o Alex bom.Isso me deu um grave motivo de preocupao. Abri a boca para perguntar O

    que faz desse Alex o malvado?, mas resolvi fech-la, ciente de que eu haviaatingido o mago das questes de Alex, a origem desse Ruin. Eu tinha queavanar com cuidado para compreender como Alex pensava em si mesmocomo bom e mau.

    Ruin j o feriu alguma vez, Alex?Ele sacudiu a cabea. Ruen meu amigo. Ah, sei eu disse. Busquei silenciosamente criar meios de descobrir por que

    Alex escolhera um demnio para projetar suas emoes, se Ruin era a figuraimaginada responsvel pelos episdios autodestrutivos de sua me e se Ruin tinhaplanos para Alex ferir a si prprio. A conceituao formulada por Alex demau poderia muito bem envolver autopunio.

    Nesse exato instante, Alex caminhou diretamente para mim e apontou para acicatriz que serpeava pela linha do meu maxilar.

    Quem lhe deu esta cicatriz? perguntou ele.Abri a boca, mas no consegui emitir nenhum som.Ele pestanejou. Ruen disse que uma garotinha fez isso com voc porque ela estava com

    raiva.Relanceei os olhos para Michael, mas ele olhava pela porta de vidro para dois

    mdicos que vinham pelo corredor, distrado demais para notar o que acabara deacontecer. Olhei novamente para Alex, meu corao acelerado.

    Como que ele pode saber tudo isso?, pensei.

  • Ruen disse que voc maltratou essa menina disse ele, num tom de vozinterrogativo, intrigado.

    Lutei para no perder a concentrao. Ruin diz como foi que eu a maltratei?Alex olhou para sua direita. Ruen! exclamou. No faa isso! Em seguida, voltou-se novamente

    para mim. Ignore-o disse ele. O que Ruin disse?Alex suspirou. Bobagem, na verdade. Ele diz que ela estava presa em um buraco muito

    escuro, que havia uma escada l, mas voc a puxou para cima e a menina ficoupresa l embaixo.

    assim que voc se sente, Alex? perguntei, embora minha voz tivessedefinhado, se tornado um sussurro distante, como se houvesse duas de mim: umafazendo as perguntas que aprendera a fazer, a outra, uma me sofrendo, meusbraos repentinamente ansiando para abraar minha garotinha outra vez.

    Porm, tarde demais. Alex se recolheu, incomunicvel. Observei-o enquantose dirigia ao quadro branco, comeando a desenhar sua casa dos sonhos outravez.

    Virei v-lo outra vez amanh eu disse, levantando-me, as mos trmulas.Mas ele estava inteiramente absorto no desenho, tocando as asas acima da

    casa.

    Como foi? perguntou Michael enquanto percorramos o corredor em direo entrada da frente.

    Eu me mantinha trs passos adiante dele, para evitar que ele visse a tensoem meu rosto. Eu podia sentir meu celular zumbindo na bolsa com mensagensdos meus amigos que provavelmente estavam enlouquecidos de preocupao. Eutentava dominar meus pensamentos contando mentalmente a partir de dez emordem regressiva, mas j chegara ao zero e meu corao ainda martelava nopeito, as lgrimas ardendo nos cantos dos olhos. Sentia os ferimentos de Poppydespertarem em seus recessos. Estava prestes a sucumbir.

    Vou compilar minhas anotaes hoje tarde e me encontro com voc e osoutros amanh de manh eu disse a Michael rapidamente.

    Havamos chegado ao saguo do hospital. Michael me fez parar quando eume aproximava da entrada.

    Dra. Molokova disse ele, secamente. Ergui os olhos agressivamente,abalada pelo tom de sua voz.

    Ele passou a mo pelos longos cabelos louros, visivelmente perplexo. Olhe, por favor, apenas me diga que no vai separar essa famlia. Tenho

  • um dos melhores terapeutas do pas trabalhando com a me dele Isso timo eu disse. Mas Mas o qu? Acho que Alex pode representar um perigo para si mesmo. Gostaria de

    intern-lo na Casa MacNeice para uma avaliao continuada.O rosto de Michael desmoronou. A tia de Alex, Beverly, est vindo de Cork para c neste exato momento.

