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AS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS PROFISSIONAIS
NO DIREITO PORTUGUÊS
Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia1
SUMÁRIO
§ 1º A INSERÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
1. Administração Pública e Administração Autónoma
2. Administração Autónoma, associações públicas lato
sensu e associações públicas profissionais
§ 2º A CONFIGURAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS PROFISSIONAIS
1 Doutor em Direito e Professor da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa ([email protected]).
2
3. A dupla relevância jurídico-constitucional do estatuto
das associações públicas profissionais
4. O regime genericamente aplicável às associações
públicas lato sensu
5. As singularidades regimentais especificamente
pertinentes às associações públicas profissionais
§ 3º ASPECTOS GERAIS DO ENQUADRAMENTO
LEGAL DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS
6. Sentido e função da lei de enquadramento
7. O Direito subsidiário aplicável
8. O acto de criação
§ 4º ASPECTOS ESPECIAIS DO ENQUADRAMENTO
LEGAL DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS
9. As atribuições a prosseguir
10. A defesa dos direitos dos associados
11. A organização democrática interna
12. A intervenção dos tribunais administrativos
13. O tratamento fiscal em sede de imposto sobre o
rendimento das pessoas colectivas
3
§ 5º CONCLUSÕES
14. Enunciado
4
§ 1º A INSERÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
1. Administração Pública e Administração Autónoma
I. No âmbito da satisfação das necessidades colectivas
prototípicas da função administrativa, a Administração Pública
reparte-se por variados organismos e entidades, na base dos
respectivos critérios de diferenciação e de estruturação.
Segundo a lição de DIOGO FREITAS DO AMARAL, a
Administração Pública – em sentido subjectivo ou orgânico porque
correspondente ao conjunto das entidades, serviços e órgãos que
prosseguem a actividade materialmente administrativa – divide-se
em três grandes ramos, na confluência dos interesses prosseguidos
e em atenção à natureza das estruturas que nelas se integram2:
2 Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo,
I, 2ª ed., Coimbra, 1994, pp. 393 e ss. No mesmo sentido, J. M. SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982, pp. 144 e ss.; JOÃO CAUPERS, Direito Administrativo I – guia de estudo, 4ª ed., Lisboa, 1999, pp. 266 e ss., e pp. 292 e ss.; VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pp. 104 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1999, pp. 157 e ss., e pp. 239 e ss.
5
- a Administração Directa do Estado: o conjunto das entidades
administrativas que se incorporam no Estado na sua veste
de Estado-Administração, através de serviços e órgãos
agindo concentrada e, ou desconcentradamente;
- a Administração Indirecta do Estado: o conjunto das
entidades administrativas que, diferenciando-se do
Estado sob a óptica de serem pessoas colectivas
separadas, ainda assim prosseguem os fins do Estado, em
razão de um fenómeno de devolução de poderes;
- a Administração Autónoma do Estado: o conjunto das
entidades administrativas que não apenas se distinguem
do Estado por ostentarem uma caracterização jurídica
própria, sendo pessoas colectivas distintas, mas também
na medida em que levam a cabo, nos poderes em que
ficam investidas, a prossecução de fins que são
estabelecidos e interpretados livremente a partir dos
correspondentes substratos.
II. Qualquer uma destas manifestações típicas de
administração tem por detrás de si fenómenos específicos de
organização, em aplicação, assim, dos principais modelos
teoréticos que têm sido desenvolvidos mais ou menos amplamente
por esse mundo fora.
6
A Administração Directa do Estado corresponde à inserção
no seio da grande pessoa colectiva Estado de serviços e
organismos de acção administrativa em aplicação do princípio da
centralização administrativa. Este pode, porém, conviver com
fenómenos de desconcentração ou de concentração administrativa,
consoante essas actividades sejam executadas ao nível central – na
capital dos serviços e da chefia do Estado e do Governo – ou ao
nível da periferia – quer sejam pelo restante território português,
quer em parcelas, ficcionadas ou não como território português,
sitas no estrangeiro.
A Administração Indirecta do Estado implica a coexistência,
ao lado do Estado, de entidades administrativas que são dele
distintas, mas em que avulta sempre a prossecução de fins que são,
em última análise, de relevância estadual. Dá-se aqui um
fenómeno de descentralização administrativa de tipo funcional – com o
desdobramento do Estado por outras entidades administrativas – e
que é justificada por razões de natureza técnica e de eficiência.
Essas entidades têm uma natureza institucional – os institutos
públicos – ou uma natureza empresarial – as empresas públicas.
A Administração Autónoma do Estado exprime-se no
desenvolvimento de tarefas administrativas por parte de entidades
dele distintas e para a prossecução de fins diversos e por vezes
mesmo antinómicos dos do Estado. Ocorre neste caso um
7
fenómeno de descentralização administrativa de tipo associativo e
territorial, por força da criação de entes administrativos com um
substracto associativo ou humano – as associações públicas – ou com
um substracto territorial – as regiões autónomas e as autarquias locais,
como pessoas colectivas de população e território que são.
Como refere JOÃO CAUPERS, “Hoje, admite-se que para
além deste tipo de entidades – regiões autónomas e autarquias
locais – também integram a administração autónoma entidades
públicas de origem associativa, fundadas em relações de
proximidade distinta da geográfica, designadamente a
solidariedade profissional – são as associações públicas”3.
III. A caracterização jurídica destas modalidades da
Administração Pública em sentido organizatório, bem como a
articulação que elas mantêm com o Estado, é ainda fruto de um
conjunto de laços que são constitucionalmente relevantes4:
3 JOÃO CAUPERS, Direito…, p. 296. 4 Relativamente à caracterização destes fenómenos, v. ANTÓNIO
NADAIS, ANTÓNIO VITORINO e VITALINO CANAS, Constituição da República Portuguesa – texto e comentários à Lei Constitucional 1/82, Lisboa, 1983, pp. 240 e 241; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 781 e 782; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 657 e ss.; JOÃO CAUPERS, Direito…, pp. 276 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 51 e ss., e pp. 227 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa comentada, Lisboa, 1999, pp. 324 e 325.
8
- o Estado dirige a Administração Directa, poder de
direcção que, além de prototípico da hierarquia
administrativa, se expressa na emanação de ordens para
os serviços, incluindo também os simétricos poderes de
modificação e de revogação;
- o Estado superintende a Administração Indirecta, poder
que lhe permite, se não a emissão de ordens, certamente
produzir recomendações e orientações gerais,
globalmente condicionando a actividade que é levada a
cabo pelas instituições que integram esta categoria da
Administração;
- o Estado tutela a Administração Autónoma, o que quer
dizer que pode exercer um mero poder de fiscalização,
apenas com fundamento na ilegalidade, e que somente lhe
permite a aplicação restrita de algumas sanções5.
2. Administração Autónoma, associações públicas lato
sensu e associações públicas profissionais
5 Cfr. o art. 199º, al. d), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
9
I. Particular atenção, no contexto da organização
administrativa, deve ser conferida à Administração Autónoma6, a
qual se dissocia da Administração do Estado, Directa ou Indirecta,
de acordo com os parâmetros que pudemos observar.
Este sector da organização administrativa está longe de ser,
no entanto, inteiramente uniforme, uma vez que acolhe no seu seio
diferentes manifestações subjectivas organizatórias.
A grande divisão a fazer passa pela separação entre as
associações públicas, que têm uma base humana – por relacionarem
pessoas que se encontram vinculadas por laços de natureza
pessoal, de feição profissional ou quaisquer outros – e as pessoas
colectivas de população e território – com um duplo substracto
humano e territorial7.
A inclusão das associações públicas na Administração
Autónoma radica em vários argumentos: desde a sua base
sociologicamente distinta do Estado até ao teor dos poderes de
mera tutela de legalidade que este sobre elas exerce8.
6 Quanto à Administração Autónoma, v. DIOGO FREITAS DO
AMARAL, Curso…, I, pp. 396 e ss.; JOÃO CAUPERS, Direito…, pp. 296 e ss.; VITAL MOREIRA, Administração Autónoma…, pp. 23 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 311 e ss.
7 Assim, JOÃO CAUPERS, Direito…, pp. 265 e 266. 8 Assim, JORGE MIRANDA, As associações públicas no Direito Português,
Lisboa, 1985, pp. 25 e 26; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 414 e ss.
10
No caso das Regiões Autónomas, no quadro constitucional
português, elas recebem ainda competências do âmbito das
funções política e legislativa, para além das competências que
naturalmente lhes cabem no foro da função administrativa.
II. As associações públicas9, por seu turno, numa tripartição
que se tem tornado clássica na doutrina administrativista
portuguesa, ainda se distribuem por três espécies10:
- as associações públicas de natureza pública – trata-se da
junção de entidades que são já originariamente de
natureza pública, como sucede com as associações e as
federações de municípios;
- as associações públicas de natureza privada – conglomera-
se numa única pessoa colectiva entidades que são
privadas na sua raiz, mas em que sobressai a necessidade
da concessão de uma natureza pública a fim de
prosseguirem alguns poderes de autoridade; e
9 Sobre as associações públicas, v. JORGE MIRANDA, As associações
públicas…, pp. 14 e ss., e Ordem profissional, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VI, Lisboa, 1994, pp. 229 e ss.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 399 e ss.; VITAL MOREIRA, Administração Autónoma…, pp. 255 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 316 e ss.
10 Assim, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 402 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 313 e ss.
11
- as associações públicas de natureza mista – são associações
que acolhem, ao mesmo tempo, entidades de natureza
pública e de teor privado11.
Ora, as associações públicas profissionais ou ordens
profissionais12 (nome por que são mais conhecidas e que, neste
ensejo, identicamente usaremos)13 exactamente correspondem a
uma das modalidades de associações públicas: são as que se
integram na segunda destas três categorias de associações
públicas14, as de natureza privada.
III. Quais são, então, os seus elementos diferenciadores,
sobretudo se postas em confronto com as outras associações
públicas?
Esses elementos são dois:
11 V. ainda outras possíveis modalidades, tal como elas são
apresentadas por JORGE MIRANDA, As associações públicas…, p. 15. 12 Especificamente sobre as ordens profissionais, v. JORGE MIRANDA,
As associações públicas…, pp. 29 e ss., Ordem…, pp. 230 e ss., e Manual de Direito Constitucional, IV, 3ª ed., Coimbra, 2000, pp. 506 e ss.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 405 e ss.; VITAL MOREIRA, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra, 1997, pp. 257 e ss., e em especial pp. 287 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 319 e ss.
13 Ainda que seja necessário dizer que achamos mais correcta a expressão “associações públicas profissionais” porque, nestas, nem todas têm aquela terminologia de “ordem” e, sobretudo, porque nem todas possuem o lastro cultural que tem acompanhado a formação e o desenvolvimento das ordens profissionais stricto sensu.
14 Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 314.
12
- o elemento material, que se prende com o objecto da
actividade desenvolvida, consistindo ela no exercício de
poderes que recaem sobre um dado grupo profissional,
que se caracteriza pela elevada liberdade que é apanágio
do respectivo exercício;
- o elemento funcional, o qual radica nos poderes que são
conferidos à associação, nos quais se sublinham funções
de regulamentação do exercício da profissão considerada,
bem como de controlo do respeito por normas
deontológicas e disciplinares.
Claro que a estes elementos diferenciadores acrescem os
elementos gerais, que são por conseguinte comuns àquelas
mesmas pessoas colectivas:
- um elemento formal, que consiste na atribuição de uma
personalidade jurídica colectiva de Direito Público;
- um elemento estrutural, que é o subtracto necessariamente
pessoal, conferindo-lhe assim o teor associativo;
- um elemento teleológico, que se prende com a prossecução
de fins que são privativamente criados e interpretados no
seio da pessoa colectiva.
13
IV. A observação da Administração Pública Portuguesa, em
matéria de associações públicas profissionais, possibilita encontrar
uma quantidade considerável, com estatutos assaz diferenciados.
E é até possível estabelecer uma distinção entre as ordens
profissionais clássicas – que correspondem às mais antigas
profissões liberais, como as de médico e de advogado – e as outras
profissões liberais recentes – que são o produto do
amadurecimento de várias profissões ou do seu recém
reconhecimento – como as dos farmacêuticos ou dos biólogos.
Por outro lado, dessa apreciação resulta nítida a opção que se
fez em Portugal por um modelo de raiz anglo-saxónica, pelo qual a
disciplina das profissões concretiza-se a partir de associações
públicas, rejeitando-se deste modo a opção de a respectiva
regulação ser realizada por esquemas que se inserem na
Administração Indirecta do Estado15.
