contrato de abertura de crédito bancário execução judicial

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PARECER O CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO E SUA EXECUÇÃO JUDICIAL Prof. Renato Seixas 1 INTRODUÇÃO A execução judicial dos contratos de abertura de crédito bancário tem suscitado muitas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Apesar de ter sido editada Súmula pelo Superior Tribunal de Justiça referente a essa matéria, o debate está longe de terminar. Por um lado, há a necessidade de assegurar aos bancos instrumentos de execução que lhes permitam a rápida recuperação dos valores utilizados pelos clientes em contratos de abertura de crédito bancário. Por outro lado, constata-se manifesto abuso por parte de muitas instituições bancárias, no sentido de promoverem execução contra seus clientes sem terem, para esse fim, constituído um título executivo extrajudicial legítimo e que retrate crédito líquido, certo e exigível. Nesse contexto, o presente trabalho pretende examinar o contrato de abertura de crédito bancário, sua execução judicial e as diferentes teses que têm sido apresentadas tanto em doutrina quanto em jurisprudência a respeito da matéria. (I) REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS BANCÁRIOS A discussão a respeito das características e natureza jurídica do contrato de abertura de crédito bancário tem 1 Mestre em integração da América Latina pelo PROLAM-USP, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP, da Faculdade de Direito do Centro Universitário FMU, da Faculdade de Direito da Universidade Ibirapuera e dos cursos de pós graduação em Direito Empresarial das faculdades de Direito da PUC/SP, FMU, Universidade Mackenzie e Universidade Estadual de Londrina. 1

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PARECER

O CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO E SUA EXECUÇÃO JUDICIAL

Prof. Renato Seixas1

INTRODUÇÃO

A execução judicial dos contratos de abertura de crédito bancário tem suscitado muitas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Apesar de ter sido editada Súmula pelo Superior Tribunal de Justiça referente a essa matéria, o debate está longe de terminar. Por um lado, há a necessidade de assegurar aos bancos instrumentos de execução que lhes permitam a rápida recuperação dos valores utilizados pelos clientes em contratos de abertura de crédito bancário. Por outro lado, constata-se manifesto abuso por parte de muitas instituições bancárias, no sentido de promoverem execução contra seus clientes sem terem, para esse fim, constituído um título executivo extrajudicial legítimo e que retrate crédito líquido, certo e exigível.

Nesse contexto, o presente trabalho pretende examinar o contrato de abertura de crédito bancário, sua execução judicial e as diferentes teses que têm sido apresentadas tanto em doutrina quanto em jurisprudência a respeito da matéria.

(I) REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS BANCÁRIOS

A discussão a respeito das características e natureza jurídica do contrato de abertura de crédito bancário tem que ser feita, tecnicamente, mediante enquadramento desse contrato no seu regime jurídico adequado.

O Sistema Financeiro Nacional brasileiro está organizado pela lei 4595/64 e contém diferentes espécies de instituições financeiras, cada qual desempenhando uma função específica dentro do aludido sistema. Em especial, interessa aqui examinar as características mais importantes das entidades que desenvolvem “atividades bancárias”, que são os chamados bancos comerciais e os bancos múltiplos. Destes últimos – os bancos múltiplos – interessa aqui examinar apenas sua “carteira comercial”.

Os bancos comerciais estão autorizados, por lei, a desenvolver atividade de extrema relevância, qual seja, a expansão da oferta monetária e de crédito. Esses bancos podem, pois, criar moeda, no sentido de que realizam atividade que aumenta a disponibilidade de moeda no sistema econômico sem que seja preciso produzir, fisicamente, maior quantidade de papel moeda. É importante descrever, mesmo que sumariamente, os aspectos mais importantes dessa relevantíssima atividade dos bancos comerciais.1 Mestre em integração da América Latina pelo PROLAM-USP, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP, da Faculdade de Direito do Centro Universitário FMU, da Faculdade de Direito da Universidade Ibirapuera e dos cursos de pós graduação em Direito Empresarial das faculdades de Direito da PUC/SP, FMU, Universidade Mackenzie e Universidade Estadual de Londrina.

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Primeiramente, é preciso fixar o conceito de poupança. Cada sujeito integrante de um certo sistema econômico tem uma determinada riqueza patrimonial, não importando se muito grande ou se muito pequena. Esse sujeito usa essa riqueza para satisfazer suas necessidades econômicas e também para produzir novas riquezas econômicas. Portanto, cada indivíduo usa sua riqueza para consumir bens econômicos e para produzi-los. Quando um indivíduo decide se abster de realizar um consumo presente, deixa evidentemente de satisfazer uma necessidade econômica que tem no presente. Essa conduta de abstenção chama-se poupança.2 A razão essencial pela qual um indivíduo decide poupar (isto é, decide abster-se de um consumo presente) é sua pretensão de poder dispor no futuro da riqueza poupada. A poupança representa repressão ao consumo presente para tornar possível o consumo futuro. Quando o indivíduo poupa sua riqueza presente para usá-la, também no presente, numa atividade produtiva com a qual espera aumentar sua riqueza no futuro, diz-se que tal indivíduo realizou um investimento.3 Quer se trate de poupança propriamente dita, quer de investimento, observa-se que em ambas as hipóteses o indivíduo considerado absteve-se de realizar consumo presente, de maneira a ter: (i) riqueza que lhe garanta a possibilidade de consumir no futuro; ou (ii) recursos disponíveis para investir em atividades econômicas que não só lhe assegurem a possibilidade de consumo futuro, mas que também lhe aumentem a riqueza futura. Nesses dois casos, pode-se dizer que tal indivíduo tem riqueza disponível presente e que está disposto a suportar o sacrifício de não realizar atos de consumo presentes para poder consumir no futuro ou para aumentar sua riqueza e capacidade de consumo futuros. Embora os conceitos de poupança e de investimento sejam distintos, como visto, neste trabalho usa-se o vocábulo poupança para designar a disponibilidade presente de riqueza econômica que um sujeito tem para poupar ou para investir.

Quando o Sistema Financeiro de um país apresenta um certo grau mínimo de confiabilidade e eficiência, os diversos sujeitos econômicos tendem a depositar suas respectivas poupanças nas entidades bancárias e, mais especificamente, nos bancos comerciais ou múltiplos. Assim, os bancos mencionados fazem esforços no sentido de atrair cada um desses poupadores para que depositem nos mesmos bancos a poupança disponível. Cada vez que um poupador deposita sua poupança num banco comercial ou múltiplo, diz-se que o banco realizou uma operação de captação ou operação passiva. Nesse caso, o banco tomou empréstimo de cada depositante poupador que realizou um depósito de poupança naquele banco. Portanto, o banco terá que restituir ao depositante a poupança que houver recebido deste, com ou sem acréscimos, conforme dispuser o contrato celebrado entre ambos. O depositante é credor do banco e este é devedor do empréstimo. Daí o nome: operação passiva do banco.

Assim, os bancos comerciais ou múltiplos captam, por meio de operações bancárias passivas, os recursos financeiros de poupança popular. Os recursos assim captados serão investidos pelo banco. O banco se abstém de realizar consumo presente e prefere usar os recursos captados em investimentos, de maneira a ampliar sua capacidade de consumo e riqueza futuras. Por isto, o banco empresta parte de tais recursos a outros sujeitos econômicos que deles precisam para suas respectivas

2 NAPOLEONI, Claudio. Curso de economia política. Rio de Janeiro, Graal, 1981, p. 36.3 NAPOLEONI, op. cit., p. 36.

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atividades econômicas e, ainda, que estejam dispostos a pagar juros ao banco para terem a disponibilidade presente desses recursos. Nessa hipótese, diz-se que o banco realizou operação bancária ativa, porque tornou-se credor de um empréstimo que fez ao tomador de seus recursos disponíveis. Com isto, o banco espera: (i) receber de volta, no futuro, os recursos emprestados, com os acréscimos pactuados com o tomador de empréstimo; (ii) dispor, no momento adequado, de recursos necessários para restituir o valor que ele – banco – tomou emprestado de cada poupador que fez depósito de poupança naquele banco; e (iii) dispor, no futuro, de um aumento de riqueza, correspondente à diferença entre o que ele, banco, tiver recebido nas suas operações ativas e o que houver pago em suas operações passivas.

Todavia, a articulação das operações bancárias passivas e ativas tem efeitos mais complexos que os acima mencionados. Cada vez que um indivíduo recebe empréstimo de um banco, passa a ter uma riqueza adicional disponível para poupança ou para investimento, ou ainda para transferir esses recursos a um outro sujeito, como por exemplo para alguém que seja seu credor. Portanto, esse sujeito (ou a pessoa para quem ele vier a transferir os recursos) tende a depositar essa riqueza disponível, essa “poupança”, num banco comercial ou múltiplo. Se proceder assim, esse sujeito estará fazendo um “empréstimo” para o banco recebedor do depósito (estará contratando uma operação bancária passiva). Esse banco, por sua vez, poderá usar parte desses recursos fazendo outro empréstimo para alguém (poderá realizar, então, outra operação ativa). Isto evidencia que, sobre um mesmo valor depositado num banco comercial ou múltiplo, é possível que esse banco realize diversas operações passivas e ativas. Um exemplo prático certamente deixará esse mecanismo muito claro.

Imagine-se que um sujeito “A” disponha de uma poupança de R$ 100,00 e a deposite no banco “X” (foi realizada uma operação passiva pelo banco, em que “A” é credor de “X”). Esse banco, no futuro, deverá restituir ao sujeito “A” os R$ 100,00 que recebeu em depósito. O banco “X”, portanto, passa a ter disponibilidade desses R$ 100,00 entre a data em que recebeu o depósito e a data em que restituirá aquele valor ao seu cliente “A”. Imagine-se que esse período seja de 30 dias. Durante esse período, o banco “X” empresta ao seu cliente “B” o valor de R$ 100,00, que deverá ser restituído ao banco em 30 dias, com juros de 5% (foi realizada uma operação ativa pelo banco, em que “X” é credor de “B”). Portanto, o sujeito “B” restituirá ao banco “X”, em 30 dias, o valor total de R$ 105,00. Esse sujeito “B”, recebendo os R$ 100,00 que lhe foram emprestados, emite um cheque de R$ 100,00 em favor do sujeito “C”, que também é cliente do banco “X” e, então, “C” deposita esses R$ 100,00 em sua conta (foi realizada mais uma operação passiva pelo banco, em que “C” é credor de “X”). Nesse contexto, o banco “X”, sabendo que seu cliente “C” só resgatará o depósito de R$ 100,00 em 30 dias, passa a ter disponibilidade desse valor pelo mesmo período. Assim, tendo em vista essa disponibilidade de R$ 100,00 por 30 dias, o banco “X” empresta R$ 100,00 ao seu cliente “D”, valor esse que deverá ser restituído ao banco em 30 dias, com juros de 5% (foi realizada mais uma operação ativa pelo banco, em que “X” é credor de “D”). Portanto, o banco “X” receberá de seu cliente “D” R$ 105,00 em 30 dias. Esse cliente “D” emite um cheque em favor de “E”, que também é cliente do banco “X” e, assim, “E” deposita o cheque no banco “X” (foi realizada mais uma operação passiva pelo banco, em que “X” é devedor de “E”). O banco “X”, sabendo que seu cliente “E” só resgatará o depósito de R$ 100,00 em 30 dias, passa a ter disponibilidade desse valor pelo mesmo

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período. Assim, tendo em vista essa disponibilidade de R$ 100,00 por 30 dias, o banco “X” empresta R$ 100,00 ao seu cliente “F” à taxa de juros 5% ao mês, realizando com este mais uma operação ativa, em que “X” é credor de “F”. Logo, o banco “X” receberá de seu cliente “F” o valor de R$ 105,00 em 30 dias. E o encadeamento das operações poderia continuar. Observe-se, então, que o banco “X” dispunha, inicialmente, de apenas R$ 100,00, que recebera do cliente “A”. Com lastro nesse depósito de R$ 100,00, o banco “X” fez um total de empréstimos de R$ 300,00 (R$ 100,00 para o cliente “B”, R$ 100,00 para o cliente “D”, R$ 100,00 para o cliente “F”). Em decorrência de suas operações ativas, o banco “X” receberá juros no montante de R$ 15,00 (R$ 5,00 do cliente “B”, R$ 5,00 do cliente “D” e R$ 5,00 do cliente “F”). Os devedores de empréstimos pagarão ao banco “X” o valor total principal de R$ 300,00. Cumprindo suas operações passivas, o banco “X” restituirá aos seus clientes depositantes o valor total de R$ 300,00 (R$ 100,00 para o cliente “A”, R$ 100,00 para o cliente “C”, R$ 100,00 para o cliente “E”).

O mecanismo acima descrito evidencia como é possível para os bancos comerciais ou bancos múltiplos expandir a oferta monetária ao infinito a partir de um único depósito recebido. Se não houvesse sistemas de controle nessas operações, os riscos nelas envolvidos seriam extremamente graves. Bastaria que um único tomador de empréstimo descumprisse sua obrigação de pagamento em face do banco para que a inadimplência ocorresse em cadeia. Para evitar ou minimizar tais riscos, a legislação estabelece limites máximos dentro dos quais cada banco deve operar. Assim, por exemplo, para cada R$ 100,00 recebidos em depósitos, o banco só está autorizado a emprestar R$ 60,00. Sobre esse depósito de R$ 60,00, o banco só está autorizado a emprestar R$ 40,00 e assim por diante. Dessa maneira, uma parte de cada depósito recebido pelo banco é retida e depositada no Banco Central do Brasil (BACEN). Esses valores retidos são chamados de depósitos compulsórios ou também de encaixes obrigatórios. Além disso, se fosse possível aos bancos fazer os sucessivos empréstimos sem a dedução dos depósitos compulsórios, haveria muito dinheiro (mesmo que escritural) circulando no sistema econômico. O excesso de moeda provoca aumento de preços e, em consequência, aumento de taxas inflacionárias. Por isto, os depósitos compulsórios funcionam também como antídoto para o excesso de moeda na economia, evitam o aumento de preços e a elevação da inflação.

Esses aspectos todos mostram como é muito importante que a atividade bancária seja submetida a um regime jurídico especial. Logo, os contratos bancários em geral e, em particular, o contrato de abertura de crédito bancário, precisam ser analisados e compreendidos a partir das normas legais e regulamentares que disciplinam o funcionamento do SFN e dos bancos comerciais e bancos múltiplos. Disto resulta que a atividade mercantil bancária está sujeita, atualmente, a intenso processo de intervenção estatal na disciplina contratual dos diversos contratos bancários conhecidos. Esses contratos estão submetidos, pois, a um regime jurídico especial. Por causa disto, há quem sustente a existência de um ramo autônomo do Direito, denominado Direito Bancário, dadas as particularidades que tal regime jurídico apresenta.

Tais considerações são importantes porque as principais atividades bancárias decorrem de empréstimos e financiamentos. Os conceitos dessas duas figuras (empréstimos e financiamentos) devem ser fixados para que se possa bem compreender as implicações práticas e jurídicas que eles apresentam.

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O empréstimo tem conceito jurídico preciso. Trata-se da situação em que alguém, titular de um certo objeto jurídico, transfere seu uso temporário para outra pessoa, para fim específico ou não, de modo oneroso ou gratuito, ficando obrigado o tomador do empréstimo a restituir o aludido objeto nas condições estabelecidas no contrato.

