baila comigo

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22/6/2008 29 SALVADOR DOMINGO 28 SALVADOR DOMINGO 22/6/2008 Baila comigo Texto PEDRO FERNANDES [email protected] Fotos REJANE CARNEIRO [email protected] “Sentindo o frio em minha alma, te convidei pra dançar...” Bailes ainda são sinônimo de romance. Ea Muito descortina alguns desses amores, nascidos nas pistas de dança de salão da cidade U m salão à meia-luz e casais a rodopiar na pista de ma- deira. Saias se espalham e pés se entrelaçam com ele- gância e experiência. Ali, o amor busca companhia, nasce e termina para começar de novo, sem data de validade. O Clube Comercial, na Avenida Sete, em seus 132 anos de existência, confirmados pela placa na fa- chada e pelo rótulo do isopor das cervejas, já viu muitos deles em suas diversas expressões. Platônicos, correspondidos, proibidos e aqueles que não pertencem mais a este mundo. Na porta, o aviso que diz não ser permitida a entrada de pessoas trajando bermuda, shorts ou boné é mera formalidade. Quem freqüen- ta o Comercial sabe que tem que estar elegante. É o que confirma o presidente, Mário Ivo Farias, 80, que, há 50 anos, faz parte do clube. Seu Mário é sociólogo e ensinou durante muitos anos em colégios pú- blicos de Salvador. Hoje sua vida é o Comercial. Está sempre lá. Dança e toma as suas na mesa com uma placa que diz "diretoria", sem a com- panhia da mulher, que é crente. Foi Seu Mário quem promoveu a reforma estrutural do lugar, fun- dado por caixeiros-viajantes que, mais tarde, tornaram-se proprietá- rios de casas comerciais. No térreo, há um insuspeito restaurante a qui- lo que funciona durante o dia. Mas, à noite, é só subir as escadarias de corrimãos dourados, encimadas por uma cúpula de vitrais, para des- cobrir uma pérola perdida no centro da cidade. Tudo tem um ar de nos- talgia viva. Daquela que não dói. A sensação é que as coisas estão em seus lugares porque tem gente que ainda vê sentido em mantê-las assim. "O clube estava caído. Foram me buscar em casa para assumir a presidência", conta. No primeiro andar, ficam o bar e a pista de danças, cercada por mesas e cadeiras de plástico, dessas de praia. No segundo, acontecem aulas de dança três vezes por semana. Dona Norma Bastos, 68, é uma das alunas. Cabelo cortadinho curto, acaju, sapatilhas douradas. Enquanto Geraldo Marrom e banda em- balam os pares, ela se senta numa cadeira mais afastada. Está des- cansando um pouco. Começou há dois anos, mas já dança faz tempo. "Adoro dançar. Ainda menina, ia às matinês do Cruz Vermelha". Quan- do o marido era vivo também davam seus rodopios. As aulas vieram para ocupar o tempo e a cabeça da falta que ele faz. Conheceram-se

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Reportagem sobre bailes da terceira idade na Revista Muito

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Page 1: Baila Comigo

22/6/2008 29SALVADOR DOMINGO28 SALVADOR DOMINGO 2 2 /6 / 20 0 8

Bailacomigo

Texto PEDRO FERNANDES [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]

“Sentindo o frio em minha alma, te convideipra dançar...” Bailes ainda são sinônimo de romance.E a Muito descortina alguns desses amores,nascidos nas pistas de dança de salão da cidade

Um salão à meia-luz e casais a rodopiar na pista de ma-

deira. Saias se espalham e pés se entrelaçam com ele-

gância e experiência. Ali, o amor busca companhia,

nasce e termina para começar de novo, sem data de

validade. O Clube Comercial, na Avenida Sete, em seus

132 anos de existência, confirmados pela placa na fa-

chada e pelo rótulo do isopor das cervejas, já viu muitos deles em suas

diversas expressões. Platônicos, correspondidos, proibidos e aqueles

que não pertencem mais a este mundo.

Na porta, o aviso que diz não ser permitida a entrada de pessoas

trajando bermuda, shorts ou boné é mera formalidade. Quem freqüen-

ta o Comercial sabe que tem que estar elegante. É o que confirma o

presidente, Mário Ivo Farias, 80, que, há 50 anos, faz parte do clube.

Seu Mário é sociólogo e ensinou durante muitos anos em colégios pú-

blicos de Salvador. Hoje sua vida é o Comercial. Está sempre lá. Dança

e toma as suas na mesa com uma placa que diz "diretoria", sem a com-

panhia da mulher, que é crente.