A apreciação da estruturação jurídico-administrativa dessas
associações públicas profissionais permite extrair os seguintes
elementos mais preponderantes:
- criação por acto legislativo governamental, o decreto-lei;
- titularidade de poderes de natureza administrativa no
acesso à profissão e na imposição de sanções disciplinares;
15 Referindo várias modalidades alternativas de intervenção
administrativa, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, p. 408; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 320.
14
- definição orgânica na base do princípio democrático;
- competência dos tribunais administrativos para a solução
de litígios emergentes das relações jurídicas em que
intervenham;
- beneficiação fiscal da respectiva actividade;
- sujeição dos respectivos funcionários ao regime do
contrato individual de trabalho.
15
§ 2º A CONFIGURAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS PROFISSIONAIS
3. A dupla relevância jurídico-constitucional do estatuto
das associações públicas profissionais
I. Como já tivemos ocasião de mencionar, as associações
públicas – porque englobadas na Administração Autónoma – já
adquirem só por isso, ainda que mediatamente, relevância para a
Constituição Portuguesa de 1976.
No entanto, o legislador constitucional da III República, em
atenção à importância e também ao melindre da matéria, entendeu
por bem especificamente equacionar o estatuto tanto das
associações públicas em geral como das ordens profissionais em
particular.
II. Podemos assim afirmar que o estatuto constitucional das
associações públicas profissionais, à luz da CRP, se assume
duplamente relevante16:
16 Sobre o estatuto constitucional das associações públicas, incluindo as
ordens profissionais, v. ANTÓNIO NADAIS, ANTÓNIO VITORINO e
16
- enquanto parte das associações públicas, que corporizam
a Administração Autónoma de base associativa;
- enquanto entidades que são reguladas pela CRP, na sua
veste de associação pública de índole profissional.
4. O regime genericamente aplicável às associações
públicas lato sensu
I. As associações públicas, na perspectiva das normas
constitucionais organizatórias, concitam a presença de algumas
normas.
A mais importante delas é de competência, com o que se
considera ser a Assembleia da República competente para legislar,
matéria que lhe está relativamente reservada: “É da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo (…) Associações
VITALINO CANAS, Constituição…, p. 277; JORGE MIRANDA, As associações públicas…, pp. 26 e 27, e Ordem…, pp. 231 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, pp. 929 e 930; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 410 e 411; VITAL MOREIRA, Administração Autónoma…, pp. 420 e ss., e O Governo de Baco – a organização institucional do Vinho do Porto, Porto, 1998, pp. 221 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 313; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, p. 398.
17
públicas…”17. Se assim o entender, pode delegar no Governo a
respectiva legiferação, de acordo com os apertados termos por que
esse exercício legislativo pode ser constitucionalmente efectuado.
Por outra banda, fazendo parte da Administração
Autónoma, regista-se a sujeição à intervenção tutelar
governamental, que se exerce precisamente sobre este sector da
Administração Pública. É que faz parte das competências
administrativas do Governo “…exercer a tutela (…) sobre a
administração autónoma”18, como já tivemos ocasião de apreciar.
Acresce ainda o facto de, no plano da arquitectura geral da
Administração Pública Portuguesa, vigorar o princípio
democrático, uma vez que o texto constitucional afirma que “O
Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o
regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da
autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática
da administração pública”19. Ou seja: as associações públicas,
sendo uma parcela da Administração Pública, ficam sendo
insufladas por este princípio da descentralização administrativa
democrática.
17 Art. 165º, nº 1, al. s), da CRP. 18 Art. 199º, al. d), in fine, da CRP. 19 Art. 6º, nº 1, da CRP.
18
II. Mas a verdadeira profusão de normas constitucionais
verifica-se no tocante a normas materiais, através das quais se
estabelecem linhas directoras extremamente importantes para a
construção do regime legal das associações públicas, elas
sistematicamente se inserindo no Título IX da Parte III da
Constituição, atinente à “Administração Pública”.
Uma primeira orientação refere-se à circunstância de a
Constituição considerar a existência das associações públicas como
manifestação de uma das modalidades de concretização e de
efectivação do princípio da participação dos interessados na gestão
da Administração Pública, ao mesmo tempo qualificando-a como
uma estrutura de representação democrática20.
Isto significa que as associações públicas se situam na
encruzilhada de dois importantíssimos princípios que animam a
organização da Administração Pública Portuguesa: os princípios
da participação e da democracia.
III. Todavia, há também paralelamente preceitos
constitucionais que especificamente conferem um estatuto às
associações públicas, diferenciando-as de outras categorias da
Administração Pública.
20 Cfr. o art. 267º, nº 1, da CRP.
19
Essas regras são as seguintes21:
a) Limitação da criação das associações públicas “à satisfação de
necessidades específicas” – as associações públicas,
relativamente às razões que justificam a sua criação, ficam
indexadas à verificação da necessidade de uma
intervenção pública de regulamentação e de disciplina,
não havendo propriamente liberdade legislativa para uma
criação incontida dessas pessoas colectivas;
b) Impossibilidade do exercício de “funções próprias das
associações sindicais” – as associações públicas, no seu
recorte conceptual por relação com as actividades que
devem executar, não podem dobrar as funções
constitucionalmente atribuídas aos sindicatos,
nomeadamente quanto à defesa dos direitos dos
trabalhadores subordinados;
c) “Organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus
membros” – as associações públicas, por via do seu
substracto pessoal, devem levar em consideração, no
exercício dos respectivos poderes de natureza pública, os
direitos dos respectivos associados e profissionais, isso
limitando o tipo de intromissão que constitucionalmente
se lhes autoriza, o que também funciona como uma
21 Todos constantes do art. 267º, nº 4, da CRP.
20
delimitação interna das restrições que elas mesmas
consubstanciam;
d) “Formação democrática dos seus órgãos” – as associações
públicas, no que concerne à sua organização e
funcionamento, não podem ser uma ilha relativamente ao
princípio democrático, que – impregnando a
Administração Pública e o Estado em geral – igualmente
deve estar presente no respectivo figurino organizatório.
5. As singularidades regimentais especificamente
pertinentes às associações públicas profissionais
I. Já o complexo de normas constitucionais atinentes às
associações públicas profissionais, enquanto differentia specifica das
associações públicas, é muitíssimo diminuto, nem sequer sendo
assumido com esse nomen iuris.
A referência que existe – e que achamos muito relevante –
situa-se na descrição tipológica que a Constituição realiza da
liberdade de escolha da profissão.
II. Como seria de esperar num texto substancialmente
democrático e que cumpre as exigências do Estado de Direito
21
Material, a Constituição Portuguesa reconhece a liberdade de
escolha e de exercício da profissão: “Todos têm o direito de
escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as
restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à
sua própria capacidade”22.
Simplesmente, ao mesmo tempo que positiva esse direito, o
texto constitucional implicitamente abre as portas à existência e à
operacionalidade das associações públicas profissionais, dado que
concebe a imposição de restrições no âmbito do acesso e do
exercício das profissões. É disso que cura o segmento que se refere
às “…restrições legais impostas pelo interesse colectivo…”.
III. E quais são as estruturas que podem corporizar essas
limitações de interesse público, no âmbito estritamente
profissional?
Certamente que são as associações públicas profissionais,
cujo âmbito material de actuação assim se encontra plenamente
justificado.
22 Art. 47º, nº 1, da CRP.
22
§ 3º ASPECTOS GERAIS DO ENQUADRAMENTO
LEGAL DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS
6. Sentido e função de uma lei de enquadramento
I. A primeira questão que importa dilucidar, na construção
de um regime geral regulador das associações públicas
profissionais, prende-se com o sentido e a função que se deve
atribuir a uma lei que tenha por missão efectuar a respectiva
disciplina geral.
Trata-se de elaborar, como facilmente se entrevê, um
diploma legislativo que estabeleça um regime comum quanto a um
conjunto de aspectos que ficam sendo pertença de um acto
legislativo unificador, prévio e superior a cada um dos actos que,
em concreto, venha a criar cada associação pública profissional e,
por outro lado, lhe fixe, no seu próprio âmbito, particularidades de
regime.
Essa questão é, ao mesmo tempo, de natureza formal e de
natureza material:
23
- no primeiro caso, devemos perguntar ao texto
constitucional se é viável atribuirmos a um diploma com
esta configuração uma tal função subordinante de outros
diplomas – naturalmente que contenham uma mesma
eficácia hierárquica legislativa – que com eles possam
entrar em colisão;
- no outro caso, devemos indagar da possibilidade teorética
de fixar essa pretendida disciplina unitária, atenta a
realidade concreta das associações públicas profissionais
na sua diversidade e nas suas inevitáveis singularidades.
II. O princípio fundamental no Direito Constitucional
Português – como, em geral, em qualquer moderno Direito
Constitucional – é o de que, dentro do mesmo nível hierárquico, os
actos legislativos têm uma mesma eficácia revogatória ou
derrogatória.
Portanto, daqui resulta que não é possível, no plano da
orientação geral traçada pela Constituição, que um acto legislativo
possa ser hierarquicamente superior ao outro, todos eles tendo
uma idêntica força de lei.
Outra precipitação deste mesmo princípio respeita ao facto
de, situando-se os actos legislativos na mesma hierarquia,
24
igualmente não poderem uns ter a pretensão de prevalecer sobre
os outros.
A resolução de conflitos inter-legislativos que eventualmente
surjam jamais pode assim socorrer-se do critério hierárquico, que
neste caso não tem a virtualidade de poder funcionar. Esse é um
esforço que deve ser feito com recurso a outros critérios, como os
da cronologia ou da especialidade das matérias legisladas.
III. Contudo, olhando para o mesmo texto constitucional,
chegamos à conclusão de que é possível, em certos casos e em
certas circunstâncias, reconhecer a alguns actos legislativos uma
eficácia jurídica subordinante relativamente a outros actos
jurídicos, apesar de se situarem hierarquicamente no mesmo nível.
Um primeiro grupo desses diplomas corresponde aos
decretos-leis do Governo que se destinem a executar autorizações
legislativas ou que desenvolvam bases legislativas gerais: “As leis
e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às
correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de
autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos
regimes jurídicos”23.
Outro grupo de actos é concernente a um conjunto plúrimo
de actos legislativos que ostentam traços de peculiaridade no
23 Art. 112º, nº 2, da CRP.
25
contexto do procedimento ou da função genericamente
caracterizadora dos actos legislativos: “Têm valor reforçado, além
das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de
dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição,
sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por
outras devam ser respeitadas”24.
Uns e outros podem candidatar-se ao conceito de “lei de
valor reforçado”, na medida em que possuam uma força
subordinante de outros actos legislativos, a despeito de um
idêntico posicionamento hierárquico, ainda que a doutrina
constitucional portuguesa esteja longe de ser concorde na
delimitação deste conceito25.
De acordo com a nossa interpretação, que deve ser produto
mais de uma elaboração doutrinária e menos de um ditame
legislativo, havendo no limite a hipótese de o legislador se ter
enganado na qualificação dos fenómenos, a lei de valor reforçado é
24 Art. 112º, nº 3, da CRP. 25 Relativamente às leis de valor reforçado no actual Direito
Constitucional Português, v. JORGE BACELAR GOUVEIA, Opinião sobre a revisão constitucional de 1997 e o sistema de actos legislativos, in Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, nºs 19-20, Abril-Dezembro de 1997, pp. 59 e ss., e O estado de excepção no Direito Constitucional, II, Coimbra, 1998, pp. 1218 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, V, Coimbra, 1997, pp. 344 e ss.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Lei reforçada, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 1º suplemento, Lisboa, 1998, pp. 139 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, 1999, pp. 695 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, pp. 227 e 228.
26
distinta do conceito constitucionalmente formulado, em dois
sentidos divergentes:
- um sentido restritivo, no aspecto de não ser de incluir na
lei reforçada os actos legislativos que sejam leis orgânicas
ou que sejam aprovados por maioria de dois terços só por
causa dessa qualidade, havendo casos em que daí não
deriva qualquer força subordinante de outros actos
legislativos;
- um sentido ampliativo, no ponto em que a definição
constitucional não admita, como parece acontecer com o
respectivo sentido literal, actos legislativos não
parlamentares, sendo certo que o fortalecimento que se
quer pode igualmente surgir em actos legislativos
governativos, como o testemunha a prática política,
recordando-se o caso da força subordinante do decreto-lei
que traça a organização e o funcionamento do Governo
relativamente a outros decretos-leis26.
IV. Na base do conhecimento das situações em que a
Constituição admite a prevalência de certos actos legislativos sobre
outros actos legislativos, em conformidade com a noção de lei de
valor reforçado, é altura de fazer a respectiva aplicação ao caso da
26 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Opinião…, p. 60.
