da mata, weber é o historicismo

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história da historiografia • ouro preto • número 6 • março • 2011 • 64-80 Resumo São ainda raros os estudos sobre a trajetória intelectual de Max Weber entre o início de seus estudos universitários em Heidelberg (1882) e a publicação de sua tese de doutoramento sobre as companhias de comércio medievais (1889). Através da análise da sua correspondência, este artigo pretende demonstrar a importância de historiadores como Erdmannsdörffer, Baumgarten, Ranke e Treitschke para o jovem jurista Weber e como sua formação inseriu-se, plenamente, nos quadros da tradição historicista da época. Palavras-chave Max Weber; Historiografia alemã; Historicismo. Abstract There are only few studies on Max Weber’s intellectual biography between the beginning of his undergraduate studies in Heidelberg (1882) and the publication of his doctoral dissertation on medieval commercial partnerships (1889). Through the analysis of his correspondence, this article seeks to demonstrate the importance of historians like Erdmannsdörffer, Baumgarten, Ranke, and Treitschke for the young lawyer and how his early intellectual development occurred under the strong influence of the historicist tradition. Keywords Max Weber; German historiography; Historicism. Anos de aprendizagem de um jurista formado “numa perspectiva histórica”: Max Weber e o historicismo* Apprenticeship from a jurist with a historical education: Max Weber and historicism Sérgio da Mata Professor Adjunto Universidade Federal de Ouro Preto [email protected] Rua do Seminário s/n 35420-000 - Mariana - MG Brasil Enviado em: 14/03/2011 Aprovado em: 28/03/2011 64 * Este artigo é resultado parcial de uma pesquisa realizada em arquivos e bibliotecas em Erfurt, Frankfurt an der Oder, Berlim e Munique. Agradecemos ao CNPq, à FAPEMIG (Programa Pesquisador Mineiro), ao convênio CAPES-DAAD e à Fundação Alexander von Humboldt pelo apoio financeiro.

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Sérgio Da Mata, "Anos de aprendizagem de um jurista formado “numaperspectiva histórica: Weber é o Historicismo"

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  • histria da historiografia ouro preto nmero 6 maro 2011 64-80

    ResumoSo ainda raros os estudos sobre a trajetria intelectual de Max Weber entre o incio de seusestudos universitrios em Heidelberg (1882) e a publicao de sua tese de doutoramento sobreas companhias de comrcio medievais (1889). Atravs da anlise da sua correspondncia, esteartigo pretende demonstrar a importncia de historiadores como Erdmannsdrffer, Baumgarten,Ranke e Treitschke para o jovem jurista Weber e como sua formao inseriu-se, plenamente,nos quadros da tradio historicista da poca.

    Palavras-chaveMax Weber; Historiografia alem; Historicismo.

    AbstractThere are only few studies on Max Webers intellectual biography between the beginning of hisundergraduate studies in Heidelberg (1882) and the publication of his doctoral dissertation onmedieval commercial partnerships (1889). Through the analysis of his correspondence, this articleseeks to demonstrate the importance of historians like Erdmannsdrffer, Baumgarten, Ranke,and Treitschke for the young lawyer and how his early intellectual development occurred underthe strong influence of the historicist tradition.

    KeywordsMax Weber; German historiography; Historicism.

    Anos de aprendizagem de um jurista formado numaperspectiva histrica: Max Weber e o historicismo*

    Apprenticeship from a jurist with a historical education: Max Weberand historicismSrgio da Mata

    Professor AdjuntoUniversidade Federal de Ouro [email protected] do Seminrio s/n35420-000 - Mariana - MGBrasil

    Enviado em: 14/03/2011Aprovado em: 28/03/2011

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    * Este artigo resultado parcial de uma pesquisa realizada em arquivos e bibliotecas em Erfurt, Frankfurtan der Oder, Berlim e Munique. Agradecemos ao CNPq, FAPEMIG (Programa Pesquisador Mineiro), aoconvnio CAPES-DAAD e Fundao Alexander von Humboldt pelo apoio financeiro.

  • Introduo

    Desde h vinte e cinco anos, os estudiosos da obra de Max Weberperceberam que a forma de lanar uma nova luz ao seu respeito, nada tem emsi, de nova: a adoo de um procedimento rigorosamente histrico-crtico.Talvez haja nisso uma pequena ironia do destino: embora a sociologia reclamepara si o privilgio de ter em Weber um dos seus fundadores (o que discutvelsob inmeros pontos de vista), a moderna Weberforschung nada tem desociolgica. Na atualidade, os estudos weberianos de ponta so,essencialmente, estudos de histria intelectual.

    No por acaso, os historiadores assumiram, nos ltimos anos, um lugarde destaque nos estudos weberianos. Basta lembrar os nomes de WolfgangMommsen, Gangolf Hbinger, Rita Aldenhoff-Hbinger, Hinnerk Bruhns, HartmutLehmann, Jrgen Deininger, Wilfried Nippel, Fritz Ringer e Peter Ghosh. Trata-sede um interesse que se diria quase natural, uma vez que Max Weber semprelevou a histria e os historiadores a srio. Seja numa acepo lata, seja numaestrita, o jurista de formao sempre foi, tambm, historiador.

