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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A PRENDA NO IMAGINÁRIO TRADICIONALISTA
CLAUDIA PEREIRA DUTRA Porto Alegre, RS, Brasil
2002
ii
AGRADECIMENTO
Aos professores (as) do curso de Pós-graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Em especial ao professor Moacyr Flores, pela orientação tranqüila que
possibilitou a confiança necessária para realização deste trabalho.
À Rita e à Andréa, amigas que muito me estimularam a concretizar este
projeto de pesquisa.
À Vera e à Misiara, que fazem parte da minha memória, dos primeiros grupos
de estudo de história e gênero.
Ao Éverton, responsável pela digitação e diagramação deste trabalho, sempre
responsável e dedicado.
Aos meus pais, ao meu irmão e as minhas irmãs, companheiros de sempre.
iii
Para Antônio, Francisco e Pimenta
com meu amor.
iv
ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1: Capa do livro "O Laçador - História de um Símbolo" ..................... 28
FIGURA 2: Estancieira Gaúcha.................................. ..................................... 76
FIGURA 3: China das Vacarias.................................. ..................................... 76
FIGURA 4: Mulher Gaúcha ....................................... ..................................... 76
FIGURA 5: Prenda Tradicionalista ............................. ..................................... 76
FIGURA 6: Prenda no II Fórum Tradicionalista Gaúcho - Santa Maria ............ 94
FIGURA 7: Capa do livro "Terra Gaúcha" ................ ..................................... 96
FIGURA 8: Prendas no II Fórum Tradicionalista Gaúcho - Santa Maria ......... 99
FIGURA 9: Prendas no II Fórum Tradicionalista Gaúcho - Santa Maria ...... 101
FIGURA 10: Prendas no II Fórum Tradicionalista Gaúcho - Santa Maria ..... 110
FIGURA 11: Mulher Varrendo ................................... ................................... 114
FIGURA 12: Caderno "Santa Maria 144 anos"........... ................................... 120
FIGURA 13: Grupo de prendas "Piá do Sul", Santa Maria ............................ 125
v
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO..................................................................................................... ii
RESUMO.................................................................................................................... vi
ABSTRACT ...............................................................................................................viii
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
CAPÍTULO 1. A CRIAÇÃO DO MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO.........10
1.1. O Início do Movimento Tradicionalista ............................................................19
1.2. O Gaúcho Tradicionalista ...............................................................................38
1.3. Da Ausência das Mulheres à Invenção das Prendas......................................46
CAPÍTULO 2 A PRENDA TRADICIONALISTA .........................................................51
2.1. A Invernada das Danças.................................................................................56
2.2. A Indumentária da Prenda ..............................................................................64
2.3. A Mulher que Espera ......................................................................................72
CAPÍTULO 3. PRIMEIRA PRENDA: PRENDA DE PRIMEIRA ................................80
3.1. Ingresso no CTG.............................................................................................84
3.2. Preparação da Prenda....................................................................................90
3.3. Ser Prenda......................................................................................................99
CONCLUSÃO..........................................................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................121
vi
RESUMO
Autora: Claudia Pereira Dutra
Orientador: Prof°. Dr. Moacyr Flores
Esta dissertação constrói uma história da prenda no interior do Movimento
Tradicionalista, organizado a partir dos anos de 1947/1948, em Porto Alegre, e
projetado para todo o estado do Rio Grande do Sul e para fora dele, através dos
Centros de Tradições Gaúchas - CTG's.
O objetivo foi examinar historicamente a construção de uma memória gaúcha
entrelaçada com a construção do gênero feminino, cuja prenda passa a produzir
"efeitos de verdade" como representação da figura de mulher que o Tradicionalismo
escolheu para cultuar.
A composição desta narrativa foi elaborada através dos escritos dos
fundadores do Movimento Tradicionalista na década de 40, dos diários dos viajantes
estrangeiros que passaram no Rio Grande do Sul no início do séc. XIX, dos textos
do patrono do Tradicionalismo no mesmo século, dos documentos oficiais do
Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), bem como carta de princípios, legislação
tradicionalista, tese, versos e canções gaúchas; também através das fotos que
ilustram álbuns, livros, jornais e das fontes orais, construídos durante doze
entrevistas com mulheres participantes do Movimento.
O Centro de Tradições Gaúchas é o lugar organizado para preservar o que foi
selecionado como "tradições gaúchas", é o lugar onde os modos de agir e pensar
vii
são normatizados pelo conjunto de regras e valores que estabelecem o que é
"correto" como conduta social, e como comportamento feminino.
No Movimento Tradicionalista as novas gerações são convencidas a cultuar
um passado idealizado onde o gaúcho viveu um tempo de felicidade na campanha,
e as meninas e jovens são seduzidas a representarem o papel de prenda: a "mulher
gaúcha", um espelho de dignidade.
viii
ABSTRACT
Author: Claudia Pereira Dutra
Advisor: Prof°. Dr. Moacyr Flores
This paper presents the "prenda" story inside the Traditionalistic Movement,
organized since 1947/1948, in Porto Alegre, and projected throughout the state of
Rio Grande do Sul, through the Centros de Tradições Gauchas - CTG's.
The objective was to examine the formation of a memory (gaúcha) historically
interlaced with the feminine gender, whose main figure, "prenda" starts producing
"real effects" representing the women's figure that Traditionalism chose to worship.
The paper was developed through the writings of the founders of the
Traditionalistic Movement in the 40's,by the foreign travelers' diaries who had been in
Rio Grande do Sul at the beginning of the 19th century, by the patron's texts in the
same century, by official documents of the Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG),
as well as letter of conduct, traditionalistic legislation, theory, verses and songs
(gauchos); and also through the pictures that illustrate albums, books, newspapers,
and interviews, which have been made with twelve women who had participated of
the movement. Centro de Tradições Gaúchas is an organized place to preserve what
has been selected as " traditions (gáuchas)", it is the place where manners and
thinking are established by rules and values, that establish what is " correct " as
social conduct, and as feminine behavior.
ix
In the traditionalistic movement the new generations are persuaded to worship
the past where the "gaucho" lived in the country, girls and youths are drawn to
represent the "prenda"figure: the women (gaúcha), a selfrespected image.
1
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo examinar memória e gênero, como
fenômenos históricos, construídos e reconstruídos em épocas e contextos
diferentes. Não se trata de um registro da existência de relações diferenciadas entre
os sexos, mas de uma abordagem histórica a respeito da produção de
memória/gênero, e das práticas que se unem para produzir um sentido em torno da
prenda1, como um símbolo das mulheres no Rio Grande do Sul.
Neste trabalho, observo os processos que transformam a prenda em figura
histórica, passando a integrar o patrimônio cultural da região e fazer parte da
memória coletiva, através do conjunto de práticas do Movimento Tradicionalista.
Na construção discursiva tecida em torno do Tradicionalismo gaúcho, as
representações sobre a prenda vão assumindo a tarefa de imprimir uma versão,
própria de dar significado2 ao passado, visto que a memória e o gênero estão
presentes nos depoimentos daqueles que criam e recriam o Tradicionalismo.
Para percorrer os caminhos necessários à análise do problema, o conceito de
memória cruza com o conceito de gênero: a criação do termo prenda pretende
indicar que este processo de construção de um símbolo se estabelece na
intersecção com a produção social do gênero feminino.
Segundo Joan Scott (1994), o gênero é o saber que estabelece significados
para as diferenças sexuais, construídos pelas culturas e sociedades sobre as
1 Prenda: o termo é usado pelo Tradicionalismo no Rio Grande do Sul para denominar "mulher gaúcha" (sentido figurativo). 2 Chartier, em "O Mundo como Representação", considera que as representações coletivas são construtoras do mundo social, que não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, pelas quais os indivíduos dão sentido ao mundo que é deles.
2
relações entre homens e mulheres. Um saber cujos significados: não são absolutos;
nascem de uma disputa política; são construções das relações de poder, dominação
e subordinação; referem-se às idéias, às estruturas, às práticas e aos rituais; são
variáveis de acordo com o grupo social, com a cultura e com o tempo.
Para a autora a análise histórica oferece uma possibilidade de compreender
os processos através dos quais as hierarquias de gênero são produzidas, mantidas
ou contestadas. É nesta perspectiva que se aproxima esta versão da história da
Prenda no Imaginário Tradicionalista que construo:
Nesta abordagem a história figura não apenas como registro das mudanças da organização social do sexo mas também, de maneira crucial, como participante da produção do saber sobre a diferença sexual. Parto do princípio de que as representações históricas do passado ajudam a construir o gênero no presente (Scott, 1994, p. 13).
Enquanto possibilidade de apreender o processo de construção da memória
coletiva e individual, o que ocorre é uma luta pela dominação da recordação onde
uma rede de memórias cria a prenda, porém, estas construções não podem ser
apreendidas só com o conceito de gênero; mas também através: da autobiografia
que cada tradicionalista produz, da memória oficial sobre a prenda, da dança, da
poesia e da vestimenta gaúcha, todos envolvidos com a identidade.
Considerando que a memória tornou-se um objeto da história, este trabalho
constrói uma nova trama que se insere no estudo da memória coletiva na sociedade
contemporânea, onde é historiado a sua produção e seus usos sociais: a construção
da prenda por uma rede de práticas (discursivas e não-discursivas) que organizaram
esta memória tradicionalista gaúcha.
3
Não escrevo uma história das mulheres gaúchas, mas os processos --e
constituição da personagem prenda, que foi objetivada para significar
simbolicamente a "mulher gaúcha". Uma abordagem da prenda na história do Rio
Grande do Sul levanta algumas dúvidas: como e quando foi criada esta figura, e
como se criou um consenso em torno da prenda como representação feminina da
tradição no Rio Grande do Sul?
Os discursos tradicionalistas instituem a prenda como uma personagem
significativa, uma personagem histórica. Um caminho desta pesquisa poderia ser
investigar a vida das campesinas, das estancieiras e estabelecer uma trama para
explicar a história dessas mulheres, visualizando suas experiências no passado, e
identificando-as (ou não) com a prenda.
No entanto, o caminho que percorro examina o processo de construção da
prenda, através dos discursos e das práticas que se cruzaram para forjá-la como
tradução singular das diversas figuras de mulheres da história do Rio Grande do Sul
- a "mulher gaúcha" -, com um destino e sentimentos definidos como apropriados
para o gênero feminino. Esses discursos, tomados como construções, formam a
trama que trás a prenda para a história. A partir de uma produção de diferentes
representações sobre as mulheres, o Tradicionalismo foi instituindo a memória
hegemônica, estabelecendo os contornos da prenda e silenciando outras
interpretações.
Não procuro nos discursos tradicionalistas, indícios que permitam conhecer a
história da "verdadeira" prenda ou do gênero feminino no Rio Grande do Sul. Não há
um real escondido para ser revelado. A figura da prenda foi construída e objetivada
como fato histórico, é a partir daí que construo a trama desta narrativa que investiga
4
como foram produzidas as memórias envolvidas na constituição e naturalização da
prenda como tema histórico.
O Rio Grande do Sul, assim como as demais regiões apresenta um
desenvolvimento histórico peculiar, o que por si só não define uma identidade.
Outros aspectos são necessários, um deles é reconhecer a identidade cultural
através da qual as pessoas se encontraram como
portadoras de características comuns, que as diferenciam do que lhes é
exterior, imprimindo-lhe uma singularidade.
Conforme Renato Ortiz (1985), toda identidade é entendida como uma
construção simbólica. Não existe uma identidade única, mas uma pluralidade de
identidades que correspondem aos diversos grupos sociais, faixa etária e gênero; no
entanto, na história tradicionalista gaúcha3, determinados valores culturais são
apresentados como aqueles que identificam o povo e se impõem a todos os grupos.
Não se trata de questionar se os valores apresentados são os "verdadeiros",
mas dentro desse contexto, quais são os elementos dessa "identidade" que pretende
representar a sociedade gaúcha? Especificamente, como se criou uma "identidade
feminina" expressa na figura da prenda?
Nesse processo de construção de uma identidade, a construção de
personagens-símbolos4 representa um apelo forte capaz de aglutinar a população
em torno de uma tradição regional. É o momento privilegiado da construção da
memória coletiva, onde as práticas tradicionalistas de repetição dos costumes do
3 História Tradicionalista Gaúcha: história (re)construída pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, através de um processo de seleção do que o Tradicionalismo procura preservar como memória gaúcha. 4 Ecléa Bosi (1994) identifica no gosto pela repetição de episódios antigos o estabelecimento de uma "atitude-símbolo", assim: "reconstituir o episódio é transmitir a moral do grupo e inspirar os menores "(p. 424)
5
passado estabelecem um sentimento de identidade social para o grupo organizado
em torno dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG's)5.
