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Contos indispensáveis a leitura

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Page 1: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym
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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudosacadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente conteúdo

Sobre nós:

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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Contos vertiginosos Roberto Schmitt-Prym

Page 5: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

© 2012 by Roberto Schmitt-Prym Todos os direitos desta ediçãoreservados à Editora Bestiáriowww.bestiario.com.brRua Marques do Pombal, 788/20490540-000 - Porto Alegre, RS.Telefone: (51) 3779.5784 | 9325.1366 | 9491.3223 Capae-design | sobre fotografia de Damien Roué / Paris Editoração eletrônicae-design S348cSchmitt-Pry m, RobertoContos Vertiginosos / Roberto Schmitt-Prym. - Porto Alegre : Editora Bestiário,2012.Recurso Digital1. Literatura brasileira - contos. I TítuloCDD-8869-3

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Pequenos, minúsculos, os contos de Roberto Schmitt-Prym entretanto revelamum longo conhecimento da vida e da arte. Possuem, em comum, uma visãorealista de nosso quotidiano, tão cheio, por vezes, de desencontros – e, por quenão, de tragédias íntimas. As personagens, todas sem nome, deambulam por umuniverso em que a esperança é coisa rara, mas ela sempre surge, aqui e ali, nofinal de um conto ou no meio de outro. Caberá à sensibilidade do leitor deixar-seconduzir pela mão do autor nessas abreviadas aventuras, sabendo que viajará porautêntica literatura.

Luiz Antonio de Assis Brasil

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But I don’t want to go among mad people,” Alice remarked.“Oh, you can’t help that,” said the Cat: “we’re all mad here. I’m mad. You’re

mad.”“How do you know I’m mad?” said Alice.

“You must be,” said the Cat, “or you wouldn’t have come here.”

(Lewis CarrollAlice’s Adventures in Wonderland, Chapter 6

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Cavalgada Sente a brisa no rosto, fecha os olhos e se vê num campo, galopando emvertiginosa correria. O entusiasmo o leva para longe, por paisagensinimagináveis.

Subitamente o cavalo é detido em sua marcha e ele tem de voltar de suafantástica viagem que chegara ao fim.

Ainda não está parado totalmente, mas o menino coloca os pés no chão ecorre alvoroçado na direção da mãe. O que ouve são os ruídos do último giro docarrossel.

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Um dia especial Acorda com a impressão de que aquele seria um dia especial. Está tão habituadacom a monotonia de todos os dias que sonha com algo mágico e misterioso.

Começa o dia com o ritual de todas as manhãs: banhar-se, vestir-se, tomarcafé, subir no ônibus, passar pelas ruas de sempre, descer na mesma parada.

Sai do elevador no décimo sétimo andar do prédio da empresa e entra numsalão do século XIX. Dançavam ao som de valsas. Cavalheiros beijam-lhe asmãos, inclinam a cabeça. Ela faz mesuras, dobrando os joelhos, erguendo umaponta da saia. As damas a olham com inveja. Dança alegre as valsas que sesucedem, e outra, e mais uma, vertiginosa, até que finalmente desabará nacadeira giratória, diante do olhar atônito dos colegas.

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A calma Não sabe exatamente onde está. Tudo calmo em volta. Um mundo em branco,amarelo e suave. Tudo parece enfadonho depois de algumas horas. A vida aospoucos se avoluma e já não cabe na palma da mão. Tem coisas que mudam numpiscar de olhos e não sabe por que não pensa em coisas boas.

Mantém o carro em alta velocidade na pista da esquerda. A tarde é morna,sem brisa, pouco sol e um revólver carregado no assento ao lado. Quando acordaentre duas que o olham inocentes e observa o sorriso de uma e o olhar arregaladoda outra, a arma não está mais ao alcance da mão.

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A dor A cidade solitária, silêncio.

Uma mulher ainda nua tentando adormecer entre bocejos e soluços. Seis damanhã, e a dor continuava lace-rante. Ao seu lado, ele dorme afundado notravesseiro, o sono dos injustos.

Um chá de camomila, um cigarro fumado às escondidas. Talvez fossemelhor descer à outra realidade entre o véu de fumaça.

Lá embaixo os primeiros operários caminham sonolentos pela rua, rumo aotrabalho. Indício de uma noite que se foi há pouco.

Quando volta ao quarto, contempla a cama como se fosse a jaula queaprisiona um animal feroz. Desfeita, enxuga as lágrimas do rosto, derrama oresto da bebida e acende outro cigarro.

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A mínima diferença Quando ouviu as risadas na sala ao lado, alisou o vestido preto e saiu do quartocom a cara amarrotada de sono sem mesmo se olhar no espelho.

Ficou na porta ouvindo-o contar como tinha sido abandonado por suamulher, relatando como ela jogara pela janela as suas poucas roupas e comoteria de conseguir às pressas outro local para morar.

Permaneceu imóvel num canto até que a dona da pensão fosse providenciaro almoço. Quando ele notou sua presença, ela convidou-o para o seu quarto.

Na minúscula peça que alugava, sentaram-se na cama, e ele transformou-se em outro homem. Ficou em silêncio, esfregando os olhos e perdendo-se empensamentos. Desligou a luz principal e abriu a janela. Ao olhá-lo, lembrava quejá fazia bons dois anos que sonhava com aquele momento. Não sabia como tinhase apaixonado por aquele homem casado, magro, que, além de beber, fumavaum cigarro atrás do outro.

Tudo era silêncio, lá fora apenas a chuva miúda e ele derrubando cinzassobre o cobertor. Depois de algum tempo, pediu-lhe que telefonasse para a suamulher, que inventasse uma desculpa qualquer, que ele precisava encontrá-la,para entregar alguma coisa importante, que fosse.