    A esta constatao, seguem-se as nossas questes propriamente ditasneste texto: desde quando se manifestou em Max Weber o interesse pelahistria? Que historiadores marcaram sua formao? De que maneira ele serelacionou com as reconfiguraes do campo historiogrfico de sua poca?Enfim, e mais importante: teria Weber, antes dos seus notveis estudospublicados entre 1903 e 1906, inserido-se justamente naquela tradio que,na viso de muitos intrpretes, ele teria ajudado a implodir a tradiohistoricista?1

    Antes de tentar responder algumas destas perguntas, um rpido flashback: em 1984, eram publicados os primeiros volumes da edio crtica dasobras de Weber, a Max Weber Gesamtausgabe (MWG). Este acontecimentorepresentou um verdadeiro divisor de guas para os Weber Studies. A rigor,pode-se dividir a histria dos estudos weberianos em uma fase pr-MWG e emoutra ps-MWG. Em 1986, apareceria o volume contendo a tese de livre-docncia de Weber, dedicada histria agrria de Roma. Apesar do cuidadosotrabalho de edio feito por Jrgen Deininger, as pesquisas sobre o primeiroWeber no foram catapultadas de imediato. Uma das razes para isso estna estratgia de edio da correspondncia de Weber no mbito da MWG, quesomente agora est a contemplar o perodo anterior a 1906.2

    At h bem pouco tempo, o primeiro Weber, tradicionalmente, nodespertava o interesse dos pesquisadores. Eram poucos os que, como Scaff(1984), sentiram-se compelidos a reconstruir os passos de Weber antes da

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    1 Exemplar desta tendncia a des-historicizar Weber o livro de Colliot-Thlne (1995). Tal atitudemarca tambm a produo alem da dcada de 1990; continuava-se a omitir o que ele escreveuantes de 1903, vale dizer: tudo aquilo que melhor permite perceber sua dvida em relao aohistoricismo. Os livros de Jaeger e Rsen (1992), Oexle (1996), Choi (2000) e Hidas (2001) noescaparam regra.2 Estratgia que os atuais editores admitem ter sido equivocada.

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    sociologia weberiana. Este quadro comeou a alterar-se com a publicao, em2003, da excelente introduo de Lutz Kaelber (2003, p. 1-47) traduonorte-americana de tese de doutoramento de Weber e do livro de WilhelmHennis (2003) sobre Weber e Tucdides.3 Em 2008, veio a lume o tomo daMWG com a tese de Weber.4 Com isso, passamos a dispor de um melhorarsenal crtico para enfrentar o desafio de reconstruir os seus anos deaprendizagem.

    Antes de um primeiro Weber, houve um jovem Weber a respeito doqual pouco se escreveu. Ser este o nosso ponto de partida.

    Retrato de um socilogo quando jovem?

    O interesse de Weber pela histria manifestou-se desde muito cedo. Oque no era propriamente uma originalidade, em vista da tradio neo-humanistado sistema educacional prussiano (RINGER 2000). Como a maior parte deseus colegas, Weber teve de passar pelas obras de Herdoto, Tucdides, TitoLvio e Ccero. Em suas cartas, revela tambm seu gosto pela leitura de romanceshistricos, em especial os de Walter Scott, Willibald Alexis e Gustav Freytag.5

    Dos historiadores contemporneos, leu a enorme Histria da Grcia de ErnstCurtius, a Histria de Roma de Theodor Mommsen e o primeiro volume daHistria da Alemanha de Heinrich von Treitschke. Para estas leituras,seguramente, contribuiu o fato de que alguns dos intelectuais de maior prestgioda Berlim daquele tempo frequentavam a casa dos Webers: o patriarca firmaraamizade com Treitschke j em sua poca de estudante em Gttingen. Quantoa Mommsen, seu filho Karl era um de mais prximos amigos de Max. WilhelmDilthey e Heinrich von Sybel eram dois outros que a poltica havia aproximadode seu crculo familiar (ROTH 2001, p. 373-379).

    No causa surpresa, portanto, que entre 1877 e 1879, Max tenhadedicado-se redao de trs ensaios histricos: Sobre o processo da histriaalem, com especial ateno s posies do Imperador e do Papa; Sobre operodo imperial de Roma, de Constantino s migraes e Observaes sobre ocarter, desenvolvimento e histria das populaes nas naes indogermnicas(WEBER 1989, p. 49).

    3 A dvida dos estudos weberianos para com Hennis est longe de ser pequena, e h que dizer que foiele, um cientista poltico, quem deu o passo decisivo no sentido da historicizao que reclamamosaqui. Mas uma apreciao cuidadosa de seus livros demonstra tambm sua forte tendncia a estabelecerjuzos definitivos com base em um nmero insuficiente de indcios, bem como de ignorar evidnciasclaras e numerosas que falem em sentido contrrio s suas teses. o caso, sobretudo, da sua construoda imagem de um Weber nietzscheano e des-neokantianizado, e que acabou contaminando ostrabalhos de intrpretes como Oexle (1996) e Radkau (2005), entre outros. A este respeito, ver aveemente, e a nosso ver correta, crtica de Schluchter (1995).4 MWG I/1.5 Ressalte-se que o epistolrio de Weber empregado aqui apenas como uma fonte em histria dahistoriografia e em histria intelectual, o que no quer dizer que tais disciplinas no tenham o queganhar com o que Salomon (2010) recentemente designou arquivologia das correspondncias. Ascartas so menos o veculo do que Simmel acreditava ser uma sociologia do segredo (pois sabemosque nem sempre elas eram escritas para permanecer em sigilo) do que uma modalidade de gnerocomunicativo.

  • O ginasiano tambm demonstrava familiaridade com alguns dos clssicosda historiografia greco-romana e, mais que isso algo perdovel para umgaroto de 14 anos , chega ao ponto de censur-los por ignorarem as boasregras do mtodo. Alm de desatento s causas internas dos eventos,Herdoto no seria crtico o suficiente. Seu estilo narrativo, totalmentepotico, parece-lhe inadequado. Quanto a Tito Lvio, o julgamento aindamais duro. Weber afirma que, embora tenha vivido quatrocentos anos depoisde Herdoto, [Tito Lvio SM] tem os mesmos defeitos, mas no as mesmasqualidades. Ele igualmente um mau crtico; creio ser difcil determinar como equais fontes utilizou.6

    Um ano depois, Weber parecia seduzido pela historiografia para l deengajada de Treitschke, o controvertido sucessor de Ranke em Berlim: Acimade tudo, escreve ele em carta ao primo Fritz Baumgarten, estou lendo oprimoroso livro de Treitschke sobre a histria alem no sculo XIX, para mimum verdadeiro prazer. Weber afirma tratar-se de um livro muito difcil e que preciso um esforo altura (man muss sich gehrig anstrengen) a fim decompreender o contexto: isso vale principalmente para a primeira parte, naqual h uma concisa viso geral da histria da Alemanha at a Paz de Westflia.7

    significativo o entusiasmo do jovem Weber por esta obra, que, lanadanaquele mesmo ano, obtivera enorme sucesso e convertera-se no que umobservador chamou de o livro preferido dos patriotas alemes.

