as memÓrias de aleksander henryk laks e os paradigmas do testemunho

Upload: paulline-roeedel

Post on 13-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    1/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014107

    AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OSPARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    Tnia Sarmento-Pantoja

    Resumo

    O livro de memrias intitulado Osobrevivente, do judeu polonsnaturalizado brasileiro AleksanderHenryk Laks, escrito em parceria comTova Sender, se configura como relatodas experincias vividas por Laks emsua peregrinao por campos deconcentrao durante seis anos. Orelato est constitudo como escriturada Shoahe como tal se enquadra nascaractersticas apresentadas por essaforma de relato testemunhal. Est nelepresente a necessidade de narrarcomo dever de memria, o ato dedenncia, o aprendizado para as novasgeraes, o gesto humanitrioenquanto admoestao, a prevenocontra a repetio de episdios como oda Shoah. Contudo, uma das principais

    singularidades no relato de Laks justamente a parceria com TovaSender, o que o aproxima tambm daforma do Testimonio, alm de outraspossibilidades. Com base nessasprojees pretendemos verificar comoO sobrevivente se faz escrituraconstituda como hbrido de formastestemunhais, dentre as quaisdestacamos o Zeugnis(Alemanha) e oTestimonio(Amrica Latina).

    Abstract

    The memoir titled O sobrevivente, thePolish Jew naturalized BrazilianAleksander Henryk Laks, written withTova Sender, is configured as theexperiences reported by Laks on hispilgrimage to concentration camps forsix years. The report is comprised of theShoahas scripture and as such fits thecharacteristics presented by this form ofeyewitness account. It is the need tonarrate this as a duty of memory, theact of termination, the learning forfuture generations, while warning thehumanitarian gesture, to prevent therepetition of episodes such as theShoah. However, one of the leadingsingularities in reporting Laks isprecisely the partnership with TovaSender, which also approximates the

    shape of the Testimonio, among otherpossibilities. Based on these projectionsintend to see how O sobrevivente isdone deed of witness constituted ashybrid forms, among which we highlightthe Zeugnis (Germany) and theTestimonio(Latin America).

    Palavras-chave

    Aleksander Henryk Laks; Memria; Osobrevivente; Shoah; Sobrevivncia;Testemunho; Tova Sender.

    Keywords

    Aleksander Henryk Laks; Memory; Osobrevivente; Shoah; Survival;Testimony; Tova Sender.

    Doutora em Estudos Literrios pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho UNESP.Faculdade de Letras, Instituto de Letras e Comunicao (FALE- ILC) Universidade Federal do Par UFPA Belm PA Brasil. Email: [email protected]

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    2/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014108

    Ze u g n ise Te st im o n io

    O professor e crtico literrio Alfredo Bosi, no texto intitulado A escrita dotestemunho em Memrias do crcere, afirma o seguinte:

    O testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas sodelicadas: ora fazer a mimese de coisas e atos apresentando-os tais como

    realmente aconteceram (conforme a frase exigente de Ranke), e construindo,para tanto, um ponto de vista confivel ao suposto leitor mdio; ora exprimirdeterminados estados de alma ou juzos de valor que se associam, na mentedo autor, s situaes evocadas. (BOSI, 2008, p. 222).

    Por sua vez, Giorgio Agamben nas linhas iniciais de um ensaio sobre atestemunha, que se encontra em O que resta de Auschwitz ensina: No campo,uma das razes que leva um deportado a sobreviver consiste em tornar-se umatestemunha (AGAMBEN, 2008, p.25). Testemunhar o que aconteceu, denunciaro que foi vivido no campo de concentrao, est, segundo Agamben, entre asjustificativas apresentadas para se testemunhar. Diante das barbaridadessofridas, alguns sobreviventes optaram pelo silncio. Outros escolheram falar. Ao

    comentar sobre Primo Levi, um dos mais conhecidos sobreviventes da Shoah,autor de dois romances e vrios relatos testemunhais, Agamben argumenta:ele no se sente escritor, torna-se escritor unicamente para testemunhar(AGAMBEN, 2008, p. 26). E depois de estar com um conjunto considervel denarrativas publicadas Primo Levi, citado por Agamben, pode finalmente dizer:Estou em paz comigo porque testemunhei.