Por outro lado, não se tem um conceito jurídico de financiamento. A despeito da enorme quantidade de normas jurídicas disciplinadoras da atividade bancária, não se encontra precisa conceituação jurídica para a operação de financiamento. Por esse motivo, tem-se que utilizar o conceito econômico de financiamento, que chega mesmo a ser intuitivo. Financiamento é a operação econômica por meio da qual um sujeito, abstendo-se de usar seus recursos para atos de consumo presente, emprega-os temporariamente, para fins específicos ou não, de modo a obter no futuro um aumento de riqueza. Em suma, na operação de financiamento um sujeito se abstém de usar seus bens presentes com esperança de aumentá-los e poder a voltar a dispor deles no futuro. Muitas vezes são confundidas as operações de empréstimo e de financiamento. Isto ocorre porque, nas operações de financiamento e nas de empréstimo, é comum haver pelo menos dois sujeitos: um financiador e um financiado; um emprestador e um tomador de empréstimo. Todavia, rigorosamente, pode ocorrer financiamento sem empréstimo. É o caso, por exemplo, de alguém financiar certa atividade econômica com recursos próprios e não com recursos tomados de empréstimo de outro sujeito. Além disso, o empréstimo pode ser gratuito, enquanto que o financiamento sempre almeja um aumento de riqueza futura para aquele sujeito que se absteve de atos de consumo presente para poder financiar uma atividade econômica (o fato de esse objetivo não ser alcançado não descaracteriza a operação de financiamento).

Na prática bancária, contudo, as operações de empréstimo e de financiamento têm existência simbiótica na maior parte dos casos. Exatamente porque o banco exerce a atividade de intermediação financeira, toma emprestado do público em geral os recursos disponíveis de poupança popular. Nesse caso, o banco realiza operações passivas, porque torna-se devedor em face dos depositantes que lhe emprestam recursos e que esperam receber esses recursos de volta. Por outro lado, o banco usa parte dos recursos captados junto ao público em geral e os empresta aos seus clientes, financiando atividades econômicas a serem realizadas por estes últimos. Nesse caso, o banco realiza operações ativas, porque espera receber dos clientes a quem fez empréstimos não só o valor objeto de cada empréstimo, mas também os juros e acréscimos contratuais pactuados. Portanto, o banco não só fez empréstimos aos seus clientes, mas também os financiou. O possível aumento de riqueza esperado pelo banco é o motivo que o leva a financiar alguém.

Em resumo, a atividade de intermediação financeira profissional desenvolvida pelos bancos é sempre articulada. Por um lado, o banco precisa realizar operações passivas, por meio das quais consegue captar a poupança disponível do público em geral. Por outro lado, o banco precisa realizar operações ativas, através das quais emprega os recursos que captou junto ao público em geral e os utiliza para financiar, por meio de empréstimos, as atividades econômicas de seus clientes tomadores de empréstimos e financiamentos. O banco espera obter resultado positivo com suas operações ativas, de tal modo que, depois de restituir os recursos que ele – banco – tomou emprestado do público em geral, constate um aumento de sua própria riqueza.

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Daí a necessidade de inafastável articulação entre as operações bancárias passivas e ativas. Essas operações devem ser realizadas pelo banco com observância de todas as normas legais e regulamentares que disciplinam a atividade bancária e que a submetem a um regime jurídico especial e diferenciado. Esse regime jurídico especial, por um lado, visa à proteção do público em geral que “empresta” recursos aos bancos por meio das operações passivas realizadas por estes e, por outro lado, pretende assegurar a higidez e confiabilidade de todo sistema financeiro.

(II) A ATIVIDADE BANCÁRIA E O CRÉDITO BANCÁRIO

Foi visto que o banco, submetido a um regime jurídico especial, realiza operações passivas e ativas, que devem sempre estar articuladas. As operações bancárias ativas podem ser de várias espécies, entre as quais têm relevância específica as operações de crédito.

RIZZARDO explica que crédito é “toda operação monetária pela qual se realiza uma prestação presente contra a promessa de uma prestação futura.”4

Pode-se deduzir do conceito que o crédito comporta várias espécies. As operações de empréstimo e de financiamento são, portanto, espécies de operações de crédito. São modos de que se serve o banco para instrumentalizar o crédito para os fins previstos na legislação que regula as atividades bancárias.

(III) AS OPERAÇÕES DE EMPRÉSTIMO

Historicamente, o contrato de empréstimo foi qualificado como gênero de que são espécies o mútuo e o comodato. Era e é tradicionalmente classificado como contrato real, de modo que somente estará perfeito se, além do consenso das partes, também ocorrer a tradição do bem emprestado para o tomador do empréstimo.5 Daí porque os autores modernos têm conceituado o empréstimo de modo bastante semelhante ao daquele Direito Romano tardio.

RODRIGUES ensina que “empréstimo é o contrato pelo qual uma das partes entrega uma coisa à outra, para ser devolvida em espécie ou gênero.”6

RIZZARDO esclarece que o empréstimo é a figura mais típica dentre os contratos bancários, correspondendo à entrega, pelo banqueiro, de certos bens ao prestatário, com transferência de propriedade, obrigando-se o último a uma prestação futura de ressarcimento ou restituição do valor equivalente. Diz o autor:7

“Pelo fato de reembolsar o concedente do empréstimo após certo tempo, os juros ou rendimentos que o prestatário retribui correspondem ao preço equivalente ao tempo no qual dispos dos valores que lhe foram transmitidos em caráter de propriedade.

4 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de crédito bancário.São Paulo, RT, 1990, p. 16.5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro, Forense, 4. ed., v. II, p. 140.6 RODRIGUES, Silvio. Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. São Paulo, Saraiva, 1983, p. 263.7 RIZZARDO, op. cit., p. 17.

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Um segundo tipo vem a ser a abertura de crédito, de grande frequência, através do qual o interessado convenciona com o banco a concessão de um crédito para daí a certo tempo, ou para determinada ocasião, a fim de atender a necessidade já prevista, ou efetuar pagamentos programados.

(...).

A concessão de crédito, portanto, envolve múltiplas formas que, em última análise, se resumem no mútuo, cujas regras se aplicam a todos os tipos.”8

Essas observações de RIZZARDO são importantes por dois motivos, a saber: (i) no âmbito das operações de crédito, o autor distingue aquelas que se caracterizam como empréstimo propriamente dito (mútuo) e as que são melhor compreendidas como operações de financiamento, entre as quais RIZZARDO parece ter incluído a operação de abertura de crédito; e (ii) permite a aplicação – obviamente supletiva – das regras do mútuo às múltiplas espécies de operações de crédito, sejam estas de empréstimo ou de financiamento, embora o autor não tenha justificado tal afirmação.

Entretanto, não se pode confundir as operações de crédito com as de financiamento. COVELLO 9 explica que o empréstimo bancário não se diferencia do empréstimo comum e que na linguagem comum significa mútuo. COVELLO caracteriza o empréstimo bancário como sendo um contrato comercial, real, unilateral nos seus efeitos, essencialmente oneroso e que tem por objeto bens fungíveis consistentes em dinheiro, títulos ou valores, ou ainda o uso de firma. Ocorre que nem todas as operações bancárias de crédito são redutíveis ao esquema delineado para o empréstimo bancário. Muitos dos contratos bancários de crédito são bilaterais em seus efeitos e podem ter por objeto bens infungíveis, tal como se dá com a alienação fiduciária em garantia ou com o penhor. Nem todos são contratos reais, como por exemplo a fiança, que é contrato essencialmente pessoal. Sendo assim, não parece correta a afirmação de RIZZARDO no sentido de que, em última análise, todos os contratos de concessão de crédito se resumem no mútuo. Na verdade, o mútuo bancário é espécie do gênero empréstimos bancários que, por seu turno, é modalidade do gênero mais amplo de contratos de crédito bancário. Nesse contexto, as operações de financiamento aparecem como modalidade de crédito na atividade dos bancos. Esquematicamente:

mútuoempréstimos outras espécies

contratos de créditofinanciamentos outras espécies

Na realidade, a legislação bancária está repleta de referências a figuras contratuais que, conquanto tenham semelhanças com o mútuo, com este não se confundem. Esses traços em comum com o mútuo são constatáveis porque todas essas operações são, antes de tudo, operações de crédito nos termos do conceito acima mencionado. Natural, então, que tenham fisionomia parecida em decorrência da raiz comum a que pertencem. Entretanto, as similitudes não autorizam a confusão, nem a subsunção da

8 RIZZARDO, op. cit., p. 17.9 COVELLO, Sérgio Carlos. Contratos bancários. São Paulo, Saraiva, 1981, p. 151.

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regra geral à disciplina particular do mútuo (que, como dito, é subespécie do gênero maior dos contratos de crédito). Não obstante essa realidade, as opiniões doutrinárias ainda são confusas e, em síntese, não apresentam claramente a distinção apontada. A controvérsia tem início já nas tentativas de distinguir os contratos de mútuo e de abertura de crédito bancário. As divergências podem ser resumidas como segue:

a) há autores que equiparam perfeitamente o contrato de abertura de crédito bancário ao contrato de mútuo bancário;

b) outros escritores enxergam duas relações jurídicas distintas no contrato de abertura de crédito: um contrato preliminar de promessa de mutuar e, depois, o próprio mútuo;

c) outro grupo de autores nega o caráter real do contrato de mútuo e, por conseguinte, diz ser irrelevante distingui-lo do contrato de abertura de crédito bancário;

d) por fim, há quem reclame autonomia para o contrato de abertura de crédito bancário.

Para melhor analisar as diferenças e similitudes entre as operações de empréstimo e as de financiamento bancário e, consequentemente, para melhor caracterizar o contrato de abertura de crédito bancário, é prudente passar em revista o contrato de mútuo e contrastá-lo com o de abertura de crédito bancário.

(IV) O CONTRATO DE MÚTUO E OS CONTRATOS DE CRÉDITO BANCÁRIO

Entre os contratos reais está, como gênero, o contrato de empréstimo. Deste são espécies o contrato de mútuo e o de comodato, tanto em direito civil como em direito comercial. O comodato é caracterizado tecnicamente como empréstimo para uso, pois tem por objeto coisa infungível que deve ser restituída, ela própria, pelo comodatário ao comodante. O mútuo, por outro lado, dogmaticamente é caracterizado como contrato de empréstimo de consumo, uma vez que tem por objeto coisa fungível que, com a tradição, passa a ser de propriedade do mutuário. Por causa disto, o mutuário deverá restituir ao mutuante não a mesma coisa que recebeu, mas sim coisa do mesmo gênero, espécie, quantidade e qualidade. Os escritores têm se restringido ao exame do mútuo e do comodato como espécies do gênero empréstimo. Por isto, encontram dificuldades para diferenciá-los de outras figuras do gênero operações de crédito. Apegados às espécies tradicionais do mútuo e do comodato, tentam os autores aproximar as novas figuras contratuais de crédito bancário ao paradigma do mútuo, que lhes é mais conhecido. Todavia, as novas figuras contratuais de crédito bancário nem sempre são redutíveis às figuras conhecidas de empréstimo (o mútuo e o comodato). É certo que os novos contratos bancários podem muitas vezes ser enquadrados no gênero “empréstimo”, mas, em certos casos, também podem ser qualificados como espécies do gênero “financiamento”. Deve ser observado que a legislação atinente aos contratos bancários frequentemente faz referências a nomes de operações bancárias que, contudo, não estão tipificadas nessa mesma legislação no que diz respeito aos elementos estruturais desses novos contratos. Isto quer dizer que, no mínimo, há previsão legal de contratos de crédito,

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que ora se caracterizam como contratos de financiamento, ora como contratos de empréstimo. Nessas circunstâncias, não é correto querer reduzir todos os contratos de crédito bancário ao paradigma dos contratos de empréstimo e, mais especificamente, ao contrato de mútuo. Portanto, é preciso entender que o contrato de mútuo é espécie do gênero de contratos de empréstimo que, por sua vez, é espécie do gênero mais amplo de contratos de crédito. O contrato de abertura de crédito bancário, por outro lado, é espécie do gênero contratos de financiamento e estes, então, são espécie do gênero contratos de crédito. Esquematicamente, tem-se:

mútuoempréstimos outras espécies

contratos de créditofinanciamentos contratos de abertura de crédito

outras espécies

É necessário, assim, examinar o contrato de mútuo em contraste com o contrato de abertura de crédito.

(A) CONCEITO E ELEMENTOS DO CONTRATO DE MÚTUO

O contrato de empréstimo não tem por objeto necessário o dinheiro. Podem ser emprestados outros bens, fungíveis ou não. O mutuante deve entregar ao mutuário o bem objeto do empréstimo e o mutuário, por sua vez, deve restituir aquele objeto (ou o seu equivalente) ao mutuante. Por causa disto, historicamente o contrato de mútuo foi concebido como contrato real. Não basta o consentimento das partes para formar o contrato de mútuo, sendo exigida também a tradição do bem objeto do mútuo pelo mutuante ao mutuário. Assim, a traditio é considerada elemento essencial para a formação do contrato de mútuo. ALVES 10 diz que eram quatro os contratos reais conhecidos no Direito Romano: mútuo, comodato, depósito e penhor. Modernamente tem sido combatida a concepção arcaica dos contratos reais. Argumenta-se que o formalismo dessa tradição é incompatível com as exigências da vida contemporânea, em que se busca a simplificação na celebração de contratos num ambiente de relações jurídicas massificadas. Tanto isto é verdade que, ao longo dos séculos, foram sendo cada vez mais simplificadas as formas da traditio de bens que precisam circular rapidamente no ambiente econômico, como pondera LOPES.11

ALVES12 conceitua o mútuo como “o contrato pelo qual alguém transfere a propriedade de coisa fungível a outrem, que se obriga a restituir outra da mesma espécie, quantidade e qualidade.”

COVELLO13 conceitua o mútuo bancário assim: “é o contrato pelo qual o Banco (prestamista) entrega certa soma pecuniária ao cliente (prestatário), o qual, por sua vez, se obriga a restitui-la, no prazo avençado, no mesmo gênero, qualidade e quantidade, acrescida de juros e comissões, conforme prévia estipulação.”10 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro, Forense, 1990, v. 2, p. 140.11 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. São Paulo, Freitas Bastos, 1993, v. 4, p; 345 e ss.12A LVES, op. cit., p. 140.13 COVELLO, op. cit., p. 158.

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RIZZARDO14 se manifesta dizendo que “há mútuo sempre que alguém entrega a outrem uma certa quantidade de coisas fungíveis, para que a consuma, comprometendo-se este a devolver, na forma e no prazo avençados, não as próprias coisas recebidas, mas coisas ou bens equivalentes em quantidade, qualidade e gênero.”

Conceitos semelhantes são os de BULGARELLI15, MARTINS16, PEREIRA17 e GOMES18. Concatenando as considerações dos autores mencionados, pode-se assentar que eles, tendo em vista os preceitos legais que cuidam do mútuo civil e do mútuo mercantil, consideram como requisitos de tal contrato os seguintes:

a) acordo de vontade entre os contraentes, que devem ter capacidade tanto geral como específica para transmitir e adquirir o domínio do objeto mutuado, seja para fins de entrega como de restituição;

b) necessária e imprescindível tradição da coisa objeto do mútuo;

c) ter o mútuo coisa fungível como seu objeto;

d) temporariedade, podendo o prazo do mútuo ser determinado ou não;

e) ter forma escrita, embora não solene, para atender às necessidades de prova do contrato.