    Neste nterim, Weber conclui o ginsio e segue para Heidelberg, dispostoa seguir a carreira jurdica do pai. Por que razo optou por esta prola doSudoeste alemo? evidente que alm da fama de que j gozava suauniversidade em toda a Alemanha,8 Heidelberg era, por assim dizer, o seudestino natural: de l viera a famlia de Helene Weber, ali vivia ainda sua tiaHenriette Hausrath, irm de sua me, ali passara ele muitas de suas frias nainfncia, ali estudava seu primo Otto Baumgarten (ROTH 2001, p. 197-199).

    As cartas enviadas por Weber aos seus pais permitem-nos reconstruirparcialmente o que ento atraa o jovem estudante universitrio. Uma dadadisciplina s parece interess-lo quando abordada numa perspectiva histrica.Evidncia disso o fato de que as prelees sobre doutrina do direito romanode Otto Karlowa mal so mencionadas, enquanto que o curso de Ernst ImmanuelBekker sobre a histria do direito romano lembrado mais de uma vez emsuas cartas.9 Ainda assim, o curso criticado porque no histria, mas, em

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    6 Carta de 2/09/1878 a Fritz Baumgarten (JB, p. 11). Cf. tambm Marianne Weber (1989, p. 55).7 Carta a Fritz Baumgarten, 11/10/1879 (JB, p. 29).8 Segundo Erich Marcks (1911, p. 332-333) na dcada de 1870 os historiadores de Heidelberg rivalizavamem qualidade e fama com os de Berlim.9 Weber reclama por ter de assistir s aulas de Bekker logo depois das de Karlowa. Segundo oVorlesungsverzeichniss da universidade daquele semestre, o curso dirio de Karlowa ia das 9:00 s11:00h e das 12:00 s 13:00h; o de Bekker, tambm dirio, das 10:00 s 11:00h. Significa dizer queWeber assistia apenas a primeira metade da aula de Karlowa pela manh, a fim de poder acompanharo curso de Bekker. Dificilmente, buscava recuperar a hora perdida na sesso verpertina da preleodo primeiro, uma vez que no mesmo horrio (12:00-13:00h) frequentava o curso de Erdmannsdrffersobre a Histria da era das revolues. Cf. Anzeige der Vorlesungen welche im Sommer-Halbjahr1882 auf der Grossherzoglich Badischen Ruprecht-Carolinischen Universitt zu Heidelberg gehaltenwerden sollen. Heidelberg: Karl Gross, 1882, p. 4 e 11.

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    primeira linha, uma exposio do processo civil e criminal com poucosintermezzos histrico-jurdicos (JB, p. 41). Em carta me, escrita em 22 dejunho de 1882, Weber se diz alegre porque Bekker concluiu a parte sobredoutrina processual e finalmente [...] comeou a histria do direitopropriamente dita, pela qual eu j esperava h muito (JB, p. 57). De KunoFischer, assiste s prelees sobre Lgica e metafsica ou doutrina da cincia,e aprecia de modo especial a seo dedicada histria da lgica (JB, p. 41-42).10

    Trs historiadores tornam-se extremamente importantes para o estudantede direito Max Weber: Bernhard Erdmannsdrffer (Heidelberg), HermannBaumgarten (Estrasburgo) e Heinrich von Treitschke (Berlin).

    Os cursos de Bernhard Erdmannsdrffer em Heidelberg deixam-noentusiasmado.11 Em seu primeiro semestre, Weber assiste a suas preleessobre a Histria da era das revolues (1789-1815) e elogia o tratamentominucioso e exaustivo dado ao tema (JB, p. 46-47). No semestre seguinte,participa com dois outros colegas de um seminrio com Erdmannsdrffer, emque fazem a crtica da historiografia moderna. A Weber coube a apresentaode um trabalho em que colocou prova a fidedignidade dos relatos de Samuelvon Pufendorf com a utilizao de documentos. Estou ansioso para sabercomo ser a coisa, diz me antes da sua apresentao (JB, p. 63). Emfevereiro de 1883, encontramo-lo empenhado na concluso do trabalho escritodo seminrio, que classifica como muito interessante, especialmente porqueagora Erdmannsdrffer tambm est tratando do Renascimento so as maisagradveis horas da semana.12 Weber deve a estes encontros o seu primeirocontato com a obra de Ranke, a respeito do qual teceu o seguinte comentrio:

    Eu me aprofundei na leitura de diversos escritos de Ranke, precisamenteos seus dois primeiros: Histrias dos povos latinos e germnicos e Para acrtica dos historiadores modernos, sendo o ltimo um conhecido clssico(Standardwerk). Ambos tm um estilo to peculiar que a princpio eu noos queria ler, e se eu no conhecesse os fatos no estaria em condio decompreend-los. Sua linguagem lembra a do Werther ou do Wilhelm Meister.Infelizmente, estas duas obras, especialmente a segunda [de Ranke -SM], praticamente no so mais lidas (JB, p. 63-64).