Ela sorriu sem graça dizendo que iria ao telefone e se viu andando na chuva,caminhando sozinha como estava fadada a caminhar desde sempre, enquanto eletentava erguer-se aos poucos, limpando o sangue e as cinzas que lhe cobriam ocorpo.

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A mulher na rua A mulher cruza a rua apavorada.

Da escuridão muitos olhos a acompanham, olhos amarelos. “Gatos têmolhos amarelos quando espreitam no escuro, ou não?” Apressa o passo. Detestagatos.

Das sombras vários homens avançam vagarosamente. Ela corre e cai. Oshomens avançam rápidos, olham e lambem a carne branca. Arranham,mordem.

Com as primeiras luzes da manhã, abandonam o banquete.

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A velha senhora Depois daquela manhã passou a seguir a velha senhora. Andou por ruas cheias decrianças brincando, viu amantes de mãos dadas, passou por velhos andandolentamente pelas ruas da vida.

Quando a velha senhora entrava por uma porta gasta pelas marcas dotempo, e entrava por outra e mais outra casa, sempre aquelas pintadas de anos,esperava o tempo todo do outro lado da rua.

A cada morte morria um pouco. E continuou a persegui-la, constantemente.Quando chegou a um palmo da velha senhora, deu-se conta de que estava

no meio da rua movimentada. Olhou-a nos olhos, já muito cansados, e perguntou:— Pode ser agora?— Ainda não! — ouviu como resposta.

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Alguma coisa Os dois desaquietavam-se. Sentia-se que, de um momento para o outro, poderiaacontecer algo totalmente inesperado. O frio parecia ter deixado de se fazersentir, e era o calor que agora fazia prevalecer a sua rispidez. As respiraçõestornaram-se mais rápidas. O silêncio súbito da conversa pareceu-se com umbotão de volume no máximo num intervalo entre músicas. Alguma coisa estavaprestes a acontecer.

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Amor apenas noturno Visitou-a ao anoitecer. Ela como sempre abriu uma garrafa de um vinho muitocaro.

Quando durante o jantar escorreu um filete de vinho pelos lábios carnudosda mulher, ele apertou com força a taça entre os dedos fazendo-a quebrar,misturando os rubis do vinho e do sangue. Ela abraçou-o com carinho, mordeu-lhe o pescoço com desejo e continuaram o jantar repartindo a taça intacta.

Depois, bêbados, caíram na cama.Enquanto ele dormia, depois do amor, ela saía em busca de outros homens,

e ainda antes do amanhecer acordou-o com beijos de lábios ainda úmidos e elesaiu para que ela pudesse dormir.

Page 17: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Apatia Quando morreu manteve a mesma feição serena e apática de sempre, e seusfamiliares não se deram conta de que havia morrido. Continuavam chamando-opara o almoço, continuavam chamando-o para o jantar, e ele continuavaimpassível como sempre fora, e não se davam conta. E como sempre,continuavam achando que ele não mudaria, continuaria frio como sempre fora.

— Não estás com uma cara boa! — diziam para fazê-lo entender.Afinal, quando o silêncio foi muito, duvidaram que tivesse mesmo morrido.

Mas estava, como todos.

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As deusas — Ela é apática, arrogante, caprichosa, complicada, crítica, desafinada,desatenta, desordenada, egoísta, extravagante, falsa, fria, histérica, ignorante,imatura, impulsiva, insolente, intrometida, inútil, mal-humorada, mentirosa,orgulhosa, ousada, preguiçosa, prepotente, provocativa, safada, superficial, tosca,traiçoeira, vaidosa, vulgar. Feia. Mas, filho, se queres mesmo te casar com ela,não serei eu a te impedir. A mim, só me importa a tua felicidade.

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Best-seller Saber que seria famoso e admirado era a única razão que o levava a escrever.Mas isso foi no início. Agora a página em branco lhe assustava e quando estavase conformando com o fracasso lhe veio a grande inspiração. Seria lembradopara sempre e sua obra permaneceria por séculos e séculos.

Pegou uma folha em branco e escreveu: “no princípio criou Deus os céus ea terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; eo Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”.

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Cachorros no jadim O primeiro cachorro chegou às seis da tarde. Não estranhou muito quando umsegundo cachorro veio fazer-lhe companhia. Mas estranhou quando voltou aojardim mais tarde e notou que os cachorros já eram oito, ou nove. Todos deitadosem frente ao portão da casa. Quietos. Nenhum latido. Nenhum.

Quando acordou, cedo da manhã, não lembrava dos cachorros. Silêncio.Tomou café, arrumou-se e, quando abriu a porta da casa, já estavam por todo opátio. E estranhamente num silêncio mortal. Muitos. Não pareciamameaçadores, mas resolveu ficar em casa.

Passou o dia observando pela janela. O número de cachorros aumentava acada hora.

Page 21: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Cacos de vidro Serve sucos e cafés para os clientes, sorrindo como qualquer garçon. Pensa emsua distante amiga e suas mãos colocam cacos de vidro nos copos vazios.

Por um instante a distância entre seu corpo e sua saudade lhe revela como éo mundo: o céu, as nuvens, a bandeja, tudo como sempre foi e que sempreforam apenas amigos e ela nunca se apaixonou.

Impassível, diante da tosse desesperada do cliente que acabou de servir, temtempo de compreender que se o cliente morrer com o estômago dilacerado pelovidro, não seria mais culpado do que o céu, as nuvens, a bandeja ou a sede daspessoas.

Mas não, o sedento vomita o vidro e lhe lança um olhar cheio de ódio queele acolhe cheio de lágrimas nos olhos.