Com os elementos apresentados, e novamente aglutinando e organizando as lições dos escritores citados, verifica-se que o contrato de mútuo foi por eles classificado como sendo: (i) real; (ii) bilateral na formação e unilateral nos efeitos; (iii) oneroso (no caso dos bancos e instituições financeiras); (iv) típico, tanto no âmbito civil como no comercial; (v) temporário; (vi) não solene; (vii) intuito personae; (viii) de execução diferida no tempo, porque o mutuário só restituirá o bem pelo seu equivalente em momento posterior ao da celebração do contrato.

Em decorrência dessa configuração do mútuo, produz ele efeitos jurídicos típicos que podem ser resumidos nos termos seguintes:

a) a tradição da coisa mutuada, que é elemento essencial para a formação do contrato, faz com que o mutuante nenhuma obrigação tenha nesse negócio jurídico;

b) a aludida tradição implica na transferência do domínio, por parte do mutuante, para o mutuário que, assim, passa a ter a obrigação de restituir àquele, nas condições pactuadas, coisa do mesmo gênero, espécie, qualidade e quantidade, disto resultando a unilateralidade de efeitos do contrato;

14 RIZZARDO, op. cit., p. 23.15 BULGARELLI, Waldírio. Contratos mercantis. São Paulo, Atlas, 1981, p. 247.16 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. Rio de Janeiro, Forense, 1990, p. 363.17 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 1990, v. 3, p. 239.18 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Forense, 1987, p. 349.

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c) feita a tradição do objeto do mútuo, o mutuário deve pagar ao mutuante os juros e encargos convencionados, mesmo que não queira aproveitar as vantagens que o contrato lhe proporciona;

d) a transmissão do domínio é resolúvel, posto que o mutuário, em tempo certo ou não, deverá transmitir ao mutuante bem equivalente ao que foi mutuado.

Examinados os aspectos gerais do contrato de mútuo, é interessante analisar mais detidamente sua natureza jurídica. LOPES19 discorre sobre o problema procurando esclarecer a função técnica que cumpre o consentimento das partes no contrato de mútuo para, então, examinar a natureza real ou pessoal desse contrato de mútuo. Relembra esse autor que a maior parte dos códigos, inclusive o brasileiro, considera o empréstimo um contrato real, tendo esses legisladores acompanhado a doutrina clássica, presa ainda à tradição herdada do Direito Romano mais formalista. Para tal doutrina clássica, o contrato de mútuo é resultado de duas operações jurídicas distintas, mas que devem ocorrer simultaneamente. Em primeiro lugar, devem as partes declarar suas respectivas vontades de mutuar um objeto e de recebê-lo em mútuo. Esse consentimento das partes teria natureza de contrato preliminar, de promessa recíproca, cuja finalidade é a de preparar a segunda operação jurídica, qual seja, a celebração do contrato de mútuo propriamente dito. Aquele consentimento das partes é visto, então, como promessa de mutuar, cujo objeto é a celebração do mútuo. Este contrato – o mútuo – somente se aperfeiçoaria com o ato da tradição do objeto mutuado. Por essa razão, é indispensável a tradição do objeto mutuado para que o vínculo contratual se complemente. Essa tradição, assim concebida, é elemento de formação do contrato de mútuo e não ato de execução deste. A doutrina clássica justifica seu entendimento com os argumentos seguintes: (i) historicamente e de modo ininterrupto, o mútuo sempre foi contrato real; (ii) a fungibilidade do bem a ser restituído ao mutuante, aliada ao fato de se tratar de contrato de execução diferida, exigiria o elemento real na formação do contrato; (iii) o crédito precisa ser tutelado, de maneira que, enquanto não ocorrer a tradição do bem, o mutuante não estaria obrigado a celebrar o mútuo se o devedor mudar para pior suas condições de solvabilidade; (iv) o mútuo é, em geral, gratuito, de modo que seria repugnante obrigar alguém a emprestar.

LOPES20 apresenta também a doutrina consensualista do mútuo, à qual expressamente se filiou, invocando as lições de Carrara, Josserand, Demogue, Baudry-Lacantinerie, Barde, Wahl, Caressi e Pacifici-Mazzoni.

Para os consensualistas, a entrega do bem ao mutuário não é ato de formação do contrato, mas de execução deste. Os clássicos exigem coincidência cronológica entre a conclusão do contrato e a entrega do bem mutuado. Para a doutrina consensualista, tal sincronicidade é apenas natural. Por isto, nega a bipartição do mútuo em contrato preliminar de promessa de mutuar e em contrato definitivo. Diz LOPES21

“Nenhuma alteração à natureza do contrato pode daí sobrevir, nada justificando a sua bipartição em contrato preliminar, antes da entrega da coisa, e contrato real, após aquela entrega. Esta não é essencial, pois, se tal

19 LOPES, op. cit., p. 345 e ss.20 LOPES, op. cit., p. 348.21 LOPES, op. cit., p. 348.

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fora, ter-se-ia de atribuir igual caráter real ao contrato de locação, o qual, entretanto, se forma independentemente da tradição da coisa locada. A entrega é execução do contrato; a obrigação de entregar dá nascimento a um crédito líquido e certo em favor do mutuário. CARRARA é a esse propósito incisivo ao dizer: para nós, no negócio contratual nada mais existe do que mainifestações concordantes de vontades e direitos e obrigações, conhecidos pelo ordenamento jurídico. A entrega da coisa está fora do negócio; ela é o adimplemento de uma obrigação, é parte da execução, elemento de um outro negócio – o liberatório.”

Mas LOPES22 teve que se curvar ao direito positivo. Aponta os códigos francês, português, argentino e o alemão como exemplos de leis civis filiadas expressamente à doutrina clássica realista. No que concerne ao direito civil brasileiro, o autor teve esperança de que a doutrina consensualista do contrato de mútuo pudesse ser mais largamente aceita. Pondera o autor:

“Qual a posição de nosso direito? Incontestável é, no tocante ao comodato, ter o nosso Código Civil adotado a concepção clássica considerando-o de natureza real (...). Em relação ao mútuo, não se nos afigura tão incisivo, pois se limita a defini-lo ‘o empréstimo de coisas fungíveis’, acrescentando in fine ‘o mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade’ (Código Civil, art. 1.256). Os nossos juristas sempre o têm considerado um contrato real. Cremos, contudo, que doutrinariamente o art. 1.256 não fecha tanto as probabilidades de uma corrente doutrinária consensualista quanto o art. 1.248.”

Se acolhida a ponderação de LOPES, no sentido de ser adotada a doutrina consensualista para o contrato de mútuo, modificar-se-iam os requisitos, a classificação e os efeitos desse contrato. Deixaria ele de ser real para ser consensual. Passaria a ser bilateral tanto na formação quanto nos efeitos, já que o mutuante teria a obrigação de entregar o bem ao mutuário.

Parece que a tendência histórica é no sentido de simplificar a celebração de contratos, tal como já aconteceu com diversos contratos formais e solenes antes existentes no Direito Romano. Assim, os contratos reais não poderiam escapar dessa tendência evolutiva. Já se dispensa a traditio (no sentido de tradição real) em algumas espécies de penhor mercantil. A proliferação de títulos de crédito e objetos jurídicos em “forma virtual” já tem exigido, cada vez mais, a substituição de traditio real por outras modalidades de tradição, especialmente a tradição ficta e “tradição escritural”. É o que acontece com as duplicatas escriturais, com as ações escriturais, a entrega de documentos em forma digitalizada e tantos outros casos.

É oportuno, agora, caracterizar o contrato de abertura de crédito bancário e contrasta-lo com o de mútuo, para verificar se são mesmo distintos ou não.

(B) CONCEITO E ELEMENTOS DO CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO

22 LOPES, op.cit. p. 349 e ss.

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O contrato de abertura de crédito bancário, como contrato atípico que é (porque a lei não lhe dá o delineamento estrutural mínimo), está genericamente autorizado pelo art. 425 do novo Código Civil. O Código Civil de 1916 também não se ocupou desse contrato.

RIZZARDO23 conceitua o contrato de abertura de crédito bancário como segue:

“(...) contrato pelo qual o banco ou creditante se obriga a colocar à disposição do creditado, ou a contrair por conta deste uma obrigação, para que ele mesmo faça uso do crédito concedido na forma, nos termos e condições que foi convencionado, ficando obrigado o creditado a restituir ao creditante as somas que dispôs, ou a cobri-las oportunamente, de acordo com o montante das obrigações contraídas, incluindo os rendimentos e outras decorrências.”

RIZZARDO, cita ainda Luis Alberto Delfino Cazet, que diz que a abertura de crédito bancário “es aquel contrato por el que um banco se obriga mediante un comisión, a poner a disposición de una persona determinada suma cierta de dinero, o a realizar otras prestaciones por las que este pueda obtenerlo a su requerimiento, em un solo momento, escalonada o por fracciones según sus necesidades, por un cierto período de tiempo o por tiempo indeterminado, sin que se obligue a usar el credito concedido.”

Mais suscinto é BULGARELLI 24, para quem a abertura de crédito bancário é o

‘(...) contrato em que, mediante certa remuneração, o banco se obriga a colocar à disposição do cliente ou de terceiro, por prazo certo ou indeterminado, uma importância, até o limite estipulado, facultando-lhe a utilização pelo todo ou em partes.”

O conceito de BULGARELLI aproxima-se do de MARTINS25, que apenas acrescenta que o creditado tem a obrigação de devolver a importância acrescida de juros ao fim do contrato.

PEREIRA26 de modo muito impreciso tenta fixar a noção de contrato de abertura de crédito bancário ao asseverar que nessa modalidade contratual

“o banco compromete-se a acatar os saques do devedor, até um montante estipulado como limite de crédito aberto, sujeitando-se o mutuário ao pagamento de uma comissão percentual calculada sobre aquele limite, além dos juros computados sobre o débito efetivo.”

GOMES27 refere-se ao contrato de abertura de crédito bancário nestes termos:

“(...) é o contrato por via do qual se obriga um banco a colocar à disposição do cliente determinada soma para ser utilizada, mediante saque único ou repetido.”

23 RIZZARDO, op. cit., p. 38/39.24 BULGARELLI, op. cit., p. 540.25 MARTINS, op. cit., p. 392.26 PEREIRA, op. cit., p. 245.27 GOMES, op. cit., p. 364.

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GOMES ainda acrescenta que o crédito pode consistir em aceite, fiança ou aval. Também o conceito acima transcrito é impreciso, na medida em que não indica se o creditado tem obrigação ou faculdade de usar o crédito que lhe foi aberto pelo banco.

Noções e conceitos semelhantes aos acima transcritos encontram-se em COVELLO, CARVALHO DE MENDONÇA, WALDEMAR FERREIRA E PONTES DE MIRANDA, como se verá oportunamente. Essas opiniões doutrinárias indicam que são requisitos do contrato de abertura de crédito bancário:

1) a figura do banco, como creditador;

2) a figura de um sujeito de direito como creditado e, eventualmente, a figurado terceiro indicado pelo creditado como beneficiário do crédito aberto;

3) ser o objeto desse contrato não o bem fungível em si mesmo, mas sim a disponibilidade do crédito para obter o bem desejado pelo creditado ou pelo terceiro por este indicado;

4) a fixação do limite do crédito disponível;

5) a faculdade de o créditado, a seu critério, poder se utilizar ou não do crédito que se encontra à sua disposição;

6) a temporariedade, podendo haver prazo determinado ou não;

7) a necessidade de remuneração do creditador (porque a atividade bancária é essencialmente mercantil); e

8) a utilização de forma escrita para fins probatórios.

Apesar de esses elementos essenciais serem mais ou menos uniformes na doutrina, ainda é controvertida natureza jurídica do contrato de abertura de crédito bancário. Discute-se se tal contrato é real ou consensual. Parece ser dominante a doutrina consensualista como se verá a seguir.

MIRANDA28 esclarece que:

“crédito, na expressão abertura de crédito, é confiança, a promessa de prestar, sem o imediato correspectivo. O creditador, em vez de se fazer credor, faz-se devedor. O creditado, que nada prestou que correspondesse ao seu crédito, é credor. No conceito, crédito aparece com os dois sentidos: crédito, direito, diante do débito do creditador; e crédito o que merece quem precisa dever, quem tem necessidade (...) de se fazer devedor.”

COVELLO29 observa que quando o banco tiver que colocar à disposição do cliente ou de terceiro certa importância pecuniária, deixa inequívoco que, concluído o

28 MIRANDA, op. cit. p.29 COVELLO, op. cit. , p. 191/192.

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contrato, tem que conceder o crédito. Assim, o creditado adquire de imediato “o direito de dispor da soma pecuniária quando quiser.” Veja-se o que disse esse autor:

“Evidencia-se, destarte, a consensualidade do contrato de abertura de crédito que se forma independentemente da entrega da soma pelo creditador. Por outro lado, nem a prestação deste tem de consistir obrigatoriamente na entrega de dinheiro; pode, também, consistir em prestar aval, fiança, ou aceitar letra de câmbio contra ele sacadas, pelo cliente ou por terceiro por conta do cliente.”

MIRANDA30 arremata esse raciocínio do seguinte modo:

“O que mais embaça a matéria é não se atender, desde todo o começo, a que no contrato de abertura de crédito quem está com o valor ainda não prestou e não se fez, portanto, credor. Em vez disso, credor é quem nada prestou e pode exercer, conforme o contrato, ou o uso, a lei, o direito, a pretensão e, se o creditador se recusa a adimplir o que prometera, a ação.”

GOMES31 chama a atenção para o fato de que o crédito permanece aberto por tempo determinado ou não, podendo ser utilizado de pronto ou parceladamente, pelo cliente ou por terceiro que ele indicar. O banco não transfere a quantia ao creditado. Apenas a coloca à disposição do creditado, permanecendo tal quantia no caixa do banco até que o creditado a solicite nas condições previstas no contrato. Diz o autor que a essência do contrato de abertura de crédito bancário

“(...) consiste na atribuição ao creditado do poder de pretender do banco a prestação de certa soma, ou de aceite, aval ou fiança. Os atos de utilização do crédito constituem mera execução do contrato.”

MARTINS32, como os demais autores citados acima, anota que o creditado ou o beneficiário não é obrigado a se utilizar do crédito e que somente pagará ao creditador a remuneração decorrente de empréstimo se efetivamente vier a utilizar a soma posta à sua disposição.

Por causa de todas essas características, os aludidos autores classificam o contrato de abertura de crédito bancário como segue:

1) é contrato de adesão, por ser padronizado na prática bancária;

2) é bilateral na formação e nos efeitos;

3) é autônomo e definitivo, não se tratando de contrato preliminar ao contrato de mútuo (que poderá sequer vir a existir, se o creditado não vier a usar o crédito que lhe foi aberto);

4) é consensual, porque é possível que jamais o creditador tenha que transferir ao creditado a quantia correspondente ao crédito aberto;

30 MIRANDA, op. cit. p.31 GOMES, op. cit. p. 364/368.32 MARTINS, op. cit. p. 521.

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5) é oneroso, porque o creditado deve pagar ao banco uma remuneração pela abertura de crédito;

6) é personalíssimo, porque o banco dá crédito a certo e determinado cliente, em atenção às expectativas de solvência que tenha em face de tal cliente;

7) é de execução diferida ou continuada no tempo, porque, durante o prazo (determinado ou não) do contrato, o banco está obrigado a entregar a quantia relativa ao crédito aberto, se o creditado assim exigir;

8) é comutativo, porque presume-se equilíbrio entre as obrigações das partes; e

9) é temporário, podendo ter prazo certo ou indeterminado.