    Avalio que esses aspectos envolvidos na produo de Primo Levi tambm sefazem presentes na narrativa testemunhal intitulada O Sobrevivente, deAleksander Henryk Laks, escrito em parceria com Tova Sender. O livro, semdvida, nasce do desejo de testemunhar.

    Segundo Mrcio Seligmann-Silva, um dos estudiosos brasileiros que

    incansavelmente tem se debruado sobre um corpusde relatos de sobrevivncia,o livro O Sobrevivente, enquanto relato de sobrevivente da Shoah, um textoque no apresenta muitas marcas da oralidade. No livro o eu narrativo o doprprio Laks, com exceo de uma pgina de introduo e das 4 pginas finais,onde Sender assume seu eu-escritural (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 06).

    O pesquisador brasileiro ainda ressalta algumas contribuies referentes auma espcie de arquivo histrico e clnico acerca da condio humana, que sefazem presentes no livro de Laks e Sender, como as dubiedades do presidente doJudenrat, Chaim Rumkovski, e a denncia acerca do terror que se estabeleceunos guetos e nos Campos; tambm ressalta a abordagem bastante detalhadadas torturas e mutilaes pouco ou nunca reportadas em outros testemunhos da

    Shoah, como os espancamentos levados a termo em Auschwitz, verdadeirassesses de tortura, que provocavam a morte do espancado. Vejamos algunsfragmentos que remetem o leitor a esses momentos no relato de Laks e Sender:

    Os judeus religiosos tinham as barbas arrancadas com a prpria pele. Issoocorreu tambm a meu av que nunca se curou das feridas. Meu av foi oprimeiro membro de nossa famlia a ser deportado e exterminado em cmarade gs mvel camuflada. (LAKS; SENDER, 2014, p. 35).

    Em Auschwitz, havia uma tortura instituda que consistia em vinte e cincopancadas no traseiro. As vinte e cinco pancadas eram aplicadas sem motivoalgum. Era mais um mtodo para produzir a morte, sob qualquer pretexto[...]. O prisioneiro tinha que se colocar em cima de um cavalete, com as mos

    amarradas frente e eles batiam atrs. Aos primeiros golpes a pessoa gritava,mas depois de dez pancadas no gritava mais. Os ossos quebrados eesmagados se misturavam pasta de sangue. Os msculos ficavam tocontrados, que era difcil retirar os cadveres do cavalete (LAKS; SENDER,2014, p. 99-100).

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    3/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014109

    Para Seligmann-Silva, esse teor descritivo relacionado s atrocidades seencontra ausente de relatos cronologicamente no muito distantes, como o deRuth Klger, que preferiu focar seu relato na situao psicolgica dos prisioneirose na prpria construo da sua memria da Shoah (SELIGMANN-SILVA, 2007,p. 06). De todas as observaes propostas por Seligmann-Silva, uma das que

    mais me chamou ateno diz respeito ao formato da narrativa de OSobrevivente. Diz Seligmann-Silva que, dentre os relatos de sobreviventes daShoah, O Sobreviventeapresenta uma interessante e rara dupla autoria, umavez que Tova Sender, uma psicloga, quem redigiu o texto narrado a ela porLaks (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 06). Guardadas as devidas diferenas entrecaractersticas estticas relacionadas ao testemunho, meu argumento, aqui, :no que diz respeito a esse aspecto O Sobrevivente guarda correlaes formaiscom o chamado Testimonio latino-americano, como procuro verificar maisadiante.

    De acordo ainda com Seligmann-Silva (2003, p. 8), de modo geral o termotestemunho pode apresentar trs definies, sendo a primeira de sentidojurdico: o testemunho enquanto relato da testemunha ante o tribunal, comoprova de uma atrocidade cometida contra um indivduo ou uma coletividade eabrindo caminho para a punio legtima do perpetrador. A segunda definiotem sentido histrico e etolgico, na medida em que o testemunho serve aoregistro de um determinado perodo e de uma matria histrica, alm deoferecer a possibilidade de compreenso para o carter e o comportamentohumano em condies catastrficas de deteriorao da humanidade. O terceirosentido vincula-se necessidade de narrar a sobrevivncia em face do evento-limite. Essa necessidade de narrar, por sua vez, se realiza em duas perspectivas:a de denncia relativa ofensa contra a condio humana e a da compreenso,por parte do sobrevivente, sobre o que se passou consigo mesmo. Ressalto queum mesmo testemunho pode conter as trs definies.