Page 22: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Cena Ela se agarra ao seu casaco, seus pés se dobram. Os o-lhos imploram porclemência e ele continua com a faca enfiada no seu peito.

Acende-se a luz, o público aplaude, cai o pano. O público continuaaplaudindo. A cortina volta a abrir, o ator faz mesuras, agradece, se despede e caio pano pela última vez. Ninguém adverte que a atriz não levantará.

(ver cena final de peça famosa, incluindo diálogos)

Page 23: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Cena 28 Fechou os olhos e procurou se acalmar. Passa suavemente a mão nos cabelos dajovem. Abriu os olhos. Ela continua na mesma posição, de bruços. O que teriasido aquele susto repentino?

Seduzido pela aparência da jovem, quase fez o que não devia: sussurarpalavras não ensaiadas para ela.

— Corta!Soltou a mão e...— Por quê? — pergunta indignado.

Page 24: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Cidade grande A cidade está contaminada. As pessoas saem às ruas com lanternas nas mãospara não se chocarem entre a densa neblina. Não há mais outdoors depropaganda já que ninguém pode vê-los. Os carros andam com faróis acesos ebuzinando a toda hora. Motores barulhentos continuam enchendo tudo de gáscarbônico e alcatrão. Todos se movem apressados nas calçadas, entre o fumo e obarulho. Todos, menos as crianças, que brincam com naturalidade nos parques eentre uma gargalhada e outra se perguntam onde estão os outros.

Page 25: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Como todas as noites Em frente ao espelho conferiu o batom e arrumou os cabelos. Estava perfeita. Ovestido preto, justo e decotado lhe emprestava um ar irresistível.

No bar de sempre a fumaça ardia os olhos. No balcão pediu uma bebida.Percorreu o salão com os olhos atentos, detendo-se num homem jovem,

alto, forte. Parecia corresponder à pretensão. Observado, sorriu. Estava ganha anoite.

Depois deste, pediria colocação permanente. Todos foram perfeitos e estavahabituada. E além do mais, gostava do seu trabalho.

Page 26: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Conto chinês Certa noite o Imperador teve um sonho estranho. So-nhou que era uma borboletade asas grandes e muito coloridas. Voava alto, colhendo o néctar das flores.Quando acordou ao amanhecer e se viu homem diante do espelho, teve umaligeira decepção.

A camareira ao arrumar o quarto encontrou brilhos como purpurina entre oslençóis e nunca soube de onde vieram.

Page 27: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Cortejo Se tivesse de contar a alguém quando descobriu, diria que foi naquela noite.Ligou assim que chegou em casa, antes mesmo de tirar o casaco e de acenderum cigarro. Ninguém atendeu. Passou então a ligar de quinze em quinze minutosaté as dez horas, e sem resposta.

Naquela tarde ela saíra mais cedo do trabalho, dizendo que ia dar uma voltae ele aproveitou para comprar um presente. Raramente dava presentes.

Resolveu sair, apesar da hora. Três quadras adiante podia ver a janela doapartamento. Nenhuma luz acesa. Quando entrou de novo em casa, apanhou ojornal e foi direto para o quarto, onde podia deitar e ter o telefone à mão. Maisduas ligações sem resposta e já era quase meia-noite. Começava a se inquietar. Avontade era de sair novamente, mas o telefone não atendia e ela atenderia seestivesse em casa.

Não conhecia a letra dela, nunca vira um bilhete, não a vira escrevendo anão ser no computador, não sabia se ti-nha letra redonda ou inclinada, legível oufeia. Só sabia que era da sua altura. Os seus olhos ficavam na altura dos delaquando se olhavam.

Saiu de novo, apreensivo, naquela hora da noite fria e de poucas estrelas,neblina escura nas três quadras até ver a janela do apartamento. As luzescontinuavam apagadas como seus sonhos. Nunca lembrava de um e era terrívelviver sem sonhos num mundo apenas de dias.

Quando acordou já era tarde. Não tinha descansado, sentia-se pesado,exausto, embora tivesse dormido mais um sono sem sonhos. Acendeu umcigarro. Precisava levantar, tomar banho, fazer a barba e se vestir. Não iriatelefonar.

Page 28: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Demônios Cada um trata com seus demônios particulares à sua maneira. Aquele homemtentou.

Deixando para trás todos os problemas que o preocuparam por toda a vida,pisou fundo no acelerador do carro.

Em alta velocidade se deu conta de que esquecera de negociar com odemônio os seus outros temores.

Page 29: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Depósito Resolveu chamar um táxi. Levaram-lhe o carro por estar mal estacionado.

Tardou quatro dias ou mais para retirá-lo do depósito e já havia uma famíliavivendo dentro dele.

Explicaram que os carros recolhidos eram utilizados como alberguesprovisórios para desalojados de enchentes e coisas assim.

Enquanto pagava o guincho e a multa, viu que crianças dormiam sossegadasno assento traseiro. O pai dormia no lugar do motorista e uma mulher despertaolhava sofridamente através do vidro.

Page 30: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Desenhos Sempre que descia a escadaria do prédio observava os desenhos formados pelasmanchas no mármore dos degraus. Distinguia paisagens, animais e formasfemininas.

Hoje viu pela primeira vez a silhueta do seu rosto, bem delineada,perfeitamente visível. Voltou para chamar a mulher até aquele degrau e nãosoube encontar-se. Nem ela acreditou no que via.

Page 31: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Distorções do tempo Na sua casa o tempo sofre distorções muito estranhas: pode-se entrar em umquarto, consultar o relógio, e perceber que é mais cedo do que quando se entrou.É comum também as roupas saírem sujas da máquina de lavar, a comidaqueimar mesmo antes de se acender o fogão.