Nesse contexto de análise, pode-se dizer que há diferenças substanciais entre o contrato de mútuo e o contrato de abertura de crédito bancário, como se passará a apontar a seguir.

(C) DIFERENÇAS ENTRE O CONTRATO DE MÚTUO E O DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO

Lição relevante no sentido de apontar as diferenças substanciais entre o contrato de mútuo e o contrato de abertura de crédito bancário é dada por RIZZARDO33, que diz:

“Distingue-se do contrato de empréstimo propriamente dito, porquanto neste o banco entrega dinheiro ao cliente, ao passo que, naquela forma (i.e., na abertura de crédito), outorga direito de utilização de crédito.

Mas, convém ressaltar, a disponibilidade não decorre da entrega prévia do dinheiro. Não significa que o valor fica depositado em sua conta. Há o crédito, e o custo do empréstimo incide apenas a partir das épocas das retiradas. Ter a disponibilidade não importa em já ser titular do valor. A transferência, com as conseqüências que advierem, se dá no momento das retiradas.

A contar do instante da concessão do crédito, surge a possibilidade jurídica do creditado converter-se em proprietário da importância de dinheiro creditada. Somente então ao banco é lícito cobrar juros sobre as importâncias utilizadas, e mais outros encargos. (...).

Através dos atos em que o cliente exerce a disposição do dinheiro ele se converte em devedor. Abrir crédito não corresponde a concedê-lo, mas supõe a possibilidade de que em uma etapa posterior o banco, atendendo a obrigação assumida, deva dá-lo.”

De fato, como alerta PEREIRA34, não se deve confundir o mútuo com o contrato de abertura de crédito bancário. Neste último, o creditador se obriga a efetuar a tradição

33 RIZZARDO, op. cit. p. 39.34 PEREIRA, op. cit. p. 245/246.

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da quantia como ato de execução do contrato, ao passo que no contrato de mútuo esse ato de entrega é essencial à formação do contrato, não sendo, portanto, ato de sua execução. Além disso, no mútuo, o acordo de vontades das partes é simultâneo à operação jurídica da tradição do objeto mutuado, enquanto que na abertura de crédito o creditado tem a liberdade de usar ou não o crédito aberto durante o período previsto e no limite do pactuado. O mutuário, por sua vez, tem a obrigação de receber o bem que lhe é traditado e com isto se esgota seu eventual direito contra o mutuante.

LOPES35 entende que mútuo e abertura de crédito bancário diferem na estrutura, nas respectivas finalidades, na forma de execução e, principalmente, porque no mútuo a restituição se processa pela devolução ao mutuante de coisa equivalente à que foi objeto do contrato, ao passo que na abertura de crédito tal devolução pode ser feita em mercadorias, em títulos creditícios, em dinheiro ou outros bens.

COVELLO36 examina as principais teorias comparativas dos contratos de mútuo e de abertura de crédito bancário. Repassa a discussão sobre a natureza real ou consensual desses dois contratos e conclui que são diferentes. Para aquele autor, o mútuo é mesmo contrato real e que tem por objeto o próprio bem fungível a ser mutuado. A abertura de crédito bancário é consensual e tem por objeto a disponibilidade do crédito por parte do creditado, ou de quem indicar. O creditador assume desde logo a qualidade de devedor, obrigado que está a entregar ao creditado o valor representativo do crédito, se assim o creditado ou o terceiro exigir. Esse fenômeno não ocorre no contrato de mútuo, em que o mutuário é quem tem a obrigação de receber desde logo o objeto mutuado, que lhe é entregue exatamente para dar existência ao contrato. Além disso, a disponibilidade creditícia é unilateral em favor do creditado ou do terceiro beneficiário, fato que também não ocorre no mútuo. A abertura de crédito pode ter por objeto a prestação de fiança, aval, aceite, operações estas estranhas ao mútuo. Por fim, a abertura de crédito admite a modalidade em conta corrente (ou crédito rotativo), que é completamente incompatível com a estrutura do mútuo. O autor esclarece que suas ponderações coincidem com as de MESSINEO, CARVALHO DE MENDONÇA, PONTES DE MIRANDA, ENDEMANN, GRUNHUT, PAULO DE LACERDA, ORLANDO GOMES e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA.

(D) ESPÉCIES DE CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO

O contrato de abertura de crédito bancário apresenta duas espécies fundamentais, a saber: 1ª) a abertura de crédito simples; e 2ª) a abertura de crédito rotativo ou em conta corrente.

Na primeira modalidade – abertura de crédito simples – o creditado poderá, a seu critério, dentro do prazo e nas condições previstas no contrato, utilizar-se do crédito posto à sua disposição. Na medida em que os saques são realizados, o banco registra a correspondente diminuição do limite de crédito concedido. Não é facultado ao creditado recompor o limite do crédito aberto mediante depósitos na conta durante o prazo de vigência do contrato. Em síntese, o creditado pode usar o crédito até seu limite máximo, no prazo do contrato, sem poder fazer quitações parciais de sua dívida perante o banco durante o período de duração do contrato. Por exemplo,

35 LOPES, op. cit. p. 363/364.36 COVELLO, op. cit. p. 196 e ss.

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imagine-se que o banco abra ao cliente um crédito de R$ 1.000,00 por trinta dias. Nesse período, o cliente saca contra o banco R$ 700,00. Ao final do prazo de vigência contratual, o banco cobrará desse cliente o valor de R$ 700,00 com os acréscimos pactuados. Nenhum depósito que o mesmo cliente tenha feito em sua conta no mesmo período será utilizado para liquidar ou abater aquela dívida de R$ 700,00 ou seus acréscimos.

Na segunda hipótese – contrato de abertura de crédito rotativo – o banco concede ao creditado um certo limite de crédito por um prazo determinado ou não. É facultado ao creditado usar esse crédito, fazendo os saques que quiser. Na medida em que os saques são realizados, o banco registra a correspondente diminuição do limite de crédito concedido. Durante o prazo de vigência do contrato, o creditado pode realizar depósitos em sua conta corrente e, assim, amortizar ou liquidar sua dívida em face do banco. Mais que isto, esses depósitos obrigam o banco a recompor o limite de crédito aberto na mesma proporção dos depósitos recebidos. E esse ciclo de saques e depósitos pode continuar até que se esgote o prazo contratual, de maneira que os saques causam diminuição do limite do crédito aberto e os depósitos recompõem esse limite. Por exemplo, imagine-se que o banco abra ao cliente um crédito de R$ 2.000,00 por trinta dias. Dentro desse prazo, num dia o cliente saca contra o banco R$ 1.200,00, de modo que seu crédito ainda disponível passa a ser de R$ 800,00. Alguns dias depois, o cliente deposita em sua conta R$ 1.000,00 e, desse modo, reduz sua dívida para com o banco para apenas R$ 200,00 e volta a ter limite disponível de crédito de R$ 1.800,00. Mais alguns dias depois, o cliente saca de seu limite de crédito o valor de R$ 1.800,00 que, somados aos R$ 200,00 que já havia sacado, esgota seu limite total de crédito aberto pelo banco. Dias depois o cliente deposita em sua conta o valor de R$ 2.000,00, recompondo seu limite de crédito. Ao final do prazo de vigência contratual, o banco apurará os acréscimos devidos em razão das utilizações parciais de crédito feitas pelo cliente e cobrará deste cliente o valor devido.

É importante esclarecer aqui que as considerações feitas neste trabalho sobre a execução do contrato de abertura de crédito bancário referem-se preponderantemente ao crédito bancário rotativo. De fato, se o contrato de abertura de crédito bancário for o simples (não rotativo), é perfeitamente possível que o banco desde logo realize os cálculos de liquidação da dívida. Tomando-se o exemplo dado acima, o banco sabe que o cliente usou R$ 700,00 por vinte dias, a uma taxa de juros de 5% ao mês ou de 0,1666% ao dia. Portanto, pode determinar o quanto lhe é devido: R$ 723,31 (ou seja, juros de 3,33% sobre os R$ 700,00). Logo, não se coloca nesse caso a questão sobre se o contrato de abertura de crédito bancário é ou não título executivo extrajudicial. Evidente que é. Todos os elementos necessários à existência de uma obrigação pecuniária certa, líquida e exigível no seu vencimento estão contidos no próprio contrato, independentemente de ser ele acompanhado por extratos ou não. A situação é diferente no que atine ao contrato de abertura de crédito bancário rotativo. Nessa hipótese, o banco não dispõe de elementos para determinar desde logo o montante devido pelo cliente. Esse cliente pode realizar sucessivos saques e depósitos no período de vigência do contrato. Compete ao banco registrar esses lançamentos e fazer os cálculos dos juros e demais encargos devidos em cada período em que o cliente tiver utilizado o crédito aberto. Essas taxas e encargos podem variar de um dia para outro, ou não. Portanto, é impossível que o banco realize esses cálculos de forma conclusiva antes de expirado

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o prazo contratual. Só depois desse fato é que terá um retrato completo dos saques e depósitos realizados pelo cliente e poderá calcular os juros e encargos devidos em cada período. Daí a necessidade de o contrato de abertura de crédito bancário rotativo ser complementado por outro documento – o extrato do período – para que ambos (contrato e extrato) formem um só título executivo complexo. Por isto mesmo é que esse extrato é o instrumento de liquidação do crédito do banco. Esse extrato tem que ser elaborado com rigorosa observância dos critérios contratuais objetivos fixados pelas partes para a determinação do valor principal da dívida, dos juros pactuados e dos demais encargos devidos. Na exata medida em que tal extrato cumpra essas exigências, o cliente tem obrigação moral e contratual de aprová-lo, seja de modo expresso (o que é raríssimo), seja tacitamente (o que retrata o costume vigente nessa matéria).

Por conseguinte, o problema de eventual incerteza, iliquidez ou inexigibilidade da dívida decorrente de contrato de abertura de crédito bancário só poderá existir em relação à modalidade de crédito rotativo.

(E) CONCLUSÕES

Após essa extensa análise comparativa dos contratos de mútuo e de abertura de crédito bancário, percebe-se que não se pode considerar a abertura de crédito mera promessa de empréstimo, por força da qual o creditador se obrigaria a por à disposição do creditado certo valor que, quando sacado, daria origem ao contrato definitivo de mútuo, como sustenta RODRIGUES37. Também não se pode aceitar a proposição de CARNELUTTI38 que concebeu a abertura de crédito como um mútuo despojado do requisito da traditio apenas para atender às necessidades da prática bancária.

Prepondera largamente a corrente doutrinária que distingue as duas figuras contratuais. Cabe verificar, então, onde deve ser inserida a operação de abertura de crédito bancário. Ao que parece, a doutrina dominante a coloca como nova espécie do gênero contratos de empréstimo, dadas algumas características comuns que a abertura de crédito tem com os demais contratos daquele gênero contratual. Todavia, adotada a noção de operação de financiamento apresentada no início deste trabalho, pode-se admitir, também, que a abertura de crédito bancário seja uma espécie do gênero contratos de financiamento que, por seu turno, é modalidade do gênero operações de crédito. Deveras, na abertura de crédito bancário o creditador fornece meios (crédito) para que, no futuro, o creditado (que se apropriou desses meios no instante do saque) os restitua nas condições previstas no contrato. Realizou-se, portanto, uma operação de crédito e, mais especificamente, uma operação de financiamento, por meio da qual o creditado passou a ter meios para adquirir bem presente de sua escolha (ou especificado no contrato) e assumiu a obrigação de, em momento futuro, restituir ao creditador o valor correspondente ao crédito de que se utilizou nos termos mencionados, com os acréscimos devidos ao financiador (que, por sua vez, realizou uma operação de investimento).

37 RODRIGUES, op. cit. p. 271.38 CARNELUTTI,

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Como esclarecido logo no início deste estudo, a questão proposta deve ser examinada levando-se em conta o regime jurídico especial das atividades bancárias, que têm natureza mercantil. A legislação bancária e a comercial freqüentemente tendem a admitir contratos atípicos, consensuais e não solenes. Por isto, mesmo que não estejam tipificados na lei os principais contratos bancários (no sentido de que a lei não delineia a estrutura mínima desses contratos), é fato inequívoco que essa legislação se reporta a esses contratos pelo menos nominalmente. Assim ocorre com a lei 4595/64, com a lei 4728/65 e com a lei 6385/76, com suas respectivas alterações. Nessas leis há referências expressas a operações (contratos) de repasses, redescontos, swaps, opções, ente outros negócios de mercado financeiro, de bolsa e de mercado de capitais.

Ora, a finalidade instrumental dos bancos é a de realizar a política governamental de crédito. Um dos instrumentos de que os bancos se utilizam para esse fim é exatamente o contrato de abertura de crédito bancário. Neste trabalho foi examinado que nem todas as operações creditícias realizadas pelos bancos podem ser perfeitamente enquadradas no esquema jurídico do gênero contratual empréstimo. Tal como já ocorre com o contrato de abertura de crédito bancário, questões polêmicas infindáveis surgiriam e surgem se, a todo custo, fosse preciso enquadrar nos moldes tradicionais do contrato de mútuo figuras como a fidúcia, a antecipação, o desconto e outras tantas operações bancárias. Para evitar essa inútil controvérsia, é necessário entender que o empréstimo bancário não se resume ao mútuo. Apresenta muitas outras espécies novas surgidas sob o regime jurídico especial do Direito Bancário e especialmente justificadas nesse contexto.

Como já foi dito, não há conceito legal de financiamento, mas a legislação bancária fornece elementos que permitem concluir, a grosso modo, que o financiamento é a operação por meio da qual o banco coloca à disposição de alguém recursos e meios imediatos para a realização de certo objetivo, pretendendo, no futuro, receber de volta esses recursos e meios com vantagens específicas. É exatamente o que ocorre com o contrato de abertura de crédito bancário.

Assim, pode-se concluir que todas aquelas figuras contratuais não podem ser, rigorosamente, equiparadas ou confundidas com o contrato de mútuo. Ao contrário, precisam ser qualificadas como subespécies da espécie “financiamentos bancários”, pertencentes ao gênero dos contratos bancários de crédito. Somente assim é que se consegue dar sentido jurídico próprio às figuras de contratos bancários irredutíveis ao paradigma do contrato de mútuo.

(V) CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES DOS TÍTULOS EXECUTIVOS

Desde logo é preciso fazer brevíssimas considerações a respeito do título executivo, seja ele judicial ou extrajudicial. Mostrar-se-á que os títulos executivos podem ser simples ou complexos e que, em certos casos e desde que obedecidos os requisitos legais, o procedimento adotado pelos bancos em nada contraria as lições correntes sobre a matéria.