    Para grande parte dos estudiosos da teoria do testemunho h duas grandesvertentes testemunhais: o Zeugnise o Testimonio.

    Zeugnis, termo alemo, deriva de Zeugen que significa no stestemunhar, mas tambm gerar, procriar no sentido do papel do homem nareproduo (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 29). O testemunho uma narrativacriada com base nas relaes entre um acontecimento e a dimenso pessoal.Considerando os aspectos filolgicos do termo alemo, a testemunha relata combase em uma experincia vivida e, nesse sentido, o testemunho resultaria de umato criativo.

    O Zeugnispossui as seguintes singularidades: apresenta matria histricaconcentrada na Segunda Guerra, no Nazismo e, mais particularmente, na Shoah;delineia-se com base nos signos de uma experincia verdica: o testemunho oresultado da transformao da vivncia em discurso; nos coloca em face dossignos da ofensa: a verbalizao de afetos que envolvem o desamparo, a nudez,o despojamento, o medo, a dor, etc., presentes na experinciaconcentracionria. uma narrativa cuja estrutura formal marcada pelatentativa de verbalizar o que foi vivido, algo a que Seligmann-Silva (2003, p.123-124) chama de literalizao. Essa verbalizao, por sua vez, por serconstituda por um processo de rememorao, pode se apresentar de formafragmentada. Em outras palavras, difcil que uma narrativa de testemunho sejaconstruda de maneira coerente e ordenada. Tem uma funo teraputica que a de dar voz vtima e, nesse sentido, o texto se faz um espao de fala. So,

    ainda, narrativas marcadas pela presena de cenas de extrema violncia,evocadoras das situaes-limites experimentadas.

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    4/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014110

    O Testimonio a segunda vertente terica do testemunho. Entre suascaractersticas, destaco a presena da matria histrica relacionada exploraoe expropriao de comunidades tradicionais indgenas e quilombolas naAmrica Latina que podem ou no estar correlacionadas s experinciasresultantes das ditaduras nesse territrio. Apresenta duas ramificaes quepodem se apresentar interligadas: a primeira trata da recomposio da histria

    dos excludos. Esse conjunto possui carter de denncia, visando chamar aateno para a permanncia de diferenas sociais e mecanismos de explorao,ao mesmo tempo em que reclama pela reparao das injustias sociais. Asegunda ramificao compe-se do relato das vtimas dos regimes militaresditatoriais implantados na Amrica Latina entre as dcadas de 60 e 80 do sc.XX. Tambm apresenta carter de denncia, especialmente em relao sprises por motivaes polticas, perda do direito fala, as torturas,assassinatos e desaparies perpetradas pelo brao armado do regime ditatorial.O Testimonio pode agregar diferentes discursos (literrio, arquivstico,jornalstico, confessional) ou por mimetismo ou pela insero de paratextos nocorpo do testemunho, da provm um intenso teor documental. No Testimonio,tambm, comum o testemunho mediatizado, uma forma de testemunho queapresenta no discurso um mediador, um terceiro, cuja funo a de registrar afala de quem testemunha, inserido no discurso como coautor ou co-narrador. Deacordo com Valria De Marco:

    Essa corrente prope tpicos para construir uma definio de literatura detestemunho e para esboar a caracterizao de uma forma.Ela supe oencontro de dois narradores e estrutura-se sobre um processo explcito demediao que comporta os seguintes elementos: o editor/organizador elaborao discurso de um outro; este outro um excludo das esferas de poder e saberna sociedade; este outro representativo de um amplo segmento social ou deuma comunidade e, portanto, por sua histria ser comum a muitos, ela exemplar. Por serem estes seus pilares de estruturao, so considerados

    pr-textos os testemunhos imediatos depoimentos, cartas, dirios,memrias, autobiografias bem como outros discursos no ficcionais biografias, testemunhos etnogrficos e historiogrficos. Do convvio, no livro,de dois discursos o do editor e o da testemunha brotariam as tenses queconfigurariam o perfil literrio do texto.Estas tenses se dariam entre o fictcioe o factual, entre literariedade e literalidade, entre a linguagem potica e aprosa referencial. (DE MARCO, 2004, p. 47).