    Ele pode ser avaliado em sua prpria casa com seus parentesSenti-me repentinamente exausta, arrependida de ter quebrado minha

    deciso de permanecer em casa. Na minha opinio, Alex poderia se ferir seriamente, se no ficarmos de

    olho nele. Francamente, estou chocada que ele no tenha recebido tratamentoadequado at agora. Pela primeira vez em semanas, uma cena de Poppysurgiu diante dos meus olhos. Ela segurava uma faca numa mesa de umrestaurante, as pessoas ao nosso redor comeando a se virar para ver. A luzsuave de um candelabro danava na lmina.

    Fiz meno de ir embora, mas Michael agarrou-me pelo brao. Quero o que melhor para este garoto.Olhei furiosamente para a sua mo, o sangue fervendo. Finalmente,

    desvencilhei-me com um puxo. Ento me deixe fazer meu trabalho eu disse calmamente, passando por

    ele em direo sada e fila de txis.

    Muitos dos pais que encontro no decurso do meu trabalho chorosamente meconfidenciam que temem que seus filhos estejam possudos. uma possibilidademuito real e aterrorizante para se confrontar: voc pode nunca ter dado ouvidos ideia de Deus ou Satans, mas repentinamente as aes bizarras, assustadoras es vezes violentas de seu filho ou filha o foram a se fazer perguntas que nuncaousou acreditar que passariam pela sua mente. Essas perguntas meassombravam todos os dias durante a maior parte da vida de Poppy e, para serhonesta, creio que nunca encontrei as verdadeiras respostas. Aps muitos anosobservando seu comportamento se deteriorar, eu me cansara de especialistas medizendo que minha filha linda, inteligente e sensvel era apenashiperimaginativa, um rtulo que progrediu medida que ela crescia peloespectro de diagnsticos desinformados e indiferentes de doenas mentais dainfncia: transtorno do deficit de ateno, transtorno de identidade dissociativa,bipolaridade, sndrome de Asperger. Todos errados, e com esses diagnsticoserrados, os remdios errados, o tipo errado de tratamento. Assim, depois dafaculdade de medicina, me especializei em psiquiatria infantil, reforada por umPhD baseado em um palpite sobre a condio de Poppy : esquizofrenia infantil.

    Como Michael, eu quis que continussemos juntas como uma famlia. Mas

  • isso custou a vida dela.Enquanto percorria as ruas movimentadas de Belfast em um txi, ouvi sua

    voz: Eu te amo, mame. Eu te amo. E ento eu a vi, com toda a clareza em minhamente. Seus olhos cor de caf semifechados com uma risada, seus cabelosnegros e cheios puxados sobre um dos ombros. Ela se virou para mim, aclaridade branca de uma cortina roando seu rosto. O buraco desapareceu, eladisse, sorrindo.

    Poppy tinha apenas 12 anos de idade.

  • 5

    DIGA A ELA QUEM EU SOU

    Alex

    Querido Dirio,

    Hoje conheci uma mdica no hospital que fez um monte de perguntas sobreRuen. Fiquei muito confuso quando ela perguntou sobre ele. Nunca falei muitodele a ningum porque esse era o nosso trato. Mas ele me pediu para apresent-lo e isso me deixou confuso, porque geralmente ele chia para mim como umgato para eu ficar quieto e fingir que ele no existe, ao que eu digo algo como:Mas, Ruen, voc um sujeito to encantador, certamente quer que eu conte aomundo todo sobre voc, no?, e ele aperta seus olhos horrveis para mim e diz:O sarcasmo somente demonstra a impotncia de uma pessoa. Ento, eu faouma careta para ele e ele desaparece bufando de raiva.

    Quando Ruen veio para ficar, ele disse que s estava ali para ser meu amigoporque eu parecia muito solitrio. Ento, um dia, tivemos uma briga e eu lhedisse para ir embora, e ele disse que no podia. Disse que fora enviado para meestudar porque ele e todos os seus amigos nunca haviam encontrado um serhumano que pudesse ver demnios como eu podia. Ele disse que eu era muitoespecial. O mximo que algum j vira de demnios fora um relance, ele disse,e essas pessoas geralmente achavam que estavam vendo coisas. Lembro que eleficou muito animado por eu poder v-lo e disse que era muito importante que eleme estudasse, como um rato de laboratrio ou algo assim. Eu disse que noqueria ser estudado, isso fazia parecer que havia algo de errado comigo, edurante toda a minha vida as pessoas tm dito que h alguma coisa de erradocomigo. Eu detesto isso, porque estou perfeitamente bem e quero que me deixemem paz. Mas Ruen prometeu-me algo, se eu o deixasse me estudar. No voudizer o qu. nosso segredo.