Os estudos de memória coletiva passam pela obra de Maurice Halbwachs
(1990), que rompendo com a idéia de memória como "conservação do passado",
trabalha com a idéia de memória como "reconstrução do passado". Associa a
memória da pessoa a memória do grupo, relacionando a memória do indivíduo às
instituições sociais, que geram os "quadros sociais da memória". Para ele o caráter
livre da memória está quase descartado.
A questão da memória aqui compreendida, trabalha a memória coletiva como
uma imposição inserida numa perspectiva de disputa, enquanto campos de conflitos
e relações de poder. Para Michel Pollak: "a memória e a identidade são valores
disputados em conflitos sociais e intergrupais" (1992, p. 205).
Outro aspecto importante acrescentado por Pollak é a noção de memória
como um fenômeno construído social e individualmente:
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida que ela é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua construção de si (Pollak, 1992, p. 204).
Quais as práticas discursivas e não discursivas responsáveis pela emergência
da prenda como personagem histórica? Como a prenda foi enquadrada na memória
coletiva do Rio Grande do Sul? Nesse processo, quais as memórias que foram
silenciadas?
O estudo do culto da imagem da prenda nos conduz necessariamente ao
Centro de Tradições Gaúchas. O "35" - CTG6 é um dos itinerários desta pesquisa, 5 5 Entidades Tradicionalistas organizadas em todo estado para cultuar e preservar as tradições gaúchas.
6
como pioneiro ele serviu de modelo e serve de referência aos demais Centros de
Tradições Gaúchas.
Nos discursos tradicionalistas, o Centro de Tradições Gaúchas é o espaço
criado para preservar os costumes gaúchos, no entanto o CTG não representa tal e
qual a forma como os gaúchos viviam no passado. Ao contrário é fruto de uma
seleção material e simbólica cujo interesse não é "resgatar" tudo como era no
passado, mas organizar a produção da memória sobre os gaúchos a partir de um
conjunto de símbolos e mitos.
O CTG é um órgão que solidifica a memória do gaúcho que o Movimento
pretende perpetuar, que exerce a "vigilância comemorativa" necessária para
reinventar e manter o culto das "tradições gaúchas".
Percebe-se que o CTG, e o Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG7, foram
criando uma identidade entrelaçada com os conteúdos historicamente determinados
para o gênero feminino. Ouvir as vozes das prendas faz entender como é gestado
este discurso frente aos valores do presente, são vozes que expressam muito além
do dizível pelo CTG.
Esta pesquisa tem como objetivo geral investigar a produção desta
representação de mulher expressa na figura da prenda através da análise do
conjunto de práticas e operações que se apóiam para enquadrá-la na memória
coletiva do Rio Grande do Sul.
A partir daí, passo a analisar os agentes, os discursos e os traços materiais
através dos quais a prenda foi transformada em um dos símbolos de identidade
6 0 "35" - CTG foi o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, fundado em 1948. 7 MTG é um órgão fundado em 1966 para congregar todos os CTG's dos Rio Grande do Sul em torno de um mesmo conjunto de regras e normas.
7
cultural no Rio Grande do Sul; historiar a criação do Movimento Tradicionalista
Gaúcho a partir da fundação do "35"-CTG, enquanto um lugar privilegiado para o
culto das tradições e analisar o processo de construção da imagem de si produzida
pelas prendas entrevistadas.
O itinerário metodológico e as técnicas escolhidas estão situados a partir do
referencial metodológico utilizado na construção do problema da pesquisa. Os
documentos foram considerados construções, tornando-se necessário almejar a
crítica do documento, uma vez que a memória é identificada como objeto de disputa,
de dominação e de manipulação.
Para mapear as representações sociais, os símbolos, os valores que forjaram
a prenda para a história tradicionalista, busquei os discursos construídos em torno
das prendas em depoimentos e práticas daqueles e daquelas que (re)construíram o
tradicionalismo no Rio Grande do Sul.
Os depoimentos dos fundadores do "35"-CTG são caminhos privilegiados da
minha pesquisa, pois foi a partir dos CTG"s que homens e mulheres passaram a
(re)produzir discursos sobre as prendas, envolvendo a tradição oral, as
manifestações artísticas e as comemorações.
Para desenvolver esta dimensão da produção de memória sobre a prenda me
empenhei na produção do documento oral, abordagem metodológica que reflete a
realização de entrevistas8 e o processo de construção social da memória que
envolvem a tradição oral.
8 As fitas gravadas e as transcrições das entrevistas realizadas com as prendas encontram-se no Laboratório de História Oral da PUCRS.
8
Delineando as técnicas de história oral e baseada na experiência de outros
historiadores como Michel Pollak (1992), Paul Thompson (1992), Antônio
Montenegro (1994), Ecléa Bosi (1994), busquei no depoimento das prendas
aspectos da sua atuação no Movimento Tradicionalista Gaúcho. Estes caminhos
percorridos, formam, no seu conjunto, a contribuição que esta dissertação de
mestrado pretende atingir: um olhar sobre a sociedade gaúcha, através de um
aspecto pouco investigado - a Prenda no Imaginário Tradicionalista.
Pretendi captar uma percepção da prenda mais pessoal, embora a prenda
seja uma figura estereotipada, para analisar como a depoente constitui a sua
memória com relação a memória coletiva e como esta memória constrói a sua
identidade.
No primeiro capítulo, A Criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho,
analiso através da bibliografia tradicionalista, o discurso do Tradicionalismo, que
criou e recriou um símbolo, idealizado pelo CTG - o gaúcho -, e que criou a prenda
estabelecendo o papel das mulheres neste espaço de culto às "tradições do Rio
Grande do Sul". Aqui trabalho a hipótese de que é a partir da imagem mítica do
gaúcho heróico que são tecidos os discursos formadores da sua parceira feminina -
a prenda.
Através das contribuições dos estudos de gênero, é possível perceber que a
construção do feminino não é indiferente ao masculino. Conforme, George Duby e
Michelle Perrot, em "Escrever a História das Mulheres":
É preciso recusar a idéia de que as mulheres seriam em si um objeto de história. É o seu lugar, a sua "condição"; os seus papéis e os seus poderes, as suas formas de ação, o seu silêncio e a sua palavra que pretendemos perscrutar, a diversidade das suas representações - Deusa, Madona,
9
Feiticeira... - que queremos captar nas suas permanências e nas suas mudanças. História decididamente relacional que interroga toda sociedade e que é, na mesma medida, história dos homens (1991, p. 7).
No segundo capítulo, A Prenda Tradicionalista, busco o processo de
construção da memória da prenda, que remete significado a esta figura criada no
CTG. Uma construção que projeta um passado histórico para essa personagem, que
estabelece um conjunto de valores para a prenda, baseados em papéis sociais
historicamente determinados para o gênero feminino. Neste capítulo formulo a
hipótese de que a representação da prenda foi solidificada através de imagens
(indumentária), gestos (danças) e poesia (canções), que expressam um modelo de
mulher, embasado na concepção positivista e católica, dentro de uma mentalidade
conservadora.
No terceiro capítulo, Primeira Prenda: Prenda de Primeira, examino a
intersecção da construção da memória coletiva com a construção da memória
individual. Analiso a prenda e a construção de si, a maneira como esta construção
hierárquica de gênero é mantida e reproduzida pelo Tradicionalismo, que legitima e
dá significado a ela.
Neste capítulo trabalho a hipótese de que não há um caráter livre na
constituição da memória da prenda, em função do projeto educativo e normativo do
CTG, que faz legitimar o sentido de "ser prenda".
Considerando que os significados a respeito do gênero são variáveis e
dinâmicos, este olhar também nos permite focalizar outra questão: como esta figura
de mulher é mantida ou contestada pôr outras práticas femininas no interior do CTG,
e em que medida as mulheres assumem papéis diferenciadas daqueles traçados
como modelo feminino no interior do MTG.
10
CAPÍTULO 1.
A CRIAÇÃO DO MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO
Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida em comum. (Lessa, 1999, p.18)
O objetivo deste capítulo é historiar o Movimento Tradicionalista Gaúcho e, a
partir dele, o Centro de Tradições Gaúchas - CTG. Parto da hipótese que o discurso
tradicionalista que cria e recria o gaúcho é também formador de uma determinada
imagem de mulher representada pela prenda. Em outras palavras, na tecitura do
discurso tradicionalista, inventa-se a prenda como uma figura que tem a tarefa de
imprimir uma determinada imagem de mulher que passa a ser cultuada como parte
da memória gaúcha.
Logo descobri que o Movimento Tradicionalista Gaúcho já tinha uma história
contada pelos seus fundadores, que através das suas narrativas fizeram uma
evocação dos momentos deflagradores da retomada do Tradicionalismo no Rio
Grande do Sul, em 1947/48. Refiro-me ás obras dos chamados "tradicionalistas
históricos", aqueles que criaram o Movimento Tradicionalista Gaúcho e que são
celebrados como "guardiões da memória" tradicionalista.
Para compreender o Movimento Tradicionalista Gaúcho busquei inicialmente,
estes discursos que contaram a história do MTG em livros que são também relatos
biográficos. Estas narrativas são, ao mesmo tempo, construção de uma memória
individual e produção da "memória coletiva", com tramas muito bem articuladas, que
11
manifestam uma visão de história e, principalmente, da tradição, considerando a sua
transmissão e perpetuação9.
Este conjunto de relatos caracterizam-se pela sincronia, pois em todos eles
Paixão Côrtes é lembrado como idealizador do Movimento, Barbosa Lessa, é
identificado como o intelectual do Movimento e Glaucus Saraiva é reconhecido como
organizador do Movimento.10
Para os "tradicionalistas históricos", escrever a história do MTG era parte
essencial do papel histórico que desempenham. Cyro Ferreira, um dos fundadores
do MTG, lembra que o seu companheiro Glaucus Saraiva Fonseca, primeiro Patrão
do "35"- CTG11, sempre que o encontrava dizia:
_ Cyro, estamos cometendo um pecado para com o nosso "35'; enquanto estamos vivos temos que escrever a verdadeira história do nosso Centro e do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, antes que outros o façam, sem a devida autoridade de causa (Ferreira, 1999, p.17).
Michael Pollak (1992), mesmo considerando a memória como um fenômeno
construído e, portanto, submetido a constantes flutuações e mudanças, enfatiza que
na maioria das memórias existem marcos ou pontos invariantes, elementos
irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que
impossibilitou a ocorrência de mudanças. Para ele ocorre um trabalho de
"enquadramento da memória", que é percebido em tudo aquilo que leva os grupos
9 Maurice Halbwachs (1990) entendeu a memória principalmente como um fenômeno social, ou seja, um fenômeno construído coletivamente e submetido a constates transformações. A reconstrução da memória não é entendida como um acontecimento isolado, mas de um grupo, vista como fator de aglutinação dos membros de uma determinada sociedade. A criação da memória coletiva ë, neste caso, vinculada à produção da identidade regional, compreendida como uma estratégia de sobrevivência do grupo frente a uma situação de ameaça e perda de identidade nos momentos de ruptura. 10 São chamados tradicionalistas históricos os integrantes do "Piquete da Tradição" em 1947 e os fundadores do "35" Centro de Tradições Gaúchas. Dentre eles destacaram-se, especialmente. João Carlos Paixão Côrtes, Luiz Carlos Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva Fonseca. 11 " 0 nome "35" é alusivo ao início da Revolução Farroupilha (1835-1845).
12
sociais a solidificar o social; e além do enquadramento da memória ocorre também
um trabalho da própria memória em si que passa influir nas gerações futuras: "Cada
vez que uma memória está realmente construída, ela efetua um trabalho de
manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, de organização" (p. 206).
No MTG ocorre um processo semelhante ao que o autor chamou de trabalho
de "solidificação da memória", pois as lembranças dos tradicionalistas pioneiros
trazem como "marcas" os mesmos lugares, os mesmos personagens e os mesmos
acontecimentos do ano de 1947, quando os "tradicionalistas históricos" criaram o
Departamento de Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre,
e os acontecimentos do ano de 1948, quando fundaram o "35"CTG.
As comemorações que desenvolveram-se a partir da proposta do núcleo
estudantil do Colégio Júlio de Castilhos de formar o Departamento de Tradições
Gaúchas compõem o conjunto de elementos eleitos pelos fundadores do Movimento
para serem preservados como memória tradicionalista. As primeiras ações
realizadas nesta nova fase do Tradicionalismo no Rio Grande do Sul para
homenagear os heróis farroupilhas e o gaúcho idealizado como herói do passado
campeiro, foram consagradas como marcos fundamentais do Movimento
Tradicionalista Gaúcho. 12
As atividades comemorativas realizadas pelo Departamento de Tradições
Gaúchas, em setembro de 1947, foram publicadas pelo jornal Correio do Povo,
informando que:
12 Antônio Montenegro (1997) analisa que o sentido da comemoração é indissociável ao sentimento de reestabelecimento de marcas, que através de rituais ressìgnifica o passado.