    Vale ressaltar, ainda, que tanto o romance-testemunho quanto otestemunho romanceado so oriundos da forma mediatizada do testemunho (DEMARCO, 2004, p. 47): no testemunho romanceado h a presena de um autorque cumpre o papel de editor ao compor o contedo testemunhal com base emdepoimento dado a ele por um testemunhante e pela insero no texto de uma

    srie de paratextos (prlogos, notas e outros dados factogrficos) que cumprema funo de atestar o que est sendo afirmado e as circunstncias de produotextual, procurando marcar, ao menos aparentemente, a separao entreambos os discursos (DE MARCO, 2004, p. 47).

    O romance-testemunho se diferencia por ser concebido com base nomanuseio de diferentes relatos testemunhais e/ou formas documentais parareelaborar criativamente, e segundo aspectos estruturantes prprios da ficoliterria, uma matria historiogrfica especfica relacionada a eventoscatastrficos. Ainda para Ceclia Ins Luque o romance-testemunho configura-secomo textos narrativos nos quais o autor no sentido convencional do termo inventou uma histria que se assemelha a um testemunho ou trabalhou

    literariamente um relato testemunhal (prprio ou alheio) (LUQUE, 2003, p. 17).Paradigmticos dos romances-testemunhos, de acordo com De Marco, seriam

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    5/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014111

    Operacin Massacre(1956), de Rodolfo Walsh, e La noche de Tlatelolco(1971),de Helena Poniatowska.

    Apesar de essas fronteiras formais parecerem razoavelmente delineadas, aspossibilidades de ficcionalizao do testemunho tm remetido a certasexperincias literrias que podem agregar elementos comuns aos dois formatos,tornando menos tranquilas tais definies. Cito, a ttulo de exemplo, o romance

    Soledad no Recife, do brasileiro Urariano Mota, que se apresenta comoreelaborao do massacre da Chcara So Bento, conhecido episdio ocorrido nointerior das aes repressivas da ditadura civil-militar de 1964 e que apresenta oprotagonismo da militante paraguaia Soledad Barret Viedma como ponto chave.Nesse romance, encontramos o processo re-elaborativo conjugado a uma sriede paratextos, com claro contedo factogrfico, com especial ateno para apresena de um conjunto de fotografias de Soledad em momentos distintos desua atuao como ativista poltica.

    Outro importante aspecto a ser salientado no que concerne ao romance-testemunho diz respeito ao manuseio da figura do terceiro como mediador,fundamental para a escrita do testemunho romanceado e que, no entanto, seapresenta mais diludo no romance-testemunho, na medida em que neste surgeenquadrado como um personagem-narrador.

    A escrita de O So b r e v iv en t eno limiar entre o Ze u g n ise o Te st im o n io

    Para Patrcia Lilenbaum:

    No Brasil, os escritos de testemunho do Holocausto ou de vivncias paralelas aele no so to numerosos. Os sobreviventes que vieram para o Brasil no ps-guerra no produziram depoimentos e/ou obras literrias em nmeroexpressivo. H, de maneira mais expressiva, uma literatura que testemunha asobrevivncia do judeu na dispora (e, nesse caso, a dispora tanto relativa

    terra de Israel quanto prpria Europa, bero judaico por tantos sculos).(LILENBAUM, 2007, p. 07).

    Esse parece ser o caso de Aleksander Henry Laks. O livro O Sobrevivente,escrito com Tova Sender, relata as atrocidades vivenciadas e testemunhadas porLaks em sua peregrinao por vrios campos de concentrao, incluindo otemido campo de Auschwitz, e ao mesmo tempo agrega a histria de suamigrao para o Brasil.

    O carter testemunhal reiterado j na introduo do livro. No processo derememorao, Laks recupera a memria de sua vida desde o seu nascimento, nacidade de Lodz, Polnia, em 1927. O ponto crucial da narrativa nos parece ser,

    sem dvida, o que corresponde experincia concentracionria, que agregaparte da infncia e da juventude de Laks. Suas recordaes mostram como afamlia era engajada politicamente, como ele recebeu formao socialista, bemcomo o primeiro contato com atos repressivos de um estado autoritrio (LAKS;SENDER, 2014, p. 22), o ponto de abertura das atrocidades cometidas por Hitler(LAKS; SENDER, 2014, p. 15) e a invaso da Polnia pelas foras nazistas(LAKS; SENDER, 2014, p. 28).