    A mdica tinha uma grande cicatriz tipo Harry Potter, mas no maxilar, nona testa. Ela era bonita e sorridente, tinha olhos pequenos, castanho-escuros, ecabelos compridos e pretos, que pareciam calda de chocolate sendo despejadade uma garrafa. Um de seus dentes tinha uma pequena lasca, e s vezes eu podiaver seu suti atravs da blusa. Dra. Molokova, ela disse que era seu nome, maspara cham-la de Anya. Amendoins fazem Any a dormir. Comi alguns depoisque ela saiu para ver se eles me fariam dormir, mas no fizeram.

    Quando Anya me perguntou sobre Ruen, acho que devo ter ficado vermelhoe nervoso. Ruen me disse para contar a ela quem ele era. Eu fiquei muito

  • confuso. A mdica me perguntou o que havia de errado. Ruen repetiu: Diga-lhequem eu sou. Ento, eu disse. Ela estava muito interessada em Ruen, e Ruen jdevia t-la encontrado antes porque me contou vrias coisas sobre ela, que elatocava piano muito bem, que seu pai era chins, embora ela nunca o tivesseconhecido, e que sua me tinha um monte de problemas. Exatamente como aminha.

    Quando ela saiu, Ruen tinha uma expresso engraada nos olhos, o tipo deolhar que Woof tem quando v Ruen. Preocupado. Quase com medo. Perguntei-lhe o que havia de errado, ele disse que no havia nada e depois comeou a fazerum monte de perguntas sobre Anya e sobre amor. Eu j estava muito cansado deperguntas a essa altura, embora estivesse um pouco apavorado com o fato de terque ficar no hospital quando era mame que estava com algo de errado, no eu,e de ningum ainda ter vindo me buscar. Assim, respondi suas perguntas, apesarde serem muito estranhas.

    Ele disse: Como o amor?Eu disse: Voc teria que perguntar a uma menina.Ento, pensei em mame, no quanto eu a amo, e assim eu disse: como voc ser capaz de fazer qualquer coisa pela pessoa que ama.Em seguida, fitei-o por um longo tempo e descobri por mim mesmo. Voc ama a Anya eu disse. claro que no retrucou ele. Ama sim eu disse, rindo. Voc gosta dela.Eu estava me divertindo muito, revidando depois que ele zombou

    implacavelmente de mim sobre gostar de Katie McInerny s porque eu deixeique ela usasse meu armrio na escola.

    Ele ficou todo enfezado, depois desapareceu to depressa que chegou a darum leve estalido, e eu ri at adormecer.

    Quando acordei, estava muito escuro l fora. Todos os telhados das casas dooutro lado da rua pareciam a espinha em ziguezague de um dinossauro contra ocu. Eu sabia que Ruen estava no quarto porque eu estava mais frio do quesalsicha congelada, apesar de ser primavera, e s vezes ele provoca isso. Todosos pelos dos meus braos estavam em p. Eu disse:

    O que foi agora, desgraado?Ele deu um passo para fora das sombras ao lado da janela e disse: Quero que voc conte tudo a Anya sobre mim.Sentei-me na cama repentinamente, tentando manter as cobertas enroladas

    em mim. Eu tinha razo, no tinha? Voc realmente gosta dela, Ruen.E por alguma razo pensei em meu pai naquele momento. Vi seu rosto

  • mentalmente, meio embaado, os olhos azuis como os meus, mame disse.Ento, vi o policial, seu rosto voltando-se para mim em cmera lenta, com raivae medo ao mesmo tempo.

    Ruen franziu a testa para mim. Sa bruscamente do meu devaneio e revirei osolhos para ele.

    Est bem, Ruen. Eu contarei a ela sobre voc, est bem? Est feliz agora?Ele fez um breve sinal afirmativo com a cabea, de m vontade, em seguida

    desapareceu e eu pensei: Que maluco.Dormi a noite toda no hospital e pela manh Anya veio e disse que eu podia ir

    ver mame. Ela estava mais sorridente hoje, apesar de seus olhos pareceremtristes e estar usando culos quadrados e escuros. No contei a ela o que Ruendissera porque estava ansioso para ver mame.