Foi Seu Mário quem promoveu a reforma estrutural do lugar, fun-

dado por caixeiros-viajantes que, mais tarde, tornaram-se proprietá-

rios de casas comerciais. No térreo, há um insuspeito restaurante a qui-

lo que funciona durante o dia. Mas, à noite, é só subir as escadarias de

corrimãos dourados, encimadas por uma cúpula de vitrais, para des-

cobrir uma pérola perdida no centro da cidade. Tudo tem um ar de nos-

talgia viva. Daquela que não dói.

A sensação é que as coisas estão em seus lugares porque tem gente

que ainda vê sentido em mantê-las assim. "O clube estava caído. Foram

me buscar em casa para assumir a presidência", conta. No primeiro

andar, ficam o bar e a pista de danças, cercada por mesas e cadeiras de

plástico, dessas de praia. No segundo, acontecem aulas de dança três

vezes por semana.

Dona Norma Bastos, 68, é uma das alunas. Cabelo cortadinho curto,

acaju, sapatilhas douradas. Enquanto Geraldo Marrom e banda em-

balam os pares, ela se senta numa cadeira mais afastada. Está des-

cansando um pouco. Começou há dois anos, mas já dança faz tempo.

"Adoro dançar. Ainda menina, ia às matinês do Cruz Vermelha". Quan-

do o marido era vivo também davam seus rodopios. As aulas vieram

para ocupar o tempo e a cabeça da falta que ele faz. Conheceram-se

Page 2: Baila Comigo

22/6/2008 31SALVADOR DOMINGO30 SALVADOR DOMINGO 2 2 /6 / 20 0 8

pulando atrás de um trio elétrico. Ele ainda

era recruta do exército.

Hoje, ela vai aos bailes na companhia da

turma, como chama o seu grupo de ami-

gas. Dança com que m lhe tira como par ou

com os instrutores. Mas nada de paqueras.

Vai ser difícil concorrer com a memória do

seu grande amor.

Velho demais, também, ela não quer.

Pensa em alguém que a leve para jantar e

de quem não seja preciso trocar as fraldas.

"A rapaziada não quer nada. Ou só quer

saber de sexo ou de dinheiro", diz . Ainda

lembra as palavras do marido: "Solidão

não é coisa boa, mas não deixe o Ricardão

tomar seu dinheiro".

Se há quem lamente suas perdas, há

quem as comemore. “Há 20 anos que es-

tou me divertindo”. Sentada sob reflexos

do globo espelhado que oscila no teto da

casa de seresta Lugar Comum, na Avenida

Sete, a viúva Eunice Francisca dos Santos,

68, ri do próprio “chiste”. Só depois da

morte do marido, ela começou a viver.

Às quintas e aos sábados, dona Eunice

se dá a chance de encontrar um par que a

leve pela pista de danças. Mas a coisa fica

por aí. “Nunca namorei ninguém”, diz. O

clima do lugar é mais propício aos namoros

estabelecidos que às paqueras.

A casa existe há 22 anos. Antes era um

restaurante, mas, há dez, o proprietário,

Braulino Péres, 60, resolveu enveredar pe-

lo ramo do entretenimento. Assim, os exe-

cutivos e comerciantes deram lugar a ca-

valheiros perfumados e damas pintadas

para a noite e seus perigos. Hoje, Paulo Hu-

mildes e Banda embalam os casais.

De preto, scarpin de verniz combinando

e muita maquiagem, Lúcia Cavalcanti, 55

anos revelados, mas não necessariamente

os únicos já vividos, empresta um pouco do

seu glamour ao salão. Não traz preocupa-

ções no rosto. Divorciada há 14 anos e fla-

nando pela vida, com sua bela pensão e

renda de apartamentos alugados, não en-

cana. Já amou de novo e voltou a perder.

“Todo ser humano tem que deixar uma re-

serva de amor dentro de si, para quando

faltar o carinho de outra pessoa”.

Logo se levanta, depois de um “adoro

essa música”. O parceiro a faz girar e ela

pede: “Não exagere”. Sorri com facilidade

e faz caras e bocas para a câmera enquanto

dança. Quando soube que seu parceiro

não autorizou que usássemos a imagem

dele, se indignou. “Que idiota. Não tem

importância. Danço com outro”.