27
lei de enquadramento das associações públicas profissionais por
conexão com cada acto legislativo concreto de criação das mesmas,
ou do acto que procede à alteração dos estatutos das associações já
anteriormente criadas.
Não há propriamente uma resposta directa no texto
constitucional, ao contrário do que sucede em muitos outros casos,
em que se toma uma posição específica sobre essa matéria. Podem
assim alguns concluir, perante essa omissão, pela impossibilidade
de sujeitar o acto legislativo genericamente disciplinador das
associações públicas profissionais a um dos casos que a
Constituição considera de vinculação especial entre actos
legislativos. A circunstância de a competência para legislar em
matéria de associações públicas ser da Assembleia da República
não seria, por si só, um sinal seguro de que tal tipo de vinculação
se admitiria.
V. Essa não é ainda, em todo o caso, uma resposta cabal, na
medida em que é razoável perscrutar essas relações de vinculação
especial a partir de outros factores e de outros índices,
provavelmente menos evidentes, em que aqueles casos de
vinculação especial podem ter igualmente sentido.
28
De novo remontamos ao singelo facto de a legislação em
matéria de associações públicas ser da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República.
Numa primeira dimensão, trata-se apenas de por aqui se
vislumbrar uma particular repartição da competência legislativa
entre a Assembleia da República e o Governo, tendo-se optado,
neste caso, por concedê-la à Assembleia da República, ainda que
com a opção de ser o Governo a legislar, se para tanto tiver havido
a necessária autorização legislativa.
Essa não é, porém, a única dimensão possível deste peculiar
recorte da competência legislativa. É que estamos em crer que, por
detrás da função meramente organizatória dessa reserva, está
também uma função parametrizante que implicitamente o texto
constitucional pretendeu atribuir, tornando-a uma lei reforçada. A
não ser assim, a importância desta reserva relativa de competência
legislativa ficaria seriamente obliterada: ela de pouco valeria se
não pudesse preencher uma função geral regulatória e se dela
apenas se extraísse uma intenção de se aplicar a cada acto. Inerente
a essa função regulatória, sob pena de ela mesma para pouco ou
nada servir, está a força subordinante dos posteriores actos de
criação das associações públicas.
Em resumo: podemos retirar da atribuição de reserva
relativa de competência legislativa à Assembleia da República para
29
legiferar em matéria de associações públicas não apenas essa
especial delimitação competencial, no confronto com os outros
órgãos igualmente legiferantes, mas também uma importante
função parametrizante quanto aos actos posteriores de criação das
associações públicas.
É que está aqui em causa a terceira possibilidade para o
preenchimento do conceito constitucional de lei reforçada, na parte
em que o mesmo se deve julgar adequado: é um caso em que se
percebe que para a Constituição deve existir uma lei geral – de
enquadramento das associações públicas – cujo acatamento por
actos legislativos posteriores e concretos de criação das mesmas se
lhes impõe, função parametrizante que é inerente à atribuição da
competência para legislar genericamente sobre esta matéria.
A essa conclusão também chegam J. J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, apesar de o afirmarem apenas
implicitamente, quando atribuem a esta competência parlamentar
a estruturação do regime das associações públicas, pois que
“…cabe à AR definir o seu regime (forma e condições de criação,
atribuições típicas, regras gerais de organização interna, controlo
da legalidade dos actos…”27.
27 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, p.
676.
30
VI. Por isso mesmo, julgamos que este exercício de
competência legislativa não se pode compaginar com a criação de
uma lei de bases, embora seja isso o que é explicitamente referido
na anteproposta que está sendo submetida à nossa apreciação.
Não se está em face de um regime de bases porque, na
verdade, se pretende a disciplina geral de tudo aquilo que respeita
às associações públicas profissionais, nem sequer se pensando na
remissão para a competência legislativa do Governo no
desenvolvimento dessas bases, como seria sempre indispensável. É
que a delimitação constitucional da competência em matéria de
associações públicas abarca a totalidade de um regime, não o
regime geral apenas, e muito menos somente as bases gerais28.
Lei de bases e lei-quadro são duas realidades
conceptualmente diversas e que até podem ter regimes diferentes:
a lei de bases é, por definição, uma lei “incompleta”, que se destina
a ser preenchida, em níveis mais pormenorizados de legiferação,
por outros actos legislativos que igualmente exercem uma função
legislativa; já as leis-quadro são leis completas, possuindo toda a
necessária regulação, tendo a finalidade de condicionar o exercício
do poder legislativo por parte de outros actos, estes não
28 Claro que isso não impediria a Assembleia da República, ainda
assim, de apenas legislar em matéria de bases; só que tal não seria depois harmónico com uma segunda intervenção e sobretudo seria funcionalmente pouco útil, porquanto faltariam sempre outras normas indispensáveis dentro
31
acrescentando mais alguma disciplina, mas pondo em acção a
criação de certas entidades exactamente ao abrigo da normação
que aquela contém.
Assim sendo, parece ser mais aconselhável – até por causa da
eficácia paramétrica que esta lei terá como lei de valor reforçado –
que o seu nome passe a ser “lei-quadro das associações públicas
profissionais”29.
VII. A apreciação da elaboração de uma lei geral sobre as
associações públicas profissionais pode ainda suscitar dúvidas no
plano material: não já no sentido de se reconhecer eficácia
parametrizante a essa lei, mas no sentido de saber da possibilidade
de se efectuar, por via dessa lei geral, uma disciplina
generalizante, atendendo à enorme variedade que, por natureza,
acompanha as ordens profissionais ou as associações públicas em
geral.
É MARCELO REBELO DE SOUSA quem muito bem põe o
dedo na ferida, manifestando fundas reticências quanto a essa
possibilidade, ainda que falando restritamente no ponto dos
órgãos das associações públicas: “…é tão grande a sua variedade e
diversificada a composição do seu substrato pessoal, que,
da lógica de se fazer uma regulação global sobre as associações públicas, de que se carece.
32
dificilmente, se compreenderia a adopção de um espartilho legal
rígido, nomeadamente em termos organizativos”30.
E acrescenta mesmo: “Ele chocar-se-ia, aliás, com a própria
caracterização associativa destas entidades, se ultrapassasse mais
do que a mera enunciação das três modalidades de órgãos, em
princípio, exigíveis – de execução ou gestão, de deliberação e de
fiscalização -, sendo que se podem identificar deliberação e
fiscalização nas associações públicas integradas por entidades
públicas, designadamente autarquias locais”31.
Não cremos, porém, que essa íntima diferenciação possa ser
obstáculo para a erecção de um regime geral: ele não só já existe do
ponto de vista constitucional, como decorre do facto de haver uma
competência legislativa parlamentar a própria ideia da sua
possibilidade e da sua conveniência. Aliás, como é MARCELO
REBELO DE SOUSA logo a reconhecer, “Em qualquer caso, a
legislação sobre associações públicas integra-se, como antes
dissemos, na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República”32, com isso inculcando tal ténue
possibilidade.
29 Essa mesma expressão é também utilizada por J. J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, p. 676. 30 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 315 e 316. 31 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 316. 32 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 316.
33
7. O Direito subsidiário aplicável
I. Integrada nos aspectos de ordem geral do regime legal das
associações públicas profissionais está também a determinação do
conjunto de preceitos normativos que devem ser considerados
subsidiariamente aplicáveis.
É que as leis e os regimes não aparecem isolados no
ordenamento jurídico e, sobretudo, eles não dizem sempre tudo: se
assim é, pode tornar-se necessário recorrer a outras normas, que
noutras paragens regulam as situações que carecem de uma
resposta, ela mesmo ausente no regime específico que se tenha em
consideração33.
Este é, pois, o problema do Direito subsidiário das
associações públicas profissionais, que se deve pôr com toda a
pertinência quando se pensa na elaboração de uma lei de
enquadramento do respectivo regime.
II. O Direito subsidiário é naturalmente diferente da
verificação das lacunas legais e das lacunas de Direito. É que não
33 Quanto à problemática geral do Direito subsidiário, v., de entre
outros, J. DIAS MARQUES, Introdução ao Estudo do Direito, 4ª ed., Lisboa, 1972,
34
está em causa, na busca que se faz em todo o ordenamento
jurídico, começando pela norma mais próxima e acabando nos
sectores mais remotos, a existência de uma omissão de regulação, a
qual é indesejada pela ordem jurídica.
Pelo contrário: a omissão dessa solução normativa apenas
acontece no sector específico do regime que se quer construir, o
mesmo já não sucedendo avançando para zonas normativas
limítrofes, em que o intérprete e o aplicador podem deparar com
normas jurídicas que satisfatoriamente dão uma directriz para um
caso.
Noutra perspectiva, enfrentamos neste caso uma relação
entre uma parte especial e uma parte geral do ordenamento
jurídico, e não uma relação entre sectores da ordem jurídica
excessivamente distantes. Como explicita J. DIAS MARQUES,
“Trata-se de um processo técnico-legislativo frequentemente
usado, o qual consiste em regular uma dada matéria apenas nos
aspectos que lhe são específicos e remeter, em tudo o mais, para o
regime mais completo de uma outra matéria, que é suposto haver
adquirido, através do tempo, uma elaboração legislativa e
doutrinal mais apurada”34.
pp. 171 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, O estado de excepção…, II, pp. 1451 e 1452.
34 J. DIAS MARQUES, Introdução…, pp. 172 e 173.
35
III. Porém, não é possível responder sem que se possa
aquilatar da verdadeira natureza jurídica das associações públicas
profissionais, embora nessa matéria seja missão da lei de
enquadramento estabelecer uma dada orientação.
A observação das associações públicas em geral, na sua
qualidade de pessoas colectivas públicas de substracto associativo,
convoca a potencial presença de dois ramos do Direito:
- do Direito Privado, na medida em que o fenómeno
associativo encontra no Direito Civil o seu “habitat”
natural, este sendo o repositório subsidiário de normas,
desde que não haja qualquer incompatibilidade com a sua
raiz privatística35;
- do Direito Administrativo, na medida em que a criação
legal e os poderes de autoridade com que as associações
profissionais ficam aparelhadas remetem para outros
regimes mais desenvolvidos das pessoas colectivas
públicas criadas pelo Estado, como é o caso dos institutos
públicos36.
A resposta, como sugere DIOGO FREITAS DO AMARAL,
matizando a sua posição em face de uma opinião anteriormente
expendida, deve ser mais caleidoscópica, porquanto importa
35 Cfr. JORGE MIRANDA, As associações públicas…, p. 25 36 Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, I, Lisboa,
1984, p. 500.
36
atender ao peculiar aspecto que está carecido de regulação. Como
escreve aquele autor, “…as associações públicas são pessoas
colectivas públicas criadas pelo Estado por devolução de poderes –
e nessa medida o seu regime jurídico aproxima-se do dos institutos
públicos, que igualmente o são; mas as associações públicas têm,
ao contrário dos institutos públicos, estrutura associativa e
pertencem à administração autónoma – e nesta medida o seu
regime tem de reconduzir-se ao das associações de direito privado,
ressalvado o que seja incompatível com o carácter público de tais
entidades”37.
Só uma avaliação dos casos e das situações nos pode dar
uma resposta sólida, pelo que a cláusula de Direito Subsidiário
deve remeter para ambos os sectores em função da natureza das
questões que sejam colocadas, e não cair no erro de remeter
globalmente e apenas para o Direito Administrativo.
Mas atendendo ao facto de que as associações públicas
profissionais são associações públicas de entidades privadas, é de
aceitar que o pendor privatístico do Direito subsidiário seja
bastante mais acentuado.
8. O acto de criação
37 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, p. 409.
37
I. Do ponto de vista dos aspectos gerais do enquadramento
legal das associações públicas profissionais, é de discretear ainda
um pouco acerca dos termos da respectiva criação.
Eis uma questão que no Direito Administrativo é susceptível
de obter diversas respostas, em grande parte por força da
configuração das entidades administrativas que devem ser criadas.
E no caso das associações públicas profissionais, interessa
também saber qual o tipo de constrangimento que, a este
propósito, decorre do articulado da Constituição, em relação ao
qual devemos agir conformemente.
II. A experiência recente na criação das associações públicas
profissionais, como facilmente se verifica, revela que os respectivos
actos de criação são legislativos, com natureza governamental,
mostrando-se assim actos de feição unilateral enquanto
manifestação do poder público.
Essa criação legislativa a partir do Governo é,
posteriormente, “confortada” pela participação dos associados,
que gradualmente se instalam nos seus diversos órgãos,
desligando-se o Governo, a partir de certo momento, da respectiva
gestão.