A mulher garante que isso não é possível, diz que são desculpas para suadistração. Não quer, é claro, contradizê-la, mas a prova de que está certo é queontem ela disse a mesma coisa.

Page 32: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Duplos Cada pessoa tem em algum lugar o seu duplo, um reflexo oposto, de emoçõesexatamente contrárias. Seu duplo jamais teria abandonado aquela mulher comquem nem se atreveu a sair e não estaria ainda no emprego chato e que rendetão pouco. É provável que agora ele esteja com aquela mulher, dizendo-lhecoisas que ele jamais confessaria. Deve estar num bom emprego, ganhandodinheiro. E é provável também que o seu duplo esteja feliz agora.

Page 33: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Ela, os espelhos A casa era cheia de espelhos. Espelhos de todos os tipos e tamanhos, dispostospelas paredes sem nenhum requinte de arrumação. Também não se ocupava delimpá-los. Alguns, mais antigos, já tinham perdido a camada prateada e nãorefletiam mais a luz escassa da casa e continham o véu inequívoco que o tempoconfere a tudo.

Passava por eles sem se olhar e com a decisão de quem cumpre ummesmo inevitável ritual. A atmosfera sempre igual, com o mesmo cheiropungente, aquela mistura de fumaça de cigarro, café reaquecido, mobília velha efalta de ventilação, estava até nas suas roupas e na pele.

Aquecia o café, acendia um cigarro, sempre perigosamente pendurado nolábio inferior e voltava ao quarto, passando rapidamente pelo corredor, onde umaseqüência de espelhos multiplicava qualquer coisa ao infinito e confundia tudo.Permanecia imóvel durante vários minutos, o último cigarro aceso edesperdiçado com as cinzas que caíam na saia enrugada, já com vários buracosfeitos pelas brasas, lembrando do tempo em que a casa era cheia de gente e osespelhos não observavam tudo.

Acordava ansiosa no fim de cada dia, porque a noite e a escuridão nadapermitem aos espelhos.

Page 34: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Em busca das mãos Esteve dois dias fora de casa. No terceiro, estava estendido na entrada dagaragem. Tinha as marcas da fome e de uma batalha perdida. Respiravaagônico, a pele pegada aos ossos. Observou que sangrava muito por uma feridado tamanho de uma cabeça. Quase podia se lhe ver a alma através da carne.

O veterinário encharcou a carne dilacerada com mercúrio cromo e com asmãos retirava punhados de vermes. O cão se contorcia, rosnava.

Dias depois, caminhava tranquilo pelo pátio da casa, mas já não pertenciaao seu dono. Dedicou o resto dos seus dias a cheirar-lhe as mão e a de todos,buscando aquelas dos vermes e da ferida.

Page 35: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Expectativa Bateu a porta com tanta violência que ficou com o trinco na mão. Depois dissoviveu feliz para sempre. Depois disso sabia que não encontraria portas fechadaspela frente.

Page 36: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Fim de concerto Fulano senta numa mesa da calçada do bar, tira um cigarro da carteira e chamao garçon: duas cervejas para esquecer a falta de aplausos no concerto. Beltranoacende um isqueiro e o coloca perto do rosto de Fulano. Este sopra a chama,numa atitude pouco amável para com o amigo. Com as duas cervejas sobre amesa, Beltrano olha em volta, ergue os olhos, vê o clarão de um relâmpago ecomenta que vai começar um temporal. No mesmo momento, ouve a explosãodo fósforo riscado pelo colega. Admira-se com as coincidências da natureza.Larga o cigarro no cinzeiro, tira da caixa o trompete, se levanta e começa a tocaro último número do repertório. A fumaça dos cigarros arde nos olhos de Fulano.Tira do casaco um cilindro de aço e através dele observa discretamente omúsico. Coloca o cigarro no canto da boca e com a mão esquerda tira umapistola da cintura. Por baixo da mesa, com a mão direita adiciona o silenciadorna arma. Ergue a mão e mira o trompete. O estampido da pistolainevitavelmente se confunde com os trovões e com som metálico da última notada frase de Beltrano.

Page 37: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

In memorian A morte aferra-se a seus pés, arrasta-o, encara-o às vezes. Ao ouvir o seulamento pára porque lhe atrasam os passos. Quando quer vê-lo de frente,aproveita a luz do sol, observa-lhe os olhos cheios de vida e se volta. Na hora dedormir, grita; deve esperar debaixo da cama, vendo sonhos de brincadeirasinfantis. Quando despertar, não há de permitir que se apague a amarelinhadesenhada a carvão.

Page 38: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Injúria Encostou bruscamente o carro no meio-fio.

— Queres que eu chame um táxi? — perguntou contrariado, com os olhosfixos nela e batendo os punhos no volante.

— Quero nada — ela respondeu, com um sorriso sarcástico nos lábios ealgo em mente.

Continuou olhando-a e saiu em alta velocidade.Andou dois passos, lamentando ter aceitado um passeio depois de tudo que

fizera, assim por nada, quando ouviu a batida e a multidão de curiosos que seformava meio quarteirão a frente.

Ainda nem tinha esquecido a desgrama que lhe desejara, e ela já estava lá,a cabeça pendendo para fora do carro e a face ensangüentada. Percebeu deesguelha que seus olhos permaneciam fixos nela.

Page 39: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Intimidade Ele nunca pôde ver sangue, aquele vermelho viscoso lhe atordoava. Mas quandoela se cortou na cozinha e o cha-mou para segurar a mão ensangüentada não viunada, nem o sangue, nem o pão encharcado de sangue e nem a ferida aberta,sangrando, não viu nada. Apenas sentiu seu perfume e por desgraça soube quejamais voltaria a se excitar.