13
O Grémio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade de perpetuação das tradições gaúchas fundou, aliando com seus já numerosos departamentos, o das "Tradições Gaúchas" (...) este departamento levou representado por diversos alunos com trajes característicos do verdadeiro gaúcho, montado em `pingos' aperados a capricho, até o Panteão Rio-Grandense, os restos mortais do inesquecível David Canabarro. No dia 7 de setembro, antes de ser extinto o fogo da Pátria, os Cavaleiros deste Departamento transportaram até o velho casarão do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, uma centelha do fogo que foi inflamar o `candieiro' armado no salão do prédio. O fogo da Pátria ficará, desta maneira, presente no Júlio de Castilhos até o dia 20 de setembro vindouro, de onde será transportado também a `pata de cavalo' até o local onde se realizará o grande baile das Tradições Gaúchas, devendo ser extinto às 24 horas do dia mencionado. O período que vai de 7 a 20 de setembro foi denominados pelos julianos de `Ronda Gaúcha', dentro do qual serão realizadas conferências sobre os temas regionais folclóricos. Ainda no baile de 20 de setembro serão oferecidos finos prêmios aos tipos mais sugestivos que se apresentarem em trajes característicos do nosso pampa. (...) A Diretoria do Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos nomeou para Direção deste Departamento (...) o colega João Carlos Paixão Côrtes (apud Côrtes,1994b, p.49-50).
Todos os primeiros passos do Movimento que estava sendo organizado em
1947, formam um "mito de origem13, e foram "sacralizados" como rituais que
passaram a ser seguidos rigorosamente pelo Tradicionalismo dos dias atuais no Rio
Grande do Sul.
A Cavalgada Cívica com trajes gaúchos transformou-se no Desfile Farroupilha
realizado todo dia 20 de setembro, quando é comemorado o Dia do Gaúcho; a
Ronda Gaúcha ou Ronda Crioula14 foi oficializada em 1964 como Semana
Farroupilha, que acontece de 14 a 20 de setembro. A Chama Crioula15 continuou
sendo retirada da pira da Pátria pelos CTG's, mantida acesa de 8 a 20 de setembro
e a partir de 1972 este evento transformou-se em solenidade oficial, um ato repetido
anualmente no Palácio Piratini, com a presença do Governador do Estado, que
13 Para Maria Eunice Maciel, em "A Memória Tradicionalista: os Fundadores", o início desse Movimento foi um momento que ficou na memóría dos seus participantes como uma narrativa especial, contada aos que ingressam e recordada freqüentemente, um mito de origem. 14 É uma expressão alusiva ao trabalho de vigilância do gado que o tropeiro faz enquanto a tropa pasta ou pernoita. 15 Fogo simbólico mantido acesso durante o período em que é celebrado oficialmente às tradições gaúchas (Semana Farroupilha).
14
recebe a Chama e a mantém num candeeiro16 em formato de cuia17 nas
dependências do Palácio do Governo.
Todo o ritual é mantido aos moldes do que aconteceu no saguão do Colégio
Júlio de Castilhos em 1947 quando realizou-se a primeira Ronda Crioula com o
acendimento pela primeira vez da Chama Crioula. Através da repetição estes rituais
transformaram-se em símbolos e foram oficializados como "tradição gaúcha", já não
pertencendo apenas ao convívio dos Centros de Tradições Gaúchas, mas também
sendo seguidos pelas autoridades e popularmente festejados.
Os pioneiros do Movimento Tradicionalista Gaúcho são tratados como
aqueles que têm a propriedade de escrever a história do Movimento. No prefácio da
obra de Paixão Côrtes, "Origem da Semana Farroupilha e Primórdios do Movimento
Tradicionalista", Flori Wegher escreve que a mesma “preenche uma lacuna histórica
e cultural a muito existente (...) agora, com a garantia da fidelidade e da insuspeita
narrativa a temos de maneira completa" (1994b, p.15). Também Antônio Augusto
Fagundes, prefaciando o livro "'35-CTG' O Pioneiro do Movimento Tradicionalista
Gaúcho", no texto "A Verdadeira História do Tradicionalismo", remete aos jovens de
1947 a iniciativa de começar o Tradicionalismo que conhecemos hoje no Rio Grande
do Sul.
É possível perceber nestas abordagens acima citadas, a ilusão de
completude, de preenchimento das lacunas e a pretensão de reconstruir
inteiramente o passado, numa perspectiva inteiramente oposta àquela expressa par
Paul Veyne (1983), para quem a história é sempre lacunar. Veyne diz que, em caso
16 Candeeiro é uma espécie de lamparina, abastecida a querosene e usada na zona rural. 17 Cuia é um recipiente de porongo onde é preparado e servido o mate ou chimarrão.
15
algum o que os historiadores chamam de acontecimento é agarrado direta e
inteiramente, é sempre incompleto e lateralmente, através dos testemunhos e
documentos, dos vestígios que perduram: "Portanto a história é um conhecimento
mutilado" (p.15).
A questão não é verificar a veracidade ou relevância dos relatos, na escrita da
memória, mas investigar quais os elementos constitutivos deste gaúcho vivenciado
pelo Tradicionalismo, quais os símbolos e valores contidos, capazes de construir
uma "identidade gaúcha".
Ruben Oliven (1992) afirma que o discurso do gaúcho recorre a um conjunto
de elementos, como: o caráter de fronteira do estado, a escolha que o Rio Grande
do Sul fez de pertencer ao Brasil, às guerras que envolveram o estado, a existência
de um tipo social específico marcado pela bravura e a autenticidade do modo de
vida.
Segundo o autor, a partir desses elementos, são construídas representações
que adquirem uma força quase mítica e a tendência é ignorar a diversidade e
representar seu habitante como um tipo único - o gaúcho.
Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro há uma referência constante a elementos que evocam um passado glorioso, no qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra, etc (Oliven, 1992, p.50).
Jacson Kaiser (1999) analisa que os gaúchos fazem uso de um discurso
étnico-regional (que recorre a componentes de raça, sangue, nação gaúcha)
manifesto como diacrítico fundamental na construção de sua identidade de grupo
16
social. Segundo o autor esse discurso transforma-se em um símbolo em torno do
qual formam-se sentimentos, emoções e comportamentos:
Podemos afirmar que a cultura gaúcha é um sistema simbólico que avaliza estigmas e estereótipos, sustenta a invenção de tradições e a formação de grupos de interesses e solidariedade. É através do culto a valores éticos, morais e práticas sociais consideradas seletas e o estabelecimento de tradições que justifiquem e glorifiquem as características étnico-regionais da cultura que os gaúchos geram e mantém o sentido de sua identidade (Kaiser, 1999, p.31).
Nesta análise da maneira como a figura do gaúcho foi sendo construída e
reconstruída, no momento em que emergem os primeiros episódios considerados os
marcos fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho, considero o gaúcho
enquanto uma figura que foi fabricada. Longe de representar continuidade de um
tempo mais remoto ou um objeto cristalizado no passado, o gaúcho é produto de um
conjunto de "práticas discursivas", que se cruzam com outras práticas para conferir
autenticidade.18
Considero que o Movimento Tradicionalista reelaborou o gaúcho, embasado
numa idéia de continuidade do passado, que estaria lhe conferindo autenticidade e
valor de verdade, ao mesmo tempo imprimindo lhe novos significados. Para abordar
o objeto central deste trabalho, a construção da prenda, foi preciso buscar qual o
discurso do gaúcho construído neste novo contexto tradicionalista, porque a figura
masculina do gaúcho, constitui o elemento central do culto às tradições no Rio
Grande do Sul e a partir deste gaúcho que passa ser elaborada a figura feminina no
Tradicionalismo.
18 Margareth Rago, em "As Marcas da Pantera: Foucault para historiadores", sintetiza a concepção de que Foucalt, recusando o discurso como reflexo do real, entende discurso como prática, e que as práticas discursivas instituem figuras sociais, constrõem identidades e imprimem um sentido determinado ao fato histórico.
17
O gaúcho é instituído como símbolo do culto das tradições pelo Movimento
Tradicionalista, e os seus fundadores reconhecem que sentiam falta de um
monumento para perpetuar a imagem do herói campesino, dotado de virtudes físicas
e morais. No seu discurso de posse na presidência do "35" CTG, em 1950, Barbosa
Lessa conclamava:
(...) todas as nações têm seus heróis, e todos os grandes homens tiveram seu monumento. (...) erguer um Monumento Vivo ao Gaúcho, como imperativo de gratidão para com aqueles campesinos rudes que se ofereceram em holocausto por um mundo melhor, por um mundo que seria o nosso, o mundo de nossos filhos (apud Côrtes, 1994a, p.14).
Oficializando a figura do homem do campo como símbolo do gaúcho, em
1958 foi inaugurada em Porto Alegre, a estátua "O Laçador", feita em bronze, com
4,45 metros de altura, pesando 3,8 toneladas, de autoria de Antonio Caringe para o
qual João Carlos Paixão Côrtes posou como modelo.
18
FIGURA 1: Capa do Livro “O Laçador – História de um Símbolo”< de Paixão Côrtes
Em seu discurso oficial de inauguração da estátua, o tradicionalista Lauro
Rodrigues, faz uma evocação dos costumes do campo e do passado, como
referências de uma vida melhor que deveriam iluminar o futuro:
(...) Ele simboliza um resto de telurismo e uma promessa de novas madrugadas. Ele retrata o anseio dos moços e uma das figuras mais angulares e expressivas da vida gaúcha. Aí eternizada na forma do bronze, o nosso Laçador ficará de pé, bombeando as lonjuras, como convite para que os homens de todos os tempos não permitam jamais que se apague do panorama humano da querência, a figura das estâncias com seus tipos e costumes. Eterno enamorado da terra (...), o nosso gaúcho precisa, urgentemente, receber as bênçãos do poder, a fim de que se enraíze no pampa, resistindo, nas sesmarias e nas invernadas, á tentação da cidade. (...) Precisamos, cultuando o Passado, descortinar os dias do futuro.( ...) Glória, pois, ao Rio Grande no culto de seus troncos. Glória à nossa gente, que no alvorecer de novas eras, lança um raio de luz, no pleno ocaso de sombras em que se afunda o mundo. E que as velhas tradições de respeitabilidade, de decência, de civismo e de lealdade continuem animando a família rio-grandense para a plena realização de nosso glorioso destino (apud Côrtes,1994a, p.26-27).
19
É a partir do gaúcho reelaborado pelo Movimento, encarnando 0 mito do herói
guerreiro, livre e viril, justo e cavalheiro, que depois é pensado como deveria ser a
mulher deste gaúcho, imprimindo-lhe também determinados significados. Neste
aspecto, a arrancada tradicionalista da década de 40 precisou inovar pois a
construção de uma identidade feminina tradicionalista gaúcha ainda tinha que ser
"inventada" Assim com base em determinados discursos sobre a mulher correntes
no Rio Grande do Sul foi criada a figura da prenda.
Vou esboçar este estudo do Movimento Tradicionalista Gaúcho, que serve de
base para poder visitar o universo das prendas, através das seguintes seções: O
Início do Movimento Tradicionalista Gaúcho, O Gaúcho do Tradicionalismo e
Da Ausência das Mulheres Á Invenção das Prendas.
1.1. O Início do Movimento Tradicionalista
Ao buscar o início do Tradicionalismo gaúcho fui ao encontro do ano de 1898,
quando o santa-mariense, Major João Cezimbra Jacques, fundou o Grêmio Gaúcho
em Porto Alegre, uma entidade voltada para o culto das "tradições gaúchas". Uma
"patriótica sociedade" criada porque:
(...) sentimos a necessidade de não deixarmos adormecer ou de não olvidarmos o nosso deslumbrante passado, para que ele possa atuar constantemente sobre o nosso presente e o nosso futuro, produzindo seus efeitos salutares (Jacques, 1997, p.50).
Conhecido como seguidor da doutrina de Auguste Comte, segundo o qual "os
vivos são sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos" (Comte, 1983, p.152),
20
Cezimbra Jacques expõe no seu livro, "Assumptos do Rio Grande do Sul" editado
em 1912, uma concepção que trabalha com os "admiráveis acontecimentos", de
uma "brilhante história", ocorrida num "passado glorioso", edificado pelos "grandes
vultos", que são frutos de uma "valorosa raça". O autor considera que a "salvação"
dos problemas do presente estaria nas lições do passado, sem, no entanto,
desprezar o progresso, reforçando a idéia que:
Progredir é substituir o difícil pelo fácil, o pior pelo melhor, é aperfeiçoar o que existe e o que é insubstituível; mas nunca apagar o que há de fundamental pertencente ao ser que progride, porque isto importa em dissolvê-lo ou anulá-lo (Jacques, 1997, p. 56).