    Por sorte, os exemplares destes dois livros foram preservados eencontram-se, hoje, sob a guarda do Max-Weber-Arbeitstelle da Academia deCincias da Baviera, em Munique. No obstante, sejam pouco numerosos ostrechos grifados, a maior parte concentra-se, precisamente, no famoso prefcio

    10 Ibidem, p. 8.11 Um dos mais diletos alunos de Droysen (agradecemos a Arthur Assis por esta informao),Erdmannsdrffer tambm exercera forte influncia sobre Eberhard Gothein, que, alguns anos antes,estudara em Heildelberg e viria a ser o sucessor de Weber na ctedra de economia poltica aps suademisso (MAURER 2007, p. 8). O epistemlogo e economista poltico Friedrich Gottl-Ottlilienfeld, peloqual Weber repetidas vezes expressou forte admirao, tambm se dizia discpulo de Erdmannsdrffer(GOTTL 1901, p. ii).12 Carta de 12/02/1883 (JB, p. 66).

  • s Histrias dos povos latinos e germnicos. Dos trechos grifados ousublinhados por Weber, eis os que parecem mais relevantes para a formaoda sua viso a respeito do trabalho histrico:

    Do propsito e do material (Stoff) emerge a forma. No se pode demandarde uma obra de histria a liberdade de composio (freie Entfaltung) queao menos a teoria busca em uma obra potica, e no sei se algum possaestar com a razo quando cr ter encontrado tal liberdade na obra dosmestres gregos e romanos. A exposio rigorosa dos fatos, por muitocondicionados e carentes de beleza que sejam, , indubitavelmente, omandamento supremo. [...] H para eles [os diversos modelos dehistoriografia - SM] um sublime ideal: o do evento em si mesmo, em suacompreensibilidade humana, em sua unidade, em sua plenitude (RANKE1874, p. vii-viii).13

    Que as lies do velho Ranke tiveram um valor duradouro para Weber,inclusive em sua fase intelectualmente mais madura, algo que se atesta comrelativa facilidade em seus ensaios de 1903 e 1904, respectivamente sobre omtodo histrico de Wilhelm Roscher e sobre a objetividade (WEBER 1988,p. 3-42, 214).14

    Voltemos ao nosso jovem estudante de direito. Em um balano de suasatividades, diz ter aprendido bastante no seminrio de Erdmannsdrffer,especialmente no campo do mtodo histrico. E elogia a estratgia desteprofessor de apresentar aos alunos a literatura histrica mais recente, o quelhe permitiu informar-se sobre as polmicas em que se envolveu o historiadorultramontano Johannes Janssen, as escolas histricas inglesas e os seguidoresde Buckle (JB, p. 71).

    Nesta poca, Weber viajava frequentemente a Estrasburgo, ondelecionava seu tio, o historiador Hermann Baumgarten, casado com sua tia Ida(irm de Helene Weber). Ele encontrara na companhia dos tios e dos primosFritz, Otto e Emmy uma espcie de segunda famlia. A ascendncia intelectual,religiosa e poltica dos Baumgarten sobre Weber amplamente reconhecida.15

    Entre Heidelberg, Estrasburgo e Berlim

    Em fins de 1882, portanto ainda no seu primeiro na universidade, temincio uma polmica entre Hermann Baumgarten e Treitschke, a propsito dosegundo volume da Histria da Alemanha, de autoria deste ltimo.16 Ter esta

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    13 O trecho destacado em itlico foi sublinhado a caneta por Weber.14 Esse se confrontar com o pensamento de Ranke no cessou sequer quando Weber transferiu-separa Munique, pouco antes de sua morte, j como um socilogo assumido (HANKE & HBINGER 2001,p. 323-335).15 A esse respeito, ver os livros de Marianne Weber (1989, p. 86ss) e Wolfgang Mommsen (1990, p. 4-5). Sobre a importncia de Baumgarten como espanista, cf. Sanchez-Blanco (1987).16 Poucas historiografias nacionais so to ricas no quesito polmica quanto a alem, a ponto de araiz -streit ter se tornado uma constante no campo intelectual deste pas. Tal belicosidade, que tantoincomodou Marc Bloch nos livros do medievalista de Georg von Below, provavelmente (Popperdecerto subscreveria esta hiptese) um dos segredos da vitalidade da historiografia alem daquelapoca. Em um livro que merece ateno, Seneda afirma que as polmicas cientficas eram um mtodode estudo para Weber (SENEDA 2008, p. 33). Trata-se, antes, de uma longa tradio na qual estavainserido. Nos ltimos anos, o estudo das polmicas historiogrficas adquiriu dignidade cientfica: cf. ovolume organizado por Elvert e Kraub (2003).

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    polmica contribudo de alguma forma para que Weber assumisse para si, comomisso, o preceito da neutralidade axiolgica? que Baumgarten voltava-se,sobretudo, contra o que chamou de pronunciada subjetividade do livro deseu antigo amigo Treitschke. Em uma srie de trs artigos publicados naCottasche Allgemeine Zeitung, no incio de dezembro de 1882, Baumgartenafirmou que Treitschke estava para a Prssia assim como a historiografiaultramontana para o Vaticano. A histria deixava de ser um fim em si mesmopara se tornar apenas um meio. Treitschke no se furtaria s paixes domomento, como a tarefa do historiador. Baumgarten acusa-o de empregarapenas fontes de arquivos prussianos mesmo para pocas em que a ustriativera muito maior expresso no plano internacional, dando ainda as costasaos arquivos de Munique e Stuttgart. Sua obra deveria ser chamada antes umahistria da Prssia do que uma histria da nao. Faltaria ao sucessor de Rankeem Berlim um amor imparcial verdade e justia ao estabelecer juzos(BAUMGARTEN 1883, p. v-vi).