QUER DANÇAR?A música continua a rolar no Clube Co-

mercial. Perfídia, Torturas de Amor, Perfu-

me de Gardênia. Num canto, um funcioná-

rio monitora o volume num decibelímetro.

É sexta-feira, mas, ainda assim, a vizinhan-

ça costuma implicar. Mais tarde, ainda vai

tocar forró e outros estilos musicais, todos

adaptados ao ritmo da seresta.

Casais se espalham pelas zonas de pe-

numbra. Alguns buscam mais privacidade,

pois talvez tenham mais satisfações a dar.

São esses os mesmos que, na pista, fogem

da lente da reportagem. Quem está soltei-

ro senta mais perto da luz. Dá para ver, no

rosto das que ainda estão sentadas, a von-

tade de serem tiradas para dançar.

Norma Lúcia, 60, e Evaílton Santos, 77: encontro no baile e casamento marcado

«A rapaziada nãoquer nada. Ousó quer sexoou dinheiro»Norma Bastos, 68 anos

Ruth Muricy, 74,

e João Batista

Nascimento, 77:

paquera que

virou namoro

Page 3: Baila Comigo

22/6/2008 33SALVADOR DOMINGO32 SALVADOR DOMINGO 2 2 /6 / 20 0 8

Em setembro do ano passado, o clube quase fecha de vez, não

fosse o esforço de seu Ruy Costa, 76, um senhor boa-praça, com

cheiro de colônia, que assumiu a presidência e renegociou as dí-

vidas. Dos 500 sócios, apenas três ainda pagavam mensalidade.

As serestas, às sextas e aos domingos, são a fonte de renda atual

do clube. Aos poucos, os sócios anistiados estão voltando, e o pú-

blico externo, redescobrindo a pista esquecida. "A nossa pretensão

é recuperar o glamour que tínhamos antes".

O local tem duas pistas. Uma fica num salão interno, com chão

de mármore e portões de madeira nobre. A outra, numa espécie de

pátio mourisco com vista para o céu. Em uma das extremidades, os

músicos tentam levantar a escassa platéia. Domingo é mais vazio

mesmo. Tem até microfonia no meio de uma canção para tornar a

cena um pouco mais melancólica.

Vendo dona Djanira Telles, 80, dar seus passinhos, acompanha-

da por seu Manoel Telles, 80, dá para saber de onde vem a teimosia

em não deixar que as tais glórias do passado se percam. É a mesma

teimosia que os mantém juntos desde que, há 60 anos, ela disse

sim, quando ele a tirou para dançar. Lembrar a música que tocava,

ela não lembra. O que ele disse? Repito mais alto, tentando so-

brepor minha voz a La Barca. "Nos acertamos", é tudo que sabe.

PERSONAL DANCERHoje, com a escassez de parceiros, e as

damas tendo que se virar com outras da-

mas, o clube oferece o serviço de profissio-

nais. Do primeiro andar, Seu Ruy me apon-

ta pelo menos dois deles.

Fábio Dourado, 24, ganha R$ 40 por cin-

co horas de baile. Ele dança há seis anos e

também atua como personal dancer,

quando uma mulher o contrata para dan-

ças exclusivas, também por R$ 40.

Quem o contrata são mulheres que não

querem ficar na expectativa de ser convi-

dadas. Ele também atende em domicílio.

Três aulas custam R$ 50. Pergunto se cos-

tumam paquerá-lo, e ele diz que é raro.

Na pista, o outro personal dancer p a s sa

a noite inteira com a mesma dama. Olhos

nos olhos. Sentam-se, tomam cerveja e

sorriem, vendo fotos numa câmera. Com a

minha aproximação, ela fica arredia.

Nada que se compare ao Lugar Comum.

Ao primeiro flash, houve quem se retirasse

do bar. Senhores mais exaltados exigiram

ter suas fotos apagadas. "Minha mulher

não sabe que estou aqui. Nossa relação já

não está boa", explica um deles.

Seu Amílton Ferreira, 53, um dos fre-

qüentadores, conta que, numa outra se-

resta, uma rede de TV foi fazer uma ma-

téria. Quando a câmera foi ligada, metade

da festa foi se esconder nos banheiros.

Mais alguns minutos e nos pedem para

não fazer mais fotos.

Mas há quem não se incomode, como

uma dupla do Comercial, que, embora pa-

recesse se esconder, ousou dizer o nome

do seu amor. Só não quiseram dizer os

seus. Já se conhecem há um ano. Ela, 47, é

contadora e divorciada. Ele, 54, é comer-

ciante. "Se você não é meu namorado, fi-

lho, pode dizer que é casado", ela sugere.