Cezimbra Jacques (1997), defendeu a idéia de que há um conjunto de traços
que constituem o característico de um povo, e cada um é conhecido pelos seus
caracteres de raça. Portanto, o gaúcho sul-riograndense tem traços característicos
que lhe distingue (bons caracteres herdados), como a habilidade especial para as
lides rurais, a bravura, a generosidade, a lealdade, a franqueza, a sinceridade, a
hospitalidade e o cavalheirismo.
No art. 1° dos Estatutos do Grêmio Gaúcho, fica claro o culto ao herói,
distinguindo o que seria comemorado como "tradições gaúchas", pois dentro do
princípio de "separar o joio do trigo" era preciso alimentar tudo quanto de bom existiu
pelo feito dos "nossos maiores homens":
(...) é uma sociedade civil com personalidade jurídica, composta de número ilimitado de sócios e sem distinção de nacionalidade, sexo, culto religioso ou político e tem por objetivo, congregar seus associados para fins recreativos, culturais, esportivos e especialmente cultivar as tradições gaúchas, inspiradas na personalidade inconfundível do ínclico Gal. Bento Gonçalves da Silva (apud Mariante, 1976, p.16).
21
O Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, fundado em 20 de maio de 1898, deu
origem a outras entidades similares formadas no estado, segundo Helio Mariante
(1976), entre elas estão: A União Gaúcha de Pelotas - 1899, o Centro Gaúcho de
Bagé - 1899, o Grêmio Gaúcho de Santa Maria - 1901, a Sociedade Gaúcha Lomba-
grandense - 1938, o Clube Farroupilha de Ijuí - 1943. Todas estas entidades foram
constituídas dentro dos princípios cívicos, como "patrióticas agremiações", mas com
o decorrer do tempo, especialmente pela política do Estado Novo (1937-1945), que
pregou uma unidade nacional sob o lema "grande é só o Brasil" e destituiu os
símbolos regionais, o destino dos clubes tradicionalistas foi fechar ou transformarem-
se em agremiações cuja as finalidades de culto às tradições já não eram mais
privilegiadas.
Abandonando o culto à memória do passado, este conjunto de entidades não
mais constituíam-se como uma referência tradicionalista.
Apesar do seu fundador Cezimbra Jacques, ter sido proclamado o "Patrono
do Tradicionalismo", meio século depois da fundação do Grêmio Gaúcho, no VI
Congresso Tradicionalista, realizado em Cachoeira do Sul em 1959, as sociedades
pioneiras não são reconhecidas como células do Tradicionalismo que atualmente é
oficializado no estado, seguido nas escolas, celebrado nas solenidades do governo,
divulgado através dos meios de comunicação de massa e vivenciado por milhares
de pessoas.
O início do Movimento Tradicionalista, tal como conhecemos hoje, vivido nos
CTG's, organizado pelo MTG, que realiza congressos, bailes, concursos e rodeios, é
atribuído aos anos de 1947/48, respectivamente, o ano da fundação do
Departamento de Tradições Gaúchas pelos alunos do Colégio Estadual Júlio de
22
Castilhos em Porto Alegre e o ano da fundação do "35" Centro de Tradições
Gaúchas".
Os fundadores do "35" CTG denominam esta fase de nova arrancada
tradicionalista, reconhecendo a existência das experiências anteriores fundadas no
passado, porém destacam que não fundaram apenas um novo espaço tradicionalista
- o CTG, mas também instituíram uma nova forma de organização do
Tradicionalismo - um Movimento Tradicionalista.
Outros tradicionalista costumam alertar:
Fique bem claro porém que o Tradicionalismo, tal como 0 conhecemos atualmente, não deve nada a essas iniciativas pioneiras. Os jovens que o tornaram possível ignoravam todas as tentativas havidas antes. Moços e ardorosos, eles apenas sabiam do seu amor pelas tradições do pago e do descaso votado pelo Brasil do pós-guerra (...). Foi contra essas coisas que aqueles moços se levantaram, sem pedir nada a ninguém, sem dever nada a ninguém, sem copiar nada a ninguém (Fagundes, 1999, p. 14).
Em 1947 o Rio Grande do Sul sofria o impacto do avanço da política
econômica norte-americano sobre o país, com cerca de 70% da população vivendo
da atividade rural, a pecuária recuperava-se dos efeitos econômicos que atingiram o
setor durante a II Guerra Mundial (1939-1945) e a agricultura transformava-se com o
efeito do uso de novas tecnologias.
Neste quadro ocorrem mudanças: penetração de multinacionais no país,
evasão de recursos, manifestações do êxodo rural e a população do campo é
atraída para a cidade a fim de servir de mão de obra ao setor industrial. Décio
Freitas (1998) analisa que os anos 50 multiplicavam sintomas de estagnação e
retrocesso no Rio Grande do Sul: "A degradação econômica e social nos converte a
23
um ritmo alarmante, uma terra de miseráveis. Os gaúchos estão assustados e
humilhados" (p. 37).
Esse gaúcho pobre e citadino, "gaúcho a pé", fica cada vez mais distante do
gaúcho símbolo: guerreiro e campeiro, desvelando uma realidade que Barbosa
Lessa (1998) assim rememora:
Quem nos contou a história toda (...) foi o escritor Cyro Martins, em 1944, quando Porteira Fechada, impactamente desvendou para os rio-grandenses a nova realidade social da campanha. Eu li o livro no ano seguinte, aos 15 anos de idade, já morando em Porto Alegre, cursando o noturno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e meio procurando emprego (...). Comovi-me quando João Guedes teve que vender seu último cavalo, um mouro macanudo (p. 74)
Este período também foi marcado politicamente pelo fim do regime ditatorial
instaurado por Getúlio Vargas que adotou uma política centralizadora, acabou com
os partidos e com os símbolos regionais, e determinou a queima das bandeiras e a
abolição dos hinos estaduais. Este episódio ficou profundamente marcado na "alma"
dos gaúchos. Alzira Vargas do Amaral Peixoto (1960), ao narrar este momento em
seu livro de memórias, assim o descreve:
Apesar de aplaudir com entusiasmo esta iniciativa resolvi não comparecer a cerimônia matinal. Doía-me assistir a queima da velha bandeira dos Farrapos, que durante tantos anos simbolizara a vida do meu Estado, cobrira os corpos valentes de tantos gaúchos mortos em combate, e fora bandeira idolatrada por meu avô. Doía-me saber que o "Salve o Vinte de Setembro, precursor da liberdade"; que eu aprendi a cantar no colégio, nunca mais seria tocado; viveria apenas como uma recordação, um dobre de finados (p.336).
Época de mudanças que abalavam a identidade construída, que apresentava
a cidade como espaço para onde convergiam todas as atenções, abrindo-se para o
mundo e para novas referências culturais. A narrativa de Paixão Côrtes expressa um
24
sentimento de perda, o temor por uma geração que estava ameaçada de não
vivenciar as tradições:
Grande parte de nossa geração, que vivera sua juventude durante a ditadura de Getúlio Vargas politicamente desconhecia os símbolos oficiais (bandeira, brasão, hino) da terra gaúcha, pois tais elementos haviam sido banidos do ensino escolar, estavam ausentes dos pórticos e papéis timbrados, das repartições públicas e não figuravam nas cerimônias governamentais do Estado. (...) Vivíamos, agora, em 1947. Os veículos de comunicação escolar, mostravam-se saturados de estrangeirismo (Côrtes, 1994b, p.41-42).
No seu "Manual do Tradicionalismo", Glaucus Saraiva expressa também esse
medo dos perigos do novo suplantando as tradições e conclama que para reverter
essa situação há necessidade de líderes, "condutores" que o povo seguirá:
(...) se avolumam os sintomas de um desencanto generalizado e perigoso no seio de nossa gente. Ela está perdendo a fé nos poderes constituídos e aprendendo a desacreditar nos seus condutores. (...) está se criando um clima propício à inoculação de quaisquer idéias alienígenas e antagônicas no espírito do nosso povo. Há carência de lideranças. Precisa-se de um rumo e um sinuelo (Saraiva, 1968, p.81).
Ainda, segundo Paixão Côrtes, foi frente a esta situação de abandono das
tradições que teve início em Porto Alegre, em agosto de 1947, um movimento
estudantil a favor das tradições e contra os "estrangeirismos", numa época em que
ninguém mais pensava em tradição, destruindo tudo aquilo que era considerado
"velharia". A fundação do Departamento de Tradições Gaúchas, junto ao Grêmio
Estudantil estava inserido neste contexto:
Esse movimento começou no Colégio Júlio de Castilhos, onde, com vinte anos, fundei, com um grupo de jovens companheiros, o Departamento de Tradições Gaúchas, junto ao Grêmio Estudantil. (...) A preocupação inicial era preservar, desenvolver, proporcionar uma revitalização à cultura rio-grandense, interligando-a, mais valorizada, no contexto da cultura brasileira. Dentro desse espírito, sugeri (...) a realização do que denominei Ronda
25
Crioula (Ronda Gaúcha) que se estenderia de sete a vinte de setembro, unindo assim as datas mais significativas para os gaúchos - sete de setembro, Independência do Brasil e vinte, início da Revolução Farroupilha(Côrtes, 1994b, p.42-43).
Os fundadores do Movimento Tradicionalista repetem um sentimento
semelhante ao que levou Cezimbra Jacques a fundar o Grêmio Gaúcho meio século
antes, tal sentimento está expresso quando contam que os rapazes do "Julinho19
manifestavam-se contra a ausência da História do Rio Grande do Sul nos currículos
escolares, a falta de livros de literatura gaúcha e de músicas tradicionalistas. Para
eles, esta arrancada tradicionalista era necessária para preservar e conservar as
coisas do passado nos seus "devidos lugares", para alertar à sociedade dos perigos
da destruição dos costumes frente às "forças alienígenas". E quanto às perspectivas
e os rumos, o referido tradicionalista, autor dessa iniciativa responde:
Buscavam, no entanto uma trilha, diante da perda da fisionomia regional que se processava. A descaracterização precisava ser combatida. O Rio Grande precisava reagauchar-se. (...) Procuravam a identidade da terra gaúcha (Côrtes,1994b, p. 43).
Neste mesmo ano de 1947, a Liga da Defesa Nacional - LDN, anunciou que
incluiria entre as programações da Semana da Pátria, que comemorava os 125 anos
da independência do Brasil, a transladação dos restos mortais do líder farrapo David
Canabarro, de Santana do Livramento para o Panteão da Santa Casa de
Misericórdia em Porto Alegre.
Entusiasmados com as comemorações, os rapazes do Departamento de
Tradições Gaúchas entraram em contato com os dirigentes da LDN, manifestando o
desejo de participar das comemorações, homenageando os 112 anos da Revolução 19 "Julinho", diminutivo do nome do Colégio Júlio de Castilhos, é a forma como o colégio ficou popularmente conhecido.
26
Farroupilha. Através de correspondência enviada a Liga, o Departamento de
Tradições Gaúcha propôs desenvolver uma série de atividades, entre elas uma
guarda de honra, formada por estudantes vestidos com trajes gaúchos, que à cavalo
acompanhariam o translado do restos mortais do herói farroupilha, numa cavalgada
cívica pelas ruas da capital.
Também, a programação incluía a colocação de uma pira no interior do
Colégio Júlio de Castilhos, onde seria depositada uma chama retirada do Fogo
Simbólico da pira da Pátria, interligando o culto das "tradições gaúchas" ao culto à
Pátria. Nasciam os símbolos usados pelo Movimento Tradicionalista (Chama Crioula
e Ronda Crioula), com rituais a serem seguidos. Este é um momento de criação de
novos elementos simbólicos a partir de outros que já existiam, de construção de uma
"tradição inventada", que depois será institucionalizada:
Por `tradição inventada' entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam incultar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (Hobsbawn e Ranger, 1997, p. 9).
Apesar da criação ser recente, estes símbolos são cultuados como antigos e
muitos desconhecem sua origem. Paixão Côrtes afirma que em 1977, alunos e
professores, autoridades e imprensa, pensavam que estes símbolos usados pelo
Tradicionalismo nos dias atuais, teriam origem em 1835, início da Revolução
Farroupilha.
A Liga de Defesa Nacional aceitou a idéia da "guarda de honra" proposta pelo
Grêmio Estudantil, e assim formou-se o "Grupo dos Oito", batizado como "Piquete
27
da Tradição", composto por: João Carlos Paixão Côrtes, Antônio João Sá de
Siqueira, Cilço Campos, Cyro Dias da Costa, Cyro Dutra Ferreira, Fernando
Machado Vieira, João Machado Vieira e Orlando Jorge Degrázia. Este foi o grupo de
rapazes que saiu "pilchado20 pelas ruas de Porto Alegre, em 5 de setembro de 1947,
numa homenagem que é registrada como marco inicial de todo o Movimento.