    Vale ressaltar que a valorizao da vida humana, aspecto caro s narrativasde testemunho da Shoah, se coloca como imperativo j no incio do relato deLaks e Sender:

    At ento, achvamos que a vida humana tinha valor. Pensvamos que nohavia nada mais valioso, nada que superasse a importncia de uma vida. Noentanto, o que vimos no dia seguinte compromete a dignidade humana. algoinimaginvel, at mesmo para a mente mais cruel. A partir da a morte passoua ser uma rotina. (LAKS; SENDER, 2014, p.28)

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    6/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014112

    Mrcio Seligmann-Silva observa que em muitas narrativas de sobreviventesda Shoah que fizeram a dispora possvel encontrar o discurso do triunfo.Porm, diz ele o testemunho de Aleksander Henryk Laks, apesar de publicadoem 2000, no tem as marcas deste testemunho calcado no triunfo do ps-guerra (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 06).

    Como observo na primeira parte deste texto, o testemunho de Laks eSender, notoriamente um testemunho da Shoah, pois esta a sua matriahistrica, apresenta uma caracterstica que o aproxima do Testimoniona formado testemunho romanceado: a presena da mediao em virtude da coautoriacom Tova Sender. Adiante, procuro verificar de maneira mais pormenorizadaesta relao.

    O Testimonio remonta ao discurso indgena destinado aos estranhos,conforme ressalta Martn Lienhard, citado por Dorcas Damasceno, e surge nointerior do sistema colonial. Desde seus primrdios esteve comprometido emdenunciar situaes de opresso e reivindicar melhores condies e oreconhecimento de direitos, ao mesmo tempo em que buscava afirmaridentidades em conflito, implicando a prtica de um dilogo intercultural(LIENHARD apud DAMASCENO, 2009, p.32):

    O precursor do testemunho latino-americano o escritor cubano MiguelBarnet, com a obra Biografa de un cimarrn, publicado em 1966, que consistena transcrio dos relatos orais de um ex-escravo, tambm cubano, EstebanMontejo, e que descreve, alm dos horrores da escravido dos negros emCuba, aspectos interessantes da cultura e da religio afro-cubanas.(DAMASCENO, 2009, p.51).

    Nesse texto precursor, a mediao de um terceiro, no caso, o prprio MiguelBarnet, e a consequente coautoria com a testemunha, a exemplo do que ocorrecom o posterior testemunho de Rigoberta Mench e Elizabeth Burgos, j se faz

    presente, embora no assumida no projeto editorial: na capa e nas demaissesses do livro h apenas o nome de Barnet como autor. Para ElzbietaSklodowska (DAMASCENO, 2009, p. 52) o sucesso do texto produzido porBarnet, que se tornou internacionalmente conhecido, foi o responsvel imediatopela agregao do termo testemunho ao vocabulrio da crtica especializada. Aincorporao definitiva viria quatro anos depois com a criao do PrmioTestemunho em 1970, por sugesto do escritor ngel Rama. O prmio foiinstitudo pela Casa de Las Amricas, sediada em Cuba. Para a implantao doPrmio, um documento da Casa de Las Amricas procurava conceituar oTestimonio da seguinte forma, estabelecendo parmetros para a seleo dostextos:

    [...] documentaro, de fonte direta, um aspecto da realidade [...]. Entende-sepor fonte direta o conhecimento dos fatos pelo autor, ou a recopilao, poreste, de relatos obtidos dos protagonistas ou de testemunhas idneas. Emambos os casos, indispensvel a documentao fidedigna, que pode serescrita e/ou grfica. A forma fica escolha do autor, mas a qualidade literria tambm indispensvel. (SKLODOWSKA apudDAMASCENO, 2009, p. 52).

