condicionantes do tempo nas vidas dos cÉsares … · jerusalém no dia do aniversário da filha...

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Humanitas 58 (2006) 133-155 CONDICIONANTES DO TEMPO NAS VIDAS DOS CÉSARES DE SUETÓNIO JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO (Universidade de Coimbra) Abstract: Suetonius’ Caesars reflect the changing of perspective towards historical records: the Republican year (used as reference in the Annales) is substituted by the emperor’s time of life. So, as used to be done with the narrative of the Republican year, the most important moments (especially the emperors’ birth, acclamation or dead) were determined by presages. In that way the emperors are somehow inserted in the sacred History of Rome. And if we except the narrative of ascension towards the power and dead, in what concerns the emperors’ timetable Suetonius does not respect chronology. When the biographer makes out descriptions of achievements and behaviours, he prefers the gradation of the exempla following an ethical perspective. Key‑words: Suetonius. Latin biography. Twelve Caesars. Emperors’ historical and narrative timetable. Ao adaptar a biografia às vidas dos imperadores, Suetónio reflecte as novas tendências da história política dos começos do império. Mesmo o historiador Tácito admite que, devido às mudanças políticas, a histo‑ riografia se vê obrigada a enveredar por novos rumos. Queixa‑se de que, por ignorância ou por alheamento em relação às decisões políticas, por adulação ou por ódio aos chefes, não se fazem registos para a posteridade (Hist. 1.1). Além disso, num império pacificado e consolidado, a falta de matéria grandiosa da antiga historiografia (guerras, destruição de cida‑ des, destituição de reis, lutas sociais) levam os historiadores a tratar

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Humanitas 58 (2006) 133-155

CONDICIONANTESDOTEMPONASVIDASDOSCÉSARESDESUETÓNIO

JOSÉLUÍSLOPESBRANDÃO(UniversidadedeCoimbra)

Abstract: Suetonius’ Caesars reflect the changing of perspectivetowards historical records: the Republican year (used as reference in theAnnales)issubstitutedbytheemperor’stimeoflife.So,asusedtobedonewith the narrative of the Republican year, the most important moments(especially the emperors’ birth, acclamation or dead)were determined bypresages. In that way the emperors are somehow inserted in the sacredHistoryofRome.And ifweexcept thenarrativeofascension towards thepoweranddead,inwhatconcernstheemperors’timetableSuetoniusdoesnot respect chronology. When the biographer makes out descriptions ofachievements and behaviours, he prefers the gradation of the exemplafollowinganethicalperspective.

Key‑words: Suetonius. Latin biography. Twelve Caesars. Emperors’historicalandnarrativetimetable.Aoadaptarabiografiaàsvidasdos imperadores,Suetónio reflecte

asnovastendênciasdahistóriapolíticadoscomeçosdoimpério.Mesmoo historiador Tácito admite que, devido àsmudanças políticas, a histo‑riografiasevêobrigadaaenveredarpornovosrumos.Queixa‑sedeque,por ignorância oupor alheamento em relação às decisões políticas, poradulaçãoouporódioaoschefes,nãosefazemregistosparaaposteridade(Hist.1.1).Alémdisso,numimpériopacificadoeconsolidado,afaltadematéria grandiosa da antiga historiografia (guerras, destruição de cida‑des, destituição de reis, lutas sociais) levam os historiadores a tratar

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assuntos menos nobres (Ann. 4.32‑33), que eram objecto da biografia1.Porqueostemposmudaram,osAnnales—génerotradicionalmentecon‑sagradoaoregistodosfeitospolíticosdaRomarepublicana—,baseadosnarotaçãoanualdoscônsules, jánãoseadequamaoperíododegover‑nação.A eleição dosmagistrados, essencial durante aRepública, perdeimportância faceàaclamaçãodoprinceps, que semantémnopoderporum tempo que só o fatum pode determinar. Além disso há que contarcomatendênciaparaasucessãodinástica.

AocomeçarasVidaspeladeJúlioCésar2,Suetóniocolocaatónicanamudançaderegimepolítico(quetrata,assim,desdeasprimeirascausas)e na sua verdadeira natureza. O conquistador da Gália aceita honrasdesmesuradas:consuladoscontínuos,aditaduraparatodaavida,apre‑feituradoscostumes,opraenomendeImperator,cultodivino(Iul.76.1)—uma concentração excessivadepoderes, inaceitávelpara amentalidaderomanatradicional,queconduziráaosIdosdeMarço,masque,noessen‑cial,correspondeàsprerrogativasdos futuroscésares.Octávioadoptaráhabilmenteotítulodeprinceps,maisenquadradonatradiçãorepublicana,mas Suetónio prefere centrar‑se no facto de a República não ter sidorestaurada (Aug. 28.1), sem, contudo, censurarAugusto pelo facto con‑servar para si o poder. O biógrafo aceita o novo regime como factoinquestionável,umanovaordem(nouusstatus)paragovernodomundo(Aug.28.2).

EnquantoosenadorTácitoescreveAnnaleseHistoriae,reservandoabiografia para Agrícola, pertencente à oposição senatorial, Suetónio,cavaleiro e funcionário imperial, faz corresponder a história recente deRomaaunidadesdetempoconstituídaspelavidadecadaimperadore,numa escala maior, pelas dinastias. Por isso, o biógrafo situa comprecisão o nascimento, a aclamação e a morte do príncipe (rubricashabituais da biografia), masmostra‑se vago, oumesmo desrespeitadorda cronologia, na narração dos acontecimentos e realizações de cadaprincipado.

________________

1VideGIUA,M.A.1990:544‑559.UmaversãomaisreduzidadesteartigoecomumaestruturaeobjectivosdiversosfoipublicadainFAUSTO,R.eMARNOTO,R.(coord.)(2006),Tempoeciência,Lisboa,Gradiva,233‑250.

2PlutarcoescreveuVidasdeoitoimperadores,deAugustoaVitélio,dequesórestamasdeGalbaeOtão;TácitocomeçapelaascensãodeTibério.

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Otempohistóricoassumeumadimensãoreligiosaquandoé regu‑ladoporpresságios.Atravésdestes,opassadocumpre‑senopresenteefactos presentes permitem a previsão do futuro. Daí a importânciaatribuída à arte divinatória, manifesta na valorização de determinadascoincidências3. Por exemplo, o nascimento de Tito é situado três diasantes das calendas do insignis annus da morte de Calígula (Tit.1),recorrendoaumacronologiaforçadaecontraditória4,para,assim,acen‑tuarasubstituiçãodomonstrumporumimperadorconsideradoamoracdeliciaegenerishumani.MaisdramáticasseapresentamascoincidênciasnaVidadeNero,querecebeanotíciadarevoltadaGálianomesmodiaemque,anosatrás,mandaraassassinaramãe(Nero40.4),emorrenomesmodia em que outrora Octávia (a esposa) fora executada por sua ordem(Nero57.1).

Os próprios príncipes são considerados bons oumaus segundo ocrédito que prestam aos presságios5. Tais fenómenos são inseridos nosmomentosfulcraisdavida,emqueacronologiatem,defacto,importân‑ciaparaobiógrafo:sobretudoonascimento,achegadaaotronoimperiale amorte,mas tambémomomentodeenvergar togaviril,doprimeiroconsuladoououtrosmarcosrelevantesparacadaVida.