Segundo Cyro Ferreira, autor do livro "35" CTG - O Pioneiro do Movimento
Tradicionalista Gaúcho - MTG, e também integrante do "Piquete da Tradição":
E a idéia partiu do companheiro Paixão, que nunca conheceu obstáculos intransponíveis. Apesar dos seus 20 anos enfrentou o Capitão Vignoli, propondo-se a fazer um guarda de honra, a pata de cavalo, por gaúchos que lembrassem os tempos gloriosos em que os nossos estancieiros e suas peonadas enfrentaram, durante 10 anos, todo um Império (Ferreira, 1987, p.23-24).
Este momento revela alguns aspectos importantes do início do Movimento
Tradicionalista Gaúcho da atualidade: Primeiro, que a Revolução Farroupilha, luta
que durante dez anos (1835- 1845) confrontou o Rio Grande do Sul ao Império
brasileiro, é o grande acontecimento histórico do Rio Grande do Sul a ser
reverenciado pelos jovens tradicionalistas. Uma reverência, tal como a intuída por
Cezimbra Jacques nos fins do séc. XIX, que também envolveu o culto aos heróis da
epopéia farroupilha, as suas datas e a busca de referências no passado para
"iluminar" o presente, imprimindo-lhe um caráter aos moldes da concepção
positivista.
Segundo, que o Tradicionalismo, por outro lado, despertou a figura do anti-
herói ou "grosso", traduzindo-se nas resistências que o Movimento sofreu, pois no
início não foi fácil recrutar adeptos para a cavalgada, tanto que os seus fundadores 20 Pilchado: vestido com trajes gaúcho.
28
revelam que foram conseguidos catorze arreios21 para desfilar e somente oito jovens
dispostos a montar; além disso o Piquete da Tradição causou grande estranheza na
sua passagem pelas ruas de Porto Alegre: eles foram chamados de palhaços
enfeitados e fantasiados.
Em 1989, o Rio Grande do Sul instituiu por lei as vestimentas típicas gaúchas
como traje oficial. No entanto, em 1947 os integrantes do Piquete da Tradição foram
considerados tipos excêntricos por estarem trajados à gaúcha nas ruas de Porto
Alegre. O líder do grupo conta que deu uma surra de "mango"22 no sujeito que
começou a gritar chamando-lhe de palhaço, e sentindo que a intenção era
ridicularizar o gaúcho, diz que:
Não agüentei. Arrematei os arreios e montei no cavalo quase sem estribar, (...) quase fui com cavalo e tudo, para debaixo de um desses bondes elétricos, (...). Como um desesperado me lancei atrás do indivíduo que, já se perdia em meio aos veículos. Quando a charrete do gritão estava entrando na Bento Gonçalves, o tubiano alcançou-a. E aí fui eu que gritei: `diz quem é palhaço, diz quem é palhaço! Seu filho da... filho daquela!'. E movimentei o relho de cabo de guajuvira, com uma soitera de espessura de um dedo feito com papado de touro. A soitera zunia no ar. A surpresa foi terrível para o indivíduo que tratava de se esquivar da melhor maneira das vibrantes chicotadas que não cessavam (...). E dê-lhe relho! (Côrtes,1994b, p.80-81).
A questão de vestir-se à gaúcha, ou seja, com roupas campeiras no ambiente
citadino, já havia chamado atenção do fundador do Clube Gaúcho em 1898. Ele
deixa bem claro que estas deveriam restringir-se às comemorações e afirma que:
Repelindo fúteis preconceitos, na nossa sede social, deixando-nos guiar por mestres e despindo-nos por momentos as galas modernas e trajando as vestimentas do gaúchos, realizamos todos estes bons atos daqueles belos tempos e veremos o quanto é sublime nos transportar, por alguns
21 Arreios: é o conjunto de indumentárias, como pelego, baixeiro, serigote, freio, rédeas, buçal e outros, que são usados para encilhar o cavalo para montar. 22 Mango: tipo de relho, que tem o cabo de madeira grossa e a açoiteira larga, feita de couro cá.
29
momentos, para um passado cheio de saúde e viço como era aquele em que viveram os nossos avoengos (Jacques, 1997, p. 67)
Dessa forma, é aprovada a reprodução e o exercício dos bons atos do
passado nos limites da sede social, como uma expansão patriótica. O assunto foi
assim tratado:
Não proclamamos (...), o fato de se poder realizar gauchadas em lugares e em ocasiões impróprias e nem tão pouco que se pretenda introduzir nos salões das nossas cidades e no interior delas, trajes em oposição ao decoro exigido pela civilização e que se pretenda introduzir danças que não estão de acordo com o gosto e o modo de vida da sociedade moderna (op. cit., p. 58).
Passadas as comemorações de 1947, o grupo de rapazes do "Julinho"
continuou reunindo-se e já pensavam e dar continuidade ao culto das tradições
gaúchas, pois não queriam somente comemorar as datas escolhidas, mas também
ensejavam avançar criando um espaço permanente de vivência da tradição. Este
momento faz parte da memória dos seus criadores, como é evidenciado nas
palavras de Barbosa Lessa:
Mas a coisa talvez tivesse parado por aí, na esfera cívica, se não tivesse ocorrido a idéia de reuniões permanentes, de periodicidade semanal, a beira de um fogo -de- chão, com a cuia de mate alimentando a inspiração de causos, com isso trouxemos para o cosmopolitismo da capital o fenômeno interiorano do galpão, reduto masculino dos peões de estância, serviu como elemento formal para a identificação da gurizada de formação campesina (...) (apud Côrtes,1994b, p. 76-77).
A partir dessas reuniões, foram sendo dados os primeiros passos para a
continuidade do Movimento de preservação das tradições que esse grupo
selecionava para cultuar. Levaram adiante a idéia de Barbosa Lessa de criar um
"Clube da Tradição Gaúcha", imprimindo-lhe, de início algumas características que
30
são marcantes no Tradicionalismo que hoje conhecemos. Uma delas é que o
Movimento tem como referência o meio rural, tido como puro, especialmente à vida
nas estâncias, consideradas "escolas de democracia".
Outra característica, é que o Movimento é urbano, levado por pessoas que,
muitas vezes, nunca tiveram uma vivência no campo. 0 convite para primeira reunião
de discussão a respeito da criação de uma entidade tradicionalista, dirigia-se aos
citadinos:
Aqui trazemos um convite aos gaúchos que, embora residindo na capital e tendo hábitos citadinos, guardam ainda nas veias o sangue forte da terra rio-grandense. É sobre a fundação de um clube tradicionalista. Terá como finalidade reunir num mesmo rodeio os grupos de muitas querências do Rio Grande do Sul, mas agora residindo em Porto Alegre. No primeiro sábado de novembro realizaremos um reunião preparatória das atividades, para que todos sejam orientados, e assim entrem na cancha, em março, de relho em pé, prontos para a vitória. Viva o Rio Grande do Sul (Lessa, 1985, p.57).
Em janeiro de 1948 realizava-se a reunião que deu origem ao "35"Centro de
Tradições Gaúchas, o primeiro CTG criado no Rio Grande do Sul, que tem como
lema a frase " Em qualquer chão sempre gaúcho". Um lema que afirma a idéia de
manter a diferença com relação aos demais estados da federação, guiado por um
orgulho de ser gaúcho, um forte sentimento nativista, de amor à terra natal, que se
traduz no apego pelas coisas ligadas a ela, as quais não podem ser desvirtuadas ou
descaracterizadas, devendo permanecer puras e autênticas.
O Boletim n° 1 do "35"- CTG ao descrever sobre as suas finalidades, expõe
este sentimento:
A finalidade do 35, sob o aspecto cultural, é o estudo do folclore e da história do Rio Grande do Sul e sua divulgação da palavra falada, ou escrita, da música, da dança, das artes, ou da prática campeira. Sob o aspecto político, o anseio do 35 é preservar a pureza da nacionalidade que
31
se transfigura neste sufocante entrechoque de culturas estranhas à nossa formação social. É anseio do 35 fazer voltar todos aqueles que hoje habitam o Rio Grande do Sul ao ponto de partida comum, às raízes de nossa formação, para que - movidos por idênticas aspirações - possamos avançar irmanados e confiantes, traçando as linhas do futuro sem esquecer as lições do passado (apud Côrtes,1994b, p.135).
A partir da fundação do "35", em 24 de abril de 1948, foram sendo criados
Centros de Tradições Gaúchas por todo o Estado, chegando hoje a um número de
1470 CTG's no Rio Grande do Sul, cerca de 500 CTG's em outros estados do Brasil
e alguns fundados fora do país. O modelo, a "estância23 simbólica", do "35"- CTG é
seguido por todos os Centros de Tradições Gaúchas, ou seja, cada entidade é
representada por um "galpão24 simbólico", onde o Presidente é o Patrão25, o Vice é o
Capataz26, 0 1 ° Secretário é o Sota-Capataz27, os demais Diretores são os
Posteiros28, OS Departamentos são chamados de Invernadas29, o conselho Fiscal é
o Conselho de Vaqueanos30 e os demais associados são os peões31.
Essa nomenclatura, que reproduz o modelo da estância gaúcha, foi criada por
Glaucus Saraiva, escolhido 1 ° Patrão do "35", que teve Barbosa Lessa como 1 °
Capataz e Paixão Côrtes como 1 ° Patrão de Honra – a "Santíssima Trindade do
Tradicionalismo"32. Porém a simbologia da estância foi sendo inventada aos poucos
e levou dois anos para ser oficializada e aprovada pelo regulamento interno, em
1950. O também fundador do "35", Cyro Ferreira diz que: 23 Estância é o estabelecimento rural destinado à criação de gado, formado por uma grande extensão de terra. Também é conhecida como fazenda de criação. 24 Galpão é uma construção rústica que faz parte da estância, e serve de alojamento para os empregados nas horas de descanso. 25 Patrão é o proprietário da estância. 26 Capataz supervisiona o trabalho dos peões e administra a estância. 27 Sota-Capataz é o capataz adjunto. 28 Posteiro mora nas terras da estância, ajuda realizar algumas tarefas e cuida dos limites do campo. 29 Invernada é uma extensão de terra cercada, dentro da estância, que serve para apartar uma parte do gado. 30 Vaqueano é um homem ágil e que conhece bem a região, por isso serve de guia ou condutor. 31 Peão: empregado da estância que realiza serviço pastoril. 32 Antônio Augusto Fagundes usa esta expressão para destacar a importância desses três nomes do Tradicionalismo.
32
Sem inventar História - Tradição - Folclore, o "35" inventou, isto sim, e com muita oportunidade e sabedoria, o "Patrão"; o "Capataz"; o "Sota-Capataz"; o "Peão"; os "Agregados'; as “invernadas"; e por aí afora, trazendo para dentro de uma Entidade, na identificação dos seus corpos diretivos, a bela e campeira nomenclatura crioula (Ferreira, 1987, p.112).
Durante as reuniões da Diretoria, ou "Charlas da Patronagem"33, foram sendo
criadas outras figuras no "galpão": os "Agregados"34 que eram os secretários das
atas e da tesouraria; as reuniões de associados denominadas de "Chimarrão"35 e as
reuniões sociais chamadas de "Chimarrão Festivo". Depois passaram a chamar os
meninos de "piás" e as mulheres de prendas.
Numa perspectiva próxima ao que Hobsbawn (1997) chamou de "tradições
inventadas", cada elemento, do vestuário, da dança, da fala, passou a ser elaborado
e reelaborado para representar o passado do homem do campo, os elementos
antigos são buscados para o presente, onde lhe são dados novos significados.
O Tradicionalismo difundiu representações, construídas pela "Cultura
Tradicionalista", do que seria o gaúcho e o Rio Grande do Sul no passado, adotando
elementos novos que são confundidos com antigos e todos eles adjetivados como
puros e autênticos. Para Maria Eunice Maciel, estas construções: "São adotadas
como ‘oficiais’ e tidas como parte da ‘cultura tradicional’, exemplos de 'autênticas
tradições do Rio Grande do Sul' (1999b, p.136).
Toda essa criação foi concebida ao mesmo tempo em que o "35" estava
sendo estruturado, conforme conta Barbosa Lessa, no seu livro Nativismo, um
fenômeno social gaúcho:
33 Conversas informais da Diretoria do CTG 34 Agregado: pessoa que mora em terras alheias e em troca cumpre determinadas obrigações. 35 Chimarrão é uma infusão de erva-mate, é servido em uma cuia e sorvida através de uma bomba (uma espécie de canudo metálico). É uma bebida típica do Rio Grande do Sul, servida nas horas vagas e oferecida às visitas.