Ele sorri constrangido e orgulhoso, e con-

firma. "Só não me complique". «

IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE

Lúcia Cavalcanti, 55, e Amílton Ferreira, 53, no Lugar Comum: em ritmo de bolero

ONDE DANÇARClube ComercialAv. 7 de Setembro,710, Centro71 3329-4816Lugar ComumTv. do Rosário, 5, Av. 7de Setembro, Centro71 3329-4865Clube Fantoche daEuterpeRua Democrata, LargoDois de Julho, 4571 3321-1055

Clarice Regina dos Santos, 65, é uma de-

las. Olhos e blusa verdes, cabelos veme-

lhos e muitos anéis. Freqüenta o clube há

20 anos e prefere ir aos domingos, quando

é mais cheio. Foi casada durante 30 anos,

teve cinco filhos e, um dia, cheia dos abusos

do marido, que a prendia num claustro do-

méstico, juntou os meninos e foi embora.

Foi trabalhar como auxiliar de enferma-

gem e conseguiu cuidar de todos. "Basta

ter coragem que nada é difícil". Lança seus

olhares por aí, mas "tem que tomar cuida-

do porque muitos são casados. Também

surgem mais novos, mas não gosto".

Teve mais sorte dona Ruth Muricy, 74,

professora aposentada que, há três anos,

namora seu João Batista Nascimento, 77,

estofador aposentado, mas ainda na ativa.

Eles se conheceram no baile do Santa Rita,

em Matatu. Antes de lançar a rede, ele fi-

cou por três meses admirando-a. "Eu ficava

olhando, feito a cobra que quer dar o bote

na jia", diz, com sua poesia popular. Quan-

do se resolveu, a chamou para uma dança.

Dona Ruth veio com aquela conversa de

não saber dançar, e ele resolveu com um

eficaz "não tem importância". Perguntou

sobre o marido. Desquitada. Ele também.

Ela o achou arrumado e cheiroso.

Cada um continua vivendo em sua casa.

Nos fins de semana, eles saem para dançar.

Sempre muito elegantes. Ela de longo, co-

que, redinha e pulseira de strass. Ele de ca-

misa vermelha e mocassins pretos. Há os

dias em que ela prefere sossego. Então, o

libera para ir para onde quiser. Em geral,

alguma seresta.

Enquanto procuro outras pessoas com

quem conversar e observo os casais, al-

guém me caça pelo salão. Ele me pede para

ver minhas anotações e quer fazer uma re-

tificação em uma fala. É que certa data as-

sociada a uma certa companhia se chocaria

com o seu tempo de casado.

Seu Evaílton dos Santos, 77, também

era comprometido quando conheceu Nor-

ma Lúcia Góes, 60. Mas logo lhe disse a rea-

lidade. "A gente era separado de cama há

muito tempo, mas não era de mal". Estão

juntos há sete anos. Desde aquele dia em

que quase deixava a seresta do Sesi do Ca-

minho de Areia, na Cidade Baixa, e a viu,

apenas de costas, dançando com outro.

"Vou tirá-la para dançar. Se tiver compro-

misso, vou embora", pensou.

Norma era divorciada. Teve outro na-

morado que "não deu certo", mas ainda

estava à procura. Seu Evaílton se aproxi-

mou, chamou para dançar e, quando de-

ram as mãos, a orquestra parou. O que res-

tou foi uma conversa. "Hoje estamos

aqui". E noivos. Com um ano de namoro,

ele lhe deu o anel e devem casar em 2010.

Enquanto esperam, dançam. No domingo,

lá estavam eles. Dessa vez no Fantoche da

Euterpe, no Largo Dois de Julho.

GLÓRIAS ANTIGASHomens fantasiados de cavaleiros ro-

manos e mulheres vestidas de rainhas em

carnavais remotos. Na sala da presidência

do Fantoche, troféus empoeirados e estre-

las esquecidas, como Wilza Carla e Clóvis

Bornái, vêem seus sucessos ganhar tons

amarelados em fotos tiradas nas décadas

de 50 a 70.

Djanira Telles, 80, diz que só dança com o marido há 60 anos: “Nos acertamos”

IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE

«Minha mulher nãosabe que estou aqui.Nossa relação jánão está boa»Anônimo, no Lugar Comum