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É sabido que a lei – e apenas a lei – pode criar títulos executivos. Nosso regime legal prevê duas espécies de títulos executivos: os judiciais e os extrajudiciais. Interessam-nos mais especificamente os títulos executivos extrajudiciais.

Os títulos executivos extrajudiciais estão indicados no art. 585, do CPC, mas tal dispositivo não esgota a relação de documentos aos quais a lei atribui força executiva. Há diversos outros dispositivos legais que criaram diferentes títulos executivos extrajudiciais.

Todo título executivo se presta a cumprir uma função jurídica específica, qual seja, fundamentar o pedido de movimentação do aparelho judicial estatal para concretizar em favor do credor o direito expresso no título executivo. A concretização daquele direito do credor é feita mediante agressão física imediata ao patrimônio do executado.

No processo de execução, o Estado-juiz parte da certeza legal – consubstanciada no título executivo – de que o exequente tem o direito contido naquele documento. Por isto, o juiz acredita que agredirá o patrimônio do executado de modo legítimo e sem violar a lei.

Exatamente porque o processo de execução abrange a atividade judicial de agressão patrimonial imediata contra o executado, somente com base nos documentos aos quais o Estado atribui força executiva é que a execução poderá ser iniciada e processada regularmente. Noutras palavras, ninguém, a não ser o legislador federal e sempre por lei, está autorizado a criar títulos executivos extrajudiciais.

Todo título executivo extrajudicial é um negócio jurídico complexo que precisa apresentar elementos que se passa a examinar agora.

Por um lado, o título executivo é formal. Isto quer dizer que o título executivo: (a) está materializado num documento; (b) tem exata e estritamente o conteúdo inserido no dito documento.

Assim, o título executivo deve indicar quem é o credor, quem é o devedor, qual é o direito do credor em face do devedor, qual o conteúdo e limites desse direito, a época em que o mesmo direito pode ser exigido e em que condições essa exigência pode ocorrer. O que não estiver declarado no título não faz parte de seu conteúdo e, consequentemente, não pode ser executado.

De outro lado, o título executivo não é apenas forma, não é abstrato. O conteúdo do título deve necessariamente corresponder a um negócio jurídico material verdadeiro, qual seja, aquele negócio que o mesmo título declara ter existido entre as partes no mundo real.

Dessa maneira, o título executivo extrajudicial é negócio jurídico complexo porque funde forma e conteúdo negocial de tal maneira que: (i) a forma não tem força executiva independentemente do conteúdo do negócio que declara; e (ii) o conteúdo negocial só pode ser executado se revestido de forma à qual a lei atribua força executiva. Esses elementos não podem ser considerados isoladamente para fins de execução forçada. No título executivo extrajudicial se contém a vontade das partes

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chamada em doutrina de pacto executivo e que, em última análise, garante ao juiz que a execução é presumivelmente legítima.

Na hipótese de haver vício de forma ou de conteúdo material do título executivo, pode ele ser impugnado pelo executado. A impugnação pode ter por objeto quer os defeitos de forma, quer os de conteúdo do título.

A doutrina e a jurisprudência reconhecem, sem nenhuma hesitação, o chamado título executivo complexo, isto é, o título executivo que, para se caracterizar, exige a reunião de vários documentos produzidos ou simplesmente aprovados pelas partes para que, assim, apresente todos os elementos essenciais exigidos pela lei. Por exemplo, numa operação de cessão de crédito representado por título executivo, o exequente não será mais aquele indicado no próprio título, mas sim a pessoa indicada como cessionária do crédito no documento que retrata a cessão de crédito. É este último documento que atribui ao cessionário a qualidade de exequente. Os dois documentos (título executivo original e instrumento de cessão de crédito), conjugados, formam um título executivo complexo.

Ver-se-á, mais adiante, que o contrato de abertura de crédito acompanhado por extrato de movimentação bilateralmente aprovado poderá caracterizar, se preenchidos certos pressupostos, um título executivo complexo.

Por todas essas razões, ao ser manejada uma execução fundada em título executivo complexo, a lei exige que todos os documentos que o compõem sejam apresentados, pois é a partir dessa constelação documental que se poderá aferir o exato conteúdo do título executivo.

(VI) EXAME DA EVOLUÇÃO DE PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS

A Súmula 233 do Superior Tribunal de Justiça cristaliza o entendimento daquela Corte de que o contrato de abertura de crédito bancário, mesmo que acompanhado de extratos de movimento, não caracteriza título executivo extrajudicial. É preciso compreender como o STJ chegou a essa conclusão e que argumentos lógico-jurídicos lhe servem de alicerce. Para esse fim, serão examinados a seguir alguns precedentes jurisprudenciais, não necessariamente do STJ. Além disto, nem todos os julgados adiante mencionados tratam especificamente de contrato de abertura de crédito bancário. Tais precedentes são aqui utilizados com dois propósitos: (i) extrair deles os elementos lógico-jurídicos utilizados na conclusão da citada Súmula; e (ii) analisar a consistência da conclusão retratada na mesma Súmula.

Ver-se-á que o entendimento consubstanciado na referida Súmula não pode ser aplicado indiscriminadamente à qualquer execução de contrato de abertura de crédito bancário. Há situações em que tal contrato, desde que acompanhado de extrato de movimentação aprovado pelo devedor, caracteriza título executivo complexo perfeitamente apto para fundamentar a ação de execução.

(A) A QUESTÃO DA LIQUIDEZ E CERTEZA DA DÍVIDA RETRATADA EM EXTRATO DE MOVIMENTAÇÃO DE CONTRATO DE ABERTURA DE

CRÉDITO BANCÁRIO.

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Mais uma vez é preciso repetir o que já foi exposto na seção (IV) (E) acima, isto é, o problema de eventual incerteza, iliquidez ou inexigibilidade da dívida decorrente de contrato de abertura de crédito bancário só poderá existir em relação à modalidade de crédito rotativo. É nesse contexto que se passa a examinar a matéria que segue.

Tem sido reiteradamente sustentada a tese de que a emissão de extrato de movimentação de contrato de abertura de crédito bancário é ato unilateral do banco. Por isto, tratando-se de ato unilateral do banco, sem participação do cliente, os lançamentos indicados no extrato não apresentariam liquidez e certeza para fins de manejo de uma ação de execução pelo banco. Logo, o contrato de abertura de crédito bancário, ainda que acompanhado do aludido extrato, não poderia ser considerado título executivo extrajudicial. Essa argumentação precisa ser contrastada com diversos outros elementos.

As normas expedidas pelo Banco Central do Brasil (BACEN) impõem ao banco os deveres de elaborar e de emitir – unilateralmente – os extratos de movimentação de contrato de abertura de conta corrente bancária. Por isto mesmo é que tal dever do banco geralmente consta de cláusula inserida nos formulários contratuais de abertura de crédito assinados pelo cliente e pelo banco. A emissão unilateral dos aludidos extratos pelo banco representa, de uma só vez, o cumprimento de um dever legal e de um dever contratual.

Nesse ponto, é importante relembrar alguns conceitos atinentes às espécies de declarações de vontade que dão origem aos negócios jurídicos. Interessam-nos aqui, de modo específico, as declarações de vontade receptícias e não receptícias.

O sujeito de direito capaz e interessado em realizar um certo negócio jurídico precisa declarar sua vontade pela forma admitida pela lei. Essa declaração de vontade sempre se dirige a um outro sujeito de direito, determinado ou não. Feita essa declaração de vontade, é preciso investigar quais são seus efeitos jurídicos em face daquele sujeito a quem se destinou. É possível que a declaração de vontade aqui considerada somente produza efeitos jurídicos se for aceita pelo sujeito que é destinatário dela que, por sua vez, deverá também declarar uma vontade jurídica retratando sua aceitação. Nesse caso, diz-se que aquela declaração de vontade do primeiro sujeito é uma declaração de vontade receptícia, porque seus efeitos jurídicos somente se produzirão se o seu destinatário os aceitar, se os receber. É o caso, por exemplo, de declaração de vontade de contrair matrimônio com certa pessoa. O nubente que declarar sua vontade de casar somente alcançará seu objetivo se o destinatário de sua declaração de vontade, que é o outro nubente, declarar, por sua vez, que aceita contrair aquele matrimônio. E, além disso, é ainda preciso que as vontades declaradas pelos nubentes sejam aceitas pelo representante do Estado incumbido de celebrar o casamento.

Há outras situações jurídicas em que o sujeito de direito capaz declara sua vontade de realizar um negócio jurídico e isto basta para desencadear os efeitos dessa declaração. Nesses casos, a declaração de vontade não precisa ser aceita por aquele ou aqueles a quem se destinou. Trata-se do que se denomina declaração de vontade não receptícia, ou seja, declaração de vontade apta a produzir efeitos jurídicos

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independentemente de seus destinatários concordarem com ela ou não. São exemplos de declaração de vontade não receptícia a renúncia a direito, a promessa de recompensa, a emissão de um título de crédito, a confissão de fato jurídico.

Por isto, não se pode confundir as declarações unilaterais de vontade que o banco faz ao elaborar e emitir os extratos de movimentação referidos com os efeitos (unilaterais ou bilaterais) que podem advir daquelas declarações de vontade. Em suma, é preciso verificar se as declarações unilaterais de vontade manifestadas pelo banco são receptícias ou não receptícias em relação ao cliente. É necessário examinar se tais declarações unilaterais de vontade do banco: (i) seriam suficientes para atribuir certeza e liquidez aos lançamentos contábeis contidos nos extratos, independentemente de o cliente aceitar esses efeitos (declaração de vontade não receptícia do banco); ou se, ao contrário, (ii) seria indispensável a manifestação de vontade do cliente reconhecendo a certeza e liquidez dos fatos contábeis discriminados nos extratos (declaração de vontade receptícia do banco).

Ora, o sujeito de direito pode perfeitamente fazer uma declaração de vontade não receptícia para constituir um título executivo extrajudicial em que figure como devedor. Tome-se como exemplo a emissão por esse sujeito de uma nota promissória ou de um cheque. Independentemente de o credor indicado na nota promissória ou no cheque concordar com o teor da declaração de vontade feita pelo devedor, este último tornou-se obrigado nos termos retratados no título. No entanto, não parece ser razoável que um sujeito possa fazer uma declaração de vontade não receptícia para constituir um título executivo extrajudicial em que figure como credor. Nesse caso, é indispensável que o sujeito indicado no título como devedor manifeste sua aceitação da nova situação jurídica em que foi posto. Sem que aceite sua qualidade de devedor, devedor não será. Por isto, é inadmissível que o banco considere certos e líquidos os fatos contábeis discriminados nos extratos sem que o cliente manifeste sua aceitação a respeito desses efeitos. Isto quer dizer que, ao elaborar e emitir os extratos de movimentação de contrato de abertura de crédito, o banco faz declarações de vontade receptícias que, por conseguinte, só produzirão o efeito de atribuir certeza e liquidez aos fatos contábeis ali retratados se o cliente aceitar esses efeitos.

Torna-se necessário, então, investigar quais são as formas possíveis pelas quais o cliente pode manifestar sua aceitação a respeito dos lançamentos contábeis contidos nos extratos de movimentação de contrato de abertura de crédito bancário. É intuitivo que essa vontade do cliente pode ser declarada de modo expresso ou tácito. Mas, em que momento essa declaração de vontade deve ser feita? É o que se passa a examinar agora.

O contrato de abertura de crédito bancário, além da disponibilidade do crédito para o cliente, envolve também a prestação de serviços de escrituração em forma contábil a fim de evidenciar os movimentos financeiros decorrentes da execução desse contrato. Aliás, é bastante natural nos contratos de prestação de serviços a prestação de contas por parte do sujeito que presta os serviços. O contrato em exame é, pois, um negócio jurídico complexo, na medida em que envolve diversas operações jurídicas para cumprir seu objetivo. É contrato e, como tal, pressupõe a convenção havida entre as partes a respeito daquilo que lhe serve de matéria. Pois bem. Pelo contrato de abertura de crédito bancário as partes convencionaram que os extratos demonstrativos das operações seriam elaborados unilateralmente pelo banco, até

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porque o BACEN impõe ao banco essa obrigação. Não havia, a respeito dessa conduta, nenhuma liberdade contratual para as partes contratantes. Estas haviam de se submeter ao regramento intervencionista ditado pelo BACEN. Desse modo, como já se disse antes, o banco emite os extratos para dar cumprimento a uma norma regulamentar e a uma norma contratual (esta, decorrente da convenção das partes). A emissão dos extratos não é um ato puramente potestativo do banco, mas sim o cumprimento de sua obrigação acima referida. Entretanto, essas considerações não autorizam a conclusão de que seria legítima a cláusula contratual em que o cliente, desde a assinatura do contrato, declara reconhecer como certos e líquidos, para fins de cobrança de dívida, os lançamentos contábeis feitos nos extratos elaborados e emitidos pelo banco. É verdade e é correto, juridicamente, que o banco elabore e emita extratos para cumprir seu dever contratual e a norma do BACEN a esse respeito. Isto não significa admitir que, a priori, os registros contábeis contidos nos extratos sejam certos e líquidos para fins de cobrança de dívida. É imprescindível que o banco conceda ao cliente pelo menos uma oportunidade de conferir os extratos e declarar, expressa ou tacitamente, se concorda ou não com os lançamentos feitos pelo banco.

O contrato de abertura de crédito bancário precisa ser complementado pelos extratos de movimentação elaborados e emitidos pelo banco estritamente de acordo com as disposições contratuais e aprovados pelo cliente, de modo expresso ou tácito. Somente assim tal contrato poderá caracterizar-se como título executivo complexo.

Durante a execução do contrato de abertura de crédito bancário, os extratos elaborados e emitidos pelo banco transformam-se no principal meio de comunicação entre as partes. Por isto, tais extratos integram o contrato e retratam o comportamento contratual das partes. Ora, é sabido que um dos principais instrumentos de interpretação do conteúdo contratual é, exatamente, o comportamento das partes durante a execução do contrato. Essa conduta dos contraentes revela a verdadeira intenção que tinham ao contratar e ao cumprirem o contrato. Assim, o banco deve elaborar e emitir os extratos observando estritamente as disposições do contrato celebrado, especialmente no que concerne ao cálculo de juros, encargos, multas, etc. Por isto, desde que concedido ao cliente pelo menos uma oportunidade pré-executiva para conferir os extratos bancários, e desde que o cliente não impugne oportunamente os lançamentos contábeis contidos nos extratos, há que se presumir que tais lançamentos estão certos e líquidos. Portanto, o cliente pode: (i) impugnar expressamente os extratos; (ii) aprovar expressamente os extratos; ou (iii) aprovar tacitamente os extratos. Obtida a aceitação dos extratos pelo cliente, de modo expresso ou tácito, os lançamentos feitos pelo banco estão aptos a produzir efeitos jurídicos plenos. Em síntese, a declaração de vontade receptícia feita pelo banco (elaborar e emitir os extratos) terá sido aceita pelo cliente e essa aceitação, expressa ou tácita, desencadeará os efeitos normais decorrentes do contrato em exame. Compete ao cliente, portanto, atuar com diligência na execução do contrato e na conferência dos extratos elaborados e emitidos pelo banco, apontando os eventuais equívocos que contiverem ou suscitando dúvidas que possa ter em relação ao procedimento adotado pelo banco. É esta, aliás, a solução adotada pela jurisprudência italiana, como anota Caio Enrico Balossini em livro recomendado e aplaudido por Francesco Messineo.39

39 BALOSSINI, Caio Enrico. Gli usi di banca e di borsa in Italia. Milão, Giuffrè Editore, 1962.

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Se operacionalmente for possível, o banco poderá emitir, também, um demonstrativo contábil discriminativo do cálculo apontado no extrato. Esta providência reforçará ainda mais os argumentos acima expostos.