33
Quando algum elemento faltasse para nossa ação, nós teríamos que suprir a lacuna de um jeito ou de outro. Assim, por exemplo, qual o adjetivo que daríamos a nós mesmos quando estivéssemos vestidos à gaúcha? Alguém sugeriu "aperado"; mas "apero" é arreiamento, é roupa de cavalo, o termo não ficava bem. Então, na ata de 8 de maio de 1948 0 secretário Antônio Cândido se lembrou que pilcha é dinheiro ou o objeto de uso pessoal que possa ter um valor pecuniário. `Vamos oferecer ao patrão de honra, Paixão, um churrasco, ao qual a indiada deverá vir toda pilchada'. Esse invento colou (Lessa, 1985, p.57).
A "estância simbólica" surgiu com características inéditas, com uma
simbologia ligada aos valores do campo, lembrando a região da Campanha36 e
reproduziu as figuras do patrão (dono de estância) e do peão (empregado da
estância) convivendo democraticamente numa mesma entidade, aos moldes da
concepção expressa por Jorge Salis Goulart no livro "A Formação do Rio Grande do
Sul", com 1' edição em 1927; uma obra que exalta as relações fraternas na estância,
considerada "célula social" e lugar de "nobres qualidades". O autor apresenta a
estância, como uma estrutura que moldava as demais formas sociais, como a fonte
maior de unidade e de estabilidade social no Rio Grande do Sul. A estância gaúcha
foi considerada um espaço de organização democrática onde a distinção entre as
classes desaparece. Goulart assim escreve:
Estudando a existência do gaúcho não descobrimos classes intransponíveis por qualquer preconceito ou interesse. Surge apenas, nessa época embrionária de nossa formação, uma indiferenciação de classes sociais; como se nota uma classe única, a dos gaúchos ( igual sempre, quer se trate de ricos ou pobres, pelo garbo dos gestos, pelo amor da guerra, pelo gosto das aventuras) constantemente preparado com a galhardia do pingo, feliz na roda amistosa do chimarrão, entre relatos guerreiros ou façanhas dos dias de rodeio, revelando todos, humildes e potentados, os mesmos hábitos, os mesmos costumes, os mesmos ideais (Goulart, 1985, p.34).
36 Campanha é a região sudoeste do Rio Grande do Sul; conhecida como zona de latifúndio e criação de gado. 0 termo também é usado para designar qualquer local fora da cidade, na zona rural.
34
Ainda Goulart, serve de referência ou de inspiração ao Tradicionalismo,
quando defende a tese da superioridade dos gaúchos sul-riograndenses, justificada
pela possibilidade que teve o fator geográfico de atuar no mesmo sentido que as
forças sociais e raciais, desta forma podendo influenciar sobre acontecimentos
históricos, mais precisamente sobre os fatos humanos. A influência destas idéias
estão, por exemplo, em -Aspectos da Sociabilidade Gaúcha", escrita pelos grandes
nomes do Tradicionalismo atual: Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.
Segundo a teoria de Goulart, as três forças (física, social e racial), agindo num
mesmo sentido, geram uma influência real máxima; no Rio Grande do Sul a força
geográfica agiu no sentido da grande propriedade, do trabalho pastoril, gerando as
possibilidades para a realização da democracia, assim como a grande "massa
branca" contribuiu para "guiar os destinos superiores do povo", evitando que os
"elementos inferiores" travassem a "marcha ascendente", o sul rio-grandense é
diferenciado do gaúcho platino ou "gaúcho maio", é apontado como mais apto para a
civilização, como aquele que assume a direção e orienta os demais - índios e
negros.
Dentre os aspectos destacados pela tese da superioridade do gaúcho estão
as relações democráticas da estância, onde patrões e empregados irmanados pelos
mesmos costumes e sentimentos, são igualados pela simplicidade do modo de vida;
além disso é dito que ambos moravam em ranchos37, alimentava-se do mesmo
churrasco38, tomavam o mesmo chimarrão, proseavam em volta do fogo-de-chão39 e
realizavam as mesmas lides campeiras. A idéia é que estancieiros e peões não 37 Rancho: é construção pequena e rústica, que serve de moradia aos habitantes mais pobres da zona rural. 38 Churrasco: carne salgada e introduzida num espeto. depois assada sobre brasas. 39 Fogo de Chão: fogo aceso no chão de um galpào de estância; em volta dele os peões contam causos, aquecem a água para o chimarrão e também serve para assar o churrasco e aquecer o ambiente nos dias frios.
35
tinham interesses opostos, por isso o empregado se identificava com seu patrão,
sendo o peão considerado uma pessoa da família do fazendeiro.
Outro aspecto apontado, para distinguir o Rio Grande do Sul como um lugar
de relações democráticas, refere-se a escravidão, que teria sido mais amena em
relação as demais províncias. Nas estâncias os negros teriam sido melhor tratados
devido ao espírito de fraternidade depositado na "alma gaúcha", que "adoçou a
escravidão". Uma concepção que admite a possibilidade da existência de uma
"escravidão amena" tentando eliminar a contradição entre estas duas palavras, e
reduzindo a sua explicação aos efeitos do meio geográfico e da raça, numa
abordagem positivista que subordina os acontecimentos as "leis gerais" de uma
suposta "ordem natural".
O meio teria feito o gaúcho diferente, e por conta disso dotado de boas
qualidades:
Dentro de sua altivez tradicional, da sua felicidade inata, o gaúcho nunca admitiu preeminências de classes ou de raças. A democracia e a liberdade são necessidades vitais para o gaúcho (...) (Goulart, 1985, p.15).
A raça "superior branca", outro elementos que teriam estabelecido a diferença
do gaúcho:
Não tinham aqui os dominantes a necessidade de tiraniar os dominados, pois a sua superioridade era natural, harmoniosa em tudo. Não era necessário uma coação material que iria inverter uma ordem material espontânea. Desde a cultura até a capacidade econômica a `elite' diretora era, naturalmente superior (op. cit., p.48).
Estas idéias a respeito de uma singularidade da formação social do Rio
Grande do Sul, apontando diferenças do modo de vida dos gaúchos, estão em
36
diversas obras que tratam da historiografia do Rio grande do Sul, constantemente
fundamentadas com base nos relatos dos viajantes estrangeiros, Auguste de Saint
Hilaire, Nicolau Dreyes e Arsène Isabelle, que passaram no estado no início do
século XIX, e servem de suporte para muitas destas teorias.
O naturalista francês Saint-Hilaire é muito citado pelos autores quando
registra fatos dessa natureza, como por exemplo quando descreveu a simplicidade
do modo de vida do estancieiro. Este aspecto é usado por Jorge Salis Goulart para
mostrar que: "Pelo gênero de vida que os ricos levavam desciam até os pobres,
irmanados a estes pelos mesmos costumes e sentimentos" (1985, p.39).
A estância de José Bernardes se compõe, como todas as outras, da casa do proprietário, de uma casa para negros e de uma cozinha que forma uma pequena choupana à parte, segundo o costume de quase todo o Brasil. A casa do fazendeiro é coberta de palha, como as que eu vi desde a estância do Silveira; é baixa como todas as outras e construída de paus cruzados e barro (...) (Saint-Hilaire, 1997, p.104-105).
Outro aspecto muito valorizado do diário de Saint-Hilaire, "Viajem ao Rio
Grande do Sul", é a sua descrição a cerca do tratamento recebido pelos escravos
nas estâncias, especialmente quando escreve:
(...) Entretanto não há talvez, no Brasil, lugar algum onde os escravos sejam mais felizes do que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos; conservam-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come carne à vontade; não veste mal; não anda a pé; sua principal ocupação persiste em galopar pelos campos, o que constitui e exercício mais saudável do que fatigante; enfim, ele faz sentir aos animais que o cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos (op. cit., p.53).
A citação acima alimenta várias fantasias sobre a existência de um pampa
idílico gaúcho, que podem ser questionadas em outras passagens, quando ele relata
tratamentos cruéis às crianças negras:
37
(...) Não conheço criatura mais infeliz do que essa criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa tristemente apoiado à parede e é, freqüentemente, martirizado pelos filhos do patrão.( ...) não é esta casa a única onde há este desumano hábito de ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se quando necessário (op. cit., p.86-87).
Essa possível "escravidão amena" também fica inconciliável com uma lenda,
das mais populares do Rio Grande do Sul - "O Negrinho do Pastoreio", que retrata a
saga de um menino negro que sofre a crueldade do estancieiro e de seu filho que
lhe martirizam até a morte. Segundo Flávio Loureiro Chaves (1982), são as relações
de violência que se manifestam de maneira mais brutal na narrativa d' O Negrinho
do Pastoreio, na versão de Simões Lopes Neto publicada em 1906: "caracterizando
a personagem do estancieiro e o seu poder autocrático; e, por conseqüência
instaurando uma cisão já insanável entre patrão e escravo, o dominador e o
dominado" (Chaves, 1982, p.170).
Estas "raízes", formadoras de uma "fraternidade gaúcha", foram então
buscadas pelo Movimento encabeçado pelo grupo do "35"-CTG, que seguira sua
caminhada estruturando-se cada vez mais, com dezenas de CTGs inaugurados logo
após a sua fundação. Para organizar todas estas entidades e para definir os rumos
do Movimento, em 1954 foi realizado o I Congresso Tradicionalista, no CTG "Ponche
Verde", na cidade de Santa Maria. Neste Congresso foi aprovada a importante tese
de autoria de Barbosa Lessa, denominada "O Sentido e o Valor do Tradicionalismo",
documento teórico de maior importância para o Tradicionalismo que estava surgindo
no Rio Grande do Sul.
O documento de Barbosa Lessa identifica um processo de desintegração da
sociedade causado pelo enfraquecimento das culturas locais (constituídas pelo seu
Patrimônio Tradicional, os seus hábitos, seus princípios morais, seus valores, etc.,
38
que são compartilhados por todos) e o desaparecimento dos "grupos locais"
(pequenas unidades sociais compostas por pessoas que vivem juntos numa
determinada área, compartilhando hábitos e noções comuns, como o bairro, a vila, a
vizinhança, o distrito,etc.). Combater estes fatores de desintegração social,
reforçando o núcleo da cultura rio-grandense através dos Centros de Tradições
Gaúchas, é o objetivo apontado para o Movimento Tradicionalista Gaúcho que
estavam criando.
Diante dos rumos que estava tomando o Tradicionalismo, cada vez mais
constituindo-se num Movimento de grande porte, que estima-se que atualmente
envolva dois milhões de pessoas, os tradicionalistas começaram a sentir falta de um
órgão que servisse para unificar e enquadrar o Movimento dentro de uma mesma
regra. Segundo seus militantes, este organismo era necessário, para estudar e ditar
normas de interesse geral, trocar experiências e aproximar os CTG's. Para cumprir
esse objetivo, fundaram em 1966, no XII Congresso Tradicionalista, o Movimento
Tradicionalista Gaúcho, conhecido pela sigla de MTG.
1.2. O Gaúcho Tradicionalista
A figura do gaúcho, sofreu profundas transformações, em diferentes contextos
e momentos históricos, até chegar ao significado que atualmente é lugar comum. Os
historiadores, bem como os escritores de forma geral, e até mesmo os viajantes
estrangeiros, contribuíram para a transformação de um termo que pejorativamente
representava o ladrão de gado, contrabandista e vadio.
39
Aplicado originariamente para designar mestiços, índios, espanhóis e
portugueses que viviam da atividade de prear gado na região dos pampas40 da
Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul, no período Colonial, a expressão gaúcho
foi sendo reconstruída ao ponto de ser usada como quase um sinônimo de herói.
Este tipo social formado por desertores, aventureiros que realizavam a
atividade predatória de extração do couro no extremo sul do Brasil no decorrer dos
séculos XVII e XVIII, foi identificado como guasca, gaudério e gaúcho, mantendo
nestas três denominações o mesmo sentido de homens fora da lei.
Na visão mítica, o gaúcho sul-rio-grandense participou das lutas para
manutenção das fronteiras portuguesas na região do Prata; e com o
estabelecimento das fazendas de criação de gado, fixou-se como peão de estância,
perdendo suas características nômades. Porém, ainda não desfazendo o sentido
negativo do vocábulo, que é resignificado como figura de qualidades físicas e morais
exemplares.
Foi em fins do século XIX, início do século XX, que surgiu a figura do gaúcho
significando homem ligado às lides campeiras e ao trabalho pastoril nas estâncias,
que também foi chamado como soldado nas freqüentes disputas de fronteiras para
combater os invasores espanhóis e platinos. Apesar dessa conotação de peão
guerreiro não ter, de imediato, traduzido-se na imagem de homem forte e virtuoso,
começa aí a construção da imagem de herói que o gaúcho vai adquirir.