Os imperadores são seres situados no tempo e integram‑se numasucessãopreviamentedeterminada,porvezesháváriosséculos.Aslistasdeprodígiosrelacionam‑secomduasfasesopostasedeterminantes:por________________

3ÉconsideradopraesagiuminsequentiscasusofactodeGalbaterexercidooconsuladoentreodopaideNeroeodopaideOtão,talcomodepoiselemesmosucedeuaNeronopoderefoisubstituídoporOtão(Gal.6.1).TambémCláudionasceu em Lugduno nomesmo dia em que, pela primeira vez, foi dedicada aAugustoumaaranaquelacidade(Cl.2.1)em10a.C.TitoLívio(Per.139)situaadedicação do altar em 12 a. C, mas SIMPSON, C. J. 1987: 586‑592, tende a darcréditoaorigordobiógrafoeprefereimputaroerroaTitoLívio,àssuasfontesouaoepitomator.

4Naverdade,Calígula foimortoa24de Janeirode41d.C.eTitonasceraa 30 de Dezembro, mas de 39 (como sugere a informação de Tit. 11). VideMARTINET, H. C. 1981: 6‑7; LEVI, M. A. 1954: 288‑289. Além disso, Tito tomaJerusalémnodiadoaniversáriodafilha(Tit.5.2).

5VideDELLACORTE,F.1967:55‑76.Paraesteautor,areligiosidadepresentenas Vidas dos Césares pode ser uma homenagem à política de Trajano e dosprimeirostemposdeAdriano.

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um lado, a ascensão ao governo do império e por outro, a perda dopoder6.Augusto,GalbaouVespasiano,segundoospresságiosapresenta‑dos7,estãohámuitotempofadadosparaasuamissão.EstesrepresentamoiníciodetrêsciclosdiferentesnahistóriadeRomaImperial.Achegadadestesimperadorescoincidecomarealizaçãodaquelessinais,indicandoqueotemposecompletou.Arepetiçãodefenómenosreforçaaideiadapredeterminação de um acontecimento. Os presságios preanunciam ofacto e o facto confirmaospresságios.Depoisde se realizarem,pressá‑giosefactosãointerpretadosemconjunto8.

Aconcepçãoenascimentodofundadordoprincipadosãoacompa‑nhadosdediversossinaisdofuturopoder,numaperspectivamessiânica.UmprodígioocorridoemRomaanunciavaoadventodeumrexparaopovoromano(Aug.94.4);omomentodaconcepçãoémarcadopelainter‑vençãodivinadeApolo,materializada nauniãodeÁcia comuma ser‑pente (Aug. 94.4)9; a hora do parto, segundo o pitagórico P. Nigídio,especialista em astrologia, pressagia um dominus terrarum, facto confir‑madopelossacerdotes trácios,que,aoderramaremvinhosobreosalta‑res,numbosque consagradoaBaco (LiberPater), obtiveramchamas tãoaltas10 como só acontecera comAlexandre (Aug. 94.5.)11. Talpredestina‑ção é confirmada por muitos outros prodígios ocorridos na infância(Aug.94.6‑9),naalturaemqueenvergaatogaviril(94.10),noregressodeApolónia, para reclamar a herança de César, e no primeiro consulado(Aug.95)–momentosfulcraisdavidaquepressupunhamaconsultadosauspícios.

Também aVidade Vespasiano, fundador da dinastia flávia, apre‑senta variados prodígios ligados ao nascimento (Ves. 5); ao tempo emque era edil (Ves. 5.3); à alturadaviagemàGrécia,no séquitodeNero

________________ 6VideWALLACE‑HADRILL,A.1984:191‑192.7Aug.93.1ss;Gal.9.2;Ves.4.5.8VideVIGOURT,A.1993:135‑136.9Estalendaéumtoposdaconcepçãodivinadeváriosheróis,entreosquais

AlexandreMagno,cujamãeteriatambémsidovisitadaporumaserpenteduranteaausênciadomarido:cf.Plutarco,Alex.2.6‑3.2.VideMARTINR.1991:329‑330.

10…ut supergressa fastigiumtempli adcaelumusque ferretur.Usamoso textodaediçãodeIHM,M.1908.

11Alémdisso,olugarondenasceueacasaondefoicriadotornam‑selocaissagrados(Aug.5‑6).

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(Ves.5.5);àsuamissãona Judeia (Ves.5.6);aosúltimosdiasdeNero;aosegundoconsuladodeGalba;àbatalhadeBetríaco,entreospartidáriosdeOtãoedeVitélio(Ves.5.7).Alutapelopoderésecundadapornovosprodígios,ocorridosemAlexandria(Ves.7.1),edeactividadetaumatúr‑gica–curaumcoxoedeumcego(Ves.7.2‑3)–queinseremVespasianonumaperspectivamessiânica.

Os presságios do imperium são também numerosos na Vida deGalba12efazemdeleumpredestinadodesdecriança:éoprópriofunda‑dordoprincipadoquelheanunciaopodersupremo13.Masossinaisindi‑cam também que só chegará ao trono em idade avançada, constataçãoquelevaTibérioanãootratarcomoumpossívelrival14.Umdiaemqueoavô de Galba fazia um sacrifício, o facto de uma águia (símbolo deJúpiter) lhe ter arrebatado das mãos as entranhas da vítima e as terlevado para um carvalho (árvore consagrada a Júpiter) carregado deglandesfoiinterpretadocomosinaldequeopodersoberanoseriadadoàsuafamília,masnumaépocatardia.Ogracejodoavô,incréduloperantetalvaticínio—‘sane’inquit‘cummulapeperit’(«‘pelacerta—disseele—quandoumamula tiverparido’»)—, transforma‑se emnovopresságio,

________________

12 Dezasseis, entre os de elevação e de queda do príncipe, como notaGASCOU,J.1984:447‑450.

13 um dia em que (puero) fora saudar Augusto, este, segurando‑lhe abochecha, diz: kai; su; tevknon th=º ajrch=º hJmw=n pratrwvxh/(«‘também tu, meu filho, hás‑de provar do nosso poder’») (Gal. 4.1) . ÉsignificativoqueSuetónioatribuaaofundadordoprincipadoumpresságioquetanto Tácito (,Ann. 6.20.2) como Díon Cássio (57.19.4). O verbo de fecho (quesignifica ‘saborear de passagem’, ‘mordiscar’) e o partitivo th=º ajrch=º hJmw=nsugeremqueaconsumaçãodopoderseráefémera.Alémdisso,SuetóniocolocanabocadeAugustoasúltimaspalavrasdeCésar feridodemorte:kai; su; tevknon (Jul. 82.3).De facto,Galba, ao liderar a revolta contraNero, iráprovocaraquedadoúltimoimpe‑radordafamíliajúlio‑cláudia.VideARNAUD,P.1998:61‑71.

14 Sed et Tiberius, cum comperisset imperaturum eumuerum in senecta: ‘uiuatsane’,ait,‘quandoidadnosnihilpertinet’(Gal.4.1).Cf.DíonCássio,57.19.4.

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confirmadopelopartodeumamula,naalturadapreparaçãodarevoltacontraNero15.

TambémTibério,Cláudio,Otão eTito contampresságios que lhesasseguramoimpério16.