38
Esse acto de criação legislativa não se resume, em todo o
caso, ao surgimento da pessoa colectiva, pois que o mesmo,
simultaneamente, faz aprovar os respectivos estatutos, que são
publicados por junto com o acto de criação.
III. A prática que tem sido seguida até aqui não deixa de
suscitar algumas dúvidas por se tratar de uma criação que é, a um
tempo, unilateral e com uma proveniência de todo em todo alheia
ao substracto pessoal que materializa a associação:
- é um acto unilateral porque não refrange, na sua
constituição, uma qualquer vontade colectiva, mas uma
vontade única do Estado, formada a partir do Governo na
sua veste de órgão legislativo;
- é um acto que se mostra alheio ao substracto pessoal da
associação porque os futuros associados nunca tiveram
ocasião de exprimir a sua vontade de erguer uma
associação, nem sequer tiveram qualquer mecanismo de
canalização da respectiva vontade para o próprio
Governo na criação da associação.
E o que é verdade para o acto de constituição também é
verdade para os actos posteriores de revisão estatutária: de novo é
a autoridade legislativa governamental que sobressai para efectuar
essas modificações.
39
Indiscutivelmente que essa exclusividade da autoridade
legislativa governamental pode ser atenuada por ela agir sempre
com base na obtenção de uma vontade alargada no sentido da
criação de certa ordem profissional.
Acreditamos que isso tem sucedido; mas isso não invalida o
raciocínio de que formalmente essa vontade dos associados não é
tomada em consideração e que fica somente na realidade político-
factual, não na realidade jurídico-normativa.
São, por isso, duas as questões que devem encontrar resposta
dentro do problema geral atinente ao acto de criação das
associações públicas profissionais:
- a estrutura unilateral ou contratual do acto que as institui;
- a natureza legislativa ou administrativa desse mesmo acto
de criação.
IV. A resposta à primeira destas duas interrogações,
formuladas a respeito dos contornos do acto constitutivo das
associações públicas profissionais, está intimamente associada à
problemática da liberdade de associação.
Esta é, com efeito, uma das mais antigas liberdades públicas
e que o liberalismo trouxe logo para as primeiras Constituições,
em torno da qual se garante um espaço de autonomia das pessoas
40
frente ao Estado, em muitos domínios e também naturalmente no
próprio domínio profissional.
São consequentemente frequentes as associações e os
fenómenos associativos e agregadores com vista à defesa de
interesses comuns ligados a uma mesma profissão. De alguma
sorte, os sindicatos são uma aperfeiçoada expressão da liberdade
de associação, em protecção da posição dos trabalhadores na
relação com as entidades patronais.
Seria até possível pensar na própria inconstitucionalidade da
criação pública de associações que, em última instância, forçassem
os profissionais abrangidos ao cumprimento de um conjunto de
deveres, não sendo para tanto ouvidos ou não tendo dado o seu
consentimento.
Não cremos que essa dúvida, em si inteiramente legítima e
plausível, possa ter esta tão drástica consequência. É que as
associações de natureza profissional não têm de desenvolver
apenas atribuições que sejam só dos respectivos associados, os
quais se vinculam às mesmas livremente, assim como também o
fazem no momento da desvinculação.
Em certos casos, podem emergir razões de interesse público
que justifiquem a intervenção pública, que se mostra clara quando
ocorrem três realidades:
41
- obrigatoriedade da inscrição numa associação de
profissionais para o exercício lícito de uma actividade;
- exercício de poderes de autoridade na regulação do acesso
e do exercício da profissão;
- imposição de poderes disciplinares perante a infracção
das normas deontológicas que devem orientar a
actividade dos profissionais.
É fácil de ver que, atendendo à natureza dos poderes que as
associações públicas profissionais vão exercer, nem sempre se
afigura viável defender o seu carácter geneticamente contratual.
Porquê? Porque se os associados percebem que a associação vai
desenvolver esses poderes, a resposta mais óbvia, para se furtarem
ao respectivo exercício, é, pura e simplesmente, nunca constituir a
associação.
Se se exigisse que as associações públicas profissionais
nascessem sempre de um acto de vontade contratual, o resultado
poderia muito bem ser o de uma impossibilidade prática de o
poder público intervir, uma vez que elas nunca se constituiriam.
É certo que a solução poderia ser a de o Estado intervir
conferindo poderes de autoridade a uma associação previamente
constituída ao abrigo do Direito Privado, numa base puramente
contratual. Não é de rejeitar essa hipótese; mas a verdade é que
isso nem sempre sucede, estando dependente desse primeiro passo
42
privado e contratual, e sempre se mostra algo espinhosa a
intervenção estadual num ente de raiz privatística.
A intervenção pública pela criação unilateral – forçada se
necessário – das associações públicas profissionais não constitui,
pois, qualquer infracção à liberdade de associação: não se trata do
exercício de poderes privados, mas de poderes públicos, que têm
sempre um âmbito limitado.
E note-se ainda que se cura de um acto do poder público que
é como tal equacionado pela própria Constituição: quando esta
refere que as associações públicas se submetem à reserva relativa
de competência legislativa parlamentar e que devem obedecer a
certas características de organização e funcionamento, a própria
Constituição está com isso a supor tratar-se de uma realidade
diversa da das associações privadas, nascidas do puro exercício
contratualizado da liberdade de associação.
V. A outra pergunta que enunciámos, aceite já o carácter
unilateral do acto de criação das associações públicas profissionais,
acto esse que provém do poder público, faz-nos oscilar entre a
respectiva natureza legislativa ou administrativa.
Do ponto de vista do Direito Administrativo, são muitos os
exemplos que permitem a constituição de entidades
administrativas através de actos pertencentes à função
43
administrativa, sob a óptica daqueles que tenham uma feição
unilateral. É o que acontece, em muitos casos, com os
regulamentos administrativos.
Não consideramos, no entanto, que esse possa ser o caso das
associações públicas profissionais, uma vez que não basta
considerar o aspecto de exercerem poderes de natureza
administrativa. Outra não menos importante perspectiva que é
mister levar em consideração é a de que as associações públicas
profissionais, na sua qualidade de especiais tipos de associações,
com um cunho profissional evidente, se situam na regulação do
exercício de uma determinada profissão.
Ora, o exercício de uma profissão assume-se
constitucionalmente relevante para o plano dos direitos
fundamentais, havendo mesmo no caso da Constituição
Portuguesa um tipo de direito fundamental que especificamente o
concebe.
Do ponto de vista organizatório, a criação de uma associação
pública profissional, em boa parte por causa dos poderes de
natureza pública que lhe são atribuídos pelos respectivos
estatutos, representa sempre uma intervenção no domínio dos
44
direitos, liberdades e garantias, matéria que está submetida a uma
reserva de lei, sendo vedada a intervenção administrativa38.
Do ponto de vista material, afigura-se visível que a
intervenção do poder público na criação de uma associação
pública profissional necessariamente restringe o exercício dos
direitos profissionais, o que também força que seja um acto de
natureza legislativa39.
VI. As duas respostas que obtivemos para as duas questões
formuladas não são ainda suficientes porque o poder legislativo
em Portugal, ao nível nacional, se distribui por dois órgãos: a
Assembleia da República e o Governo.
É desde já de afastar a possibilidade da participação de uma
terceira instância com poderes igualmente legiferantes, que são as
assembleias legislativas regionais, integradas nas Regiões
Autónomas dos Açores e da Madeira.
Por dois motivos fundamentais:
38 Quanto à reserva de lei no domínio dos direitos, liberdades e
garantias, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, pp. 145 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, pp. 281 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual…, IV, pp. 376 e ss.
39 Frisando a reserva de lei no aspecto da restrição dos direitos, liberdades e garantias, v. MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, pp. 97 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual…, IV, pp. 327 e ss.
45
- por ser praticamente impossível configurar uma profissão
meramente regional ou que no território regional careça
de uma especial configuração regulativa, o que é essencial
para substanciar um interesse específico regional;
- por ser uma intervenção necessariamente ablativa de
direitos fundamentais, matéria que está
constitucionalmente reservada aos órgãos de soberania.
Na opção entre a Assembleia da República e o Governo,
atendendo ao modo como o poder legislativo se encontra
distribuído por esses dois órgãos, o acto de constituição de uma
associação pública profissional, segundo o nosso entendimento,
pode ser feito quer por lei da Assembleia da República quer por
decreto-lei do Governo.
Registe-se, porém, que a criação por decreto-lei do Governo
tem de se sujeitar a uma autorização legislativa, na medida em que
a dois títulos esta exerce essa competência, em ambos os casos
insertas na esfera das matérias da sua reserva relativa de
competência legislativa40:
- no facto de a criação das associações públicas
profissionais significar a limitação ou restrição de direitos,
liberdades e garantias – a restrição do acesso e a regulação
40 Afastamo-nos, assim, da possibilidade que J. J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição…, p. 676) aventam de, com
46
do exercício de uma dada profissão, tolhendo o direito
fundamental à liberdade de profissão;
- no facto de as associações públicas, das quais as
associações profissionais são uma modalidade, se
sujeitarem à legislação parlamentar – a criação de uma
ordem profissional, sendo uma associação pública, está
sempre formalmente abrangida na vertente da sua criação
em concreto, ainda que aquela competência também vise
o estabelecimento de um regime geral para todas ou
algumas categorias de associações públicas.
VITAL MOREIRA, com desenvolvimento, defende que,
perante uma lei-quadro das associações públicas, estas não têm de
ser criadas por acto legislativo da Assembleia da República: “A
CRP reserva à AR a definição do regime jurídico das associações
públicas. Mas não lhe reserva explicitamente a competência para a
sua criação. Isto quer dizer que uma lei-quadro das associações
públicas poderia admitir a criação delas por diploma ou acto
governamental”41.
Discordamos desta posição: é que a competência legislativa
parlamentar tem a ambivalência de por ela se produzir uma lei-
uma lei-quadro das associações públicas, a criação destas poder ser feita apenas pelo Governo.
41 VITAL MOREIRA, Administração Autónoma…, p. 478.
47
quadro e de por ela se dever constituir, igualmente, cada
associação pública profissional.
Por outro lado, soaria sempre estranho que só por causa de
uma lei-quadro aquilo que antes era da competência legislativa
reservada parlamentar pudesse transitar para a competência
legislativa concorrencial da Assembleia da República e do
Governo.
48
§ 4º ASPECTOS ESPECIAIS DO ENQUADRAMENTO
LEGAL DAS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS
PROFISSIONAIS
9. As atribuições a prosseguir
I. Entrando agora no domínio das questões específicas do
enquadramento legal das associações públicas profissionais,
importa analisar, em primeiro lugar, o recorte das atribuições ou
das finalidades que devem ser postas a cargo das associações
públicas profissionais42.
Note-se que esta é inclusivamente uma das poucas matérias
que são constitucionalmente relevantes, a dois níveis:
- um nível positivo, indexando-se a criação das associações
públicas à satisfação das necessidades específicas; e
- um nível negativo, através do qual elas não podem
prosseguir fins de natureza sindical.
42 Para um importante conspecto geral, VITAL MOREIRA, Auto-
Regulação…, pp. 264 e ss.
49
Vejamos separadamente estes dois aspectos, após o que
referiremos os conteúdos finalísticos necessários das associações
públicas profissionais.
II. O primeiro aspecto referido, como sublinha MARCELO
REBELO DE SOUSA, é mais exigente do que o mero princípio da
especialidade das pessoas colectivas, acrescentando JORGE
MIRANDA que o mesmo se conexiona com o princípio da
proporcionalidade43.
Não está apenas em causa desenvolver os poderes
adequados às respectivas finalidades, os quais aparecem assim
substancialmente limitados, mas requer-se que a própria criação se
submeta a um juízo de necessidade em função de certas
realidades.
Isto naturalmente que também reduz a probabilidade da
criação de associações públicas profissionais, ou pelo menos torna
o acto da respectiva criação muito mais exigente do ponto de vista
da argumentação que deve ser aduzida para a sua instituição.
E repare-se o contraste relativamente à criação de qualquer
pessoa colectiva pública, a qual depende da vontade da entidade
que a cria, na base de um juízo de discricionariedade muito mais
amplo: enquanto que aqui a criação é um acto discricionário,
43 Cfr. JORGE MIRANDA, Ordem…, p. 232.
50
produto da interpretação do interesse público, a criação das
associações públicas, incluindo as profissionais, só pode acontecer
para a satisfação das necessidade específicas, num claro intuito de
acentuadamente se circunscrever o juízo de discricionariedade
quanto ao conteúdo e quanto à possibilidade da respectiva
criação44.
III. A dimensão negativa retira do campo de acção das
associações públicas profissionais as tarefas que são próprias das
associações sindicais, especialização constitucionalmente prevista
dentro da liberdade de associação.