Page 40: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Jogos de criança Quando criança brincava de esconde-esconde nos corredores escuros do enormeprédio, labirinto cheio de portas fechadas e poucas janelas.

Na sua vez de se esconder, demorou a perceber que não fora encontradopela turma: certamente esquecido.

Desceu pelas escadarias e em vez de encontrar a portaria iluminada eguardada pelo segurança, um cheiro maturo, cinza, e cada vez maior a escuridãoe o medo. Continuou imerso na sua busca, deixando para trás uns mudosmurmúrios.

No porão pensou ouvir os gritos da molecada e ficou aliviado ao ser vistopelos adultos.

Foi levado muitos lances de escada abaixo e mais solitário ainda o lugaronde lhe disseram que isso nunca fora um jogo.

Page 41: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Lázaro Quando Lázaro ressucitou, a mortalha lhe impediu de ver a lousa da tumba.Tropeçou. Caiu. Voltou a morrer.

Jesus cabeceou, decepcionado.

Page 42: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Lembrança Está no ônibus pensando no avô, no pouco que lembra dele. Conserva dele umvelho isqueiro com o qual acendera o último cigarro que fumou. A cada chamaacesa lembrava do velho cujo rosto esquecera há muito tempo.

Como não fuma mais, não pode usá-lo. Talvez por isso a lembrança apaga-se mais a cada dia.

Mas lembra da colônia de barba que ele usava quando muitos anos antes lheacendera o primeiro cigarro. Igual a do idoso agora ao seu lado.

Page 43: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Loucuras de um tirano Um dia, dizem, o general ficou louco. Depois de libertar os presos políticos,convocou seus ministros e fez um comunicado importante: “Vamos rebaixarnossos salários e aumentar significativamente o dos trabalhadores”. Nesta noite,em sua casa, beijou a mulher e os vários filhos, enquanto a nação, aindaestupefata, não entendia seu comportamento. Horas depois foi internado em umcentro psiquiátrico, onde dias depois se suicidou, ou foi assassinado, comoquerem alguns.

Page 44: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Mudança Jantou cedo, bebeu duas taças de vinho, pôs Mozart no player e mergulhou naleitura tão profundamente até que o mundo se apagou em volta.

Há meio ano não sai de casa, trancada com os seus livros.A casa está toda mudada. O quarto que era enorme agora está dividido em

dois. Não tem mais que uma cama de solteiro, uma mesinha de cabeceira e umpequeno armário para guardar as poucas roupas.

No quarto ao lado, um a um, ela abre os botões do vestido. Baixa a calcinha.

Tira o sutiã sem alças. Levantou cedo, abriu a porta e hesitou um instante antes de baixar os olhos

na direção do dinheiro levado pela brisa da manhã. Saiu com a certeza de quemais uma vez não daria certo.

Tem mais de quarenta anos a vida inteira e parece que todos se foram, unspoucos a cada dia.

Page 45: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Múltipla Ela vestia sua personalidade como quem veste um traje.

Nas segundas, era misteriosa. Nas terças, tímida. Nas quartas, jovial.Ansiosa nas quintas. Atenta nas sextas. Nos sábados, calculista. Assassina nosdomingos e nas segundas, portanto, era misteriosa.

Page 46: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Não queira... Introduziu as chaves na fechadura, vencendo a pequena resistência de semprepara abrir. Entrou em sua casa e não a reconheceu. Seus móveis modernos erambarrocos, os li-vros não lidos estavam comentados, a desordem estava arrumada,sua música, irreconhecível.

Antes que os velhos pensamentos o abandonassem, lembrou do seu últimoaniversário e do desejo de mudar, no qual nunca acreditou.

A mudança, contudo, chegava quando já se sentia feliz.

Page 47: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Noite Subiu no ônibus sabendo que deveria ter tomado um táxi. A essa hora da noite.Mas é raro aparecer um táxi, e era tarde e estava cansado. E o ônibus não estavavazio: além do motorista, um senhor vestido de preto, um casal de namoradosque se beijavam nos últimos assentos e mais uma mulher de vestido muito curto.Sentou-se sozinho, recostou a cabeça e fechou os olhos sem saber que omotorista, o homem de preto, o casal de namorados e a mulher de vestido curtoapenas esperavam que ele adormecesse.

Page 48: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Novela policial

— Como morreu Margarida? — perguntou Mandrake.— Decapitada — respondeu Watson.Sherlock Holmes sai e vê o jardineiro colhendo flores, enfurecido.— Caso encerrado.— Não entendo.— Elementar, meu caro Watson.

Page 49: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Nunca mais Saiu da clínica com uma expressão diferente. Sentou em um bar próximo e pediuum café. Olhou os muitos tubos que lhe saíam dos braços e o enorme buraco notórax e resolveu não mais pensar neles, nem na esposa, nem nos fi-lhos, nem nahipoteca.

Quando chegou em casa, todos dormiam. Preparou outro café e fechouportas e janelas. Enquanto o gás permanecia aberto, pensava no jornalista queconhecera.

Page 50: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

O anel Chega em casa às oito, como sempre, mas desta vez, um tanto angustiado. Abreas janelas, observa as pessoas na rua, apressadas para chegar cedo em casa.Observa a janela fechada do apartamento dela, no prédio em frente. Ela, semprepontual, já deveria estar em casa.

O semáforo acende o vermelho, e uma mulher num carro olha o relógio:nove e quarenta. Ao chegar perto de seu prédio, encontra a rua bloqueada e umpolicial lhe fala de um incidente ocorrido com um jovem: estilhaços de vidro deuma janela impediam o trânsito. Mas, no céu, o anel prateado era a lua cheia.