    Em 15 de dezembro, Weber escreve sua me demonstrando saber dapolmica, mas ainda sem ter lido os artigos do tio. A carta evidencia oentusiasmo tanto de seu pai quanto de seu tio Adolf Hausrath (professor deHistria da Igreja e exegese do Novo Testamento em Heidelberg) pelo segundovolume da Histria da Alemanha.17

    A resposta de Treitschke apareceria, naquele mesmo dia, nos AnuriosPrussianos. Ele se esquiva da acusao de falta de imparcialidade com oargumento de que seu pedido para consultar os arquivos vienenses forarecusado, sem, porm, retrucar a contento todas as fragilidades apontadaspor Baumgarten. O debate intensifica-se nas semanas seguintes. Em janeiro,Baumgarten afirma que a viso de Treitschke sobre a relao entre a Prssia eo restante da Alemanha era to irresponsvel politicamente quanto falsahistoricamente.18 Enquanto jornais liberais como o Frankfurter Zeitungtomavam o partido do historiador de Estrasburgo, justamente Erdmannsdrffermanifestava-se inequivocamente a favor de Treitschke no jornal editado porGustav Freytag, Der Grenzbote.19 Weber escreve a seu pai na ocasio:

    Vocs devem ter lido o artigo de Erdmannsdrffer no Grenzbote, em que otio Hermann to duramente atacado. De fato, muito pouco de concreto demonstrado ali, e ele tem razo apenas quando se volta contra o tommuito agressivo do artigo [de Baumgarten SM].20

    17 Carta de 15/12/1882 (JB, p. 64).18 Apud Biefang (1996, p. 403).19 Treitschke escreve a Erdmannsdrffer, em 12/12/1882, dizendo que no teria escrito a Histria daAlemanha caso soubesse que os discpulos de Gervinus reagiriam daquela forma; e pede ao amigoque apresente ao pblico uma avaliao justa de seu livro (CORNICELIUS 1920, p. 545-546). Parauma boa introduo historiografia de Gervinus, ver o estudo de Julio Bentivoglio (2010a, p. 7-22).20 Carta de 12/02/1883 (JB, p. 68).

  • Os demais professores de Heidelberg estariam tomados por umsentimento de surpresa e indignao. Weber parece dividido entre o tio e ohistoriador que o fascinara quando ainda era um adolescente de 15 anos. Elereprova tanto um quanto o outro pelo tom e pela direo que a polmica haviatomado.21

    O establishment acadmico no viu com bons olhos a cruzada deBaumgarten. Eram tempos de efuso nacionalista e, verdade seja dita, Treitschkeno era um esprito to pequeno quanto a historiografia posterior PrimeiraGuerra pretendeu que fosse.22 J em fins de janeiro, ele recebe a solidariedadede Henrich von Sybel, que qualifica seu livro de obra-prima.23 Em fevereiro,Johann Gustav Droysen escreve a seu filho Gustav que a polmica ameaavajogar nossa historiografia na lama. Para o autor da Historik, tudo isso extremamente desagradvel, e Baumgarten contribuiu para que uma obra que,mesmo sem ser perfeita, e que, entretanto, foi grandiosamente concebida efundamentada em ampla pesquisa, perca grande parte de sua influncia.24

    Em uma memria publicada depois da morte de Treitschke, Adolf Hausrath(o outro tio de Weber) afirma que Baumgarten exigia objetividade absoluta dequem quer que fosse, no obstante tivesse tambm os seus paradoxos.Quaisquer exageros ou afirmativas mais arriscadas em uma obra histrica eramconsiderados insuportveis por ele. Baumgarten desenvolvera uma aversoapaixonada em relao burocracia prussiana. Sybel chegara ao ponto deconsiderar patolgica sua tendncia a condenar moralmente as opiniescontrrias s suas. Para Hausrath (1914, p. 128-130), ningum o consideravaum historiador do mesmo nvel que Treitschke.25

    Baumgarten sai do episdio isolado. Ele comete um ltimo erro ao colocara Historische Zeitschrift sob suspeita de favorecer Treitschke na contenda (oque no era exatamente infundado). Os editores teriam suprimido trechoscrticos em relao a Treitschke de um artigo de seu amigo e aliado AlfredStern. No nmero de julho de 1883, a revista responde publicamente aBaumgarten repudiando suas acusaes e afirmando que ele movia umaverdadeira guerra de extermnio contra Treitschke. No ano seguinte, umacomisso formada, entre outros, por Sybel, Dietrich Schffer e Gustav Schmollerconcede a Treitschke o prmio Verdun, o mais importante na rea de histria

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    21 Vale lembrar que, entre 1879 e 1881, Treitschke havia confrontado-se, a propsito da chamadaquerela do antissemitismo, com Theodor Mommsen um erudito que Weber tinha em altssimaconta. impossvel imaginar que, sendo prximo de ambos e morando na capital do Reich, Weber notenha acompanhado de perto o embate entre os dois gigantes. Sobre o Antisemitismusstreit, ver oartigo de Malitz (2005, p. 137-164).22 No estamos certos de que Metz (2005, p. 99) faa justia a Treitschke quando afirma que ele seriamais um homem poltico que um historiador. Um nico trabalho, at onde estamos informados,quebrou o tabu em torno deste autor, normalmente visto pelo prisma de seu exacerbado nacionalismoe suas declaraes antissemitas, descobrindo nele tambm o historiador digno de ser lido: o deGerhards (2009).23 Carta de 22/01/1883 (Cornicelius, 1920, p. 547-548).24 Apud Biefang (1996, p. 413).25 Ao leitor certamente no ter passado desapercebido o quanto este retrato de Baumgarten fazlembrar o Weber das polmicas com Schmoller nos encontros da Associao para a Poltica Social,tema que exploramos em outra oportunidade (MATA 2010b).

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    da Alemanha. Era a bno oficial que faltava chamada Escola Prussiana.26

    Este fato, acrescido da morte de Ranke, ocorrida apenas dois anos mais tarde,demarca o fim de uma era na histria da historiografia alem.