Essa é uma apreciação de alguma forma facilitada porque a
Constituição se apressa na definição material dos próprios
sindicatos, que não são, pois, um conceito inteiramente remissivo
para a lei ordinária.
Como esclarece JORGE MIRANDA45, exemplos de
atribuições constitucionalmente reservadas aos sindicatos – e
44 Importante corolário é também, como frisa MARCELO REBELO DE
SOUSA, o carácter necessariamente nacional das ordens profissionais e das associações públicas: “Por cada fim de interesse público a prosseguir a nível nacional, regional ou local, só pode, em princípio, existir uma associação pública, de acordo com o princípio da unicidade”. Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 317.
45 Cfr. JORGE MIRANDA, Ordem…, p. 232.
51
portanto assim excluídas da intervenção das associações públicas
profissionais – são46:
- a contratação colectiva;
- a participação na elaboração da legislação laboral;
- o exercício do direito à greve47.
No âmbito das escolhas que sejam feitas para a composição
dos estatutos das associações públicas profissionais, elas não
poderão agir na veste dos sindicatos, sendo inconstitucional a
concessão de qualquer uma das tarefas que sejam reconhecidas aos
sindicatos, como foram exemplificativamente enumeradas.
IV. Mas a principal dificuldade acaba sempre por ser a
definição das profissões cuja regulação carece de uma intervenção
pública ao nível da criação de uma associação profissional.
Não há – nem provavelmente poderia haver – qualquer
resposta constitucional ou legal para este assunto, atendendo ao
facto de a necessidade de regulação ser essencialmente mutável
com as circunstâncias sociais que rodeiam o exercício das
profissões, o seu aparecimento, a sua transformação e o seu
desaparecimento.
46 Conforme se pode ver, aliás, pelo art. 56º da CRP. 47 Relativamente ao recorte material da actividade dos sindicatos, v.
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, pp. 441 e ss.; BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, Curso de Direito
52
Tudo reside em saber se o desenvolvimento de certas
profissões, pelas suas características intrínsecas, exige ou não a
intervenção pública, no sentido de alcançar para elas uma máxima
responsabilidade.
Como bem escreve JORGE MIRANDA, “…há uma exigência
de confiança social a que o Estado responde manifestando
confiança na auto-organização dos respectivos profissionais e,
simultaneamente, decretando a necessidade de cada um a integrar
para poder exercer a profissão”48.
Não obstante essa verificação, alguns parâmetros gerais
podem ser legislativamente fornecidos para condicionar o acto de
criação de cada associação pública profissional, os quais podem
respeitar aos seguintes pontos, havendo naturalmente outros:
- o elevado grau de autonomia científica e técnica;
- o número de profissionais que justifique uma intervenção
através de associação;
- o suficiente nível de relação com terceiros de forma a
tornar-se uma questão que requeira a intervenção pública.
V. Do ponto de vista material, dois vão ser os principais
conteúdos da actividade das associações públicas profissionais:
do Trabalho, Lisboa/São Paulo, 1992, pp. 109 e ss.; MÁRIO PINTO, Direito do Trabalho, Lisboa, 1996, pp. 179 e ss.
48 JORGE MIRANDA, Ordem…, p. 231.
53
- um conteúdo regulador; e
- um conteúdo disciplinar.
O conteúdo regulador implica que a associação pública
profissional em causa estabeleça, através dos seus estatutos, um
conjunto de direitos e deveres daqueles que integram a profissão
que se visa regular.
Esse exercício deve ainda estender-se ao próprio acesso à
profissão, no sentido da imposição de limitações ou restrições em
nome do interesse público, sobretudo quando devem estar
relacionadas com a garantia de um mínimo de proficiência no
exercício da profissão.
Daí que seja exigível indexar a legitimidade do exercício da
profissão à inscrição, que é obrigatória, na respectiva associação
profissional, bem como depois ao pagamento de quotizações.
O conteúdo disciplinar respeita à aplicação por parte da
instituição de sanções disciplinares por violação das regras da
deontologia profissional, que é um sector da Ética concernente ao
exercício das profissões.
VI. Sendo embora os mais importantes, estes não são os
únicos conteúdos possíveis das associações públicas profissionais,
54
outros tão relevantes podendo existir, como muito bem refere
VITAL MOREIRA49:
- representação e promoção da classe profissional – que se
identifica com um conjunto de actividades de promoção
do prestígio da profissão e de defesa dos seus interesses
junto das diversas instâncias do poder;
- apoio aos seus membros – que se espelha nas acções
desenvolvidas junto dos associados para lhes
proporcionar o aumento da proficiência profissional e
para os colocar a par de todas as inovações relativas à
própria profissão;
- outras incumbências administrativas – tais como o registo
dos endereços dos colegas de profissão, o fornecimento de
seguros ou a garantia de um sistema de segurança social.
10. A defesa dos direitos dos associados
I. O facto de as associações públicas profissionais exercerem
os seus poderes de natureza pública nestes vários grandes núcleos
temáticos, tal como o próprio texto constitucional o inculca para
49 Cfr. VITAL MOREIRA, Auto-Regulação…, pp. 265 e ss.
55
alguns deles, não dispensa e antes implica que os associados
possam exercer os seus direitos.
Essa é uma afirmação constitucional que deve valer com dois
sentidos distintos, mas que se mostram igualmente operativos,
como frisa JORGE MIRANDA50:
- no sentido de os associados terem direitos de defesa
perante o exercício do poder administrativo das
associações públicas profissionais;
- no sentido de os associados não perderem quaisquer
outros direitos, como pessoas e cidadãos que continuam a
ser, só por se integrarem naqueles associações.
II. No que toca ao primeiro aspecto, cumpre dizer que os
associados conservam vários direitos que são inerentes ao exercício
da sua profissão e que, de certo jeito, são a contrapartida para os
deveres em que ficam investidos.
Estes são os direitos que podem contrapor às associações
profissionais, forçando estas a assegurar um escorreito exercício da
profissão. Assim como são também os direitos de participação nos
próprios destinos da instituição que integram.
Há também direitos que podem ser exercidos contra a
manifestação de poder da própria associação profissional, como é
50 Cfr. JORGE MIRANDA, Ordem…, p. 234.
56
o que sucede quando se verificam situações de negação de
inscrição ou de aplicação de sanção disciplinar.
III. Relativamente ao outro aspecto, que acaba por ser
bastante óbvio, a inserção dos profissionais numa certa associação
pública não os torna pessoas sujeitas a quaisquer relações especiais
de poder51.
Não ficam, assim, investidos numa qualquer posição de
sujeição, jamais perdendo os seus direitos fundamentais, de
cidadãos e de profissionais de certo ramo.
Pelo que conservam os direitos fundamentais inerentes a
qualquer cidadão vivendo numa sociedade democrática, a não ser
aqueles que possam implicar a imposição de um interesse público,
no âmbito da restrição da liberdade de profissão.
Só que nesta hipótese valem as especiais garantias que
rodeiam a restrição destes direitos, nos mais variados aspectos que
constroem o severo regime das restrições de direitos, liberdades e
garantias.
11. A organização democrática interna
51 Assim, JORGE MIRANDA, Ordem…, p. 234.
57
I. A organização interna das associações públicas apresenta-
se ainda como sendo outro tema com evidentes provas de enorme
relevância no plano das opções que devam ser tomadas quanto ao
conteúdo de uma lei de enquadramento dessas associações
profissionais.
Esse é um domínio em que, aliás, se sente com particular
vigor a presença de regras constitucionais, impondo a formação
democrática dos órgãos das associações públicas profissionais.
E não custa perceber que nestas aflora uma dimensão
política muito acentuada, até porque as associações públicas – e as
profissionais não constituem qualquer excepção – são parte
integrante da Administração Pública.
II. A organização democrática das associações públicas
profissionais nem sequer é algo de singular no contexto das várias
pessoas colectivas que são constitucionalmente previstas. A
mesma preocupação quanto à estrutura democrática de certas
pessoas colectivas está igualmente presente noutros dois
importantes casos:
- os partidos políticos, que devem ser estruturados com base
no princípio democrático – “Os partidos políticos devem
reger-se pelos princípios da transparência, da organização
58
e da gestão democráticas e da participação de todos os
seus membros”52;
- os sindicatos, que devem ser democraticamente erigidos e
geridos – “As associações sindicais devem reger-se pelos
princípios da organização e gestão democráticas,
baseados na eleição periódica e por escrutínio secreto dos
órgãos dirigentes, sem sujeição a qualquer autorização ou
homologação, e assentes na participação activa dos
trabalhadores em todos os aspectos da actividade
sindical”53.
Em qualquer destes casos, o que se verifica é a emergência de
preocupações que se associam à expressão do princípio
democrático, através do qual se pretende traduzir na classe dos
dirigentes das associações públicas profissionais uma legitimidade
que brote do substracto humano e associativo em que as mesmas
assentam.
III. Evidentemente que o princípio democrático – por razões
históricas, mas também por razões regulativas – assume uma
maior consistência ordenadora no seio do Estado.
Na verdade, é dentro desta organização política que nós
encontramos as mais fundas preocupações de afirmação desse
52 Art. 51º, nº 5, da CRP.
59
princípio, tal como o mesmo plenamente se afirmou no século XX,
depois das limitações vividas durante o liberalismo.
Segundo o modelo que o texto constitucional concebe,
podemos detectar a existência de três grandes dimensões que, cada
uma a seu modo, se assumem como expressão desse princípio
democrático54:
- uma dimensão representativa – o princípio democrático
implica que os governantes sejam escolhidos pelas
pessoas, para mandatos limitados no tempo, na base de
um sufrágio igual, directo, secreto;
- uma dimensão referendária – o princípio democrático
pressupõe que, para certas decisões mais relevantes, as
pessoas sejam elevadas a decisores e decidam sim ou não
quanto a certa questão;
- uma dimensão participativa – o princípio democrático
afirma-se ainda pela possibilidade do pleno exercício dos
direitos fundamentais de natureza política, que permitem
53 Art. 55º, nº 3, da CRP. 54 Relativamente à configuração do princípio democrático, nestas suas
diversas vertentes, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 76 e ss.; VITALINO CANAS, Preliminares do Estudo da Ciência Política, Macau, 1992, pp. 98 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, O princípio democrático no novo Direito Constitucional Moçambicano, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, XXXVI, 1995, nº 2, pp. 459 e ss.; JORGE MIRANDA, Ciência Política – formas de governo, Lisboa, 1996, pp. 141 e ss.
60
a construção da opinião pública, assim informalmente
influenciando as decisões políticas.
Pergunta-se: quando a Constituição impõe que as
associações públicas profissionais – na sua qualidade de parcela
das associações públicas – tenham uma formação democrática para
os seus órgãos, isso quer dizer que estas dimensões devem estar
presentes, tal como elas são reflectidas pelo Estado?
IV. A resposta tem de ser positiva relativamente, pelo
menos, a um núcleo central que seja constitutivo do princípio
democrático, sob pena de este mesmo princípio ser completamente
desvirtuado. O que funciona democraticamente para o Estado
deve também funcionar do mesmo modo noutras instituições –
como é também o caso das associações públicas profissionais.
Obviamente que esta afirmação geral tem de ser
obtemperada pela realidade dessas associações profissionais, que
pode muito bem impor limitações – estruturais e funcionais – à
pura e simples aplicação daquele princípio. Ponto é saber que
desvios ou limitações se consideram juridicamente atendíveis.
Vários são os factores que podem propiciar essas limitações,
que só são constitucionalmente aceitáveis se materialmente
justificadas:
61
- o reduzido número dos associados – casos em que, para evitar
“encarniçamentos burocráticos”, se pode prescindir de
certos cuidados, como uma reduzida desconcentração
geográfica de serviços ou um menor número de vogais
para os órgãos colegiais, com manifesto prejuízo da
proporcionalidade;
- a necessidade da simplicidade burocrática – a qual pode impor
que no processo de votação se admita o voto por
correspondência, com preterição da regra da
presencialidade do voto;
- a escassez de recursos financeiros – esta podendo aconselhar
à existência de mandatos mais prolongados, evitando-se a
multiplicação dos actos eleitorais, ou a possibilidade de
estabelecer um leque menos rígido de acumulações.
V. Como quer que seja, parece que há algumas práticas que
devem ser consideradas como violando o princípio democrático,
sendo inadmissíveis à luz do respeito integral do mesmo.
É o que acontece, em primeiro lugar, quando se admite, na
definição da capacidade eleitoral activa, a possibilidade de certas
pessoas terem um voto qualificado em comparação com os
restantes membros da profissão.