Page 51: Contos Vertiginosos - Roberto Schmitt-Prym

Sangue Não sabe como chegou ali. Da cama de hospital, nutrido por uma bolsa desangue, vê a cidade pela janela, e mais a-diante, o mar.

Sua última lembrança: as ondas embalando seu corpo perto da praia, aespuma tingida de vermelho, um torpor e as hemácias diluídas no Atlântico,perdidas no mar.

Agora, pela agulha, injetam-lhe a vida de volta.

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Semana Santa Jesus vai a carpitaria para ver a cruz que logo irá carregar. Verifica o tamanho, opeso, o madeirame sólido. Escolhe os três pregos que atravessarão suas mãos epés e se dispõe a repassar o roteiro da Via Crusis. A sexta-feira está próxima e,como todos os anos, será crucificado na praça lotada de fiéis.

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Sendo autêntico Não suporta o cheiro de suor dos que o empurram no ônibus, fazendo-o cair, nemo hálito azedo do chefe, querendo ensinar-lhe coisas que já sabia antes mesmodele nascer. Não suporta o perfume das mulheres que pensam saber fazê-lo feliz.Mas já sabe o que continuar fazendo, como agora no banheiro, onde já terminoude se cheirar.

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Serpentes Ela tem serpentes em casa. Ninguém sabe, não conta nada. Nas poucas vezesque recebe alguém, não as vêem, ficam escondidas atrás dos móveis, nos cantosescuros.

Quando está só, fica nua sobre a cama e deixa que se aproximem e asalimenta, as acaricia, dorme e desperta entre elas. Tem sonhado coisas terríveisque não lhe saem do pensamento. Volta à vigília, ao trabalho, e elas a esperam.

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Sinceridade Estavam casados há mais de quarenta anos e eram felizes. Sobreviveu o amor ea compreensão. Mas hoje ele está inquieto. Decidiu contar um segredo para amulher, uma ferida não sarada nestes anos todos.

Hoje contará, ou amanhã, como todo ontem.

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Tarde de cinema Entrou no cinema porque a tarde era longa, chovia e queria estar entre heróis poralgum tempo.

A sala estava lotada. Pessoas todas náufragas de resfriados e fugitivas daumidade fria do inverno.

Alguém sentou atrás dele e o deixou nervoso, com a respiração ofegante edifícil. Não gosta de ser observado ou de ter alguém tão por perto. Mas achavaabsurdo sair da sala ou pedir licença. Afinal, ninguém vai ficar observando suasemoções e nem lhe cravar algo na nuca. Mas vencer o terror da sugestão não étão fácil assim, sabendo que fecham as portas do cinema só por precaução.

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Tempestade Seu gemido cadenciado perde-se na chuva intensa. Avança indeciso e quantomais caminha, mais intensa parece a tempestade, caindo virulenta sobre o corpomolhado.

— Me odeia, eu sei. Mas ele também agoniza e não tem saída, logo verá.Distingue sua silhueta em meio à rua, enquanto rios correm pela sarjeta.— A tempestade me consome como um filho faminto a seu pai inválido.

Como eu, caído no chão, depois de afogar-me.

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Última oportunidade Meditou por um momento segurando o revólver entre as mãos trêmulas. Quemlhe colocou a arma nas mãos tinha lhe prevenido:

— Esta é a tua última oportunidade, estás velho e doente, tua mulher teabandonou há tempos, teu único filho não te dirige palavra, teus amigos já seforam e se não fores hoje, ficarás para a eternidade.

Envolto na fumaça da última tragada do cigarro relembrou o que havia sidoa sua vida. Nem precisou puxar o gatilho.

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Um copo de uísque Toca o telefone. Sobresaltado, deixa o copo de uísque sobre a mesa da sala, malequilibrado sobre os jornais do dia anterior, e atende. Engano. Volta ao copo, etonto, – meu Deus! – procura; mas o copo não está mais sobre a mesa da sala esim no escritório, mal equilibrado e umidecendo uma pilha de documentos. Sorvedois grande goles. Nova cha-mada telefônica desvia-lhe a atenção. A mesma vozequivocada de antes, agora pergunta pelo copo.

Busca inutilmente pela bebida.

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Utopia Numa manhã radiante, Maria e José tocaram o céu com as mãos. A noite será dedescanso, de sono reparador. Ama-nhã, ao reiniciarem a jornada, o mundo osverá com outros olhos.

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Vozes A velha casa é cheia de ruídos. Primeiro eram macios, íntimos e sempre noinício da noite. Depois passaram a ser brisas, ventos, rajadas mordentes.

Sente não ter alguém para abraçar, alguém que queira ser abraçado.Alguém para confessar o medo.

Na manhã, esquece fácil o sonho e não ousa pensar no vento, sentir a brisa.À noite, janta lentamente, sem pressa para o sono. E cansado, às vezes,adormece no sofá com um livro nas mãos. Cansado não ouve as vozes que ochamam.

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O barulho dos vizinhos Comprou nova aparelhagem de som. De má qualidade, barata como o dinheiropermitiu.

Quando coloca uma música romântica, ouve a menina do andar de baixo.Quando o disco é outro, percebe as preocupações do vizinho do lado e também,conforme se move pela casa, mudam os sons.

Ouve insultos, perdões, desejos, medos e ciúmes.Quando encontrou no elevador a menina do andar de baixo, beijou-a e lhe

disse que também a quer.

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Rotina Todos os dias, quando sai do trabalho, compra bombons para o filho, ou florespara a esposa ou para a mãe que mora com ele desde a morte do pai.