Outra série importantedepresságiosanunciaamortedos impera‑doreseestegrupoestápresenteemtodossemexcepção17.Ondeaconta‑gemdecrescentedo tempo,marcadaporpresságios, se tornamaisdra‑mática é no relato das mortes violentas. Vale a pena determo‑nos nasmais significativas. Os Idos de Março tornam‑se uma data simbólica,notabilizadapelamortedeCésar.Aaproximaçãodaquelediaésugeridacom notações temporais cada vez mais precisas. Paucos ante menses, édescoberta,notúmulodofundadordeCápua,umatabulaaeneacomumainscriçãoquepreviaamortedoditadoreocastigodosassassinos,àcustadeduraspenaspara a Itália (Jul. 81.1)18.Proximis diebus, os cavalos queCésar consagrara ao rio Rubicão recusam alimento e choram copiosa‑mente19;eoharúspiceEspurinaprevine‑ocontraumperigoquenãoiriaalémdos idosdeMarço (Jul.81.2).Pridie autem easdem Idus, várias avesperseguematéàcúriadePompeioedespedaçamumacarriça(cujonomelatino,regaliolus,evocarex)quelevaumramodelouronobico.Eanocte,cuiinluxitdiescaedis,CésarsonhaquevoasobreasnuvenseapertaamãodeJúpiter20.TambémCalpúrniasonhaquedesabaotectodacasaequeomaridoéapunhaladonoseuregaço.Estesonhoéacompanhadodeumfacto inesperado (introduzidopor subito): as portasdo quarto abrem‑seespontaneamente21. Quando César está quase decidido a ficar em casaporcausadospresságios(obhaec)edeumaindisposição,DécimoBruto,________________

15 Recordado das palavras do avô, Galba toma como laetissimus tal fenó‑meno,queoutrosesconjuravamcomoobscaenus:Gal.4.2.Cf.DíonCássio,54.1.3.JáCésarprocuravavoltarospresságiosaseufavor:cf.Jul.59.

16Cf.Tib.14;Cl.7;Otho4.1;Tit.5.1‑2.17Jul.81;Aug.97;Tib.74;Cal.57;Cl.46;Nero46;Gal.18;Otho8.3;Vit.9e18;

Ves.23.4;Tit.10.1;Dom.15.2‑3,16.1;23.2.18 ‘Quandoque ossa Capyis detecta essent, fore ut illo [ou Iulo, edd.] prognatus

manuconsanguineorumnecareturmagnisquemoxItaliaecladibusuindicaretur’.19Estaéaúnicareferênciaaestesanimais.20 Também Calígula tem um sonho semelhante pridie quam periret

(Cal.57.3).21Cf.Plutarco,Caes.63;DíonCássio,44.17.

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homemdasuaconfiança,exorta‑oaprosseguir–tornando‑seadjuvantenocumprimentododestino–;eCésarsai ferehoraquinta (últimamarcatemporal).Anecessidadedecumprirodestinoéassinaladapelanotadeque, no caminho, alguém22 lhe entrega um bilhete a revelar a conjura,maselejunta‑oaoutrospapéisparalermaistarde.Nossacrifíciosprepa‑ratórios da reunião, César imola diversas vítimas, mas não consegueobter presságios favoráveis – nem podia conseguir sob pena de haverincoerência23.Talcontrariedadenãoindicia,àpartida,morte,masobió‑grafonotaqueeleentranaCúriadesprezandoosavisos(spretareligione),oqueestádeacordocomocepticismododitador(Jul.59).Irónicoétam‑bémofactodeCésartroçardeEspurina,queohaviaprecavidocontraofatídicodia.Peranteaacusaçãodeimpostura,«poisosidosdeMarçoaíestavam sem nenhum perigo para ele», o adivinho respondeu «quetinhamrealmentechegado,masnão tinhampassado»24.Acontagemdotempo,cruzadacomosváriossinaisquesesucedem,expressaafinitudehumanaeatrágicaincapacidadedelutarcontraodestino.

Também a lista dos prodígios anunciadores damorte de Calígulaincluifenómenossemelhantes,emqueestãopresentesquerJúpiterquero simbolismodos IdosdeMarço e do nomeCássio (umdosprincipaiscesaricidas).Oelencocomeçacomprodígiosanteriores,semindicaçãodetempo,masvagamentesituáveisnoano40d.C.,pelasreferênciashistóri‑casqueimplicam25(Calígulafoimortoa24deJaneirode41):umagarga‑lhada emitidapela estátuade JúpiterOlímpico (Cal. 57.1), queCalígulaquiseratrazerparaRoma,paralhesubstituiracabeçapelasua(Cal.22.2);umsonhodeumtalCássio,noqualrecebeaordemdeimolarumtouroaJúpiter;unsraiosqueatingem,nosIdosdeMarço,ocapitóliodeCápuaeo local da guarda do palácio imperial (cellaatriensis)26; o aviso, feito ao________________

22 SegundoPlutarco,Caes. 65, foiArtemidorodeCnidos,mestredeLetrasGregas (emboradiga tambémque, segundoalguns autores, se tratavadeoutrapessoa,poisArtemidoroforaimpedidodeseaproximardeCésar).

23ComonotaVIGOURT,A.1993:140.24 Jul. 81.4:Dein pluribus hostiis caesis, cum litare non posset, introit curiam

spreta religione Spurinnamque irridens et ut falsum arguens, quod sine ulla sua noxaIdusMartiaeadessent:quamquamisuenissequidemeasdiceret,sednonpraeterisse.

25VideVIGOURT,A.1993:134‑135.26Osegundoraioé interpretadocomoumperigodapartedosguardas;o

primeiroéconsideradoprenúnciodeumimportanteassassínio,comooquefora

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imperador pelo astrólogo Sula e pelasFortunae Antianae27, de que deveprecaver‑secontraumCássio(Cal.57.3)28.Comumaindicaçãomaispre‑cisa, é situado na véspera damorte (pridie quam periret), um sonho dopróprioCalígula,emqueJúpiteroempurracomospéseoprecipitanaterra.Porúltimo,obiógrafo referecasos fortuitos,ocorridosnoprópriodiadoassassínio(illoipsodiepauloprius),equeforamconsideradospres‑sagos:duranteumsacrifício,Calígulafoiaspergidocomosanguedeumflamingo;opantomimoMnesterdançouamesmatragédiaqueforareci‑tadanosjogosemqueFilipedaMacedóniafoimorto;umacenadomimoapelidadoLaureolusresultouparticularmentesangrentadevidoaoempe‑nho dos actores secundários; e estava a ser preparado para a noite umespectáculodeassuntoligadoaomundodosinfernos,representadoporactoresegípcioseetíopes(Cal.57.4).

LogoqueGalbaatingeopoder,osprodígioscomeçamaanunciaroseufim29.JáduranteocaminhoparaRoma,Galbaéinundadodesanguedeum touro feridopelomachado30 e é quase ferido comuma lançadeumsoldado.AoentraremRoma,edepoisnoPalácio,éacolhidoporum

________________ perpetradonomesmodia (Cal.57.2).Natrad.deAILLOUD,H.1931‑1932, identi‑fica‑se a cella Palatini atriensis como «santuário deApolo guardiãodopalácio»erigidoporAugusto(cf.Aug.29.3).TalhipóteseécontestadaemGUASTELLA,G.1992:291‑292,por,alémdomais,nãoseadequaràinterpretaçãotransmitidapelobiógrafo: altero ostento periculum a custodibus domino portendi. Ligado a CápuaestiveratambémumpresságiodamortedeCésar(Jul.81.1).

27Suetóniodefende,contraoutrasfontes,queGaionasceuemÂncio(Cal.8).28Namirade contrariarodestino, cometeo erro involuntáriode emitir a

ordemdematarCássio Longino, governador daÁsia (para 40‑41 d.C.), sem selembrardequeQuérea(tribunodaguardapretoriana)tambémeraCássio.CássioLongino era descendente do homónimo que se contava entre os assassinos deJúlioCésar(cf.DíonCássio59.29.3).

29 Gal. 18.1:Magna et assidua monstra iam inde a principio exitum ei, qualiseuenit, portenderant. Nenhuma outra fonte regista estes presságios. Vide DELLA

CORTE,F.1967:58‑59.30Éconsideradomuitomausinalseavítimaescapavameiamorta(cf.Jul.

59): presságio semelhante leva Vitélio retroceder para Roma quando se dirigiaparaMevânia (Tácito,Hist. 3.56.1‑2). Ficar sujo do sangue da vítima era aindapior:cf.Cal.57.4.