    Em janeiro de 1884, Weber prestava o servio militar em Estrasburgo, eaproveita a ocasio para assistir a um seminrio de Baumgarten: O seminriodo tio continua extremamente interessante para mim; ns ainda nos ocupamoscom a crtica dos historiadores franceses, espanhis, e, sobretudo, dos italianosda poca do Renascimento e que dele tratam.27

    Em novembro do mesmo ano, de volta a Berlim, ele tem a oportunidadede se ver frente a frente com Treitschke. Weber assiste a sua preleo sobreEstado e Igreja, a qual classifica como propagandstica e agitadora.28 primeira vista, estas palavras parecem explicar por que Treitschke seria evocado,vinte e nove anos depois, como um exemplo daquele tipo de erudito que Weber(1964, p. 104) considerava incapaz de sacrificar as prprias valoraes prticas(juzos de valor) em seu trabalho de pesquisa. Todavia, a posio de Weber,na dcada de 1880, estava longe de ser a mesma que ele defenderia depois deassumir o credo da neutralidade axiolgica. como se o estudante de direito,fascinado pela poltica e tambm por uma viso especificamente histrica domundo, tivesse em Ranke e simultaneamente em Treitschke os seus modelos.

    Baumgarten, talvez, representasse uma mediao entre estes doisuniversos antagnicos: vinculado aos historiadores politicamente engajados desua gerao, ele tinha mantido relaes com o grupo de Droysen, Treitschke eSybel (que se impressionara com sua Histria da Espanha do incio da RevoluoFrancesa aos nossos dias). Por outro lado, como Ranke, a quem citava comfrequncia, Baumgarten no rompera completamente com o primado da polticaexterna e mantivera-se fiel ao projeto de investigar cientificamente o passadosem, porm, ter a pretenso de abarc-lo em sua totalidade (MARCKS 1894).

    Em fevereiro de 1884, Weber estava entretido com o livro La socit deBerlin, da autoria de um certo Conde Vasili. O autor, protegido sob talpseudnimo, pois certamente se trata de um diplomata estrangeiro, demonstraestar familiarizado com as altas rodas polticas e sociais da capital. No geral, orelato bastante duro em relao famlia real, ao chanceler e aos partidospolticos (a ponto de, afirma Weber, ter sua edio confiscada). Richard Wagner apresentado como uma espcie de duplo musical de Bismarck. Um dos ltimoscaptulos, porm, reserva elogios para a cincia alem. Dificilmente o seguintetrecho passou desapercebido a Weber:

    26 Com o recente artigo de Bentivoglio (2010b), de longe a melhor viso de conjunto disponvel emlngua portuguesa sobre a Escola Prussiana, decretou-se o fim, entre ns, da era das generalizaesgrosseiras sobre a historiografia alem do XIX. Nos afastamos de Bentivoglio apenas por sua tendnciaa incluir historiadores com clara atuao poltica liberal entre os prussianos designao que,evidentemente, no se pode aplicar a Gervinus, Baumgarten ou Alfred Stern. No quadro apresentadoao fim de seu texto, Bentivoglio confunde (p. 45, coluna referente a Stern) a polmica entre Treitschkee Baumgarten com a que opusera Treitschke e Mommsen. Sobre os prussianos, ainda merece serconsultado o livro de Georg Iggers (1997, p. 120-162).27 Carta de 19/01/1884 (JB, p. 93).28 Carta de 08/11/1884 a Baumgarten (JB, p. 145).

  • Quanto aos eruditos, aos literatos, h alguns notveis em Berlim. Semfalar de Mommsen, de Ranke, de Helmholtz, quase todos os professoresda Universidade so pessoas de grande mrito e do mais alto valor, quetrabalham pelo trabalho, para fazer avanar a cincia ou para esclareceros pontos ainda sombrios da histria, e no pelo triunfo de suas teoriasou de sua opinio pessoal. Estes corajosos pioneiros do progresso merecemnosso inteiro respeito e nossa admirao mais sincera, pois so os nicosde seu pas que no esto cegos pelas falsas ideias de glria nacional,que admitem o valor de todos os povos da terra e que, sob o novo imprioalemo, seus exrcitos, suas conquistas, seu soberano e seu todo-poderoso ministro, vem uma coisa muito maior, ainda mais nobre paraeles, mais sublime, porque ela a nica na terra (ici-bas) que o Eternocriou sua imagem: a humanidade (VASILI 1886, p. 236).

    Percebe-se que Vasili no estava devidamente atualizado, do contrrioteria visto tambm em Treitschke um duplo historiogrfico de Bismarck epercebido que sua elogiosa imagem de uma cincia histrica cosmopolita (a deMommsen e de Ranke) no mais se adequava realidade.29

    Em 1885, Baumgarten publica sua Histria de Carlos V, e logo envia umexemplar ao sobrinho com uma curta dedicatria: Ao meu querido Max, 21/04/85.30 Em julho, possivelmente depois de concluir a leitura do livro, Weber,agora com 21 anos, escreve uma longa carta a Baumgarten em que contrapesua historiografia de Treitschke. Sua inteno , claramente, muito mais a dequem busca estabelecer uma mediao do que a de quem se v compelido afazer uma escolha.