    Como voc est hoje, Alex? disse ela, enquanto atravessvamos ohospital.

    Pensei em uma piada nova eu disse, e lhe contei: Como voc faz umcachorro-quente ficar em p?

    Ela encolheu os ombros. Voc rouba a cadeira dele.Ela riu, mas soou como se no tivesse achado graa. Aposto que est empolgado em ver sua me disse ela, e eu balancei a

    cabea. Mas ela pode ainda no estar em seu estado normal. Tudo bem?Isso para mim s podia ser bom, ento lhe dei um amplo sorriso e Any a me

    disse para segui-la. Percorremos uma infinidade de corredores do hospital, at euachar que minhas pernas iam cair, e finalmente chegamos a um pequeno quarto,onde mame estava em uma cama branca.

    No comeo, assim que entrei, ela no ergueu os olhos. Estava apenas deitadal, com ataduras brancas ao redor dos pulsos e um tubo no brao. Seu rosto notinha nenhuma expresso, como se algum tivesse passado uma borracha nele eapagado mame de l. Ento, ela virou a cabea e sorriu para mim, e foi comose algum tivesse recolocado toda a cor de seu rosto. Seus cabelos ficaramamarelos de novo com razes pretas e seus olhos mudaram de cinza para azul-celeste e at mesmo as tatuagens em seus braos e pescoo pareciam maisvivas. Algum retirara a argola de seu nariz, mas isso foi bom, porque aquilo afazia parecer um touro. Quis perguntar se haviam retirado a da sua lnguatambm, mas no perguntei.

    Ol, querido disse ela quando entrei. Sua voz estava rouca. Fiquei nervosode entrar, com medo de que Ruen aparecesse.

    Venha c, Alex disse ela. Dei um passo frente e ela passou os braos aomeu redor e me apertou. Seus braos eram frios e finos.

    Como est se sentindo? perguntei. J tive dias melhores disse ela, aps uma pausa muito longa, e depois

  • sorriu, mas seus olhos estavam midos e apertados. Como tem passado? Eles no tm TV aqui. Que pena, hein? Voc pode ver TV quando voltar para casa. Sim, mas sinto muita falta. E comecei a nomear todos os programas que

    estava perdendo, contando-os nos dedos.Mame apenas me fitava. Como vai a banqueta uivante? Woof est bem eu disse. Mas quem est dando comida para ele,

    mame? Ele no vai ficar com fome?O rosto de mame pareceu preocupado. Ento, Anya adiantou-se e tocou a

    mo de mame com os dedos. Sou Anya Molokova disse ela, e sua voz repentinamente soou muito

    afetuosa e tranquilizadora: Sou psiquiatra consultora da Casa MacNeice. Estoucuidando de Alex.

    Eu queria dizer que isso era mentira, porque Any a no estava fazendo pizzaou torradas com cebolas ou qualquer outra coisa para mim. Mame balanou acabea. Puxei uma cadeira para junto de sua cama e ela estendeu o brao eafagou meus cabelos.

    Cindy , soube que voc vai ter que ficar aqui mais algumas semanas. mesmo? disse mame, de uma forma que me fez pensar se Anya

    estava fazendo alguma coisa errada. Gostaria que Alex permanecesse na minha unidade por algum tempo. S

    para que eu possa avali-lo.O rosto de mame endureceu. Avali-lo para qu?Any a olhou para mim. Talvez devssemos discutir isso em particular No disse mame com voz alta. sobre ele, ento ele deve permanecer

    aqui.Any a sentou-se do outro lado da cama, tirou os culos escuros quadrados e

    usou sua blusa para limp-los. luz de circunstncias recentes, acho que Alex pode ter um tipo de doena

    que requer avaliao e monitoramento continuados. Seria para o prpriobenefcio dele ficar algum tempo na Casa MacNeice.

    Fiquei imaginando a que tipo de doena ela se referia e se a Casa MacNeicetinha TVs.

    Esse no um lugar para malucos? perguntou mame.O sorriso de Anya tornou-se real. Absolutamente. onde fazemos a maior parte de nosso mais importante

    trabalho para as famlias da regio.Mame fechou a cara.

  • Da ltima vez, uma mulher de terninho tentou tirar Alex de mim.Mame e eu olhamos fixamente para Any a. Notei que ela tambm usava um

    terninho. Ela engoliu em seco. Se fssemos fazer isso, eu precisaria de sua permisso. Bem, voc no a tem retrucou mame rispidamente, e sua voz falseou,

    at que apertei sua mo e ela olhou para mim e sorriu. Vou sair daqui embreve, prometo disse ela.