    O mais famoso Testimonio premiado pela Casa de Las Americas o deRigoberta Mench e Elizabeth Burgos intitulado Me llamo Rigoberta Mench, de1982-83. Tambm considerado pelos estudiosos da teoria do testemunho comoparadigma do Testimonio. Nesse livro j clara a coautoria entre a testemunha eo narrador na condio de terceiro, no caso, Rigoberta Mench e a compiladoraElizabeth Burgos. O livro o resultado de uma srie de entrevistas concedidaspor Mench a Elizabeth Burgos, que, por sua vez, as compilou e organizou otexto. Mench foi agraciada em 1992 com o Nobel da Paz em razo de seu

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    7/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014113

    testemunho e, sobretudo, por seu ativismo poltico na luta pelo reconhecimentodos povos indgenas da Guatemala. Como vimos, esse paradigma seria aqueledelineado por Valria De Marco como sendo o testemunho romanceado.

    possvel observar que a categorizao do Testimoniotal como construdapela Casa de Las Americas se encontra no testemunho de Laks e Sender. Nele,como j citado anteriormente, encontramos o conhecimento dos fatos, a

    recopilao com base em relatos obtidos dos protagonistas ou de testemunhasidneas. No caso, a recopilao baseada no conhecimento de Laks, que, porsua vez, assume as funes de testemunhante e de narrador. Sander acopiladora ou editora e em apenas algumas partes do livro assume a voznarrativa. Alm disso, o testemunho de Laks apresenta tambm aqueladocumentao fidedigna, que pode ser escrita e/ou grfica, conforme consta dodocumento da Casa de Las Amricas. De fato, em O sobreviventeh uma sriede paratextos que legitimam e ampliam a veracidade do que est sendodito/testemunhado. Mrcio Seligmann-Silva foi o primeiro pesquisador a salientara presena desses paratextos. Diz ele:

    O livro de Laks e Sender possui tambm uma srie de imagens, fotos dos pais,

    do autor quando criana, de manuscritos de letras de canes em dichecompostas no gueto, do dinheiro do gueto, de documentos etc. Apenas altima das imagens de seu livro retrata o sobrevivente, Laks, maisrecentemente, em 1996. Coerentemente com o tom geral do livro, a nfase naescolha das imagens recai na documentao do perodo da Shoah.(SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 06-07).

    Esses registros procuram traar um paralelo entre diferentes etapas daexistncia de Laks a infncia ainda sem o contato com a guerra, a imerso naexperincia catastrfica, a recuperao da vida ordinria aps a imigrao,momento em que tambm se efetiva a (re)organizao da memria dossucedidos. Para consolidar ainda mais a funo desses registros, o relato

    composto segundo uma estruturao que procura realar o modo circunstanciadodas desventuras vividas por Laks, em particular a partir da etapa em que ele aprisionado em Auschwitz, sem perder de vista a sequencialidade dosacontecimentos. Nesse sentido, o prprio sumrio j se apresenta comomicronarrativa da narrativa propriamente dita.

    Alm da presena da escrita mediada e da documentao apresentadacomo paratexto, destacamos tambm a insero do Prlogo como um elementosingularizador do Testimonio e, tambm, uma presena no livro de Laks eSender. De acordo com Alvaro Kaempfer (2000) o prlogo um tipo deparatexto que no Testimonioadquire carter fundamental, pois nesse espaoda escrita que, com esforo autoexplicativo, o compilador ou editor legitima o

    testemunhante, mostra os parmetros de sua criao textual e prescreve comoseu texto deve ser lido (KAEMPFER, 2000, s/p).Sobretudo, na relao entre testemunha e compilador, o prlogo o espao

    que permite ao compilador transformar o Outro(seu relato e sua histria) emum objeto de conhecimento compatvel com o que Michel Foucault chama deregime de verdade, ou seja, os tipos de discurso que a sociedade acolhe e fazfuncionar como verdadeiros (FOCAULT, 2003, p. 12). O regime de verdadepresente nos testimonios relaciona-se, em geral, com a busca por realar oprotagonismo da testemunha naquilo que relatado, defendendo sua condiode legitimo ator no interior da matria histrica; pontuar a condio docompilador enquanto terceiro e, portanto, de sujeito no inserido nos episdios

    relatados; mostrar as diretrizes das motivaes ticas e polticas voltadas matria narrativa apresentada: busca por conhecimento, denncia, justia,reparao, alerta contra novas ocorrncias de atrocidades, etc.