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tremor de terra31. E a divindade tutelar, a Fortuna, de quemGalba, aoassumir a toga viril, recebera a protecção através de um sonho32, vemretirar‑lhe o favor, através de outro sonho (Gal. 18.2). Os sinais vão‑seacumulando até ao último dia: a coroa cai‑lhe da cabeça durante umsacrifícionas calendasde Janeiro; asaves fogemduranteunsauspícios;no dia da adopção (do destinado sucessor), os servos esquecem‑se decolocar a cadeira castrense diante do tribunal, para Galba arengar aossoldados; a cadeira curul aparece colocada ao contrário no senado; namanhãdodiaemquefoimorto(priusueroquamoccideretursacrificantemmane),harúspicesavisam‑nodaproximidadedoperigo(Gal.18.3).Acon‑tinuidade da dinastia, tentada através da adopção de Pisão, revela‑seimpossível.

A morte de Domiciano torna‑se mais dramática porque oimperador, ao conhecer a data e a hora damorte, por informação dosastrólogos (Chaldaei) e do próprio pai, Vespasiano (Dom.14.1)33, vive osúltimosmomentosemsobressalto(Dom.14.2.)34.Acontagemdotempoéfulcralnorelatodestamorte,anunciadaporumasériedeprodígios,quemanifestamacóleradeJúpiter35:nosoitomesesseguintes(continuisocto

________________ 31Terremotoseramsempreconsideradospressagos,comonotaPlínio,Nat.

2.200:nunquamurbsRomatremuitutnonfuturieuentusalicuiusidpraenuntiumesset.

32Estadivindadeaparece‑lheemsonhosareclamarhospitalidadediantedasuaporta.Aodespertar,encontraumaestátuadadeusaàentradaeconsagra‑lheuma divisão da casa na propriedade de veraneio de Túsculo (Gal. 4.3). DíonCássio,54.1.2,colocaestesonhonoperíododarevoltacontraNero.

33 Annum diemque ultimumuitae iam pridem suspectum habebat, horam etiamnecnonetgenusmortis.AdulescentuloChaldaeicunctapraedixerant;paterquoquesupercenam quondam fungis abstinentem palam irriserat ut ignarum sortis suae, quod nonferrum potius timeret. E, mais à frente, Dom 14.4: Tempore uero suspecti periculiappropinquante sollicitior in dies porticuum, in quibus spatiari consuerat, parietesphengite lapide distinxit, e cuius splendore per imagines quidquid a tergo fieretprouideret.Otematradicionaldotiranoinquietoedesconfiado(cf.Plínio,Pan.49;82)recebeumnovotratamento:ofundamentodestaapreensãodoentiaresidenasprediçõesastrológicas,comoafirmaBRIND’AMOUR,P.1981:338‑344.

34Quarepauidussemperatqueanxiusminimisetiamsuspicionibuspraetermodumcommouebatur.Obiógrafodizqueomedootornoucruel(Dom.3.2).

35VideGASCOU,J.1984:790.

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mensibus), ressoa grande quantidade de trovões36, que atingem o Capi‑tólio, o templodagens Flávia, opaláciodoPalatino e opróprioquartodo imperador; e uma tempestade violenta arranca uma inscrição deumaestátuatriunfaldeDomicianoelança‑asobreumsepulcropróximo(Dom. 15.2). A própriaMinerva, divindade por quemDomiciano tinhagrande veneração37, aparece‑lhe em sonhos a dizer que lhe não podeconcedermaisprotecção,porqueJúpiteradesarmou(Dom15.3).Alude‑se ainda a um oráculo funesto, com menção de sangue, dado pelaFortunadePrenestenoúltimoano(Dom.15.2)38.

O biógrafo sugere a aproximaçãodahoradamortedeDomicianocomindicaçõescronológicascadavezmaisprecisas39.Sãointegradosnorelato fundamentos de astrologia, colocados na boca do imperador: adproximosaffirmauit‘foreutsequentidielunaseinaquariocruentaretfactumquealiquodexisteret,dequoloquerenturhominesperterrarumorbem’40.(«asseve‑

________________ 36 Que levam o imperador a exclamar: ‘feriat iam, quem uolet’ Também

CalígulalançapalavrasdedesafioaJúpiter(Cal.22.4).MARTIN,R.1991:343‑344,sugere que Domiciano manifestava, nos últimos tempos, sinais de paranóiadelirante.

37Quamsuperstitiosecolebat.SuperstitioexprimehabitualmenteemSuetóniofalsas crenças, religiões alheias, práticas de magia; mas, neste caso, sugerecensuradoexageroedemasiadaexclusividadedaveneraçãoporumadivindadedopanteão,Minerva:VideGASCOU,J.1984:729n.94.AligaçãodeDomicianoaMinerva (PallasCaesariana) é recordada também por Marcial, 5.2.6‑8; 6.10.9‑12;7.1.1‑2;8.1.4;9.3.10.DíonCássio,67.16.1,dáumaversãoligeiramentediferentedadeSuetónio.

38 E que anteriormente sempre lhe fora favorável. Também Tibério tiveraproblemas com este oráculo em contexto muito semelhante: Vicina uero urbioracula etiam dis[s]icere conatus est, sed maiestate Praenestinarum sortium territusdestitit...(Tib.63.1).

39 Pridie quam periret ...; at circa mediam noctem...; dehinc mane (16.1); horasrequirentiproquinta,quammetuebat,sextaexindustrianuntiataest(16.2).

40Dom. 16.1. Na opinião BRIND’AMOUR, P. 1981: 338‑344, trata‑se de umregisto póstumo da vida, e da morte de Domiciano, segundo uma visão daastrologia(elaboradaporumafontecompetenteemmatériadeastronomia),quesemanifesta várias vezes ao longo da vida, pelo que, na narrativa da vida deDomicianocompostaporSuetónio,háumatramaastrológicaquepoucoapoucoconduzaoseudestinoavidadoimperador.

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rouaosqueestavampróximosque‘acontecerianodiaseguintequealuasecobririadesanguenosignodeaquárioeocorreriaalgodequetodososhomensfalariamportodoomundo’»).

Comooimperadortemiaahoraquinta,osconjuradostêmderecor‑rer ao dolo: quando Domiciano pergunta as horas, dizem‑lhe que é asexta.Oimperador,que julgapassadoomomentocrítico,afastaospre‑sentes e recebe, sozinho, o assassino (Dom. 16.2). Devido à trágica fini‑tudehumana,mesmoquesesuspeitedahoradamorteesetentefugiràsina,odestinoarranjamaneiradesecumprirnotempodeterminado.

Além dos sinais sobre a vida de cada imperador, o biógrafo dáimportância aos do tempodas dinastias. Suetónio, que crê numa inter‑vençãodivinanahistória,sugereclaramente,nolimiardaVidadeGalba,que a família júlio‑cláudia tinha prosperado e caído por vontade dosdeuses, expressa em signa euidentissima (Gal. 1.1). Reportando‑se aomomentodafusãodosJúlioscomosCláudios(ocasamentodeAugustoeLívia),introduzahistóriadaafortunadagalinhabranca,comumramode louro no bico, que uma águia41 deixou cair no regaço de Lívia.Agalinha tornou‑seamatriarcadeuma longaprole,eo ramode lourofloresceu até se tornar a fonte dos louros para o triunfo dos césares42.

________________

41Aáguia é associadaamiúdeaopoder supremo: cf.Aug. 94.7; 96.1; 97.1;Tib.14.4;Cl.7;Gal.4.2;Vit.9;Ves.5.7.