    Sua irm Bev est aqui disse Anya em voz baixa. Ela veio de Cork paracuidar de Alex. Parte do arranjo, se Alex fosse ficar na Casa MacNeice, era queBev cuidaria dele nos fins de semana

    Mame arregalou os olhos. Bev est aqui?Any a balanou a cabea.Mame levou uma das mos ao rosto e comeou a chorar. Eu no quero que ela me veja assim disse, e comeou a pressionar os

    cabelos para baixo com os dedos porque eles estavam arrepiados para todos oslados, como se ela tivesse sido eletrocutada.

    Ela s vir visit-la quando voc estiver pronta. Todos sabem muito bemque voc precisa de tempo. Deixarei Alex em casa esta tarde, mas, se voc noquiser que ele venha para a Casa MacNeice, tenho que obter permisso paravisit-lo todos os dias da prxima semana para termos uma conversa.

    Alguma coisa na maneira com que Anya disse termos uma conversa sooucomo se ela pretendesse algo muito mais srio. Mame pareceu achar issotambm. Ela olhou duramente para Any a.

    Quer dizer sobre mim? quis saber.Any a olhou para mim. Entre outras coisas.Em seguida, ela se levantou e disse que ia ver se conseguia que uma das

    enfermeiras me deixasse assistir TV. Ela saiu do quarto e eu no olhei paramame porque nesse mesmo instante Ruen apareceu e eu dei um salto de ummetro de altura no ar.

    O que houve agora, Alex? perguntou mame.Mas eu a ignorei. Eu estava nervoso, porque pude ver que Ruen era Monstro.

    S que ele no estava olhando para mim. Olhava para alguma coisa na soleira daporta. Tentei ver o que estava olhando, mas no havia ningum l. Ruen estavato furioso que estava rosnando. Trs segundos depois, ele desapareceu.

    Quando Anya voltou, disse que eles me deixariam assistir TV, ento notouque mame estava transtornada e eu estava enroscado no cho.

    O que aconteceu? perguntou ela mame, que apenas sacudiu a cabea emurmurou alguma coisa.

    Tem TV agora? eu disse. Vi que Ruen fora embora, e ento me levantei.

  • Any a sorriu e comeou a falar alguma coisa, mas depois disse apenas: Siga-me.Assim, sa e sentei-me em uma sala fedorenta com a menor TV que eu j

    vira e que tinha listras amarelas em todos os canais. Cinco minutos depois, Any aentrou sorrindo e disse-me que eu podia ir ver mame outra vez, mas s porpouco tempo, porque ela j estava muito cansada.

    Sentei-me ao lado de mame e uma senhora entrou com uma bandeja comfeijo e batatas, que mame no quis.

    Voc quer, Alex? perguntou mame, eu disse que sim e ataquei a comida. Sabia que Alex est em uma pea? ouvi mame dizer a Any a. Sim. Hamlet. Deve estar muito orgulhosa.Senti mame olhando fixamente para mim. Eu mal conseguia ler quando tinha a idade dele. Ele o primeiro da classe

    de ingls. No herdou nada disso de mim, posso garantir-lhe. Ele muitointeligente. Ento, houve uma longa pausa enquanto eu usava o ltimo pedaode po para limpar o caldo do feijo.

    s vezes, eu acho que o estou atrasando ouvi mame dizer, com um fiode voz.

    Como acha que o est atrasando? disse Anya.Parecia que a cor estava fugindo do rosto de mame outra vez. Voc acha que h alguma chance para uma criana que comea na vida

    como eu e Alex? Ou acha que teria sido melhor se eu nunca tivesse nascido?Any a olhou de mim para mame. Ento, inclinou-se para frente e segurou a

    mo de mame. Acho que alguns de ns realmente enfrentam grandes desafios na vida. Mas

    acredito que tudo pode ser superado. Mame inclinou-se para frente e deu umtapinha delicado em meu rosto. Apesar de estar sorrindo para mim, havia aquelaexpresso em seus olhos que dava um n em minha barriga, a ponto de eu noconseguir comer meu po. Vi Ruen no vo da porta, mas no ergui os olhos paraele.