Veja-se o que decidiu a 4ª Turma do STJ por v.u. em 16.06.92, em acórdão de que foi relator o Min. Barros Monteiro, encontrado in RT 692/165. Do julgamento participaram Athos Carneiro, Bueno de Souza, Fontes de Alencar e Sálvio de Figueiredo. A ementa foi a seguinte:

“Nota Promissória - Execução - Título vinculado a contrato de abertura de crédito - Saldo devedor assinalado no verso da cártula, de modo unilateral, pelo credor - Demonstrativo contábil que não acompanha a inicial - Fato que descaracteriza a dívida como líquida e certa - Carência decretada.”

É preciso evitar a situação específica a que se refere o acórdão mencionado, de modo que a execução possa ser manejada de modo idôneo. Os principais fundamentos da decisão foram estes:

a) o demonstrativo do débito anotado unilateralmente no verso da nota promissória e desacompanhado de extrato de conta-corrente descaracteriza a certeza e liquidez da dívida;

b) o dissenso jurisprudencial que possibilitou o Resp encontra-se in RT 570/103 e RTJ 101/260;

c) a tese defendida pelo relator foi esta: "O extrato reivindicado constitui o instrumento hábil, através do qual, uma vez aberto o crédito em conta corrente, se pode verificar em quanto soma o saldo devedor. Este documento é que conterá os saques, requisições, transferências, recibos e ordens de pagamento emitidos pela devedora financiada. Em precedente da Turma, de que também foi relator o E. Min. Athos Carneiro, considerou-se imprescindível que a inicial da execução, nos casos de abertura de crédito com desembolsos condicionados, viesse acompanhada do adequado demonstrativo contábil (REsp 6.949-CE). Concluiu a Corte naquela ocasião que o 'exequente deveria demonstrar ab initio através da juntada de demonstrativo adequado, a liquidez do crédito exigido, inclusive como garantia do direito de defesa a ser exercido através dos embargos";

d) os acórdãos paradigmas não contrariam o acórdão recorrido; apenas admitem que o contrato de abertura de crédito junto com o extrato seja título executivo extrajudicial (entenda-se, título executivo complexo).

Portanto, é preciso que o extrato seja documento bilateralmente aprovado pelas partes, de modo que possa ser integrado ao título executivo complexo.

(B) A QUESTÃO DA EXATIDÃO DA DÍVIDA DISCRIMINADA NO EXTRATO

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Observe-se, primeiramente, que essa questão frequentemente significa - sem meias palavras - preguiça do juiz em fazer qualquer conta para examinar o demonstrativo contábil. É essencial que as minutas contratuais padronizadas utilizadas pelos bancos apresentem critérios objetivos para a determinação do quantum devido pelo cliente. Além disso, o creditado precisa ter, ainda, oportunidade pré-executiva para conferir a exatidão dos extratos no prazo que pactuou com o banco. Seu comportamento nesse ponto deve ter significado específico: se não impugnar o extrato, interpretar-se-á sua conduta como aprovação. De fato, o princípio da segurança e da estabilidade das relações jurídicas não pode ficar a mercê dos caprichos ou da desídia do devedor relapso. A pessoa medianamente diligente confere seus extratos bancários regularmente e apresenta desde logo as impugnações que entender pertinentes.

Cumpridas estas exigências e não havendo reclamação do cliente, o teor do extrato deve ser reputado legítimo. O QUE SE TEM AÍ, DE MODO INEQUÍVOCO, É UM TÍTULO EXECUTIVO COMPLEXO, POIS CADA UM DOS DOCUMENTOS (o contrato e o extrato) RETRATA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DE AMBOS OS CONTRAENTES.

Uma vez conhecidas as taxas cobradas pelo banco, que precisam ser as constantes do contrato, simples operações aritméticas permitem à pessoa medianamente esclarecida e diligente calcular sua dívida e examinar a exatidão do extrato, que obviamente há de ser elaborado com estrita atenção aos critérios contratuais.

Adotando raciocínio próximo ao acima exposto, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por v.u., decidiu em 14.04.92, com relatório de Eder Graf (RT 689/218) caso com esta ementa:

“Mútuo - Execução - Contrato garantido por duplicatas caucionadas - Falta de demonstração analítica do valor exato do principal - Fato que não retira do título as características de liquidez e certeza - Embargos à execução julgados precedentes - Sentença mantida - recurso improvido - Inteligência do art. 585, II, do CPC.

A fundamentação do acórdão é a que segue:

a) cita vários precedentes no sentido de que a necessidade de realização de simples operações aritméticas para apurar o débito não retira a liquidez e certeza da dívida. RE 111.343-SC, RTJ 120/1.341; STJ Al 3.339, SP DJU 91, 14.5.90, p. 4.136 e 4.137; STJ, AI 3.876-RS, DJU 109, de 7.6.90, p. 5.217; STJ Resp 6.949-CE, DJU 61, de 1.4.91, p. 3.425; STJ, Resp 2.282-CE, DJU 160, 20.8.90, p. 7.963;

b) assevera que, como a execução não apresentava demonstrativo analítico da dívida, foi esta declarada ilíquida. Noutros termos, o título executivo acompanhado por demonstrativo analítico da dívida não perde liquidez.

(C) ELABORAÇÃO DO EXTRATO DE ACORDO COM O CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO

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Como já foi explanado acima, no contrato de abertura de crédito encontram-se, entre outras, as seguintes manifestações de vontade das partes :

a) é pela livre vontade das partes que se forma o contrato em questão;

b) no contrato, o creditado atribui ao banco a obrigação de lhe prestar contas dos créditos, débitos e demais lançamentos efetuados na conta corrente do cliente (o que, de resto, é imposto ao banco pela regulamentação do Banco Central);

c) a prestação de contas deve ser feita por meio de extratos, que integram o contrato e formam junto com este um título executivo complexo;

d) convencionam as partes as taxas e encargos cobrados pelo banco pela colocação do crédito à disposição do creditado e pela eventual utilização desse crédito;

e) o creditado poderá conferir a exatidão dos lançamentos feitos no extrato, dentro do prazo especificado no contrato ou na lei. Findo o prazo sem reclamação, o extrato é presumido documento legítimo aprovado por ambas as partes e que retrata dívida líquida, certa e exigível no seu vencimento;

f) a utilização do crédito nas condições pactuadas demonstra a inequívoca vontade do creditado de concordar com o que ficou dito acima, ou seja, com o fato de que o banco elaborará os extratos e que o cliente deverá examiná-los e, se for o caso, impugná-los, sob pena de serem presumidos como líquidos e certos os lançamentos dos extratos.

Outro critério que precisa ser levado em consideração é o seguinte: se o extrato for considerado ilíquido para retratar os saques feitos pelo cliente, também deverá ser considerado ilíquido para evidenciar os depósitos feitos pelo cliente na conta corrente. É O PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA PROVA.

Desse modo, sendo o cliente devedor do banco e tendo feito depósitos na conta, esses mesmos depósitos somente seriam debitados do montante creditado depois de serem apurados regularmente em processo de cognição. Óbvio que isto não interessaria ao creditado, que precisaria opor-se opor à cobrança da dívida sem poder deduzir desta as quantias já depositadas na conta corrente. De fato, em geral o banco utiliza notas promissórias para garantir a cobrança da dívida oriunda do contrato de abertura de crédito bancário, teria que cobrar a dívida inteira - sem dedução dos depósitos feitos pelo cliente - se este viesse a dizer que o extrato é ilíquido.

Há precedente muito interessante que, apesar de não tratar diretamente do contrato de abertura de crédito bancário, apresenta fundamentação que merece estudo exatamente porque cogita da formação de um título executivo complexo. O acórdão está na RT 644/156 e é da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, referente a um agravo de instrumento decidido por v.u. em 13.04.88, relatado por Celeste Vicente Rovani. Veja-se sua ementa:

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“Execução – Legitimidade "ad causam" - Ação proposta por quem não é titular do direito reclamado - Cisão do direito subjetivo de crédito e da ação respectiva de cobrá-lo, permanecendo esta com o cedente e integrando aquele o patrimônio do cessionário - Admissibildade - Princípio da autonomia de vontade não violador da ordem pública ou de postulados legais - Cessão, ademais, "pro solvendo", permanecendo em situação de pendência a responsabilidade do cedente para com o cessionário - Fato que confere àquele interesse na execução do crédito, a justificar sua legitimação - Inexistência de ofensa aos princípios dos arts. 75do CC e 6° do CPC.

Execução - Mútuo em moeda estrangeira - Existência de contrato acessório de cessão de crédito e posterior aditivo - Documentos que não impedem, modificam ou alteram a dívida, apenas substituindo o titular do direito subjetivo, permanecendo o direito de cobrança com o cedente ou credor primitivo - Liquidez e certeza do crédito executado que defluem da avença contratual, acompanhada do respectivo demonstrativo do saldo devedor.”

A interessantíssima e rica fundamentação da decisão pode ser sintetizada nos termos que seguem:

a) o acórdão discute se é possível o cedente do crédito decorrente de mútuo em moeda estrangeira permanecer como titular do direito de ação em face do que dispõem o art. 6°, CPC e o art. 75, CC;

b) traz várias opiniões doutrinárias que embasam a resposta afirmativa e desenvolve muito bem o raciocínio teórico;

c) no que concerne à liquidez e certeza da dívida exequenda, embora se trate de mútuo em moeda estrangeira, pode-se aproveitar analogicamente os trechos adiante citados;

d) a decisão prestigia o poder regulamentar do BACEN na matéria. Observa que Resolução do BACEN não é lei e - portanto - não pode criar título executivo. No entanto, o acórdão invoca a Resolução e diz que os documentos que integram o contrato, conjuntamente, atendem ao requisito legal de certeza e liquidez da dívida. (é razoável admitir que, no caso do contrato de abertura de crédito, o mesmo princípio deveria ser observado);

e) o acórdão observa, ainda, que a documentação complementar foi - em sua maior parte - assinada pelo executado.

No caso do contrato de abertura de crédito bancário, foi explicado que os documentos que integram o contrato resultam da declaração de vontade das partes para este fim e, mais ainda, que os extratos não impugnados consideram-se aprovados pelo creditado porque este:

I) conheceu as taxas aplicáveis ao contrato antes de utilizar o crédito;

II) usou o crédito efetivamente; e

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III) não impugnou os extratos no prazo em que deveria fazê-lo e de acordo com as previsões do contrato celebrado com o banco.

Daquele acórdão da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul merece destaque um trecho da decisão bastante significativo sobre esse ponto:

"Com efeito, estabelece a cláusula décima-quinta do contrato de repasse de recursos externos, sob a égide da Resolução n° 63 do Bacen: 'A devedora e seu(s) garante (s) reconhecem como prova dos débitos da primeira, decorrentes deste contrato, as ordens, recibos, cheques ou saques que emitir ou assinar a devedora, ou qualquer pagamento ou lançamento, sob aviso, efetivado pelo banco; este, por sua vez, para os mesmos fins, reconhecerá os recibos e as comunicações que passar ou expedir, em razão de importâncias recebidas a crédito da devedora. Desta forma, fica expressa e plenamente assentada a certeza e determinada a liquidez da dívida decorrente deste contrato, compreendido o cálculo dos juros, das comissões, dos encargos moratórios, da multa contratual e das demais cominações e responsabilidades, que, com o principal, formarão o débito exigível ...' (fls. 144).

O valor da execução, de outra parte, foi discriminado parcela por parcela, encargo por encargo, quer no corpo da petição inicial da execução, quer em demonstrativo do saldo que a acompanha (fls. 137 e 138 e 235 e 236).

A junção do contrato com seus aditivos e o demonstrativo do saldo devedor constituem o título executivo avençado contratualmente.

Não foi argüido qualquer excesso ou erro de cálculo, seja nas razões do pedido de anulação da execução (...), seja nas razões do recurso (...) ou na petição de ordem do mandado de segurança (...).

Só o erro de cálculo ou excesso de valores podem macular e afastar a executividade do título de crédito constituído pela junção do contrato de repasse de recursos externos e do demonstrativo contábil do saldo devedor.

A respeito da validade do cálculo efetuado pelo credor, relativo ao contrato de repasse de empréstimos externos, já asseverou esta Câmara: 'Embargos à execução - contrato de repasse de empréstimo em moeda estrangeira, com base na Resolução 63 do Bacen - Dívida constituída de duas partes: principal certo e acessórios e encargos determináveis - Outorga de poder de integrar a dívida principal por cálculo dos acessórios e encargos e demais despesas contratuais conferido ao credor, com renúncia dos devedores aos meios de defesa, excetuada a ação de repetição - Perícia contábil - Desnecessidade - Tendo as partes avençado que o cálculo do débito será efetuado pelo credor, como complemento do contrato de repasse de empréstimo em moeda estrangeira, a conta que torna determinada a parte variável do débito lhe confere certeza, liquidez e exigibilidade, fazendo-se desnecessária a perícia contábil, mormente quando a parte devedora renuncia a qualquer meio de defesa, a não ser a ação de repetição, por erro de cálculo. O cálculo elaborado pelo credor, atendidos os fatores convencionados, toma-se parte integrante do

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próprio contrato, que o título de crédito extrajudicial - Preliminar rejeitada - Apelo improvido.' (JTARS 59/176)

(...) o contrato de repasse de recurso externo, integrado do demonstrativo contábil do saldo devedor, na forma avençada, constitui título executivo extrajudicial, posto que apresenta os requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade."

Em situação semelhante, encontra-se in RT 682/184 uma decisão da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Paraná, por v.u., de 19.06.91, da qual foi relator J.J. Cordeiro Cleve e que apresenta esta ementa:

“Contrato de adesão - cartão de crédito - Utilização que torna perfeito e acabado o vínculo obrigacional - Validade dos lançamentos a débito nele embasados.’

Não se trata de ação de execução, mas do antigo procedimento sumaríssimo em que o usuário de cartão de crédito tentou desconstituir a dívida. Todavia, os fundamentos desse julgado servem para a análise da execução do contrato de abertura de crédito bancário e podem ser sintetizados assim:

a) os lançamentos cobrados pela Credicard estavam baseados em contrato; os extratos demonstravam a utilização do cartão e os encargos cobrados do usuário;

b) os lançamentos não foram aleatórios, unilaterais ou sem previsão contratual;

c) o uso do cartão durante meses, sem reclamação contra os lançamentos contidos nos extratos, caracterizou a existência da dívida e a licitude dos lançamentos amparados contratualmente.

Outra decisão encontrada in RT 676/167, agora da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Paraná, por v.u. em 07.08.91 e relatada por Ulysses Lopes é útil ao presente estudo da execução do contrato de abertura de crédito bancário. Sua ementa é esta:

“Execução - Pluralidade de títulos vinculados ao mesmo negócio jurídico - Admissibilidade - Carência de ação não reconhecida.”