    , mais uma vez, revelador que uma historiografia que trata de Carlos V euma outra, que trata da histria contempornea (neuste Zeit), sejamvistas por questo de princpio como duas coisas inteiramente distintas,das quais uma seria compreendida como cientfica e a outra como poltico-didtica. Em todo o caso, revela-se exatamente no fato de se quererseparar completamente estes dois lados e de se ver neles coisas totalmentediferentes, que no sem cometer uma injustia que se nega quelaforma de historiografia (a de Treitschke) as qualidades da objetividade eda pura investigao cientfica.31

    Essa passagem demonstra que o jovem acadmico no v noengajamento de Treitschke qualquer impedimento a que se possa falar emcientificidade da histria. Para ele, preocupaes poltico-didticas no soincompatveis com o rigor acadmico. Com efeito, possvel que poucas coisastenham perturbado tanto o Weber daqueles dias quanto a necessidade dearticular pensamento e ao. At que ponto ele chegou a formular esta questode forma clara para si mesmo, permanece uma questo em aberto. Como amaior parte de seus contemporneos, e a despeito de tudo, a historiografia de

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    29 Tentamos desfazer alguns dos mitos correntes sobre a historiografia de Ranke em um pequenoensaio publicado h pouco (MATA 2010a). Cf. tambm nossa introduo ao documento historiogrficopublicado neste nmero de Histria da Historiografia.30 Exemplar sob guarda do Max-Weber-Arbeitsstelle da Academia de Cincias da Baviera, em Munique.31 Carta de 14/07/1885 a Baumgarten (JB, p. 175).

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    Treitschke fazia seus olhos brilharem (mais tarde ele chamar a isso:carisma).32 O preceito da objetividade esbarrava naquilo que ele, por umlargo tempo, colocou acima de qualquer outra coisa: a nao.

    preciso ter claro que a objetividade era um preceito para Weber. S nose pode dizer que ela se tornara para ele, naquela fase de sua vida, um preceitoabsoluto. Mais que na investigao e na exposio do passado, o exemplo deTreitschke o convence de que a objetividade um requisito fundamental dactedra. Em 1887, de fato, ele escreve a Baumgarten uma carta com sperascrticas ao historiador berlinense. Wolfang Mommsen (1990, p. 9), o primeiro ater a exata noo da importncia das afinidades entre estes dois homens,afirma, a respeito desta carta, que Weber rejeitava enfaticamente a maneiracomo Treitschke fundia poltica e cincia. Isso parece certo, mas s at certoponto. Mommsen no atenta para o fato de que o jovem estudante faz ressalvasao professor, no ao historiador e menos ainda ao escritor: junto com acarta em questo, ele envia ao tio um antigo volume de poemas de Treitschke.Weber diz encontrar certa alegria na sua leitura, que conteria as ideiasessenciais (den wirklich idealen Grundzug) que nunca se perdem completamenteneste homem, em tantos aspectos infeliz, mesmo em seus maiores erros einjustias.33

    Uma comunidade de destino

    Um estudo pormenorizado dos dois primeiros trabalhos de flego deWeber (suas teses de doutorado e livre docncia), ambos essencialmentehistricos, no poder ser realizado neste artigo. Tratava-se inicialmente deidentificar algumas das figuras que marcaram o incio da trajetria intelectualdaquele jurista formado numa perspectiva histrica expresso que Weberusar mais tarde, em sua sociologia do direito.34

    Em um certo sentido, a concluso no poderia ser mais banal: Weber foi,nem mais nem menos que qualquer contemporneo seu, o resultado dos estilosde pensamento histricos ento vigentes. Ao fim de seus estudos universitrios,rigorosamente nada permite prever o advento daquele paladino do apuroconceitual, o futuro descobridor das origens religiosas de nossa civilizao dotrabalho e do processo de racionalizao ocidental. O jovem jurista que vimosem processo de gestao escrever seu doutorado sobre o direito comercialmedieval sem qualquer preocupao de natureza terica, alis nem mesmoconceitual. Uma carta desta poca atesta sua desconfiana em relao aosconceitos, em um esprito que em nada destoa do clebre Dilogo poltico deRanke. Em maro de 1886, pouco tempo antes da concluso de seus estudos,escreve de Gttingen a seu irmo Alfred a respeito de suas impresses sobre a

    32 Na poca, Treitschke tentava reaproximar-se ao pai de Weber. Carta de 14/07/1885 a Baumgarten(JB, p. 174).33 Carta de 25/04/1887 (JB, p. 232).34 Na verso brasileira, historisch gebildeten Juristen foi traduzido como juristas com especializaohistrica (WEBER 1999, p. 132).

  • Vida de Jesus de David Friedrich Strauss, livro que Alfred acabara de ler.35

    Strauss afirmara que a maior parte da Bblia pouco ou nada tinha de histrico,devendo antes ser entendida como uma sucesso de relatos mitolgicos.

    Eis Weber, aos 22 anos, discorrendo sobre as relaes entre mito e histria,um problema que ocuparia algumas das mais importantes cabeas do sculoXX.

    Analisado cuidadosamente, este conceito, na verdade, no quer dizerrigorosamente nada e de forma alguma esclarece a coisa, nem contribuipara explicar a conexo de Jesus enquanto personalidade concreta com oCristo da histria, e, em ltima anlise, no em absoluto aplicvel stransformaes do esprito e cultura humanos de que tratamos aqui. Defato, o mito se origina numa regio completamente diferente do espritohumano que as vises que abalavam os excitados espritos dos primeiroscristos. O mito , por seu prprio conceito, um produto da fantasiapotica de um povo artisticamente dotado e que elabora imagens,gradativamente, atravs de longos perodos de tempo; ali onde estausente o poder de criao artstica o mito no encontra seu cho. Entreos romanos ele est reduzido a uma importncia mnima, entre os germanosest limitado por certa rudeza, e entre os judeus, num sentido prprio,ele sequer pode ser encontrado. Mas os primeiros cristos tinham coisasmuito mais importantes a fazer que se dedicar elaborao potica desuas percepes religiosas da natureza [...]: o que se manifestou aqui foiuma relao exatamente inversa da criao de mitos (JB, p. 206-208).

    Coloquemos entre parntesis tudo o que h de taxativo e ingnuo nestaspalavras, e limitemo-nos ao essencial: ao fim e ao cabo, para Weber somenteos gregos tinham mitos no sentido estrito do termo. Um nominalismoterminolgico tipicamente historicista.

    tudo? Certamente que no. Dois ltimos aspectos merecem serressaltados, pois neles que se pode, legitimamente, falar em continuidadesna trajetria intelectual de Max Weber.