    Tia Bev irm de mame, embora no se parea nada com ela, nem mesmo delonge. Na realidade, ningum diria que so irms. Ela 11 anos, dez meses e doisdias mais velha do que mame, mas parece mais nova, acha tudo engraado eno tem nenhuma tatuagem, exceto um rabisco preto no tornozelo esquerdo queela disse que aconteceu quando estava fora de si em Corfu. Ela diz coisasestranhas, como a vaca foi pro brejo. Seus cabelos so curtos e brancos comoos pelos de Woof, e seu trabalho consiste em passar o dia todo acendendo umalanterna dentro dos ouvidos e da boca das pessoas. Ela usa um pequeno crucifixode ouro num cordo ao redor do pescoo, embora no seja mais catlica, e eununca devo dizer o nome Lawrence diante dela, porque esse o nome do marido

  • que levou todo o seu dinheiro. Quando ela se mudou para a minha casa, aprimeira coisa que fez foi colocar um cano de chuveiro atravessado no vo daporta de nossa sala de estar. Fiquei ali parado por alguns minutos, meperguntando se o crebro dela havia escorrido pelos ouvidos durante a noite.

    para isso disse ela, quando entendeu por que eu estava to intrigado.Segurou o cano com as duas mos e comeou a empurrar a cabea para cimada barra com os braos. Fez isso trs vezes, at eu notar que seus ps notocavam o cho.

    Oh! exclamei, embora ainda no entendesse para que ela fazia aquilo. Elariu e desceu com um pulo, e quando me dei conta tinha prendido os dois ps porcima da barra e estava pendurada de cabea para baixo como um morcego.

    Esta manh ela subiu ao meu quarto e bateu na porta, e, quando notei que elano estava sem flego, eu lhe disse:

    Por que no est parecendo um cachorro velho?Ela olhou para mim de modo engraado e perguntou o que eu queria dizer.

    Eu lhe contei que mame sempre fazia um barulho assim (comecei a respirarcom fora hah-hah-hah com a lngua para fora) quando subia os trs andares denossa casa. As linhas na testa de minha tia desapareceram e ela deu umarisadinha, depois flexionou os msculos dos braos, o que eu achei engraadouma mulher fazer, embora fossem grandes e me fizessem pensar em cebolasdentro de uma meia.

    isso que escalar muros trs vezes por semana faz por voc disse ela,dando um tapa no brao.

    Escalar muros? perguntei. Pode me levar para escalar muros comvoc?

    Claro disse ela, espantada. Temos que achar um lugar aqui perto. J faztanto tempo que morei aqui que nem me lembro onde haveria um lugar paraisso.

    H um paredo bem na frente de nossa porta eu lhe disse.Ela revirou os olhos. No desse tipo de muro que estou falando, Alex. Ela me olhou de cima

    a baixo por um longo tempo, os olhos arregalados. O que, em nome de Maria eJos, voc est vestindo, Alex?

    Olhei para minhas roupas. Eu esquecera de enrolar as bainhas das calas. Um terno?Tia Bev riu muito alto, soando como uma coruja. Santo Deus, precisamos ir s compras, no?Antes que eu pudesse responder, ela me arrastou escada abaixo para comer

    alguma coisa, mas no deixou que eu cortasse as cebolas, com receio de que eume machucasse.

    Mas a vov me ensinou eu lhe disse, e repentinamente o sorriso

  • desapareceu de seu rosto e ela olhou pela janela. Estava comeando a chover. Sua me era mais feliz quando sua av estava por perto? perguntou ela

    muito serenamente.Dei de ombros. Acho que sim. Embora vov no gostasse de meu pai e isso deixava

    mame triste. lembrana de vov, senti todo o meu corpo se retesar, aindaque no soubesse se era apenas o frio.

    Sinto muita falta da vov. Eu tambm sinto a falta dela, Alex.E, quando ergui os olhos, o rosto de tia Bev estava todo mido e nosso hlito

    flutuava no ar frio como fumaa.