A família janta reunida e o filho conversa sobre a tarde na escola, a esposae a mãe, sobre os afazeres domésticos. Ele fala da rotina do trabalho, dos colegase dos amigos, só não conta quantos carros estacionados arranha com as chavesenquanto volta para casa.

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O coletivo da penumbra O calor parece de verão, mas é maio. No fim do dia, os trabalhadores saemimpacientes da fábrica. O barulho das máquinas cede lugar ao dos ônibus. Todostemem que aconteça a qualquer momento. E acontece, todos os dias.

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O homem que sonha O homem sempre sonhou os mesmos sonhos. Sonhou com o menino que tinhasido, brincando as mesmas brincadeiras em diferentes idades. Uma noite sesonhou homem. Quando despertou, não teve certeza de ter acordado.

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O medo O medo viaja pelas vísceras como um fantasma viscoso.

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O olhar distante Fazia um tempo que freqüentava o bar uma pessoa que, a princípio, não pareciamuito especial.

Chegava sempre por volta da meia noite, sentava-se em frente à janela ebebia uma cerveja atrás da outra.

Algumas vezes tentou conversar com ele e não conseguiu mais do quepalavras soltas.

Sempre a mesma mesa, a mesma cerveja e o mesmo olhar distante atravésda janela.

— Alguém disse que o vira enxugando uma lágrima... mas não acredito.Uma noite não voltou mais, mas a deixou sozinha para sempre, com o olhar

distante, esperando ver seu reflexo no vidro da mesma janela.

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O pianista Acordava cedo. Entrecruzava os dedos adormecidos para acordá-los com ele.Sentava ao piano afinado e ensaiava até doerem-lhe as pequenas mãos demenino. Sonhava música e encontrava as notas com a alma. A mãe acariciava-lhe a cabeça infantil cheia de música adulta. Quando o sol se pu-nha, continuavatocando para a lua. Era a sua vida. Quando adulto talvez vista um casaco preto eacompanhe a orquestra. Mas agora quer apenas tocar, como se o piano e elefossem uma só matéria, dizia.

Enquanto entrelaça os dedos para acordá-los, naquela manhã, percebe queos dedos cresceram, longos, de madeira nobre. Corre ao piano e as teclasensaiam a música que sonhara na noite anterior. Cacofonias ridículas e tristes.Lágrimas sobre a tecla si bemol. A mãe acaricia-lhe os cabelos: — Venhacomigo.

Saem de casa, mãe e filho, com diferentes mãos dadas.Ao voltar da carpintaria sentará ao piano, colocará a partitura preferida

sobre o atril, disposto a interpretá-la. O piano verterá sangue.

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O sabor de cada coisa Uma mulher senta ao seu lado no ônibus, olha nervosamente para todos os lados,e, como a viagem é longa, ele pergunta se está ansiosa. Ela continua observandoos ou-tros passageiros e, como ninguém está olhando, aproxima-se e pergunta seele pode guardar um segredo. Claro! Chega ainda mais perto e confidencia que“eu não sei o que aconteceria se isso fosse dito em público, mas preciso contar aalguém. Desde menina provo sons” e ele pergunta se ouviu direito. “Shhh... sim,é isso mesmo, sei o gosto de todos os sons que me rodeiam. Desde sempre soubeo gosto da voz de um homem, o sabor do ronco dos carros, do barulho dos pneusno asfalto”. Pergunta “e que sabor tem a voz de um homem?” Pensademoradamente e responde que “voz de homem tem gosto de voz de homem,diferente do gosto da voz de uma mulher, ou do gosto de uma música popular,que é bem diferente do gosto de uma música clássica. Não se pode comparar ossabores dos sons com os sabores das comidas, a não ser, é claro, quando semisturam. Se durante o almoço se toca certo tipo de música, o sabor da comidase mistura com o sabor da música... o gosto se altera... não sei...”

Ele se levanta e solicita a parada do ônibus, mesmo longe do seu destino.Gostaria de saber por que não tem sorte com algumas pessoas.

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Operários O quadro ficava pendurado num canto da sala, sem maior destaque, no primeiroplano, uma série de operários, no fundo, várias chaminés de fábrica e umapequena nesga de céu azul. Esteve naquela casa pela primeira vez para pintar asparedes, quase sempre os seus serviços eram para gente mais modesta, destasque não têm quadros tão bonitos nas paredes. Em meio ao trabalho a dona dacasa o encontrou distraído, apreciando o quadro e fascinado, gostaria de serpintor de quadros, mas curso de belas-artes não era para gente como ele, pintorde paredes. Gostas desta pintura, não? perguntou a elegante senhora. Baixou osolhos, tímido, gostar era pouco. Devia estar num lugar melhor. Foi meu genroquem pintou, respondeu, enquanto namorava a minha filha. Levado pelointeresse de talvez conhecer o pintor arriscou-se a perguntar por ele. Está preso,respondeu com lágrimas nos olhos. Aturdido pediu desculpas e pouco depois deupor terminado o trabalho. Durante anos não passou perto daquela casa, tãodistante do seu percurso habitual, o trabalho cada vez mais escasso adiou parasempre o propósito de pintar quadros, mas quis rever a pintura dos operários. Nãoa encontrou. A casa fora vendida e a sala estava agora pintada toda de azul, dacor do céu do quadro.

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Os apaixonados e os viciados Um desce para comprar cigarros. Outro toca violino e morde a língua. A bocatrêmula verte sangue. O primeiro volta da tabacaria. No chão, o arco e o corpodo músico e também, manchado de sangue, o violino. Tudo se inflara emconvulsa melodia.