Os fundamentos da decisão são sintetizados como segue:

a) o título executivo extrajudicial em que se fundamentou a execução fora emitido com base em contrato de financiamento, cujo valor exeqüendo estava demonstrado por meio de extratos de conta corrente aos quais o Tribunal reconheceu liquidez e certeza;

b) a execução seria admitida mesmo se não fossem imediatamente apresentados os extratos (Ap. cível 1.186/90, do mesmo relator), porque os critérios de cálculo já estavam assinalados no contrato.

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No mesmo sentido, encontramos in RT 652/151 uma decisão da lª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Paraná, por v.u. e cujo julgamento ocorreu em 28.03.89, com o relatório de Accácio Cambi. A ementa diz:

“Execução - Nota promissória - Título vinculado a contrato de mútuo - Empréstimo em conta corrente – Falta de demonstração da utilização da quantia colocada à disposição do devedor - Irrelevância - Validade da cláusula contratual que estabelece ser o extrato da conta representativo do saldo devedor.”

A respeito dos fundamentos desse precedente, temos que observar o seguinte:

a) a questão refere-se a empréstimo (mútuo) em conta corrente com garantia fidejussória e com emissão de nota promissória com vencimento a vista como garantia da operação e devidamente avalizada;

b) a creditada e avalista se obrigaram a pagar o saldo existente na data do vencimento, mais juros, correção monetária e multa contratual;

c) o Tribunal entendeu desnecessária prova pericial, porque o saldo da dívida podia ser perfeitamente apurado pelo extrato em combinação com o contrato. O acórdão contemplou o fato de se tratar de título executivo complexo e também o fato de que, analisadas as contas, mostraram-se elas conforme ao que havia sido estipulado no contrato. Veja-se trecho do mencionado acórdão:

"Nesse sentido, o 1º Simpósio sobre as condições Gerais dos Contratos Bancários de Curitiba concluiu que: '6. É valida a cláusula que estabelece o reconhecimento prévio, por parte do devedor, da liquidez e certeza da conta gráfica representativa do débito contratado (...). "

"Os extratos de conta corrente de fls. 17-19 e os comprovantes de fls. 20-23, da execução, demonstram a existência do saldo devedor devido. Além disso, pela cláusula 7ª do contrato referido, os embargantes apelantes reconhecem a validade de tais documentos, sendo que tal cláusula é perfeitamente reconhecida pelos Tribunais de Alçada do País, conforme conclusão supramencionada."

Nota-se que em quase todas as decisões até aqui referidas a questão sempre é tratada com vistas à bilateralidade que o extrato deve apresentar, ou seja, é necessário que o devedor tenha tido oportunidade pré-executiva para conferir os extratos elaborados e emitidos pelo banco.

(D) OS PRINCÍPIOS, USOS E COSTUMES ATINENTES AOS CONTRATOS BANCÁRIOS

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Outro argumento que precisa ser considerado em matéria de execução de contrato de abertura de crédito bancário é o que se refere aos princípios regentes da atividade bancária e aos usos e costumes bancários. Evidente que o contrato não pode prever detalhadamente todas as situações relacionadas com tal operação creditícia. Há milhões de operações semelhantes feitas todos os dias pelo banco e nem sempre é possível que o documento contratual discipline situações muito específicas. Nesse contexto, não é possível formalizar no documento referido todos os atos e entendimentos das partes.

A palavra "crédito" envolve os conceitos de confiança, lealdade e boa-fé entre as partes reciprocamente consideradas. Por isto, é preciso examinar como se operacionalizam as diversas espécies de abertura de crédito bancário. Esses detalhes, não estando previstos em contrato, regem-se pelos usos, costumes e princípios que regulam a atividade comercial bancária.

Há um acórdão que trata de questão concernente ao Mercado de Capitais, em que os usos e costumes têm imensa força jurígena. As operações são quase todas realizadas de modo verbal ou escritural e só mais tarde são formalizadas por escrito. Entre esses dois marcos (o da realização da operação e o da formalização dela), as relações jurídicas se estabelecem entre as partes e são reguladas pelos ditos usos e costumes. Constata-se o mesmo fenômeno em numerosos contratos bancários. A teleinformática e o conceito de documentos puramente escriturais exigem cada vez mais o prestígio da confiança, lealdade e boa-fé nos negócios bancários, com aplicação marcante dos usos, costumes e princípios que regem a atividade dos bancos em face dos clientes. A não ser assim, o banco não teria segurança alguma ao acolher, por exemplo, uma ordem do cliente dada por telefone para resgatar certa aplicação financeira. Na mesma situação de insegurança estaria o cliente, que poderia ver seus depósitos manipulados por terceiros mediante um simples telefonema. O acórdão concernente a esse assunto merece ser examinado. Está inserido na RT 642/110 e a decisão, que é de 16.02.89, foi unânime e proferida pela 4ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo sido relatada pelo Des. Alves Braga. Sua ementa é a que segue:

“Mercado de Capitais - Aplicações financeiras - Realização através de agente autônomo credenciado da instituição nas instalações desta e em impresso próprio devidamente provada - Normalidade da transação presumida - operações que, por suas características e celeridade com que se realizam repousam, em regra, no fator "confiança" que o aplicador deposita nas entidades respectivas, descuidando-se do aspecto formal - Irrelevância de não se ter dado por cheques nominais emitidos pelo investidor em favor da financeira e de omitido o seu nome na prestação de contas do intermediador, que não exigia tal cautela - Aplicação da teoria da aparência de direito, que deve produzir, para o terceiro de boa-fé, os mesmos efeitos das situações regulares – (...).”

A argumentação desenvolvida na decisão:

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a) examina, com profundidade, os mecanismos de funcionamento do Mercado de Capitais. Tal análise pode, em certa medida, ser aproveitada para as operações realizadas no mercado bancário;

b) cuida da confiança entre cliente e instituição; justifica o informalismo das operações com base na confiança (e o contrato de abertura de crédito é personalíssimo e se funda muito nessa confiança);

c) trata historicamente da aplicação da teoria da aparência dos direitos e da prevalência da aparência sobre a realidade em certos casos;

d) permite aproximar o caso objeto da decisão e contrato de abertura de crédito bancário a partir das seguintes ponderações:

- o contrato de abertura de crédito em conta corrente exige habitualmente a emissão de extrato que, em milhões e milhões de casos, são exatos e não sofrem impugnação pelos clientes; a emissão desses extratos é cumprimento de obrigação contratual do banco em face do cliente e cumprimento de obrigação regulamentar a que se sujeita o banco;

- os lançamentos dos extratos presumivelmente estão conformes ao contrato, especialmente se os mesmos extratos não forem impugnados pelo cliente no prazo que ele e o banco estabeleceram;

- as relações banco/cliente são motivadas pela boa-fé e confiança recíprocas, tanto que o banco permite o uso do crédito de modo muitas vezes informal. O cliente se prevalece dessa confiança que o banco nele deposita para realizar saques;

- da mesma maneira, o banco confia que os lançamentos dos extratos, obviamente desde que exatos, não serão discutidos pelo cliente, especialmente depois de o crédito ter sido utilizado;

- a massificação das operações de emissão de extratos, que são realizadas diariamente aos milhões, virtualmente impede formalismos no sentido de que ditos lançamentos sejam, quase que diariamente, conferidos e formalmente aprovados pelo cliente para que, só então, este possa fazer uso do crédito que lhe foi concedido; esses procedimentos, inclusive, contrariariam a necessidade de celeridade de utilização do crédito, que é um dos traços característicos do contrato em exame;

- os usos e costumes do comércio bancário são notórios e largamente aceitos, quase nunca discutidos, no sentido de que o extrato é um dos meios mais eficientes de comunicação entre bancos e clientes no que diz respeito ao relacionamento comercial entre eles;

- essas premissas têm especial relevo por serem as atividades bancárias enquadradas entre as atividades comerciais (C. Coml., arts. 119 e 120) e que, por isto, estão sujeitas ao regime jurídico típico das práticas comerciais ;

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- em relação ao extrato bancário, devem ser aproveitados os argumentos da boa-fé, confiança (aliás, elemento essencial de toda operação de crédito), celeridade, informalidade, usos e costumes consagrados e de prova documental que deve ser presumida como idônea, somente podendo ser desconstituída pelo cliente em ação própria (porque a ilegitimidade do documento é excepcional num universo de milhões de idênticas operações não impugnadas).

Ainda no contexto da confiança, lealdade e boa-fé entre as partes pode ser citado acórdão que decidiu questão em que foi constatada divergência entre o extrato e a contabilidade do banco. O acórdão está na RT 639/151. É da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, de 29.11.88 e que com votação unânime, relatada por Luiz Perrotti, tem a seguinte ementa:

“Responsabilidade Civil - Banco - Contabilização irregular de quantias comprovadamente entregues por cliente para aplicação em "open market" - Obrigação de devolvê-las acrescidas dos respectivos rendimentos.”

Os fundamentos da decisão, sinteticamente, são estes:

a) trata-se de fato de contabilização irregular de aplicação financeira feita por culpa do banco. A decisão foi muito desfavorável ao banco ao examinar os erros de contabilidade;

b) no que interessa a este trabalho, extrai-se o seguinte trecho:

"Por outro lado, não colhe o argumento de que o sobredito documento de fls. 9 apresenta-se desprovido de qualquer valor probante, pois, como cediço, o traço marcante da relação entre os clientes e o banco está na confiança, sendo comum, nos dias atuais, até aplicações por telefone."

c) para este caso valem os comentários feitos relativamente ao acórdão anterior: confiança, informalidade, celeridade.

Ora, o Código Comercial atribui forte valor probante à escrituração regular de um comerciante. Logo, desde que os lançamentos do extrato correspondam aos lançamentos contábeis do banco, devem ser tidos por legítimos nos expressos termos dos arts. 10 a 20 (especialmente este) do C.Coml. Portanto, está distorcido o entendimento jurisprudencial que de modo generalizado considera o extrato desprovido de efeitos executivos sem que se examine, no caso concreto, se tal extrato está ou não conforme as previsões contratuais. O extrato, se conforme a escrituração contábil do banco, tem os efeitos previstos no art. 20, do C.Coml. Na medida em que o extrato é considerado pelas partes como integrante do contrato, a mesma legitimidade dos livros comerciais deve ser atribuída ao extrato elaborado em obediência aos critérios fixados pelas partes no contrato bancário. Como se vê, não é o banco quem atribui presunção de legitimidade dos lançamentos feitos no extrato, mas sim a própria lei (art. 20, C.Coml.), já que o extrato deve necessariamente corresponder ao que está contido nos livros de escrituração contábil do banco e aos critérios de cálculo objetivos fixados no contrato.

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(E) ANÁLISE DE DECISÃO HISTÓRICA SOBRE O TEMA

Para concluir este seguimento do trabalho, imprescindível fazer referência a uma histórica decisão contida na RT 570/103, proferida pelo 1° Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, em 21.10.82, no Incidente de Uniformização de Jurisprudência ocorrido nos EI 283.540, de que foi relator o então juiz Cândido Dinamarco. É a seguinte a ementa do acórdão:

“Execução por título extrajudicial - Contrato de abertura de crédito em conta corrente - Formalização perfeita - Creditado ciente dos registres contábeis - Dívida líquida e certa - Título executivo extrajudicial - Uniformização de jurisprudência.”

O incidente de uniformização de jurisprudência foi suscitado para se saber se é título executivo o contrato de abertura de crédito, assinado por correntista e por duas testemunhas e instruído com extratos demonstrativos do valor do crédito. Houve duas teses: uma favorável ao banco e outra contrária. Venceu a tese favorável.

Aderiram à tese favorável ao banco: Ary Belfort, Oliveira Lima, Álvaro Lazzarini. Luis de Macedo, Nelson Hanada, Pereira da Silva, Toledo César, Negreiros Penteado, Jorge Tannus, Pinto de Sampaio, Pinheiro Rodrigues, Ruy Camillo, Minhoto Junior, Orlando Gandolfo, José Osorio, Ferreira da Cruz, Furquim Rebouças, Benini Cabral, Alexandre Loureiro, Fonseca Tavares, Cunha Bueno e Oetterer Guedes.

Pode-se resumir e sistematizar os pontos mais relevantes do debate como segue:

a) a questão foi examinada a partir de dados históricos. O ponto principal da discussão foi o de identificar o momento em que o devedor admite o débito. Entendeu-se que este momento é o mesmo da criação do vínculo obrigacional quando o valor já está perfeitamente definido;

b) discutiu-se, também, se o devedor poderia ficar sujeito ao arbítrio ou aos critérios do credor com a cisão da relação e da prestação em dois momentos: um, o da formação do vínculo, e o segundo, aquele da identificação do valor por ato unilateral do banco;

c) a tese refuta o entendimento de que o valor da dívida unilateralmente calculado pelo credor desfigura o título executivo que, ademais, não poderia ser criado de modo privado tendo em vista que somente seriam títulos executivos os criados legalmente;

d) a tese sustenta, ainda, que todo título executivo tem dois elementos: a declaração de existência de obrigação que deve ser satisfeita por via executiva; e a ordem de execução;

e) ficou esclarecido que a palavra título pode ter significados diferentes: l) título como qualidade jurídica; 2) título que habilita alguém juridicamente para fazer uma coisa; 3) ter título pode significar ter a posse de um documento; 4) pode-se ter o documento sem ser titular do direito nele

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retratado; 5) pode-se ser titular de um direito sem que se tenha o título (documento);

f) o normal é que o titular de um direito esteja munido do respectivo título. O título executivo é indistintamente conceito de direito material e de direito processual;

g) anota a evolução dos títulos executivos desde a Idade Média. Para facilitar a agilidade no comércio, precisava-se de documentos que dessem a certos créditos tutela mais fácil e rápida que a de um processo ordinário. Confissão do devedor perante notário público equivalia à confissão feita perante o juiz. Desse instrumento público de confissão passou-se gradativamente para os títulos executivos extrajudiciais. Por fim, a lei processual passou a enumerar, taxativamente, quais os documentos privados dotados de força executiva;

h) título executivo é um instrumento revestido de fórmula executória (ordem dada pelo Estado a seus agentes para realizar os direitos que o título atesta). Para usar a força executiva do título assim qualificado pela lei, o credor precisa estar enquadrado rigorosamente na hipótese legal. Só o Estado atribui força executiva a títulos extrajudiciais;

i) a tese examina, também, que o art. 585, II, do CPC, considera título executivo "o documento público, ou o particular assinado pelo devedor e subscrito por duas testemunhas, do qual conste a obrigação de pagar quantia determinada (...)". Entende que a expressão "quantia determinada" é restritiva para fins de se identificar qual documento pode ser considerado título executivo;

j) examinam os juízes a problemática de adaptação do direito positivo à realidade socioeconômica e as dificuldades de aplicação da norma a essa realidade. Concluem dizendo que o juiz é o melhor intérprete e maestro da aplicação da norma positiva à realidade;

k) com tais premissas, passam a verificar os juízes que tipo de execução se estaria a admitir com apoio no contrato de abertura de crédito em conta corrente para garantia de cobertura de cheques;

l) registra que o título exeqüendo indica a data de vencimento, o valor do crédito aberto, está subscrito por duas testemunhas e há cláusula com o seguinte teor: "vencido o presente contrato (...) o creditado pagará imediatamente o saldo devedor, sob pena de ficar constituído em mora, independentemente de aviso ou interpelação judicial ou extrajudicial, passando o débito a vencer, sem prejuízo da exigibilidade da dívida, os encargos (...)". Há outra cláusula em que se estabelece que "o creditado reconhecerá como prova de seu débito os extratos demonstrativos ou avisos de lançamentos que o Banespa vier a expedir-lhe em conseqüência dos débitos e saques realizados na sua conta (...) e o Banespa reconhecerá como prova dos créditos realizados em favor dos creditados os recibos que passar de quantias entregues para aquele fim (...) ou avisos (...) de quaisquer outros

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créditos (...). Desse modo, ficam expressa e plenamente assentados a certeza e a liquidez do saldo da conta". Comentam esses dados como seque:

"Cria-se, então, situação algo anômala. Se é o Banco credor de cheque de emissão comum, desprovido de fundos, poderá propor execução. O credor do cheque, em geral, o pode.