    O que significava a histria para ele? A resposta a esta questo no difcil. Mesmo depois de passar da jurisprudncia economia poltica e assumirsua primeira ctedra, este autoproclamado discpulo da escola histrica(WEBER 1991, p. 71) jamais se afastou de uma forma especificamente genticade abordar os problemas econmicos e sociais. Algo, alis, que no passoudesapercebido queles que dele eram prximos. Robert Liefmann, que teve oprivilgio de ser seu doutorando e de assistir suas primeiras prelees emFreiburg, declarou que Weber era ento um puro historiador (MWG III/1, p.165). Else Jaff afirmou, em uma preciosa entrevista ao pesquisador japonsHideharu Ando, que os cursos de Weber em Heidelberg eram essencialmente

    uma histria do desenvolvimento econmico, muito minuciosamente emseus aspectos polticos tambm. E, claro, histria agrria e econmica.Mas no de uma forma demasiado terica. Sempre acho que se Maxviesse a uma preleo de economia poltica hoje em dia, ele no entenderiaabsolutamente nada! (apud ANDO 2003, p. 598)

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    35 Sobre a importncia das leituras teolgicas para o jovem Weber, cf. Mata (2011).

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    H, enfim, uma outra continuidade importante. Trata-se da precocesensibilidade de que Weber foi dotado para perceber a dimenso trgica da vida a sua e a dos outros. Na ocasio em que envia a Baumgarten o livro depoesias de Treitschke, ele se diz cativado pela beleza verdadeiramente lricade algumas delas; em especial a intitulada Krankentrume, que se refere suadoena, realmente comovente.36 Treitschke, como se sabe, j na suajuventude era um homem praticamente surdo. Uma das passagens deste poema composto muito antes de seu autor conquistar um lugar no panteo dosheris culturais prussianos fala de sua surdez e da compensao que,imaginava, talvez lhe reservasse o futuro. Estas palavras encerravam algo depremonitrio no s para ele, mas tambm para seu jovem admirador. Em1897, pouco depois de ser nomeado para Heidelberg, a vez de Weber seracometido por uma longa e extenuante crise nervosa. Em 1903, aps sucessivosperodos de licena, viagens, estadias em sanatrios e recadas, ele finalmenteabdica da ctedra, aos 39 anos. O que aproximava Treitschke e Weber no eraapenas o seu culto comunidade poltica; era tambm, de certa forma, umacomunidade de destino.

    Zum Riesen wuchs der lang bekmpfte Gram,und frech und lsternd flucht ich meinem Gotte:[...]Du nahst der Welt mit einer Welt von Liebe: Dein Zauber ist das muthig freie Herz Wrs mglich, da sie dir verschlossen bliebe?Nein, hren wirst du, was nicht Einer hrt,Im Menschenbusen die geheimsten Tne:Verstehen wirst du, was den Blick verstrtUnd was die Wangen frbt mit heller Schne.Und schaffen sollst du, wie der Beste schafft:Des Muthes Flammentrstung sollst du singen,In kranke Herzen singen junge Kraft.(TREITSCHKE 1857, p. 100, 102-103)

    A mgoa h muito combatida torna-se um gigante,E, ousado e blasfemo, amaldio meu Deus:[...]Tu te aproximas do mundo com um mundo de amor: Teu poder o destemido e livre corao Seria possvel que o mundo permanecesse fechado para ti?No: ouvirs o que ningum capaz de ouvir,Os mais secretos rudos no peito dos homens:Compreenders o que turva a visoE tinge as faces com luminosa beleza.E deves criar como criam os melhores:Deves cantar a inflamada admoestao da coragem,E novas foras ao corao enfermo.

    36 Carta de 25/04/1887 (JB, p. 233).

  • O enfoque que empregamos neste artigo foi, talvez, mais biogrfico quepropriamente historiogrfico, mas no o caso de nos desculparmos por isso.O que um homem seno suas histrias? (SCHAPP 2005)

    Procuramos ter demonstrado a que ponto Max Weber foi profundamentemarcado por aquela mesma perspectiva historicista da qual, para muitos, eleteria sido um dos maiores adversrios. Importa relativamente pouco que, quelaaltura de sua vida, ele no tivesse ainda se decidido entre dois dos cones dahistoriografia alem do XIX: Treitschke e Ranke (aqui tambm representado,at certo ponto, por seu tio Baumgarten).37 Depois de passar por Heidelberg,Gttingen e Berlin, estes trs templos da cincia histrica oitocentista, depoisde ter sido aluno de Erdmannsdrffer, Dove e Knies, depois de gozar de umconvvio relativamente prximo com Mommsen, difcil imaginar que eleabdicasse daquele adjetivo que sempre, sempre, retorna em seus textos:historisch. Max Weber comeou a tornar-se o Max Weber que conhecemos nobero esplndido do historicismo alemo.38

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    Schriften 1889-1894. Hrsg. von Gerhard Dilcher und Susanne Lepsius.Tbingen: Mohr Siebeck, 2008.

    MWG III/1 Allgemeine (theoretische) Nationalkonomie. Hrsg. vonWolfgang J. Mommsen in Zusammenarbeit mit Cristof Judenau, Heino H.Nau, Klaus Scharfen und Marcus Tiefel. Tbingen: Mohr Siebeck, 2009.

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    37 Deixamos propositadamente de lado, aqui, a importncia de Burckhardt para Weber, por entender queo tema merecer aprofundamento em outra ocasio. A respeito, ver Hennis (2003, p. 38-42).38 Desnecessrio dizer que no partilhamos das opinies mais difundidas, todas negativas em maiorou menor grau, a respeito do historicismo. Um esforo sistemtico de descriminaliz-lo ainda estpara ser empreendido. Duas tentativas nesse sentido: Rothacker (1944, p. 264-278) e Mata (2008, p.49-62).

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