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Outra noite Um fio de chuva pinga no meio do quarto. É muito tarde e ele não tira os olhos dorelógio. Procura alguma coisa para destruir. Não encontra, nem isso tem. Bebeda água. E mais um pouco. Fumar não fuma, é caro. Vive perdido na amargura enunca soube ao certo o que fazer.

A mulher abaixa a cabeça, as mãos pendidas enquanto escolhe as palavrasque não pronuncia. Sabem que ali está apenas parte do que foram. Ele ergue osolhos para ela, com esforço, e continua calado. Nessa idade, a surpresa é umbrinde de copos vazios. Mesmo assim, não esperavam aquilo.

A umidade fermenta morna e dá espessura ao ar saturado da casa.O olhar com que se dão as mãos contém apenas a piedade de um pelo

outro. Felicidade não se carrega. São ninguém. Vivem perdidos, azedos. Diantedo espelho enferrujado não se vêem, o tempo é noite, e negro, e úmido. Dão osprimeiros passos em direção ao nada. E quanto mais avançam, mais pressentemo vazio sob os pés.

Horas depois, o sol caminha pelas tábuas soltas do assoalho.

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Outro dia Levantou da cama lentamente, arrastou-se pelo piso frio da cozinha até acafeteira e serviu-se de uma xícara sem leite e sem açúcar.

Não deu a menor importância aos jornais e à correspondência perto daporta, nem ao pó que acumulavam.

Estirou-se no sofá enquanto o relógio continuava a contar horas.Quando o sol se pôs sobre o horizonte, ela continuava quase na mesma

posição. Moveu-se até uma jarra de água, sem gelo ou frutas. Quando acabou osuco, rastejou lentamente até o quarto, deixando o roupão cair suavemente nopiso da cozinha. Deitou tonta e fechou os olhos. Demoraria um pouco, mas o sonoviria, profundo, com a respiração cada vez mais lenta.

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Perguntas Morrerá dentro de dez minutos, mas não sabe disso. Olha a vitrine de umalivraria. Três minutos se passam. Segue caminhando, vagarosamente, pela rua.Dois minutos depois pára numa banca para comprar um jornal que não lerá,confere a programação dos cinemas, lê a resenha de um filme que não verá egasta mais dois minutos.

A duzentos metros de sua casa, a que velocidade deveria caminhar paramorrer junto ao portão? Quantos minutos de vida lhe restam? E se soubesse deseus dez minutos, o que teria feito?

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Perseguição Coisas passam. Passam os carros, os faróis, passam cachorros, o vento. Passamsegundos em sua vida. Tic-tac tic-tac, passa outro carro e por minutos passamimagens como que emprestadas de uma novela policial. O carro vermelhocontinua atrás, observado pelo retrovisor, mas ele continua dirigindo velozmentepara ver o que acontece.

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Ratos Caiu outro na ratoeira da cozinha. Esperneia, tentando fugir. Ele assiste tudosentado no sofá da sala manchado de cerveja, com as irmãs pequenasadormecidas em seus braços. Enquanto a mãe trabalha fora, toma cervejas etoma conta das irmãs que não dormem no quarto enquanto houver ratos pelacasa.

A guilhotina no pescoço do rato é tão pesada quanto os braços das irmãs.

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Recordações A tarde cai e a sala de jantar fica na penumbra. Observam os gestos do pai,difusos contra a janela de cortinas.

Ele prepara seu café com leite, e, ao seu lado, a mãe o observa em silêncio.Diante deles, o caminhar vagaroso e cansado do pai o leva ao sofá em frente àTV.

A mãe não resiste e sai da cozinha onde o pai morrera anos atrás.O irmão pequeno se deixa cair na poltrona, juntado as mãos sobre o

estômago como uma imagem que não lhes sai da cabeça.

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Regresso Soltou o pescoço da mulher às cinco em ponto. Arrancou a blusa branca aindasuja de barro enquanto ela abria os olhos. Pegou-a pelos braços e arrastou-a pelolamaçal, insensível à sua agonia, até alcançar o carro. Às quinze para as cincocolocou-a no porta-malas e partiu veloz. Às quatro e meia, pararam numcruzamento da estrada. Antes de colocá-la no assento traseiro do carro, golpeou-a violentamente na cabeça. Chegaram na cidade às quatro e quinze da tarde.Pouco a pouco, a mulher recuperava a calma. Às quatro, o carro parou emfrente à casa e a mulher entrou no carro, com um sorriso nervoso, mas satisfeita.Às três e quarenta e cinco ela vestiu uma blusa branca e pouco depois telefonavaao marido. Queria vê-lo agora mesmo no escritório porque acabara de receberum telefonema que a perturbara. Pouco depois das quatro, uma voz anônimagarantia que às cinco em ponto ela estaria morta.

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Roberto Schmitt-Prym nasceu em 1956 em Panambi, RS. Foi selecionado noPrêmio Apesul Revelação Literária 79 e no Prêmio Habitasul Correio do PovoRevelação Literária 81. Estudou com Charles Kiefer e Assis Brasil. Participoudas antologias Contos de Oficina 35, brevíssimos! e 101 que contam. Traduziu aobra Giacomo Joyce de James Joyce. Como fotógrafo, realizou sua primeiraexposição individual no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,em 1990. Desde então fez mais de vinte exposições individuais em museus e eminstituições no Brasil e no exterior, exposições coletivas e recebeu uma dezena deprêmios em diversos países. Entre outras atuações, destacam-se os cargos dediretor da Associação Riograndense de Artes Plásticas Chico Lisboa, diretor daBienal do Mercosul, conselheiro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e diretordo Museu Julio de Castilhos.

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Este e-book foi formatado no inverno de 2015por e-design para a Editora BESTIÁRIO