62
É o que acontece, em segundo lugar, quando se aceita que a
votação para órgãos colegiais mais importantes se possa fazer
mediante o sistema maioritário e não o sistema proporcional,
exigência constitucional que é igualmente aplicável a todas as
instâncias públicas.
VI. A formação democrática dos órgãos das associações
públicas profissionais não vale apenas no âmbito da designação
dos titulares desses órgãos, ou da relação que eles devem manter
com os seus associados – igualmente se faz sentir no modo como
esses mesmos órgãos se apresentam estruturados, paredes-meias
com o princípio da divisão dos poderes, que deve estar também
presente.
De acordo com essa orientação, a estruturação interna das
associações públicas profissionais deve obedecer ao esquema do
tripartismo organizatório55, segundo a qual se deve conceber a
existência de três distintos órgãos:
- um órgão executivo – de composição reduzida e que toma
as decisões do quotidiano, representando a própria
associação;
- um órgão deliberativo – de composição alargada, sem
funcionamento contínuo, e que toma as decisões mais
55 Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 315 e 316.
63
importantes, sobretudo as relativas aos aspectos
financeiros e aos aspectos estatutários; e
- um órgão fiscalizador – de composição restrita e que tem a
seu cargo o exercício de uma função de verificação do
cumprimento da legalidade administrativa, financeira e
deontológica.
Para além disso, existe um conjunto de regras que faz todo o
sentido estabelecer numa lei-quadro, o qual fica a ser a grelha que
deve orientar a formação dos estatutos de cada associação pública
profissional que venha a ser criada posteriormente.
Eis algumas dessas possíveis regras, que assim
exemplificativamente se indicam:
- sistemas eleitorais;
- duração dos mandatos;
- composição dos órgãos;
- opções quanto à reelegibilidade para certos cargos;
- sistema de governo;
- requisitos de capacidade eleitoral activa e passiva.
12. A intervenção dos tribunais administrativos
64
I. É ainda necessário observar a relação das associações
públicas profissionais com as entidades que são
constitucionalmente competentes para intervir no julgamento dos
litígios que possam nascer do seu âmbito.
A leitura de alguns dos estatutos das ordens profissionais
existentes invariavelmente aponta para a intervenção da justiça
administrativa, a qual é, desde a revisão de 1989, definida em
termos materiais, uma vez que se apresenta restrita aos litígios
atinentes às relações jurídicas administrativas.
Até esta 2ª revisão constitucional, a delimitação do raio de
acção da jurisdição administrativa foi equacionada a partir das
alusões à actividade administrativa pública, tendo em atenção os
correspondentes actos, e com o simultâneo apelo ao papel
conformativo da própria lei ordinária.
A verdade é que, depois da revisão constitucional de 1989, os
termos da questão foram substancialmente alterados, pois que se
adopta uma atitude acentuadamente substancialista, incidente
mais no tipo de relação jurídica estabelecida e não tanto
perspectivando o acto jurídico do qual emerge o litígio e pouca
margem se conferindo à lei ordinária.
II. De acordo com a sua versão actual, o sistema
constitucional português em matéria de justiça apresenta-nos uma
65
pluralidade de tribunais e de jurisdições: pluralidade,
consequentemente, não só em termos de matérias e de ramos de
Direito que aplicam, mas igualmente sob o prisma do seu modo de
funcionamento e organização56.
Para além disso, ainda se admitem formas não
jurisdicionalizadas de composição de litígios, as quais assentam
nos tribunais arbitrais, modalidades que hoje em dia são cada vez
mais frequentes para obviar à lentidão da justiça.
Afora os casos em que a cada tribunal está confiada uma
parcela da jurisdição, ratione materiae, há ainda uma jurisdição –
que é a jurisdição comum ou dos tribunais comuns – que tem uma
competência residual: sempre que determinada questão não
couber na competência jurisdicional de qualquer outro tribunal.
Neste contexto, a justiça administrativa ocupa um lugar
especial na constelação constitucional da justiça portuguesa,
àquela tal texto dedicando um espaço próprio, em vários aspectos,
incluindo a sua hierarquia.
56 Cfr., de entre outros, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito
Administrativo, IV, Lisboa, 1989, pp. 136 e ss., e Sumários de Introdução ao Direito, 2ª ed., Lisboa, 1999, pp. 54 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL CANOTILHO, Fundamentos…, pp. 222 e ss., e Constituição…, pp. 791 e ss.; ANTÓNIO MARTINEZ VALADAS PRETO, Jurisdição, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, V, Lisboa, 1993, pp. 332 e ss.; JOÃO CAUPERS e JOÃO RAPOSO, Contencioso Administrativo, Lisboa, 1994, p. 18; JORGE BACELAR GOUVEIA, O estado de excepção…, II, pp. 1195 e ss.; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa, 2ª ed., Coimbra, 1999, pp. 9 e ss.; J. J.
66
O critério que é enunciado para entregar uma certa causa aos
tribunais administrativos é de teor material57 e consiste n’ “…o
julgamento das acções e dos recursos que tenham por objecto
dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas”58.
III. O punctum saliens reside, pois, na indagação sobre o que a
Constituição representou acerca desta noção, materialmente
relevante, de relação jurídica administrativa, com o escopo de
diferenciar entre a competência dos tribunais administrativos e a
competência dos restantes tribunais.
Esta dúvida não é sequer um problema apenas de
Constituição Judiciária, na qual o legislador constitucional terá
traçado, mais ou menos formalmente, um conjunto de opções
quanto ao modo de organizar os tribunais.
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, pp. 620 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual…, IV, pp. 256 e ss.
57 Pois como escreve JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (A justiça…, pp. 11 e 12), “A utilização de um critério material de delimitação pressupõe obviamente a existência de um regime de administrativa executiva, em que se define um domínio de actividade, a função administrativa, e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração é dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público – aí se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas de Direito Privado, que formam uma ordem jurídica administrativa”.
58 Art. 212º, nº 3, da CRP.
67
Bem ao invés: essas opções não são neutras e espelham
orientações de fundo do legislador constitucional relativamente
àquilo que projecta para a lógica da organização dos tribunais.
Provando que assim é, está a firme conclusão de que não
pode haver manipulações nessa distribuição de competência –
quer por parte do legislador ordinário, quer por parte dos
julgadores das causas – sob pena de se violar a Constituição, nos
seus diversos aspectos atinentes à reserva de jurisdição, que
funciona não só contra a absorção do poder jurisdicional pelos
outros poderes, legislativo e administrativo, mas também nos
diversos tribunais entre si, havendo um deles que tenha uma
competência especialmente definida, como é o caso dos tribunais
administrativos59.
IV. Apontando a Constituição para uma definição de âmbito
material, somos forçados a apreciar a situação com base na própria
caracterização do Direito Administrativo60.
59 Quanto a esta reserva constitucional da jurisdição administrativa, J. J.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, pp. 813 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, O estado de excepção…, II, p. 1199; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, p. 628; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, p. 339.
60 Com vários contributos a este propósito: J. M. SÉRVULO CORREIA, Noções…, I, pp. 50 e ss.; MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Coimbra, 1991, pp. 42 e ss.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, pp. 128 e ss.; JOÃO CAUPERS, Direito…, pp. 53 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, pp. 55 e ss.
68
As relações jurídicas administrativas são precisamente
aquelas que nascem, se modificam e se extinguem ao abrigo deste
ramo do Direito, em tudo quanto tenha de singular, no universo
dos restantes ramos do ordenamento jurídico, público e privado.
Apreciando o conceito proposto por DIOGO FREITAS DO
AMARAL, o Direito Administrativo é definível como “…o ramo
do Direito Público constituído pelo sistema de normas jurídicas
que regulam a organização e o funcionamento da Administração
Pública, bem como as relações por ela estabelecidas com outros
sujeitos de direito no exercício da actividade administrativa de
gestão pública”61.
Desta noção, podemos sintetizar três importantes elementos:
- que o Direito Administrativo é um ramo do Direito
Público;
- que tem no seu seio normas organizatórias, normas de
funcionamento e normas de relacionação;
- que este ramo do Direito não é todo o Direito aplicável à
Administração Pública, tão-só aquele que rege a
respectiva actividade de gestão pública.
Dado que o primeiro elemento não motiva dúvidas de maior,
são os segundo e terceiro elementos que merecem ser
61 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, p. 130.
69
especialmente analisados, comprovando a confluência de duas
vertentes, uma de teor subjectivo e outra de teor objectivo.
Do ponto de vista subjectivo, o Direito Administrativo é não
apenas o Direito aplicável à Administração Pública como
inclusivamente pode juntar, através das normas relacionais,
pessoas jurídicas que não são de Direito Público. Isso claro que não
quer dizer que não haja normas sempre e inequivocamente
administrativas, como são aquelas de índole formal e
organizatória, que só têm razão de ser dentro e para a própria
Administração Pública.
Do ponto de vista material, o Direito Administrativo, de
acordo com a noção de gestão pública, implicita que o mesmo se
desenvolva no reconhecimento de uma auto-tutela declarativa e
executiva da Administração Pública, contra o que sucede com as
normas de Direito Privado, em que tal fenómeno não existe. Assim
se excluem da noção de Direito Administrativo as normas que,
embora aplicáveis à Administração Pública, não reflectem o
exercício de uma actividade de gestão pública, mas antes de gestão
privada.
Resumindo: como referem J. J. GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, “…as relações jurídicas controvertidas são
reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito
administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que
70
não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou
«jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de
relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia
sobre relações disciplinadas por normas de direitos administrativo
e/ou fiscal”62.
V. São duas as grandes consequências que se impõem na
consideração do problema das instâncias jurisdicionais que devem
possuir o poder de intervenção nos litígios emergentes em que são
partes as associações públicas profissionais:
- a necessidade de a intervenção dos tribunais
administrativos, para os litígios emergentes da actividade
dessas associações profissionais, se limitar às verdadeiras
relações administrativas, e não simplesmente a tudo o que
respeita à sua actividade;
- a necessidade, perante a recente reserva constitucional de
jurisdição administrativa, de a lei ordinária – o mesmo é
dizer dos próprios estatutos das diversas ordens
profissionais, pretéritos e futuros – ter de obedecer ao
critério substancialmente recortado do domínio da
intervenção da jurisdição administrativa por comparação
com a dos tribunais comuns.
62 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, p.
71
Em relação à primeira questão, já não é mais possível ver
indistintamente ou indiferenciadamente – como que em “bloco” –
a actividade que é desenvolvida pelas associações públicas
profissionais. Apontando a Constituição para um conceito material
de relação jurídica administrativa, só a actividade das associações
públicas profissionais que se relacione com esta natureza de
relação jurídica fica sendo susceptível de uma intervenção dos
tribunais administrativos.
Somos forçados a excluir as relações jurídicas que sejam
reguladas por outros ramos do Direito, maxime o Direito Privado,
cada vez mais frequente na tendência geral de privatização do
Direito que estamos vivendo. Se os litígios forem concernentes a
estas relações jurídicas, os tribunais competentes não são os
tribunais administrativos.
Para este mesmo facto nos alerta, quanto às associações
públicas e ordens profissionais, MARCELO REBELO DE SOUSA,
quando divisa na respectiva capacidade jurídica, uma capacidade
jurídico-pública e uma capacidade jurídico-privada: “…pode
afirmar-se que, genericamente, na capacidade jurídico-pública,
merecem relevo os poderes regulamentar e de prática de actos
administrativos, o dever de colaboração com o Estado-
Administração, a subordinação ao regime de Direito
815.
72
Administrativo quanto à responsabilidade civil de órgãos e
agentes por actos de gestão pública e a sujeição ao controlo do
Provedor de Justiça e dos tribunais administrativos, a primeira
para toda a sua actividade, a segunda para os actos de gestão
pública”63.
Existe também um conjunto de actos correspondentes à
capacidade jurídico-privada, como também frisa MARCELO
REBELO DE SOUSA: “…ela prevalece, em tudo quanto não resulte
em sentido contrário, expressamente, da legislação específica
vigente, no tocante à organização e actuação. Nomeadamente,
pode o regime jurídico disciplinador do pessoal ou da gestão
financeira ser de Direito Privado, se o contrário não decorrer do
estatuto legislativo orgânico da associação considerada”64.
VI. Quanto à outra dúvida, importa que as leis que
organizam as associações públicas profissionais, do passado e do
futuro, levem em linha de conta a novel orientação constitucional
na delimitação dos casos que competem aos tribunais
administrativos e dos casos que competem aos tribunais comuns.
A primeira hipótese a colocar, talvez sendo a mais segura de
todas, reside na mera reprodução do texto constitucional, sem se
63 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 317. Num sentido um
pouco divergente, JORGE MIRANDA somente refere a intervenção dos tribunais administrativos (Ordem…, p. 234).