42Plínio,Nat.15.136‑137,dizquesãoosharúspicesqueaconselhamLíviaapreservaragalinhaeasuadescendênciaeacuidarreligiosamentedoramo.Naopinião de FLORY, M. B. 1988‑1989: 343‑356, trata‑se de uma manobra dapropaganda de Augusto para fazer face à hostilidade pública. Segundo DíonCássio, 41.39.2, também na altura em que Júlio César se preparava para acampanhacontraPompeio,nofinalde49a.C.,ummilhafredeixoucairumramode louro sobre umdos homens que estavam com ele no foro.O prodígio teriainspirado Octávio a imitá‑lo uma década mais tarde. Na altura em que Plíniositua o acontecimento— o casamento com Lívia—,Octávio estava em guerracom Sexto Pompeio: um conflito que tinha tornado o herdeiro de Césarimpopularpeloembargonofornecimentodetrigo.Oprodígiorecordaode49eestabelece‑seoparalelismodasituação:talcomoCésarvenceraPompeio,ofilhodo Diuus Iulius vencerá o filho de Pompeio. Além disso, era uma forma delegitimarocasamentocomLívia,queseriaescandaloso(Líviaeracasadaeestavagrávida de seis meses) e levantaria rumores, como prova o facto de Antónioencontrar no factomotivo para a sua propaganda. Ora a ideia da vida de um

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Observou‑seque,poralturadamortedecadaimperador,murchavamaspernadas que ele tinha plantado e, no ano da morte de Nero, todo obosquesecouetodasasgalinhasmorreram43.Outrosprodígiosdesimbo‑lismoevidentesão introduzidosporacsubinde:o templodoscésares foiatingidoporumraio(tactadecaelo),caíramascabeçasdetodasaestátuaseoceptrofoiarrebatadodasmãosdeAugusto.

Emcontinuidade como iníciodaVida deGalba,no começodadeVespasiano,Suetónio fazopontodasituação:à incertezacausadapelossucessivos golpes de estado de três príncipes (Galba, Otão Vitélio),sucede‑sefinalmenteafirmitasoferecidapelafamíliaflávia44.Aoposiçãoentrediuetandemtraduzotempopsicológicodedezoitolongosmesesdeguerra civil, entre a morte de Nero (em Junho de 68) e a de Vitélio(Dezembro de 69). Se o livro VII trata de três indivíduos isolados, nocomeçodolivroVIIIsurgeocolectivogensFlauia,que,dealgummodo,restauraaprogeniesCaesarumquemorreracomNero.OndeGalbafalhou,Vespasiano foi eficaz. Às pretensões de nobreza dos três imperadoresanteriores45 o biógrafo opõe o contributo efectivo— suscepit firmauitquetandem— desta nova família que, apesar da origem humilde, recebe oreconhecimentodoestado(Ves.12).Mas,desdelogo,obiógrafoantecipao desenlace final: o castigo que Domicianomerecerá pela sua cupiditase saeuitia. Este conjunto de Vidas (Vespasiano, Tito,Domiciano) é, assim,

________________ homemougruporepresentadapelavidadeumaplantaouárvoreécomumnofolcloreromano,desdeoficusruminaliseocornizonoPalatino,associadosàvidadeRómulo,easavestinhamgrandeimportâncianareligiãoromana.

43Suetóniopareceexagerar.TalafirmaçãoédesautorizadaporPlínio,Nat.15.137: ...traditusquemosestramosquostenuerantserendietdurantsiluaenominibussuisdiscretae.

44 Ves. 1.1: Rebellione trium principum et caede incertum diu et quasi uagumimperium suscepit firmauitque tandem gens Flauia, obscura quidem ac sine ullismaiorumimaginibus,sedtamenreip.nequaquampaenitenda,constetlicetDomitianumcupiditatisacsaeuitiaemeritopoenasluisse.

45Cf.Gal.2: imperatorueroinatriostemmaproposuerit,quopaternamoriginemadIouem,maternamadPasiphaamMinonisuxoremreferret;Otho1.1:MaioresOthonisorti sunt oppido Ferentio, familia uetere et honorata atque ex principibus Etruriae;Vit. 1.1:ExtatQ. Elogi adQuintumVitelliumDiui Augusti quaestorem libellus, quocontinetur, Vitellios Fauno Aboriginum rege et Vitelia, quae multis locis pro numinecoleretur,ortostotoLatioimperasse.

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determinado por uma contingência no tempo, depois confirmada porpresságios,acompanhada,numplanoparalelo,dedegeneraçãomoral.

AVida de Vespasiano termina com o papel do fatum na intençãodinástica (Ves. 25). A crença nas predições astrológicas faz com queVespasianoseconsidereasalvodasconstantesconspirações46,aopontode ter a ousadiade afirmar no senadoque ‘aut filios sibi successuros autneminem’47(«‘ouosfilhoslhesucederiamouninguém’»).Nestecontextose introduzumsonhodo imperador, emqueesteviano seuátrioumabalança: num dos pratos, Cláudio eNero, e no outro, ele próprio e osfilhos.Talsonhoviráarevelar‑severdadeiro,umavezqueunseoutrosgovernaramporigualtempo48.Mas,aodelimitarotempodegovernodosFlávios, o sonho traz também implícita a data do fim da dinastia. TalcomooloureiroquesecarapeloocasodeNero(Gal.1),tambémaárvoreque se reerguera quando Vespasiano era um cidadão privado (umcipreste:Ves.5.4)seabateusubitamente(Dom.15.2);e,comootemplodosCésaresJúlio‑Cláudios,tambémotemplodosFlávioséatingidoporumaraio49.MasNeroeDomicianonãorepresentamapenasaquedadeduasdinastias: são também o último grau da degradação moral destasfamílias. Paradoxalmente, a perspectivamoralizante possibilita um fimoptimistaparaasVidasdosCésares(Dom.23.2):

Ipsum etiam Domitianum ferunt somniasse gibbam sibi poneceruicem auream enatam, pro certoque habuisse beatiorem post selaetioremque portendi rei publicae statum, sicut sane breui euenit absti‑nentiaetmoderationeinsequentiumprincipum.

________________

46VideMARTIN,R.1991:341.Assiduas inseconiurationespareceexagerodobiógrafo.Aúnicaqueconhecemoséade79,protagonizadaporA.CecinaAlienoeÉprioMarcelo.

47Cf.DíonCássio,66.12.1.Díonfaladeumsófilho,peloqueépossívelqueo plural filios sibi successuros, em Suetónio, seja uma alteração da época deDomiciano,nãoacolhidapelohistoriadorgrego;videCESA,M.2000:98.

48Ves. 25:Nec res fefellit, quando totidem annis parique temporis spatio utriqueimperauerunt.TambémTitodiráqueoimpérioédomdofatum(Tit.9.1).

49Oparalelismoéevidente:Gal.1:ActactadecaeloCaesarumaede;Dom.15.2:TactumdecaeloCapitoliumtemplumqueFlauiaegentis.VideGASCOU,J.1984:778.

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«ContamqueopróprioDomicianosonhouqueumagibadeourolhenascera por detrás da nuca, e teve como certo que prognosticava, paradepoisdele,umestadomaisfelizemaispróspero, talcomoefectivamenteaconteceu em breve, graças ao carácter desinteressado e moderado dospríncipesqueselheseguiram».

O anunciado período de felicidade é operado e confirmado atra‑vés da superioridade moral dos principes seguintes, cuja actuação sepauta pela moderatio, no que respeita à aceitação de honras e ao usoda repressão, e abstinentia, sobretudo no tocante aos bens dos súb‑ditos. Mas aqueles (Trajano e Adriano) são os imperadores à sombrados quais Suetónio faz carreira até cair em desgraça50, por volta de122d.C.