  • 6

    UM PREO ALTO E SILENCIOSO

    Anya

    Durmo at tarde e evito minha corrida matinal. Os msculos do meu pescoo,costas e pernas doem como se eu tivesse sido torturada a noite inteira, e quandoolho pela janela est chovendo. Fao um esforo consciente para compilarminhas anotaes de ontem e atualizar meus e-mails. No retorno nenhum dostelefonemas de meus preocupados amigos, nem mesmo de Fi, minha melhoramiga desde a escola primria, que telefonou 19 vezes desde o aniversrio damorte de Poppy e deixou quatro mensagens ordenando-me que lhe telefonassede volta. Em vez disso, escondo-me atrs da facilidade impessoal de apagar e-mails, copiando e colando a mesma mensagem Ol, estou bem, sinto muito noter podido atender para cada um dos amigos que conheceram Poppy. Pedireidesculpas e me explicarei mais tarde. Primeiro, h a questo do Alex. Tomo umbanho rpido e parto para o meu escritrio. A arrumao da mudana vai ter queesperar.

    Quando me mudei para Edimburgo para fazer medicina, as pessoas sempreperguntavam Como foi crescer na Irlanda do Norte?, s vezes com espanto eadmirao, como se eu tivesse sido a primeira pessoa a fazer isso. Foi somentedepois que fui embora que me dei conta do quanto esta minha terra natal tobranda, mas em outros aspectos to dilapidada e voltil, parecia perigosa aosoutros como um amigo querido cujo traquejo social frequentemente lhe prestaum desservio aos olhos de estranhos.

    De um ponto de vista profissional, as cicatrizes sociais da Irlanda do Norte soprofundas, e no apenas atravs da psique daqueles que sofreram a violncia emprimeira mo. Apesar de os polticos estarem comemorando o que chamam depaz, aqueles de ns que trabalham nos bastidores no encontram paz alguma.A histria de violncia aqui em geral medida em termos do nmero de mortos,mas h um outro preo silencioso e mais alarmante: uma em cada cincocrianas da Irlanda do Norte sofrer importantes problemas mentais antes dos 18anos, com estudos de caso assinalando automutilao como resposta ao confrontoe vergonha pelo envolvimento familiar em violncia. Eu compreendo queMichael queira manter Alex e Cindy como uma unidade familiar, mas noretornei minha terra natal para perpetuar um sistema falho. Estou aqui paracomear a reconstruir vidas.

    Entro no estacionamento da Casa MacNeice s 8:59 da manh. Por alguma

  • razo, eu esperava ver o surrado Volvo de Michael estacionado na minha vaga,seu olhar tenso, pensativo, forando-me a assinar o relatrio de Alex como A-OK, como se ele tivesse passado em um exame de qualificao para uma vidafamiliar digna. Se ao menos fosse assim to simples. Eu devia ter visto isso antes Michael me v como o inimigo. Ele quer me ter por perto, para ter maischance de manter Alex fora palavras de Michael do asilo de loucos. E euacho que a esse respeito que Michael e eu temos um objetivo comum adespeito de mim mesma, senti-me ligada a essa criana, senti algo muitofamiliar em sua difcil situao, algo visceral. E sinto que posso ajud-lo embora talvez no seja do modo que Michael deseja.

    No meu escritrio, aciono o interruptor da chaleira eltrica e inspeciono aspoucas prateleiras de livros que finalmente consegui arrumar em minhasestantes. Meu acervo compreende revistas e livros de psiquiatria, obviamente,mas tambm literatura, textos de teatro e religio a verdade a respeito dapsique humana nem sempre reside nos tomos acadmicos e factuais.

    Enquanto folheio um punhado de livros velhos e amarelados de C. S. Lewis eJohn Milton, reflito sobre a alegao de Alex de que ele pode ver demnios.Desde o sculo I, os sintomas de mania e esquizofrenia estiveram estreitamenteligados a alucinaes e manifestaes sobre-humanas. Deus, anjos, super-heris,mrtires Todos eles atuaram pelo palco da esquizofrenia em todos os delriosregistrados nos ltimos 2 mil anos. Pacientes que alegam ver demnios no sointeiramente incomuns, mas o caso de Alex me parece diferente. Ele alegou queum demnio era seu melhor amigo. E parecia saber a respeito de Poppy. Nomnimo, um menino de 10 anos com tal capacidade de percepo extremamente raro.

    A chaleira vibra com o calor. A voz de Poppy trepida em minha mente:Parece um buraco, mame. Um buraco em vez de uma alma.

    O interruptor vermelho d um estalido.Penso em Cindy no hospital seu rosto magro, cansado, dominado pela

    exausto de uma mulher talvez com o triplo de sua idade , em como admitiraque no se sentia bem. Fao algumas anotaes referentes


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