A partir de dois elementos, habilidade nas atividades campeiras e da
participação nas guerras, começou a ser construída outra imagem do gaúcho que se
difundiu: através da história que lhe confere atos heróicos nos conflitos de
40 Pampa: termo usado para designar as amplas áreas e planícies cobertas de pastagens.
40
demarcação dos limites de fronteira; através dos relatos dos viajantes que reforçam
a descrição de um tipo destemido; através da literatura que a partir do duplo
elemento, campeiro-guerreiro ou peão-soldado, foi modificando o uso do termo, num
processo de recriação do gaúcho como sinônimo de grandeza física e moral. O
gaúcho torna-se um mito.
Em "Historiografia - Estudos", Moacyr Flores analisa que as primeiras obras
da literatura escrita, seguiram os padrões do romantismo (a temática regional, a
descrição da paisagem e o uso dos termos locais), mostrando que em 1849, no
romance "O Corsário", de José Antônio do Vale Caldre e Fião, o personagem herói é
o bom campeiro que se veste de monarca e o gaúcho ainda significa o elemento
marginal do campo; que em 1869, o livro "Monarca das Coxilhas", de Apolinário
Porto Alegre, explora o contraste entre o meio rural e urbano sendo o campo visto
como o lugar melhor para viver; e que a entrada do gaúcho na literatura acontece
em 1877, com "Os Farrapos", de Luis Alves de Oliveira Belo, quando o monarca das
coxilhas é chamado de gaúcho - o centauro dos pampas.
Analisando o gaúcho como tema literário, Flávio Loureiro Chaves (1982) diz
que José de Alencar, autor de "O Gaúcho" (1870), ultrapassa o "tipo" para criar a
imagem do gaúcho como herói romântico - "um vulto ideal da idealização da
paisagem", criando um modelo a ser seguido; e acrescenta que o gaúcho desta obra
tem uma característica machista que será constantemente repetida na ficção,
formando o protótipo do gaúcho composto com: "o macho guerreiro", "a mulher que
ameaça invadir sua solidão" e "o cavalo seu fiel companheiro".
Para este autor, José de Alencar explorou a mescla de elementos
contraditórios e apresentou um gaúcho "meio homem, meio herói", formando um
41
"modelo". Pois o tipo, sempre identificado aos atos guerreiros e à vastidão dos
campos, já existia, mas o modelo alencariano (idealizado e mitificado) foi adotado
para fixar a imagem do gaúcho, e incorporado à tradição:
Alencar recobriu-o de aura épica, que era portador o `novo homem americano' pronto para executar o amplo gesto da liberdade, projetando-o no cenário histórico (...) concedeu-lhe cidadania de `centauro dos pampas' (Chaves, 1982, p.32).
Com essa transformação, o termo gaúcho não representa apenas o nome
pelo qual é conhecido o homem do campo entregue ao meio pastoril na região dos
pampas, ser gaúcho significa estar imbuído de uma série de qualitativos
representativos de coragem, justiça e liberdade, aqueles atribuídos ao mito do herói.
De uma ampla análise dos conceitos de mitos e símbolos feita por Jung em
"O Homem e seus Símbolos", destaca-se alguns elementos importantes: primeiro,
uma palavra ou imagem é um símbolo quando implica alguma coisa além do seu
significado imediato e óbvio; segundo, uma palavra ou imagem (símbolo) tem um
aspecto inconsciente mais amplo que nunca é precisamente definido ou explicado;
terceiro, quando a mente explora um símbolo é conduzido a idéias que estão fora do
alcance da razão.
Para Dayse Lange Albeche (1996), houve uma difusão histórica do símbolo
gaúcho, sendo que seu significado variou conforme os interesses de determinada
época. Ao trabalhar o imaginário cultural gaúcho, a autora chama atenção para os
diferentes significados que teve a imagem mítica do gaúcho, variando com o
contexto de sua elaboração, mostrando que o mito do gaúcho pode ser
reinterpretado e o seu significado constantemente reconstruído:
42
O gaúcho heróico do padrão romântico é muitas vezes generalizado como sendo a imagem da sociedade riograndense. Por sua mitificação é comum apresentá-lo como representante de determinados qualitativos, que podem ser traduzidos em valores de: bravura, honestidade, liberdade, justiça, força física, destreza, coragem, patriotismo, lealdade, ordem e moralidade (Albeche, 1996, p.9).
Partindo da concepção de que os mitos e os símbolos não são naturais, não
têm origem divina e que não foram inventados, ou seja, não são uma mentira, mas
são uma representação coletiva, a história quando investiga a constituição da
memória e o imaginário coletivo, busca símbolos e mitos que expressam as idéias e
valores que um determinado grupo social construiu a respeito de si em sua época.
Nesta investigação percebi que o gaúcho do Tradicionalismo faz um culto de
si, transformado em um tipo ideal e, conforme analisou Albeche:
Talvez a aceitação dessa `tradição legendária gaúcha' repouse em grande parte nos elementos sociais que conservam a imagem positivista de uma tradição reordenada, confundindo como real a reinterpretação do núcleo simbólico da imagem do gaúcho (op. cit., p. 132).
O mito do herói é reconhecido como o mais difundido mundialmente, sendo
observado que mesmo que ele varie muito de contexto, momentos e lugares
diferentes, conserva sempre as mesmas características essenciais, contidas no
"núcleo básico". Estas características, que Jung denomina "arquétipos", formam o
núcleo do herói, representado: por um nascimento milagroso, pela prova de força,
por uma rápida ascensão e a notoriedade, pela luta triunfal contra o mal e pelo seu
declínio, que aparece sempre como resultado de uma traição ou sacrifício e resulta
na sua própria morte.
O Tradicionalismo, faz essa reinterpretação do gaúcho, mantendo seus
"arquétipos" de herói, traduzidos nas qualidades do gaúcho que o MTG divulga: 1.
43
Hospitalidade; 2. Coragem; 3. Nativismo; 4. Respeito à palavra empenhada; 5.
Apego aos usos e costumes; 6. Cavalheirismo. "Tudo isso pertence ao catecismo
tradicionalista, ao seu código de honra" (Mariante, 1976, p. 14).
O gaúcho tradicionalista é uma caricatura do tipo lutador e campeiro, dotado
de um padrão moral, de onde foram extraídos os elementos que interessavam para
fundar um Movimento que pretendia reestabelecer um código ético, que existiu num
"tempo melhor", para dele resgatar sentimentos "saudáveis, laboriosos e patrióticos".
Esses qualitativos do gaúcho que fazem parte do discurso tradicionalista são
constantemente reforçados e são evocados nas comemorações, nas cartilhas e na
oralidade. Considerados como "autênticos" valores do Rio Grande do Sul, são
formadores de uma "moral gaúcha" e de uma "alma dos pampas", que transformam
o Rio Grande do Sul num lugar privilegiado e seus habitantes em homens
excepcionais. O Tradicionalismo busca conscientizar a necessidade dessa moral ser
cultuada e perpetuada, a fim de que se conserve imaculada dos valores externos.
Esta idéia de naturalização de um modo de ser e de sentir gaúcho é exposta
por Hélio Moro Mariante (1976) em "História do Tradicionalismo Sul-Rio-Grandense",
onde o autor atribui ao nativismo o fator da elevação do caráter e da moral dos
gaúchos, escrevendo que:
Ainda não transcorrera século e meio da fundação oficial do Rio Grande do Sul, 191021 1737, e gaúcho (...) já sentia a forte atração que a sua terra, os seus pagos, a sua querência, exerciam em sua idiossincrasia. Este sentimento de apego ao seu torrão natal, sua auto- afirmação de suficiência, este telurismo congênito foram- lhe inculcados, sem dúvida, pela aguerrida participação dos seus maiores nas constantes lutas para a demarcação e manutenção das lides meridionais de sua pátria (...). Tal reconhecimento ensejou ao homem sulino, sensorialmente, o sentimento de firmeza de caráter e de ação de seus ancestrais, sensibilizando-o como um seu predestinado continuador no tempo e no espaço (1976, p.5-6).
44
Segundo a argumentação de Mariante, esse apego do gaúcho pelo "torrão
natal", esse amor aos "pagos"41, essa ternura pela "querência"42 resulta de um
somatório de influências positivas exercidas pelos valores que o pago desenvolveu,
os valores de liberdade, de honradez e democracia.
Não devemos olvidar, ainda, o ar de liberdade que gozavam os habitantes da
raia meridional brasileira, com os seus horizontes infinitos e campos imensos, cujos
limites, a princípio, eram demarcados pelas cartas de sesmaria e ratificados na
prática pelo documento indubitável da palavra empenhada, do fio- de- bigode. Adite-
se mais o modo de vida das estâncias de então, onde o patrão e o empregado
esmeravam-se no labor do dia- a- dia (...) confraternizando diurnamente através da
cuia de chimarrão, elo afetivo e real da amizade e compreensão mútuas, enraizando
no gaúcho, por instinto e condicionamento o mais amplo sentido de democracia (op.
cit., p. 6).
O VIII Congresso Tradicionalista, realizado em Taquara em 1961, aprovou a
"Carta de Princípios" fixando os objetivos e os princípios do Movimento
Tradicionalista Gaúcho. O documento de autoria de Glaucus Saraiva mantém-se em
vigor e ressalta a idéia de retomada da "consciência moral do gaúcho", a
necessidade de barrar as idéias opostas aos "costumes naturais" do povo gaúcho e
de zelar pela pureza dos "costumes autênticos do gaúcho". A fim de fazer cumprir
estes objetivos, o item VII da Carta de Princípios indica que é necessário:
VII. Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e através da prática e divulgação dos hábitos locais, noção de valores, princípios morais, reações emocionais, etc.; criar em nossos núcleos sociais uma
41 Pago: nome dado ao lugar onde a pessoa nasceu. 42 Querência: lugar onde a pessoa vive.
45
unidade psicológica, com modos de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reação em conjunto frente aos problemas comuns (Saraiva, 1999, p. 24-25).
Para Maria Eunice Maciel (1999), o gauchismo e o Tradicionalìsmo operam
uma atualização do passado rural, agregando à figura do gaúcho uma noção de
autenticidade, onde os seus participantes comportam-se e vestem-se como
imaginam a existência do gaúcho na Campanha, e o Movimento alimenta a
possibilidade de viver o "outro" - o gaúcho.
Este "outro", é o gaúcho recriado e vivido nos CTG's. O gaúcho vivido no
Tradicionalismo, é o campeiro, que usa botas e bombacha, é gaúcho que sente
saudades e vive lembranças do seu "pingo"43, que lembra do fogo-de-chão e da roda
de chimarrão, que vive a nostalgia de uma vida ao ar livre e pura de um tempo de
fartura e confraternização.
Para que cada uma viva o gaúcho mesmo que, muitas vezes, nunca tenha
tido ligação alguma com o campo, o Movimento Tradicionalista propicia realizar: o
culto aos heróis, às comemorações cívicas e a mitificação do homem do campo,
especialmente da região da Campanha gaúcha.
O MTG mantém o modelo de gaúcho fixado, inclusive as suas contradições,
mas apresenta um espaço social simbólico para viver este tipo social, o CTG,
altamente disciplinado, que dita as normas de comportamento que extrapolam os
limites da entidade. Estas regras são aprovadas nos congressos do MTG e passam
a vigorar com força de lei, sendo muitas vezes confundidas com condutas de origem
remota.
43 Pingo: cavalo bom e bonito.
46
O uso das pilchas, as danças, a organização de eventos, como concursos
artísticos e provas campeiras, o tipo de música e a literatura, tudo é supervisionado
pelo MTG, que constitui o órgão disciplinador de todos o CTGs. Segundo a cartilha
do tradicionalismo gaúcho, alguns imaginam viver uma verdadeira "seita crioula".
1.3. Da Ausência das Mulheres à Invenção das Prendas
A presença feminina no CTG (Centro de Tradições Gaúchas) não era
imaginada no início do Movimento Tradicionalista que se estabeleceu a partir do
núcleo estudantil do Colégio Júlio de Castilhos e do "35"-CTG nos anos de 1947/48.
Encontrei referência à presença de algumas mulheres no Baile Gauchesco
promovido pelo Grêmio Estudantil do "Julinho", em 20 de setembro de 1947; entre
elas Maria Zulema Paixão Côrtes (12 anos), irmã do estudante João Carlos Paixão
Côrtes, o qual conta que o vestido usado pela irmã no baile foi criado por sua mãe,
pois não sabiam como vestia-se a mulher campesina do passado. Esses vestidos
foram descritos como simples e ingênuos, feitos de chita, compondo um conjunto
com cabelos em tranças e laços de fita.
Contudo, a estruturação do Movimento que estava surgindo não previa a
participação das mulheres; as reuniões que foram realizadas após as
comemorações do 20 de setembro de 1947, foram exclusivamente masculinas. A
partir destes encontros surgiu o "35"-CTG, fundado em 1948 como uma entidade só
de homens, um "galpão simbólico".