Verificamos que, entre os vários sinais que indiciam a iminênciados grandes acontecimentos, ganham relevo as experiências oníricas.Suetónio tomaos sonhosmuito a sério até na suavidaparticular51. Talcomoacontecena tradiçãoépicae trágica,ossonhospodemprenunciargraça e prosperidade, ou, pelo contrário, o castigo e o fim do favordivino.

A toadamoralizante do sonho de Domiciano está de acordo comaformacomoobiógrafoorganizaotempododiscurso.Atarefadobió‑grafoéverificaromodocomocadaCésar seadequaaomodelo ideal ecumpre a sua tarefa. E tal abordagem é realizadamediante a avaliaçãodasqualidadesdocarácter.Porisso,enquantoohistoriadorTácitotendea estabelecer uma oposição moralista entre a virtude do passado e adecadência do presente52, o biógrafo estabelece o confronto entre boase más acções do imperador – agrupadas sob a designação de uitia euirtutes –, ou entre imperadoresbons emaus, como sededuzda formaoptimistacomoterminaasVidas(Dom.23.2).

Como consequência do interesse pelas qualidades do carácter, acronologiatem,paraobiógrafo,umpapelsecundário.Suetónioserve‑sedelasobretudoantesdaascensãoaoImpérioenorelatodamorteecomométodo útil para fazer resumos de acções ou acontecimentos que nãoconsidera de particular relevância para a caracterização do biografado.

________________

50Cf.HistoriaAugusta,Hadr.11.3.51ComotestemunhaoseuamigoPlínio,Ep.1.18.1.52VideGIUA,M.A.1990:535‑538.

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Na introdução às Vidas53, encontraríamos, talvez, as linhas gerais doplanodetrabalho;mas,notextosobrevivente,háreferênciasàorganiza‑çãoqueSuetóniopretendedaraomaterialrecolhidodasfontes.NaVidadeAugustoéexplicitadaadistinçãoentrerelatocronológicoeanáliseporrubricas(pertemporaeperspecies):

Proposita uitae eius uelut summa, partes singillatim neque pertemporasedperspeciesexsequar,quodistinctiusdemonstraricognosciquepossint.54

«Apresentadoquefoiumaespéciederesumodasuavida,vouagoraprosseguircomosváriosaspectos,umporum,nãopelaordemcronológica,mas através de rubricas, para que se possa tornar mais evidente quer aexposiçãoqueracompreensão».Sugere‑se que uma narrativa cronológica não permitiria uma tão

límpida explanação e percepção do carácter do biografado (distinctiusdemonstrari cognoscique) e que só o método per species se adapta plena‑mente ao seu objecto de estudo, pois permite concentrar a informaçãosobre a pessoa do imperador. Através da partitioou diuisio, Suetónioprepara o leitor para uma exposição de tipo erudito: apresenta‑se umtemaemcabeçalhoquedepoiséilustradocomosfactos(acçõesoupala‑vras)queocomprovam.

Assimpodeobiógrafofazerotratamentoindividualizadodasqua‑lidadesdeumimperador,comoéocasodosvíciosdeTibério(Tib.42.1)55.Areferênciaaosuitiaépretextoparaintroduzirumasériedespeciesqueirãoseranalisadassingillatim.Quandoasspeciessemultiplicaméprecisoseleccionarasquemelhor sirvamde exemplaparadeterminadoaspecto:Singillatim crudeliter facta eius exsequi longum est; genera, uelut exemplaria

________________ 53Perdeu‑seadedicatóriaaSeptícioClaro(dequenosdánotíciaJoãoLido,

deMag.2.6),bemcomoosprimeiroscapítulosdaVidadeCésar.

54Aug.9.1.Cf.Aug.61.1:Quoniamqualisinimperisacmagistratibusregendaqueper terrarum orbem pace belloque re p. fuerit, exposui, referam nunc interiorem acfamiliarem eius uitam quibusque moribus atque fortuna domi et inter suos egerit aiuuentausqueadsupremumuitaediem.

55…dequibussingillatimabexordioreferam.

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saeuitiae,enumeraresaterit56(«Analisar,umporum,osseusactosdecruel‑dadetornar‑se‑ialongo;serásuficienteenumerar,atítulodeexemplo,ostiposdeviolências»).

Estemétodo,explicitadonaVidadeAugusto,jáeraclaronavidadeCésar.Depoisda“súmulaordenada”dos feitos—ordo et summarerum,quas deinceps gessit (Jul. 34.1) —, feita através de uma narrativa veloz,adopta‑se,maisàfrente,outraformadeexposição(Jul.44.4):

Taliaagentematquemeditantemmorspraeuenit.Dequapriusquamdicam,eaquaeadformamethabitumetcultumetmores,necminusquaead ciuilia et bellica eius studia pertineant, non alienum erit summatimexponere.

«Realizavaeprojectavaeletaisacçõesquandoamorteosurpreendeu.Antes de falar desta, não será inoportuno expor aqui, em traços gerais, oque à sua figura e ao vestuário e à apresentação e aos costumes e, nãomenos,oqueàssuasocupaçõescivisemilitaresdisserrespeito».A partir daqui, o relato apresenta‑se sistematizado por rubricas:

predomina a descrição. É resumidamente que Suetónio apresenta osgrandes acontecimentosque sãoo objecto tradicionaldahistória comaqualobiógrafonãopretendecompetir:aguerradaGália,apesardasuaimportâncianavidadeCésar,vemcondensadaemumparágrafo57.Masésingillatimque se analisam as virtudesmilitares (Jul. 57‑67), demodo afundamentarasrazõesdadevoçãodossoldados(Jul.68),eaautoridadedogeneral(Jul.69‑70).

Aabordageméticadosacontecimentosacarreta,porvezes,o trata‑mento em conjunto de acontecimentos que sucederam em momentosdiversos.Suetóniositua,porexemplo,osonhodeCésar,emqueviolava________________

56Tib.61.2.Cf.Cl.29.1:Acnesingillatimminoraquoqueenumerem;eCal.37.3:Acnesingulaenumerem.

57 Jul. 25.1, ao passo que Plutarco, adoptando um método diferente, sealonga:Caesar, 18‑27.Este tipode informaçõespoderiao leitor encontrá‑lasnosCommentarii deCésar. Já no que diz respeito a essas obras, Suetónio semostramaisprolixoaofazerobalançodascríticas(Jul.56,1‑4),porqueissoestádentrodoobjectodeestudodeumbiógrafoeruditoeautordebiografiasliterárias.VideWALLACE‑HADRILL,A. 1984: 10‑15; CIZEK, E. 1977: 49‑52; DELLA CORTE, F. 1967:191‑193;TOWNEND,G.B.1967:84‑86;GRIMAL,P.1986:730;LOUNSBURY,R.C.1987:79‑81.

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aprópriamãe(Jul.7.2),namesmaalturaemquechora,juntoàestátuadeAlexandreemGades(Jul.7.1),pelofactonãoterfeitonadadegrandioso,tendoa idadeemqueomacedónio jádominavaomundo—narrativasque, emPlutarco, figuramemmomentosdiferentes e sem ligação entresi58.Junta‑senummesmorelatoimperadorosdestinosdasduasJúlias,afilhaeanetadeAugusto,eaindaodeAgripaPóstumo,paraacentuaraimagem de um pai infeliz, vítima da má Fortuna, que lhe frustrou aalegriaeaesperançanadescendênciaenadisciplinadasuacasa59.