73
adiantar o que quer que seja do ponto de vista da regulação que a
lei ordinária leva a cabo, ainda que se possa aqui fazer a acusação
da inutilidade da intervenção legal de carácter enquadrador.
A segunda hipótese conjecturável consiste na intervenção
conceptual da lei ordinária, de alguma forma indicando as
possíveis jurisdições com base nos conceitos constitucionalmente
utilizados: nas relações jurídicas administrativas, os tribunais
administrativos, e nas outras relações jurídicas, os outros tribunais.
A terceira hipótese seria a de uma intervenção da lei
ordinária mais acertiva no sentido de especificar os casos da
actividade das associações públicas profissionais – aplicando o
critério constitucional – que competiriam aos tribunais
administrativos e aqueles que competiriam aos tribunais comuns.
Como quer se seja, não parece que a lei ordinária – geral ou
específica na criação de cada associação pública profissional –
possa alguma vez ter liberdade de manipulação do critério
constitucional, sob pena de inconstitucionalidade material, por
violação da reserva constitucional da jurisdição administrativa.
É que a apreciação a respeito de quem são os tribunais
competentes para julgar actos e relações em que intervenham as
associações públicas profissionais deixou de ser uma livre opção
do legislador – na lei geral de enquadramento ou em cada lei de
64 MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições…, I, p. 318.
74
criação das ordens profissionais – para ser uma estrita obrigação
de obediência à lei constitucional, esta impondo a jurisdição
administrativa para os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas.
13. O tratamento fiscal em sede de imposto sobre o
rendimento das pessoas colectivas
I. Finalmente, cumpre chamar a atenção para o regime fiscal
da actividade que é desenvolvida pelas associações públicas
profissionais, particularmente do ponto de vista da sua eventual
sujeição ao imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas65.
Estamos perante um tributo que visa taxar os rendimentos
obtidos pelas actividades desenvolvidas pelas pessoas colectivas
ou, não se tratando de uma diferente subjectividade, por entidades
ou agrupamentos equiparados66.
65 Quanto ao imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, v., de
entre outros, SOARES MARTÍNEZ, Direito Fiscal, 7ª ed., Coimbra, 1993, pp. 573 e ss.; BELMIRO MOITA DA COSTA, O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, Coimbra, 1997, passim; J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1998, pp. 227 e ss.; NUNO SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, 10ª ed., Lisboa, 1999, pp. 215 e ss.; JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Coimbra, 2000, pp. 358 e ss.
66 Cfr. os arts. 1º e 2º do CIRC.
75
A incidência do imposto sobre o rendimento das pessoas
colectivas respeita ao lucro obtido, no caso de actividades com fim
lucrativo, ou ao rendimento global, nos restantes casos67.
A actividade executada pelas associações públicas
profissionais, que são pessoas colectivas regidas pelo Direito
Público, deve ainda suscitar a preocupação de saber em que
termos podem ser tributadas ao nível deste tipo de tributo.
O tratamento fiscal das associações públicas profissionais
não se resume, porém, a esta matéria, uma vez que o sistema fiscal,
no que tenha de relação com as pessoas colectivas, não é apenas
constituído pelo imposto sobre o rendimento das pessoas
colectivas. Mas, havendo a impossibilidade de se fazer todo esse
exaustivo estudo, sem dúvida que ele se assume como o mais
expressivo.
II. Se olharmos para a lei fiscal geral, que se consubstancia
neste ponto no Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas68 (CIRC), verificamos que as associações
públicas profissionais, tal como tivemos ocasião de as
conceptualizar, são objecto de incidência subjectiva positiva.
67 Cfr. o art. 3º do CIRC. 68 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-B/88, de 30 de Novembro, com
alterações posteriores.
76
Tendo uma estrutura de pessoa colectiva de Direito Público,
são abrangidas pela norma geral de incidência subjectiva, que
recorta no respectivo universo todas as pessoas colectivas: “São
sujeitos passivos do IRC (…) As sociedades comerciais ou civis sob
forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais
pessoas colectivas de Direito Público ou Privado, com sede ou
direcção efectiva em território português”69.
Essa não é ainda, contudo, uma resposta completamente
satisfatória porque, a seguir às normas de incidência subjectiva, o
CIRC faz funcionar normas que, posteriormente, impedem a acção
da norma de tributação, através da aplicação de uma isenção
subjectiva.
De um modo geral, essa isenção subjectiva é aplicável às
entidades colectivas de Direito Público, conforme se estabelece no
CIRC: “Estão isentos de IRC, excepto no que respeita a
rendimentos de capitais tal como são definidos para efeitos de IRS,
e ressalvado o previsto no nº 3 deste artigo (…) O Estado, as
Regiões Autónomas e as autarquias locais e qualquer dos seus
serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que
personalizados, compreendidos os institutos públicos e, bem
assim, as associações e federações de municípios e as associações
69 Art. 2º, nº 1, al. a), do CIRC.
77
de freguesia que não exerçam actividades comerciais, industriais
ou agrícolas”70.
Outros preceitos também existem que operam delimitações
de isenção subjectiva, mas que não têm a mesma proximidade
deste relativamente à possível inclusão das associações públicas
profissionais. É de referir, por exemplo, o que se mostra atinente às
pessoas colectivas de utilidade pública e de solidariedade social:
“Estão isentas de IRC (…) As pessoas colectivas de utilidade
pública administrativa, bem como as de mera utilidade pública
que prossigam predominantemente fins científicos ou culturais, de
caridade, assistência, beneficência ou solidariedade social”71.
Em nenhum destes preceitos, no entanto, é possível inserir as
associações públicas profissionais e assim, à luz da lei fiscal geral,
temos de concluir pela respectiva tributação em sede de IRC,
respondendo separadamente com os dois preceitos72:
- não se integram no primeiro preceito porque as
associações públicas profissionais, enquanto pertença da
Administração Autónoma, não se adequam a qualquer
uma das categorias visadas e nem sequer são entidades
que tenham uma relação de dependência – como é o caso
70 Art. 8º, nº 1, al. a), do CIRC. 71 Art. 9º, nº 1, al. a), do CIRC. 72 Quanto ao recorte interpretativo destes preceitos, v. SOARES
MARTÍNEZ, Direito…, pp. 580 e 581; NUNO SÁ GOMES, Manual…, I, pp. 218 e 219; JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito…, pp. 363 e 364.
78
dos institutos públicos, que integram a Administração
Indirecta – relativamente ao Estado, às Regiões
Autónomas ou às autarquias locais;
- não se subsumem no outro preceito porque as associações
públicas profissionais oferecem um substracto associativo,
não um substracto fundacional, como sucede com as
fundações, para além de serem entidades integradas na
Administração Pública, não somente partilhando certos
poderes de natureza pública.
III. As isenções fiscais que lhes sejam reconhecidas, em
matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas,
gorada a via da lei fiscal geral que se corporiza no CIRC, apenas
podem ter então lugar através de actos legislativos avulsos, maxime
dos que são constitutivos de cada associação pública profissional.
Essa possibilidade tem, no entanto, o importante
constrangimento de carecer da intervenção da Assembleia da
República, por dois caminhos possíveis:
- através da legiferação parlamentar directa; ou
- através da legiferação governamental previamente
autorizada pela Assembleia da República.
79
Assim sucede porque em matéria fiscal vigora o princípio da
legalidade73, que concretamente se traduz no facto de estar
pertencente ao complexo de matérias que integram a reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República –
“É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar
sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo (…)
Criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e
demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”74.
É verdade que as isenções fiscais – uma das espécies de
benefícios fiscais – não são aí directamente referidas. Mas por
relação com a enunciação do princípio da legalidade75, tratando-se
sempre de matéria fiscal, é de concluir que a respectiva concessão
só pode ser feita com a intervenção – directa ou autorizativa – da
73 A respeito das diversas incidências do princípio da legalidade fiscal,
incluindo este ponto da reserva parlamentar de legiferação, v. JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, pp. 162 e ss.; ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, pp. 109 e ss.; CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL, Curso de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1981, pp. 74 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, pp. 457 e ss.; SOARES MARTÍNEZ, Direito…, pp. 106 e 107; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Constituição…, pp. 213 e 214; NUNO SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, II, Lisboa, 1999, pp. 33 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Considerações sobre as Constituições fiscais na União Europeia, in IDEM, Estudos de Direito Público, I, Lisboa, 2000, pp. 232 e ss.; JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito…, pp. 139 e ss.
74 Art. 165º, nº 1, al. i), da CRP. 75 Benefícios fiscais que ficam integrados na reserva de lei, tal como
dispõe o art. 103º, nº 2, da CRP: “Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
80
Assembleia da República, pela emanação de um acto formalmente
legislativo.
IV. Um outro nível desta questão situa-se na conveniência
jurídico-política da isenção fiscal das associações públicas
profissionais no que toca à respectiva sujeição ao imposto sobre o
rendimento das pessoas colectivas.
Torna-se assim necessário perscrutar a essência da isenção
que é subjectivamente atribuída a quase todas as entidades
públicas, tal como as mesmas se encontram actualmente
desenhadas no próprio CIRC.
Estamos em crer que são essencialmente duas as razões que
determinaram no legislador fiscal a vontade de efectuar a
atribuição dessas isenções fiscais:
- uma razão de simplicidade fiscal: sendo o produto das
receitas fiscais cobradas a estas entidades destinadas ao
poder público, não se justificaria que houvesse, em
grande medida, a saída e a entrada de dinheiro na mesma
instituição;
- uma razão de justiça fiscal: sendo o produto das receitas
originário de uma actividade pública, ao serviço de todos
e sem cunho lucrativo, seria injusto tributar algo que a
todos beneficia.
81
Relacionando estas duas razões com o caso das associações
públicas profissionais, pelo menos a segunda delas é considerada
aplicável: é que a actividade das associações públicas profissionais
não tem qualquer natureza lucrativa e muito menos empresarial,
pelo que não seria legítimo sujeitá-las a este tributo; trata-se de
uma actividade prestadora, exercida no desenvolvimento de
poderes de Direito Administrativo legalmente estabelecidos.
V. Quer isto dizer que é possível formular uma opinião
acerca do tratamento fiscal das associações públicas profissionais
do ponto de vista da sujeição ao imposto sobre o rendimento das
pessoas colectivas, tendo ao mesmo tempo presente as exigências
constitucionais organizatórias e os princípios de justiça e de
eficiência fiscal.
As associações públicas profissionais, dada a natureza da
actividade que exercem, merecem beneficiar de uma isenção
subjectiva em sede de IRC, dado que comungam das mesmas
razões que presidem à isenção subjectiva que já se aplica a muitas
entidades de Direito Público.
A verdade é que essa intervenção legislativa que as torna
isentas é neste momento necessária porque isso não acontece
através da aplicação da lei geral, nem isso sendo possível apenas
através dos actos legislativos governamentais institutivos das
82
mesmas se não forem parlamentarmente autorizados para o efeito
e segundo o regime geral das leis de autorização legislativa.
Essa isenção subjectiva para as associações públicas
profissionais, assim sendo, pode ser levada a efeito através de uma
lei geral sobre o regime das associações profissionais, que
directamente fixe, em permanência, a aplicação dessa isenção fiscal
subjectiva em sede de IRC.
Não é possível que essa isenção subjectiva seja conferida
para cada acto posterior de criação das associações públicas
profissionais porque isso representaria um prolongamento no
tempo dessa faculdade, sempre de todo em todo incompatível com
o princípio da temporalidade das autorizações legislativas, que na
pior das hipóteses não podem ultrapassar a legislatura.