Mas em contrato em que se atribui reciprocidade na confiabilidade maior, ou seja, ainda que inexista o crédito, tem-se 'como se' existisse, não se poderá admitir esse crédito decorrente do contrato como líquido, porque o valor não estaria previamente fixado.

Atribui-se ao devedor o grande direito de não mencionar quais os débitos que pretenda contrair, contrariamente ao devedor comum que apenas os possa previamente indicar ou precisar.

Por outro lado, normalmente os cheques especiais permitem o levantamento do valor em qualquer agência do Banco contraente e, até mesmo, podem permitir se torne inviável o controle do teto sobre o valor creditado, a não ser que as diversas agências dispersas pelo Estado ou país, estejam tecnologicamente dotadas de controles computadorizados. O devedor assume o arbítrio de o ultrapassar em dado momento, com saques em agências diversas, de mais de uma cidade, sem que possa vir a sofrer execução e constrição imediata sobre o seu patrimônio, a julgar-se inviável a execução.

Ou seja, é-lhe atribuído um plus, quanto ao débito, a depender apenas de sua probidade, e, em matéria de exeqüibilidade, seria favorecido com um minus de poder constritivo atribuído ao credor.

O princípio do direito que estaria marginalizado, desprezado o extrato como demonstrativo da dívida líquida, seria aquele de nemo auditur turpidudinem suam allegans. Ou seja, o extrato é o pressuposto para a propositura da execução. Mas apenas para a propositura. Não é pressuposto assegurador da sentença de improcedência dos embargos. Aqui o devedor não poderá argüir unilateralidade da constituição do valor da 'quantia determinada', porque ele poderá contrapor ao sujeito ativo do crédito documentos equiparados: comprovantes de depósito e outros relacionados com créditos obtidos. A título de começo de prova, outros extratos bancários, que o devedor probo guarda consigo e os próprios canhotos de talonários.

O legislador afirma que o título da dívida é executório, existente menção à quantia determinada, mas não afirma que essa quantia no caso de instrumento particular tenha que ser previamente estabelecida, ou que não possa ser tida como fixada em função de convenção entre as partes, atitude que seria sumamente paternalista do Estado, não a impedir a formação de outros títulos executórios, o que é razoável, mas a não admitir que em título executório, a formação do crédito possa estar condicionada a operações que não possam ser previamente estabelecidas. A se entender, assim, em detrimento do conteúdo da norma, estar-se-á a dar maior hegemonia à formula vocabular, a privilegiar a regra literalmente entendida, (...). "

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Ou melhor, se surge o contrato de abertura de crédito para atendimento de alguma situação econômica e social, que o tome ajustado a esses novos condicionamentos, não se lhe poderia retirar o caráter de liquidez, fazendo-se com que o direito se contivesse, se restringisse a uma estrutura anterior em que as relações poderiam se constituir em meio a menor celeridade.”

m) a tese passa a examinar a finalidade do contrato de abertura de crédito bancário como segue:

"Supõe-se que a uma necessidade criada pela sociedade de consumo, de antecipar compras ou pagamentos, para que o creditado possa auferir alguma vantagem, passível de ser obtida hoje, com o preço atual, a ser quitado amanhã mercê do crédito concedido antecipadamente. Poder-se-ia imaginar também que o devedor possa estar a usufruir do crédito para investimentos ou operações financeiras que lhe tragam vantagem amanhã. Tem-se o quadro da celeridade com que se apresentam situações que podem exigir a obtenção rápida de capital, para que beneficiado seja o patrimônio do correntista, mormente quando a sociedade brasileira se vê tangida por inflação que em sua espiral esvazia qualquer potencial aquisitivo. Pode ter função até mesmo de contra-agente da recessão.

O argumento de política financeira, contraposto à exigibilidade da prévia indicação do valor, seria a imprescindibilidade de se guarnecer o respeito pelo cheque em geral, qualquer que seja sua espécie, mormente em hipóteses em que, do contrário, prevaleceriam as vantagens para o devedor e desapareceriam os ônus.

Argumento político, voltado à relativa estabilidade que deve gerar o Direito, constitui-se também em manter-se o Direito atento e presente, não obstante as modificações na infra-estrutura social e econômica, com novas situações não solucionáveis judicialmente a ser lida a norma em contornos literais, e não em função da própria situação pela norma regulada, a incidir ou não, como se a circunstância e o cenário histórico se mantivessem estáticos, como ocorria na data em que se tornou vigente a norma.

Se se fosse, porém, utilizar brocardos de hermenêutica, talvez aquele que viesse a incidir na hipótese fosse o conhecido a minori ad majus, ou seja, o devedor que de imediato emite o cheque e indica o valor determinado devido, está sujeito à execução e o que faz jus à faculdade de vir a fixá-lo sucessivamente em variadas operações, no decurso de seis meses, emitindo cheques à vontade, 'como se' fosse possuidor de fundos, mas realmente possuidor de crédito, estará liberado da cobrança executória.

Situação de dívida líquida seria a menor, que revela a probidade do devedor, e não seria a maior, aquela em que as razões de confiabilidade recíproca foram previamente estabelecidas?

n) cita a lição interpretativa de Recaséns Siches, segundo a qual as palavras expressam simbolicamente os sentidos do mundo a que se referem. Têm um

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sentido autêntico definido a partir de dois contextos: o da frase e, sobretudo, o contexto real ao qual a frase se refere. Por isto, a interpretação deve corresponder à lógica razoável;

o) cita RE 91.769-1, do STF, relator Min. Rafael Mayer, de 24.11.81, lª Turma: "o saldo constante de extrato de movimentação de abertura de crédito em conta corrente, devidamente formalizado o instrumento contratual e ciente o creditado dos registros contábeis, é representativo de dívida liquida e certa para legitimar a execução por título extra judicial, nos termos do art. 585, II, do CPC." (in RTJ 101/260). Este precedente teve por relevantes a existência de relação contratual continuada, com sucessivas operações de retirada e depósito sempre tendentes ao resultado de determinado saldo, o que é da essência do próprio contrato, revelador da posição jurídica do creditado, ou de ser credor de disponibilidade ou devedor do que tenha utilizado. "(...) O que resulta desses extratos, devidamente admitidos como expressivos do estado da conta pela própria cláusula contratual acima transcrita, é a certeza e liquidez de quantia residual, em determinado momento, apta a figurar como título executivo.".

Cabe ponderar, nesse ponto do presente estudo, que seria possível argumentar que, pelo menos até o penúltimo movimento do creditado, o extrato foi aceito por ele. Por exemplo, se após sucessivas movimentações, o extrato indicar um saldo de 10 e, sobre esse saldo, o creditado fizer nova movimentação, pode-se sustentar que admitiu que até a penúltima movimentação a conta estava correta. Vale também ponderar a respeito dos efeitos da quitação que pode decorrer da aprovação do extrato.

p) a tese nega o caráter leonino da cláusula que atribui liquidez e certeza de extratos futuros. Anota o movimento evolutivo do direito obrigacional, com caráter publicístico e socializante. Nesse contexto evolutivo é que o juiz tem que se inserir para julgar. Daí conclui que a cláusula não é nociva para o creditado.

q) chama a atenção para a ampla regulamentação do contrato de abertura de crédito pelo Banco Central, com evidente propósito de regular o funcionamento de tal contrato.

A tese contrária ao banco não é desprezível. Aderiram a ela: Rafael Granato, Rangel Dinamarco, Carlos Antonini, Arthur de Godoy, Paulo Shintate, Penteado Manente, Nelson Altemani, Jorge Almeida, Renan Lotufo, Nelson Schiavi e Olavo Silveira.

O voto vencido teve como relator Cândido Dinamarco e contém os elementos a seguir indicados:

a) afirma que o título executivo é que legítima a agressão patrimonial objeto da execução forçada;

b) a exigência do título representava, na Idade Média, o ponto de equilíbrio entre as tendências romana e germânica. Os romanos permitiam quase sempre (em diferentes graus) novo exame da pretensão. Já os germânicos repudiavam

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que alguém pudesse ser juridicamente atingido em seu patrimônio sem prévio consentimento. Por volta do ano 1000, surge o título executivo como elemento conciliador das duas tendências. É ele um juízo de probabilidade de que o crédito existe quando a execução é feita. A probabilidade resulta ou da declaração do devedor ou da autoridade do Estado;

c) diz que estatisticamente é muito maior o número de embargos à execução julgados procedentes do que improcedentes;

d) afirma que o juízo de probabilidade de existência do crédito retratado no título é sempre do legislador. Por isto os títulos executivos são indicados taxativamente na lei (tipicidade);

e) além do requisito da tipicidade, os títulos executivos devem atender à forma exigida por regras específicas que o disciplinam;

f) como todos os instrumentos processuais guardam relação com o direito material, também o título executivo a apresenta. Na execução, busca-se a satisfação do direito material do credor e, por isto, o título precisa se referir a obrigação líquida e certa;

g) diz que o requisito da liquidez dos créditos em execução tem por finalidade dar ao juiz segurança de que está agredindo legitimamente o patrimônio do executado;

h) assevera que "Tratando-se de título corporificado em ato de vontade do devedor (...), é indispensável que esse ato de vontade já expresse o montante da obrigação que ele reconhece dever. É a lei que outorga eficácia executiva a esse ato, não a sua vontade. Se o devedor diz que pagará, mas não diz quanto pagará, falta um dos requisitos do título executivo. A não ser assim, a exigência legal da liquidez da obrigação ficaria letra morta. Permitir que, depois, venha o próprio credor a declarar quanto o devedor tem que pagar significa desnaturar o título executivo. Também de nada adianta a prévia aceitação da futura liquidez declarada no contrato, porque não resulta da vontade do devedor a especificação do quantum. Quando o contrato é assinado, débito algum existe e é paradoxal confessar dívida futura cujo valor é parcialmente fixado unilateralmente pelo credor;

i) afirma que os valores dos juros, comissões e encargos são incluídos no extrato e que não se sabe como foram calculadas essas parcelas. O contrato nem sempre indica qual a taxa dessas verbas e que, no mais das vezes, os extratos não são acompanhados de demonstração contábil do cálculo realizado e cujo resultado aparece neles aparece;

j) nem o devedor e nem o juiz podem verificar de pronto o acerto ou o desacerto dos cálculos do extrato. O título executivo deve ser capaz de trazer ao juiz, sem outras provas, a certeza de que pode proceder legitimamente à execução. Admitir a execução com base em extrato é inverter as coisas: atacar o patrimônio do executado e atribuir a ele o ônus de desconstituir o título;

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k) diz que a função econômica do crédito bancário é menos relevante que o risco que se tem ao admitir a execução ilegítima contra o executado. Diz que os bancos devem ser criativos para encontrar solução que corresponda aos seus interesses, sem usar o Judiciário como instrumento dos lucrosos negócios bancários.

(F) DECISÕES JURISPRUDENCIAIS MAIS RECENTES

o Superior Tribunal de Justiça vinha acompanhando a Súmula nº 11 do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, segundo a qual o contrato de abertura de crédito bancário, desde que acompanhado por demonstrativo contábil idôneo, era título executivo extrajudicial.

Nesse sentido, o STJ proferiu muitas decisões, entre as quais, apenas para fins de referência, cita-se o Recurso Especial nº 85.877, oriundo do Paraná, em que foi relator o eminente Ministro Barros Monteiro (também relator dos Recursos Especiais nºs 55.354-7, do Rio de Janeiro, 60.233-5, de Minas Gerais e 74.441, também de Minas Gerais) o Recurso Especial nº 11.037-0, proveniente do Distrito Federal, relatado pelo insigne Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Posteriormente, a Segunda Seção do STJ, no Recurso Especial nº 108.259, julgado em 12.12.98, proferiu decisão no sentido de que o contrato de abertura de crédito bancário, mesmo que acompanhado de extrato demonstrativo da dívida, não constitui título executivo extrajudicial. A jurisprudência filiada a esse entendimento passou então a ganhar prestígio e deu origem à Súmula 233 do STJ.

Sobre esse ponto, reitera-se aqui as ponderações feitas anteriormente, a saber:

1) o problema de eventual incerteza, iliquidez ou inexigibilidade da dívida decorrente de contrato de abertura de crédito bancário só poderia existir em relação à modalidade de crédito rotativo;

2) o entendimento consubstanciado na referida Súmula não pode ser aplicado indiscriminadamente à qualquer execução de contrato de abertura de crédito bancário, pois há situações em que tal contrato, desde que acompanhado de extrato de movimentação aprovado pelo devedor e elaborado pelo banco de acordo com os critérios de cálculo objetivos fixados no contrato, caracteriza título executivo complexo perfeitamente apto para fundamentar a ação de execução.

(VII) SÍNTESE DA EXPOSIÇÃO E SUGESTÕES DE MODIFICAÇÕES NO CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO BANCÁRIO PARA QUE POSSA

SE CONSTITUIR EM TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL

A longa exposição feita neste trabalho merece síntese. A execução do contrato de abertura de crédito bancário rotativo, acompanhado de extrato representativo da dívida exequenda, pode ser feita com sucesso desde que atendidos os seguintes requisitos:

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1º - no contrato, o creditado atribuirá ao banco a obrigação de lhe prestar contas dos créditos, débitos e demais lançamentos efetuados na conta corrente do cliente;

2º - a prestação de contas será feita por meio de extratos, que integram o contrato e formam juntamente com este um título executivo complexo;

3º - as partes devem convencionar no contrato critérios objetivos para determinar as taxas de juros e encargos cobrados pelo banco pela colocação do crédito à disposição do creditado e pela eventual utilização desse cre´dito pelo cliente;

4º - os extratos devem ser elaborados de acordo com os critérios objetivamente estabelecidos no contrato;

5º - o creditado há de ter oportunidade pré-executiva para conferir a exatidão dos lançamentos feitos no extrato, no prazo especificado no contrato, de tal maneira que, findo o prazo sem reclamação, o extrato deverá ser considerado por ambas as partes como documento que retrata dívida líquida, certa e exigível no seu vencimento;

6º - a utilização do crédito nas condições pactuadas demonstrará a inequívoca vontade do creditado de concordar com o que ficou dito acima e de que aceita como líquidos e certos os lançamentos dos extratos, ressalvado seu direito de discutir esses lançamentos em embargos à execução.

É o nosso parecer, s.m.j.

São Paulo, dezembro de 2000.

RENATO SEIXASADVOGADO

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