Outrasvezes,pelocontrário,separa‑seinformaçãoquedeviaapare‑cer junta, para a apresentar no momento em que terá maior efeito nacaracterização do biografado. Por exemplo, a perseguição de Nero aoscristãos é colocadanaprimeirapartedaVida (Nero 16.2), semqualquerconexãocomoincêndiode64,cujaresponsabilidadeétotalmenteimpu‑tada ao imperador60.A narrativa da revolta do exército daGermânia érepartidaentreaVidadeGalba(Gal.16.2)eadeVitélio(Vit.8.1),peloqueseapresentaemcadaVidaoquedizrespeitoaobiografado:noprimeirocaso, a rejeição do imperador eleito na Hispânia; no segundo, aaclamação burlesca do imperador favorito deste exército. Separa‑se ainformação do favorecimento de Métio Pompusiano, dotado de umhoróscopoquelheprognosticavaoimpério,paraqueeleselembrassedamercê(Ves.15),daqueserefereàsuaexecuçãoporordemdeDomiciano(Dom. 10.3)61: a primeira parte é usada para encarecer a clementia deVespasianoeasegunda,paraacentuarasaeuitiadeDomiciano.

Quando necessário, inverte‑se a ordem.A subordinaçãoda crono‑logiaàdimensãomorallevaSuetónioacolocaramortedeAgripinaantesda formaçãodo trio amorosoque segerouentreNero,PopeiaSabinaeOtão (Otho 3), para assim tornar o último cúmplice domatricídio62: aoestabelecera ligaçãodeOtãoaoscrimesdeNero,Suetónioacentua,por

________________ 58VidePlutarco,Caes.11.5,eDíonCássio,37.52.Plutarcosituaosonhoda

violaçãodamãe(Caes.32.9)nocontextodapassagemdoRubicão.

59Aug.65.1:SedlaetumeumatquefidentemetsuboleetdisciplinadomusFortunadestituit...Aug.65.2:Aliquandoautempatientiusmortemquamdedecorasuorumtulit.

60Tácito,Ann.15.44.3‑8,associaosdoisacontecimentos.61Informaçõesquejádeviamcircularemconjunto:assimasapresentaDíon

Cássio,67.12.2‑4;videGASCOU,J.1984:326‑328.62EmTácito,Ann.14.1‑2,aligaçãodeNerocomPopeiaéanterioràmorte

deAgripina.

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contraste, a espantosa mudança, pela qual este efémero imperador doano69d.C.obteve,no finaldavida,umaespéciede redençãomoralepolítica(Otho12.2)63.

Com a cronologia relegada para segundo lugar ou sacrificada,mesmo os grandes acontecimentos históricos se tornam, muitas vezes,dependentesdasspeciesesãoarrancadosdoseucontexto,parafunciona‑remapenascomoexempla.EnquantoTácito (Ann.16.21ss)apresentaumrelato minucioso das causas e circunstâncias da morte de Trásea Peto,Suetóniomenciona‑aapenasparailustraracrueldadegratuitadeNeroeas mortes sob pretextos fúteis, retirando‑a do contexto da oposiçãoestóica64.Paraobiógrafo,oqueestáemcausanãoéexploraraconjunturahistórico‑política — do máximo interesse para um historiador —, masfazerumaabordagemética65:nestecaso,demonstraratéondeiaacruel‑dadedeNero.

Por vezes, dentrodas species existe uma cronologia relativa, o queimplica,emtermosnarrativos,umasériedeanalepsesparatratarostópi‑cosabinitio.Mas,comooethosprevalecesobreotempo,Suetónioseguedepreferênciaagradatiodosexempla,dosmenosparaosmaissignificati‑vos, segundo o tema da rubrica em questão66. Muitas vezes, sugere‑semesmoqueumaprogressãocronológicaequivaleàevoluçãodobiogra‑fadonosentidodosvíciosmaisgraves(nocasodosmausimperadores),ouemdirecçãoàsvirtudes(nocasodosbons).Ocasamentofarsescode________________

63perquae factumputem,utmors eiusminimecongruensuitaemaioremiraculofuerit. Tácito, Hist. 2.50.1, opõe a morte digna de Otão (facinum egregium) aoinfameassassíniodeGalba;Plutarco,Oth.18.3,compara‑ocomNero:nãoviveumais “honestamente”, mas morreu mais “nobremente”; Díon Cássio, 64.15.2,opõeamorteàimpiedadeeperversidadedeOtão,umamorteóptimaaumavidapéssima;Tácito,Hist. 2.50.1, diz que elemereceuposteriormenteuma fama tãoboa comomá; Plutarco,Oth. 18, diz que os que louvaram a morte não forammenos importantes nemmenos numerosos do que os que censuraram a vida;DíonCássio,64.15.2,dizqueamorteobscureceuaimpiedadeeperversidade.SóSuetóniofaladequaseunanimidade(magnaparshominum)nopóstumolouvordeOtão.VideCIZEK,E.1977:130‑132;GASCOU,J.1984:312,776‑777.

64Nero37.1.ParaSuetónio,TráseaPetofoieliminadoporquetinhatristioretpaedagogiuultus—pormenordenaturezamarginalqueapontaparaatradicionaldescriçãodosestóicoscomotristes.VideWARMINGTON,B.H.1999:70‑71.

65VideGASCOU,J1984:390‑436.66VideCIZEK,E.1977:118‑120.

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Nero com o eunuco Esporo terá acontecido depois do casamento comDoríforo, em que o imperador fez demulher, mas, como Suetónio, deacordocomamentalidade romana, consideramaisgraveaprostituiçãodapudicitia,colocanocúmulodagradaçãooactopassivo,emqueNerochega a imitar os gemidosdas virgens ao serem forçadas67.No cúmulodas crueldades de Nero aparece o incêndio de 64 d.C., apesar de esteprincipado aindadurarmais quatro anos (Nero, 38).Assim se criaumacronologia fictícia, de acordo com os objectivos caracterológicos dobiógrafo.

Na governação de Calígula (Cal. 22.1) e na de Nero (Nero 19.3),sugere‑seumamudança radicalde comportamento.Noentanto, adivi‑sãodaVidadeCalígulaentreacçõesdoprincepseacçõesdomonstrumémaisoresultadodatécnicabiográficadoqueumdadohistóricoouumaevolução cronológica. Embora geralmente se aceite que houve umamudança, a primeira parte da biografia inclui também acontecimentosque pertencem já a uma fase avançada do governo68. Quanto a Nero,aconteceque,porvezes,osmesmosfactossãofraccionadosparailustrara parte boa e a partemá, conforme são vistos por uma ou outra pers‑pectiva69.

________________ 67 Crê‑se que este Doríforo se identifique com o Pitágoras que figura no

relatodeTácito,Ann. 15.37.4.O“casamento”comDoríforo /Pitágoras, emque

Nerofazdemulher,teráocorridoimediatamenteantesdoincêndiode64.Oraosuposto “casamento” com Esporo situa‑se entre amorte de Popeia, em 65, e aviagemdeNeroàGrécia,em66,emqueoeunucoacompanhaoimperador(Nero28.1).VideGALLIVAN,P.A.1974:309.Pensa‑sequese tratariade interpretaçõeshostisderituaisdeiniciação:videVERDIÈRE,R.1975:17‑22;BRADLEY,K.R.1978:161‑165;CIZEK,E.1982:41‑42;MARTIN,R.1991:160e169‑171.

68AconstruçãodapontedeBaias(Cal.19)datadoano39;arecompensadeuma liberta, por não ter revelado o crime do seu patrono (16.4), data de 40; oconcurso de eloquência, em Lugduno (Cal. 20), acontece dois anos depois dadoença de Calígula (37 d. C.); ao passo que a morte de Antónia, narrada nasegundaparte(Cal.23.2),ocorremaisdequatromesesantesdareferidadoença,apontadacomopontodeviragemporFílon,Leg.13.DíonCássio,59.2.6‑3.1,dizqueamudançaocorreem38;Josefo,AJ18.256,sustémqueocorredepoisdedoisanosdebomgoverno.VideGUASTELLA,G. 1992: 18‑19 e 156‑157; com.HURLEY,D.W.1993:83en.41;WARDLE,D.1994:202.