83
§ 5º CONCLUSÕES
14. Enunciado
Do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões:
Quanto ao § 1º:
a) A organização administrativa portuguesa esteia-se na
summa divisio que distingue entre a Administração
Directa do Estado, a Administração Indirecta do Estado e
a Administração Autónoma;
b) Cada uma delas projecta fenómenos administrativos
diferenciados, de centralização na primeira, de
descentralização funcional na segunda e de
descentralização associativa e territorial na terceira;
c) Isto está, aliás, de harmonia com os poderes de
intervenção do Estado em cada um desses sectores, mais
84
exigente pelo poder de direcção na Administração
Directa, com uma intensidade intermédia pelo poder de
superintendência na Administração Indirecta e de
reduzido vigor pelo poder tutelar na Administração
Autónoma;
d) A Administração Autónoma, por seu lado, também
acolhe no seu seio duas realidades distintas: as
associações públicas, de um lado, e as Regiões
Autónomas e as autarquias locais, do outro lado, estas na
qualidade de pessoas colectivas de população e território;
e) As associações públicas, numa das múltiplas
classificações de que são susceptíveis, admitem a
existência de entidades privadas, as quais correspondem
às associações públicas profissionais, também designadas
por ordens profissionais;
f) Estas têm como elementos específicos o material – ligado
que está a uma actividade profissional com certos
contornos – e o funcional – que se exprime nos poderes
de regulação e disciplina dessa profissão; elementos que
se juntam aos elementos sempre presentes em qualquer
associação pública, que são o formal (pessoa colectiva de
Direito Público), o estrutural (substrato associativo) e o
teleológico (fins próprios);
85
g) Um olhar sobre a Administração Pública Portuguesa
permite encontrar numerosos exemplos de associações
públicas profissionais, seguindo um tipo anglo-saxónico
de intervenção pública, com uma certa uniformidade de
cláusulas estatutárias, ainda que se possa separar uma
primeira fase – para profissões liberais mais antigas – e
uma fase recente – de reconhecimento de novas
profissões, com a criação das respectivas associações;
Quanto ao § 2º:
a) A relevância constitucional das associações públicas
profissionais afere-se pela correspondente categoria geral
e também por preceitos que especificamente se lhe
dirigem;
b) Numa perspectiva organizatória, essa relevância mede-se
pela localização da respectiva legislação na reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, bem como pelo poder tutelar governamental e,
bem assim, pela ligação das associações públicas ao
princípio da descentralização administrativa;
c) Numa perspectiva material, com maior quantidade de
regras, essa relevância vislumbra-se no facto de as
86
associações públicas não só serem pertinentes para os
princípios da participação e da democracia na
Administração Pública como também pelo facto de
contarem com regras privativas quanto à limitação da
respectiva constituição, quanto à impossibilidade de se
sobreporem às funções sindicais, quanto à necessidade de
serem conformes ao respeito pelos direitos dos seus
membros e quanto ao cabal cumprimento do princípio
democrático na formação dos seus órgãos;
d) As associações públicas profissionais adquirem
importância constitucional indirecta porque são admitidas
no contexto da limitação da liberdade profissional, em
nome da intervenção do poder público em ordem à defesa
do interesse colectivo;
Quanto ao § 3º:
a) A primeira questão a equacionar, no plano geral do
enquadramento legal das associações públicas
profissionais que se pretende estabelecer, respeita aos
termos, formais e materiais, por que se deve conceber tal
legislação;
87
b) É que, da perspectiva formal, o princípio geral do Direito
Constitucional não admite diferentes eficácias
revogatórias ou derrogatórias para uma mesma
localização hierárquica;
c) Não obstante essa afirmação geral, em certos casos, o
Direito Constitucional Português admite a existência de
leis com valor reforçado, que – mesmo estando num
idêntico nível hierárquico – podem prevalecer sobre
outros actos legislativos;
d) Quanto a saber se a lei de enquadramento das associações
públicas profissionais pode candidatar-se a esse estatuto
de lei com valor reforçado, nenhuma específica indicação
constitucional se afirma a esse propósito;
e) O que não é, no entanto, uma dificuldade inultrapassável
para se obter uma resposta positiva porque essa função
parametrizante que se lhe deve atribuir deriva da
preocupação constitucional com a própria intervenção
legislativa parlamentar na erecção de um regime que
possa ser geral quanto às associações públicas;
f) Daí que pareça mais indicado denominar-se essa lei por
“lei-quadro” e não tanto por “lei de bases”, na medida
em que se trata de fazer um enquadramento geral e não
88
apenas definir as bases do regime geral das associações
públicas profissionais;
g) Por outro lado, também no plano material, não cremos
que possam existir dúvidas quanto à possibilidade do
estabelecimento daquele regime de enquadramento, dada
a enorme vantagem e ainda a possibilidade de se fixarem
normas de carácter abrangente a qualquer associação
pública profissional;
h) Outra questão de carácter geral respeita ao tipo de Direito
que se deve considerar subsidiariamente aplicável às
associações públicas profissionais;
i) O Direito subsidiário que está em questão é de cariz
intermédio porque corresponde a uma relação entre
normas administrativas gerais e normas administrativas
especiais, que não existem no âmbito específico do
regime das associações públicas profissionais;
j) Entre aplicar as normas de Direito Privado, por causa da
natureza associativa, e as normas de Direito
Administrativo, por causa da criação pública, deve-se
optar por umas ou por outras em função do tipo de
problema que, em concreto, deva ser resolvido, embora o
carácter privado das entidades que se associam acentue
mais o pendor privatístico desse Direito subsidiário;
89
k) Terceira e última questão a esclarecer em sede geral
refere-se à natureza jurídica do acto de criação das
associações públicas profissionais;
l) A prática legislativa tem sido uniforme no sentido de a
criação das ordens profissionais ser feita através de acto
legislativo governamental, embora em comunicação com
os profissionais directamente interessados;
m) A verdade, porém, é que essa prática não apaga dúvidas
quer quanto à natureza unilateral do acto – porque surge
da vontade governamental – quer quanto à sua feição
alheia à respectiva base associativa – porque desligada
das pessoas que são o substracto da associação;
n) A primeira das duas questões a colocar – a consideração
da estrutura unilateral do acto de criação – não pode,
contudo, levar à simples invalidação da mesma, uma vez
que há constitucionalmente espaço para esse tipo de
criação em atenção aos poderes de autoridade pública
que vão revestir a nova pessoa colectiva;
o) A outra dessas duas questões – se natureza legislativa ou
se natureza administrativa no acto de criação – resolve-se
preferindo a primeira porquanto se intervém num
domínio duplamente reservado ao Parlamento – como
associação pública e como direitos, liberdades e garantias;
90
p) Deve ser a Assembleia da República o órgão
legislativamente competente, salvo autorização ao
Governo, e não se deve admitir a intervenção das
assembleias legislativas regionais por se tratar de matéria
reservada aos órgãos da República;
Quanto ao § 4º:
a) Nos aspectos a apreciar no regime do enquadramento das
associações públicas profissionais, o primeiro deles
respeita ao conjunto das respectivas atribuições,
limitando-se o texto constitucional a mencionar matérias
obrigatórias e a matérias proibidas;
b) Naquele primeiro plano, o princípio da necessidade – que
também nas atribuições vai funcionar, e não apenas no
acto de constituição – implica que a criação e os poderes
das associações públicas profissionais devem ser
especialmente equacionados em face de exigências muito
fortes de intervenção do poder público;
c) Neste outro plano, as funções de natureza sindical – como
a contratação colectiva, a participação na elaboração da
legislação laboral ou o exercício do direito à greve – são
91
terminantemente excluídas do campo das finalidades que
as associações públicas profissionais vão prosseguir;
d) O principal problema é sempre, todavia, o da definição do
âmbito profissional em que se torna necessário criar uma
associação profissional, ainda que se possam estabelecer
requisitos de cujo preenchimento depende a sua criação
em concreto, como sejam a elevada autonomia científica e
técnica da profissão a ponderar, o número de pessoas que
a praticam e uma interacção ampla com terceiros, índices
esses que, conjugados entre si, devem criar um suficiente
nível de responsabilidade para fazer intervir o poder
público através da criação de uma associação com estas
feições;
e) Dois são os conteúdos sempre necessários numa
associação pública profissional: um conteúdo regulador
do acesso e do exercício da profissão, com o objectivo de a
manter em padrões de proficiência; e um conteúdo
disciplinar, de forma a garantir o cumprimento da
legalidade deontológica da profissão;
f) Conteúdos possíveis das associações públicas
profissionais são ainda a representação da classe
profissional, o apoio aos seus membros e várias
incumbências de natureza administrativa e burocrática;
92
g) Aspecto que, no âmbito da especialidade, também deve
merecer a nossa atenção refere-se à defesa dos direitos dos
associados, tanto numa lógica de relação com a própria
associação como numa lógica geral de relação com as
outras pessoas;
h) Quanto à primeira vertente, o facto de a associação
pública profissional se constituir não atropela o exercício
de certos direitos que os membros têm contra ela própria,
sobretudo de participação e de contestação nas instâncias
judiciárias das decisões que venham a ser tomadas;
i) Quanto à outra vertente, rejeita-se a inserção dos
associados numa qualquer relação especial de poder,
gozando de todos os direitos fundamentais genericamente
reconhecidos, naturalmente à excepção das limitações
impostas ao exercício da liberdade de profissão por via da
criação da associação pública profissional;
j) Tema que igualmente deve merecer atenção é o da
organização interna das associações públicas
profissionais, que deve respeitar o princípio democrático;
k) O que não é, de resto, caso único, uma vez que, do ponto
de vista constitucional, para outras pessoas colectivas – os
partidos políticos e os sindicatos – também se apela à
93
preservação do mesmo princípio na respectiva
estruturação interna;
l) Ao nível do Estado, onde ganha a maior densidade
regulativa possível, o princípio democrático abrange as
dimensões representativa (pela eleição dos governantes),
referendária (pela realização de referendos sobre as
grandes questões nacionais) e participativa (pela
possibilidade de intervenção na opinião pública através
do exercício dos direitos políticos de participação);
m) Quando a Constituição impõe o respeito por este
princípio na organização interna das associações públicas
profissionais, isso quer dizer que, no mínimo, é necessário
levar em consideração o seu núcleo central, quanto a uma
legitimidade democrática dos órgãos e das actuações, a
despeito de poderem ser estabelecidos pequenos desvios
por motivos funcionais ou estruturais;
n) Seja como for, há situações que nunca são aceitáveis,
como o que sucede com o voto qualificado ou com a
imposição de um sistema maioritário em órgãos de
assembleia;
o) Este princípio democrático, enquanto conexo com o
princípio da separação de poderes, implica ainda a
existência de um tripartismo organizativo, pela
94
consagração de um órgão executivo, de um órgão
deliberativo e de um órgão fiscalizador;
p) Outro assunto com extrema importância no regime do
enquadramento das associações públicas profissionais
relaciona-se com o tipo de tribunais que devem ser
chamados a intervir perante a emergência de um litígio
em que elas participem;
q) Segundo o sistema constitucional, a jurisdição
administrativa está materialmente restrita às relações
jurídicas administrativas, sendo a jurisdição comum
residual para os restantes casos de aplicação da função
jurisdicional;
r) O ponto é, então, saber o que entendeu a Constituição
acerca do conceito de relações jurídicas administrativas,
com isso também estabelecendo uma reserva de jurisdição
administrativa;
s) Ora, elas são definíveis de acordo com a ideia de que
pressupõem a aplicação do Direito Administrativo e a
existência de actos de gestão pública, nos quais haja uma
intervenção administrativa revestida de uma auto-tutela
declarativa e executiva;
t) Quer isto dizer que, em primeiro lugar, os tribunais
administrativos só podem intervir na composição dos
95
litígios que resultem de relações jurídicas administrativas,
não de quaisquer outros em que as associações públicas
profissionais se vejam envolvidas;
u) Por outro lado, a lei ordinária – no caso, a lei de
enquadramento dessas associações – não tem margem de
manipulação dessa intervenção, resguardada como está
pela Constituição, havendo diversos papéis que pode
ainda assim desempenhar, desde a remissão para o texto
constitucional até à especificação dos casos em que há
intervenção dos diferentes tribunais, passando pelo
aspecto intermédio de distinção conceptual entre a
intervenção dos tribunais administrativos e a dos
restantes tribunais;
v) Por último, importa perspectivar o tratamento fiscal das
associações públicas profissionais em sede de imposto
sobre o rendimento das pessoas colectivas, não sendo
essa, contudo, a única questão fiscal pertinente;
w) Observando a lei fiscal geral, verificamos que as
associações públicas profissionais estão sujeitas a
tributação, não usufruindo das normas de isenção
subjectiva que beneficiam outras entidades públicas;
x) Mas pode acontecer por vezes e avulsamente a concessão
de uma isenção fiscal nos próprios estatutos que
96
procedem à respectiva criação, embora o Parlamento deva
sempre intervir a título directo ou a título de autorização;
y) Diferente é saber se essa isenção subjectiva tem razão de
ser, resposta que deve ser afirmativa, no que às
associações públicas profissionais toca, por causa dos
poderes públicos que exercem;
z) A inserção de uma isenção subjectiva em sede de imposto
sobre o rendimento das pessoas colectivas na lei de
enquadramento das associações públicas profissionais,
para alcançar esse objectivo, afigura-se necessária dado o
facto de a mesma carecer de uma intervenção
parlamentar, o que seria extremamente inconveniente
sempre que cada uma dessas associações viesse a ser
criada.
Lisboa, 16 de Outubro de 2000.