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    8/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014114

    O prlogo pode, nesse caso, ter vrios formatos: prefcio, introduo,advertncia etc. A extenso tambm pode variar bastante. No caso de OSobrevivente, o prlogo apresenta-se como Introduo, e muito conciso: temapenas um pargrafo. Mas, nele, possvel ver que Tova Sender, a compiladora,ao mesmo tempo em que enfatiza a figura da testemunha, Alexander Laks,destaca tambm a sua condio de terceiro. Diz ela, logo nas primeiras linhas:

    Os fatos que vou relatar aqui no os li nos livros de Histria. Eu os ouvipessoalmente de um sobrevivente que, por sua vez, no leu nos livros deHistria os fatos que me relatou. Para o seu pesar, ele os viveu na pele, nosangue, nos ossos, nos nervos, em cada sopro de sua vida (LAKS; SENDER,2014, p. 15).

    So fatos que ocorreram de verdade. Ela tambm enfatiza a proximidadecom a testemunha a testemunha ao referir-se a ele utilizando uma alcunha defamlia: junto com meu amigo Heniek (LAKS; SENDER, 2014, p. 15), estratgiaque amplia a consistncia do relato enquanto resultado de uma compilao. Asmotivaes ticas e polticas so, tambm, evidentes, e buscam a empatia doleitor: o que ocorreu a ele poderia ter ocorrido a qualquer um de ns (LAKS;SENDER, 2014, p. 15).

    Por esses aspectos levantados, a ttulo de finalizao, observamos quemesmo voltado Shoah, fundamento do Zeugnis, o testemunho de Laks eSender apresenta caractersticas do testimonio o que faz dele um testemunhohbrido e uma narrativa singular para o corpusdas duas vertentes, condio que,sem dvida, est projetada no subttulo da narrativa: memrias de umbrasileiro que escapou de Auschwitz.

    SARMENTO-PANTOJA, T. The Memories of Aleksander Henryk Laks and theParadigm of Testimony. Olho dgua, So Jos do Rio Preto, v. 6, n. 1, p. 107-

    115, 2014.

    Referncias

    AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo SacerIII). Trad. Selvino J. Assmann. So Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

    BOSI, A. A escrita do testemunho em Memrias do crcere. EstudosAvanados, So Paulo, v. 9, n. 23, p. 309-322, 1995. Disponvel em

    . Acesso em 02/10/2013.

    DAMASCENO, D. V. O Testemunho Hispano-Americano no Sculo XX: AspectosPrincipais. In: ___. Me Llamo Rigoberta Mench: Heterogeneidade, Hibridismo eRelaes de Poder. Dissertao (Mestrado). Programa de Ps-Graduao emLetras Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.Disponvel em. Acesso em 07/10/2013.

    DE MARCO, V. A literatura de testemunho e a violncia de Estado. Revista Lua

    Nova. So Paulo, s/v., n. 23, 2004. Disponvel em. Acesso em 02/10/2013.

  • 7/21/2019 AS MEMRIAS DE ALEKSANDER HENRYK LAKS E OS PARADIGMAS DO TESTEMUNHO

    9/9

    Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014115

    FOUCAULT, M. Microfsica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro,Edies Graal, 2003.

    LILEMBAUM, P. C. Testemunho: uma breve reflexo sobre tica e esttica naliteratura judaica. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos daUFMG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, s/p., out./2007. Disponvel em

    .Acesso em 09/11/2013.

    LUQUE, C. I. Baln Cann de Rosrios Castellanos: un ejemplo de memriaspseudotestimoniales. Contribuciones desde Coatepec, v. 2, n. 4, p. 17-34,enero-junio/2003. Disponvel em. Acesso em 21/10/2013.

    KAEMPFER, A. Los prlogos testimoniales: paratexto, otredad y colonizacintextuale. Estudos Filologicos, Valdivia, n. 35, 2000. Disponvel em. Acesso em 21/10/2013.

    SELIGMANN-SILVA, M. Zeugnis e Testimonio: um caso de intraduzibilidadeentre conceitos. In: Letras, Santa Maria, s./v., n. 22, p. 121-130, jan.-jun./2001. Disponvel em . Acesso em 05/10/2013.

    ______. Literatura da Shoahno Brasil. Arquivo Maaravi: Revista Digital deEstudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, s/p., out./2007.Disponvel em. Acesso em 09/11/2013.