69VideGASCOU,J.1984:369‑373.

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Ao tratar a gradaçãoda avarezadeTibério, Suetónio introduz, nograumais elevado, a tendênciapara a rapina:procedentemox in temporeetiamad rapinas conuertit animum (Tib. 49.1).Masaordemdosexemplosaduzidos não corresponde à evolução cronológica sugerida. Depois danarrativadecondenaçõesarbitráriaseexplorações70,Suetónioapresenta,nocúmulodagradação,aespoliaçãoemortedeVonones,reidosPartos,refugiado,comgrandesriquezas,emAntioquia(Tib.49.2.),factoque,narealidade, é anterior aos outros71. O biógrafo coloca‑o no cúmulo dagradação,devidoaoescândalo:eraumrei,estavacomoquesobaprotec‑çãodosRomanos(quasiinfidemp.R.)efoiobjectodeperfidia.

De modo semelhante, ao sugerir uma evolução cronológica nagovernaçãodeDomiciano,obiógrafolevaoleitorapensarqueasmedi‑daspositivasapresentadasacontecemnaprimeirafasedogoverno,mastalnãocorrespondeàverdadehistórica.Comefeito,SuetóniosituanestafaseapuniçãodavestalCornélia e seus cúmplices (Dom. 8.4), aconteci‑mentoque,narealidadetevelugarnummomentoadiantadodesteprin‑cipado72.Mais à frente, a gradaçãona saeuitia édatadapor referência àguerra civilmovida por LúcioAntónio:Verum aliquanto post ciuilis belli________________

70TibérioteráforçadoaosuicídiooabastadoGneuLêntulo,terácondenadoLépida para agradar a Quirínio, homem rico e sem herdeiros e terá exploradoparticularesecidadesnasprovíncias.

71 Gneu Lêntulo foi morto em 25 d. C. (cf. Tácito,Ann. 4.44.1) e Lépida,descendente de Sula e Pompeio, foi condenada em 20 d. C. (cf. Tácito, Ann.3.23.1).SegundoTácito,Ann.2.68,Vononesfoiassassinadoem19d.C.,nafugaparaaArménia,porumpraefectusequitum,e,paramais,semresponsabilidadedeTibério.VideGASCOU,J.1984:408‑410.

72SegundoGALLI,F.1991:78,osuplíciodeCornéliateriaacontecidoem89.GRELLE, F. 1980: 347, coloca esteprocesso, combasena cronografiadeEusébio,emfinsde90oudecursode91.GASCOU,J.1984:400,parecesituá‑loumanomaistarde e acentua que aconteceu na parte final do principado de Domiciano: nodécimoprimeirodosquinzeanosquedurouesteprincipado.Tambémaumafaseadiantada deste governo pertence uma medida louvada por Marcial no livronono[9.5(6);9.7(8)],publicadoporvoltade94ou95:arepressãodaprostituiçãodosmeninos;videGRELLE,F.1980:347,n.29.Suetónionãoligaoacontecimentoao incesto de Domiciano com a sobrinha Júlia (como faz Plínio,Ep. 4.11), cujamorte, alegadamente, em consequência de um aborto forçado pelo imperador(Dom.22),ocorreupelamesmaalturadaexecuçãodeCornélia:videJONES,B.W.1996:78;JONES,B.&MILNS,R.2002:142‑143.

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uictoriamsaeuior(Dom.10.5)(«Mastornou‑semuitomaiscrueldepoisdesair vitoriosodaguerra civil»). Suetónio sugere que este acontecimentosucede a uma série de execuções referidas antes (Dom. 10.1‑4), mas amaiorpartedessasmortesécertamenteposterior73.

Nosbonsimperadores,asvirtudes,aoaparecerememúltimolugar,deixamprevalecerumaimagempositiva;nosimperadoresmaus,tendeaocorrer o efeito inverso: os piores vícios, exemplificados com acções editosqueprovocamhorror,sãodeixadosparaofim,deformaaprovoca‑remuma imagemde repulsa.Assim, a estruturadasVidas apresenta‑seconstruídaemgradatioouclímaxqueculminanomomentodaplenitudedobiografado,istoéamorte,lugardarevelaçãoderradeiradoethos.

Em suma, se o tempo da história é em grande parte determinado

pelo destino, o tempo do discurso, na parte central dasVidas, obedecesobretudoàilustraçãodocarácter.Porumlado,acronologiainternadasVidasépreteridaafavordeumaanálisedoethos,poroutro,háumapreo‑cupaçãocomoenquadramentodos imperadoresnahistória sagradadeRoma. O tempo de governação de cada um corresponde, no regimeimperial,àunidadeanteriormenteconstituídapeloanorepublicano.Jáoshistoriadoresromanos,nalinhadosregistosdospontífices,incluíamnosseusannales listasdesinaisprodigiosos.Talcomooanoromano,aVida________________

73 A revolta de L. António Saturnino é datada de 89, pelo que é dosacontecimentosmaisantigos. Se tomarmoscomoreferênciaasdatasadoptadaspor GASCOU, J. 1984: 411‑413 (e 691), Cívica Cerial morre por volta de 89;SalvidienoÓrfito,porvoltade93;AcílioGlabrião,cônsulcomTrajanoem91(cf.Díon67.14.3), foimortoem95;ÉlioLâmiaem93 (ouem85, segundoGALLI,F.1991: 59); Métio Pompusiano, talvez em 91; a desgraça de Salústio Luculo écolocadaentre86e96(ouentre89e90,segundoGALLI); JúnioRústicoem93;aexpulsãodosfilósofosdeItáliapoderáteracontecidoem93(videGALLI,F.1991:82).Tambémaordemdaquelasexecuçõeséalterada:amortedeAcílioGlabriãoénarradaantesdadeMétioPomposiano,eestaantesdadeFlávioSabino(mortoentre82e89).Oúltimoapareceno fimda listaporserparentedo imperadorepelafutilidadedoprotexto:oerrodoarautoqueosaúdacomoimperatoremvezdeconsul.Alémdisso,ésuspeitaaligaçãodamorteaoequívocodopraeco,umavezqueT.FlávioSabinofoidesignadocomocolegadeconsuladodeDomicianoparaoanode82eviveuosuficienteparaocuparocargo.Existiriacertamenteasuspeitadeadesãoaumaconjura:cf.GALLI,F.1991:84;SOUTHERN,P.1997:43.

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do imperador é pautada por presságios que assinalam os principaismomentos.No entanto, em Suetónio,mais do que o favor ou desfavordosdeusesparacomdeterminadasempresasemparticular,osprodígiosservem para apontar o curso inevitável da história74: o advento ou aqueda de um príncipe, mas também o tempo da dinastia, igualmenteassinaladoporindicaçõesdecarácterdivinatório.Ofuturoépredetermi‑nadoeprevisível,deacordocomdeterminadossinais.Mas,seaascensãoaotronoéumdomdofatum,comodizTito(Tit.9.1),aquedaparecesertambém, emgrandeparte, consequênciadamá actuaçãodospríncipes,comosugeremasVidasdeCalígula,Nero,Galba,VitélioeDomiciano75.Neste sentido, a conduta do príncipe serve de justificação, no planohumano,paraosdesígniosindicadospelospresságios.

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________________ 74Oque,segundoWALLACE‑HADRILL,A.1984:191‑192,reflecteumaatitude

diferentedarepublicana,expressanosannales.

75 Constatação que leva GASCOU, J. 1984: 797‑798, a falar de uma justiçaimanente.

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