47
O galpão dentro da unidade econômica da estância era um espaço
masculino, o lugar dos peões. Barbosa Lessa (1984) considera que o galpão como
um fenômeno social da região da fronteira, que deve ser explicado muito além do
que uma simples construção de madeira que abriga peões próximo a casa-grande
de uma fazenda, ele considera mais do que isso:
(...) queremos enfatizar toda uma gama de relações desenvolvidas em torno do núcleo galponeiro (...). Além de morada dos peões (necessariamente solteiros), depósito de implementos e algo assim como um clube masculino para horas de descanso, o galpão também possuía essa estranha característica de albergue de viajantes humildes. A família do estanceiro, as moças da casa-grande, jamais desciam ao nível de um galpão (p. 111-112).
Essa idéia de galpão refletia nos rumos do Movimento, especialmente, no que
se refere às mulheres, que não são, inicialmente, convidadas a participar. O
Movimento Tradicionalista de 1947 seguiu sua caminhada e colocou no ar o
programa de rádio "Alma do Pago", na Rádio Farroupilha, e o sucesso da
programação também levou o jovem grupo tradicionalista ao teatro. Toda trajetória
iniciava sem a presença das mulheres.
Naqueles anos a dificuldade do elemento feminino para representar era enorme, e moça fazer teatro pertencia a outra esfera (...). Daí o recurso em suprir o elemento feminino por ricos marmanjos vestidos de mulher (Côrtes, 1994b, p. 128).
O "35" CTG já estava fazendo um ano quando, em março de 1949, os
representantes das entidades tradicionalistas reuniram-se em Montividéu para
comemorar "o dia da tradição". Como representantes do Rio Grande do Sul foram
escolhidos para ir ao Uruguai, alguns membros do Clube Farroupilha e do "35" CTG.
48
Paixão Côrtes, Cyro Dutra Ferreira e Barbosa Lessa fizeram parte desta comitiva,
que foi recepcionada pela Sociedade Criolla.
Os registros deste evento marcam o momento em que os tradicionalistas do
Rio Grande do Sul, começaram a indagar-se a respeito da ausência de mulheres no
grupo, pois no encontro de Montevidéu constataram que a presença de mulheres
nas demais sociedades era marcante e imprescindível.
Foi preciso que acontecesse a excursão a Montividéu (...) para que o exemplo trazido de lá (..) derrubasse, em importante momento, preconceitos que, embora de importância vital na formação e preservação da família gaúcha, em épocas passadas, vinham, de certa forma, prejudicando a terra vinda do "35" e de outros co-irmãos (Ferreira, 1999, p. 89).
Voltando à Porto Alegre, em junho de 1949, acontece no "35" CTG, a primeira
reunião44 com as "moças"; dentre as convidadas, participaram especialmente
parentes dos rapazes da patronagem do "35". Nesta reunião foi criada a I Invernada
de Danças do Movimento Tradicionalista, a lnvernada das Prendas.
Estava assim a mulher devidamente integrada no Movimento. No entanto detinha-se, ainda, as tarefas mais condizentes com o sexo feminino, como danças, culinárias, costuras, decorações, etc. Porém, dentre de pouco buscava outras participações, mais avançada para o encanto gracioso e frágil das prendas (...) (op. cit., p. 99).
Paixão Côrtes relata que a Invernada Social com a presença das prendas e
suas reuniões de "mate doce"45, foi a última a ser estruturada porque a estrutura
primitiva e tradicional da campanha não permitia a entrada da mulher no galpão.
44 Compareceram na primeira reunião: Maria Zulema Paixão Côrtes, Derce Paixão Côrtes, Sueli Dutra Soares, Sarita Dutra Soares, Lory Meireles Kerfen. Íris Piva, Norma Dutra Ferreira, Nora Dutra Ferreira, Damásia Medeiros Steïnmtz e Linda Degrazzia. 45 Mate doce: Segundo os tradicionalistas o mate ou chimarrão era complemento indispensável nas estâncias; Servido amargo o chimarrão para os homens e doce para as mulheres (em cuias especiais de louça).
49
Embora as mulheres passassem a ter espaço na estrutura do CTG que se
formara, contudo, a entrada no Movimento Tradicionalista já se fez cercada pelos
estereótipos do gênero feminino, com funções estipuladas e apropriadas às
"características femininas" e com a idéia de que nos espaços masculinos, "a
presença da mulher atrapalha".
A partir daí o elemento feminino, passou a participar em todos os setores do "35" (mas como incomodavam) e do Movimento, com destacadíssimas folhas de serviços prestados, até como patroas de CTG "s (op. cit., p.92).
A participação feminina no "galpão simbólico" exigia uma denominação para
elas: como iriam chamar-se as mulheres tradicionalistas? A busca de elementos do
passado não apontava uma solução, porque as mulheres dos gaúchos na época de
ocupação e demarcação territorial eram as "chinas" (mulheres brancas, negras ou
índias), que na representação mítica, expressa através dos textos gauchescos,
homogenizou como "índias roubadas e levadas à garupa de seus cavalos".
O termo "china" manteve o sentido de prostituta no Rio Grande do Sul,
portanto esta denominação não poderia ser adequada para designar as mulheres
dos CTG"s, entidades que nasciam sob inspiração de uma visão moral que visava
resgatar nobres costumes de um tempo áureo e puro.
Os fundadores do Movimento Tradicionalista, que iniciava com a fundação do
"35", foram em busca de um termo que melhor representasse a companheira do
herói romântico mitificado pela expressão gaúcho. Escolheram o nome de prenda,
para idealizar uma mulher pura, ingênua e graciosa.
Prenda, segundo o dicionário, significa objeto de valor, que pode ser dado de
presente a alguém. Além disso, segundo Maria Eunice Maciel, em "Tradição e
50
Tradicionalismo no Rio Grande do Sul", prenda foi uma das poucas referências
encontradas como sinônimo de mulher, na canção folclórica "Prenda Minha". Ainda,
segundo a autora, prenda, como imperativo do verbo prender, associa-se a uma das
imagens mais vinculadas do gaúcho - a do homem livre.
A imagem mais conhecida do gaúcho é aquela que o representa como um homem livre, galante e conquistador, percorrendo o pampa montado em seu cavalo. Se esse gaúcho não constituía laços familiares (impedido por muitas razões, entre as quais, o trabalho nas estâncias, chamar a mulher de Prenda) parece significativo reforço desta imagem: o homem livre e a mulher que prende (Maciel, 1999b, p. 141).
Chamadas de prendas, as mulheres que passaram a freqüentar os CTG"s,
geralmente as mães, esposas e filhas de homens tradicionalistas, e a elas coube ser
a expressão feminina do Tradicionalismo. Ao criar um nome, inventar uma dança,
desenhar um vestido, também foi sendo acrescentado um conjunto de valores tidos
como parte da "essência feminina": delicadeza, beleza, simpatia e recato. Prenda
passa a ser a expressão da "mulher honesta", passa a representar a "mulher
gaúcha", oficializada como autêntica pelo Tradicionalismo.
51
CAPÍTULO 2
A PRENDA TRADICIONALISTA
O que se observa é a pluralidade de vivência das mulheres que, nas diferentes camadas sociais e etnias, distribuem-se num colorido que impede qualquer caracterização. Assim, apesar de, nos dias de hoje, ainda se delinear no Paraná a imagem da "polaquinha" ; em Santa Catarina a da "alemazinha trabalhadeira"; e no Rio Grande do Sul a da "prenda"; esse esforço manteve-se apenas como estereótipo (Pedro, 1997, p. 315-316).
Neste capítulo vou percorrer o itinerário de produção da memória que criou a
prenda, a partir de um conjunto de procedimentos necessários para apreender o
enquadramento dessas memórias envolvidas no processo de constituição e
naturalização da prenda como personagem histórica do Rio Grande do Sul. Analiso
a hipótese de que a construção da prenda se efetivou através das imagens criadas
pela indumentária, pelas danças, pelas poesias e pelas canções; compondo um
modelo de mulher baseado na concepção positivista e na doutrina católica, para
afirmar uma moral conservadora: que o CTG escolheu para cultuar.
A estrutura social do CTG inventou a prenda e a ela atribuiu um papel social,
criando um conjunto de expectativas em relação ao comportamento das mulheres
que representariam as "tradições gaúchas". O Tradicionalismo abriu espaço para a
entrada das mulheres no CTG, entregando-lhes a responsabilidade de
representarem a figura da prenda. As condutas esperadas das prendas são fruto de
um processo de sujeição dessas mulheres à estrutura social do Movimento
Tradicionalista Gaúcho. O conjunto de normas instituídas pelo MTG baseia-se na
diferença de papéis sexuais atribuídos aos gêneros masculino e feminino, e estas
52
normas são internalizadas pelas prendas que agem em resposta a uma estrutura
que delimita o seu espaço.
O Tradicionalismo gaúcho criou a prenda inspirado no modelo feminino que
foi assentado pela sociedade patriarcal e reforçado pela forte influência do
positivismo no Rio Grande do Sul. Esta concepção positivista presente na
sociedade, marcara os fundamentos gerais do culto às tradições propagandeado
pelas entidades tradicionalistas fundadas por Cezimbra Jacques no séc. XIX. O
positivismo também continuou norteando 0 pensamento dos tradicionalistas do séc.
XX, que criaram a prenda, visto que esta representa a imagem de submissão das
mulheres, ao seu papel de mãe, esposa ou filha.
Auguste Comte ao criar uma doutrina para desenvolver as "virtudes humanas,
domésticas e cívicas"; considerou impossível popularizar o positivismo e instituir
esse regime severo sem o apoio "irresistível" das mulheres e do proletariado. Comte
considerou as mulheres como "sexo afetivo", como as mais dispostas para combinar
a "ordem e o progresso" e realizar a propagada "regeneração da humanidade"
através da família, concebida como base fundamental da sociedade46.
Esse ofício fundamental resulta sobretudo da influência pessoal que cada digna mulher desenvolve sem cessar no seio de sua própria família. Do santuário doméstico dimana de contínuo esse santo impulso, único que nos pode preservar da corrupção moral a que sempre nos dispõe a existência prática ou teórica. Sem tais raízes privadas, a ação coletiva da mulher sobre o homem não comportaria, por outro lado, nenhuma eficácia permanente (Comte, 1983, p. 173).
O discurso positivista é muito semelhante ao discurso religioso católico, no
que se refere à família, à moral e ao comportamento das mulheres. Os dogmas da
46 Ver o estudo de Elizabete da Costa Leal, "O Positivismo, o Partido Republicano Rio-Grandense, a Moral e a Mulher (1891-1913)".
53
Igreja Católica que apresentavam-se (e apresentam-se) fortemente enraizados na
sociedade, foram inspiradores de muitos conceitos da Religião da Humanidade
formulada por Auguste Comte. A idéia cristã de matrimônio é a de casamento
monogâmico, "laço indissolúvel", que para as mulheres significa "amor ao lar",
restringindo-lhe o trabalho fora de casa, que lhe impediria de assumir plenamente
sua "vocação" para a maternidade. Estando a união conjugal associada à
maternidade, sexo para as mulheres significa reprodução, e a virgindade é mantida
como um valor. A mulher deve ser virgem ou esposa e mãe, seu espelho é Maria,
uma representação simbólica difundida como exemplo a ser seguido.
Em "Destino de Gênero - Educação de Mulheres na Escola Feminina de Artes
e Ofícios Santa Terezinha", Andrea Delgado investiga a educação cristã para as
mulheres (1923-1942) e afirma que o destino preparado pela Igreja Católica para as
mulheres passava pelo reconhecimento dos dois principais símbolos de mulher: Eva
e Maria, uma símbolo do mal e outra símbolo do bem.
No momento da retomada do Tradicionalismo, ainda estavam presentes nos
debates os conflitos de discursos a respeito das mulheres, quanto a sua "vocação"
para maternidade e a sua entrada para o mundo do trabalho. O Movimento
Tradicionalista Gaúcho que se formou a partir da invenção dos Centros de Tradições
Gaúchas, assumiu um discurso que mantém esse imaginário da existência de
características "naturais" ao sexo feminino, como recato, delicadeza e submissão
(presentes na prenda) em oposição às características masculinas (associadas à
força e à liberdade) representadas na figura do gaúcho.
A prenda é uma figura que emerge no projeto do CTG quando os
tradicionalistas perceberam que as mulheres representam um grupo importante
54
dentro de qualquer projeto que pretenda estabelecer-se como dominante.
Considerando a ordem moral como um aspecto fundamental, o Movimento
Tradicionalista elabora um conjunto de discursos e práticas que se unem para fundar
uma determinada moral condizente com sua concepção de sociedade.
A tese "O Sentido e o Valor do Tradicionalismo", de Barbosa Lessa aponta a
"família" e o "grupo local" como as duas unidades sociais mais importantes para
transmissão da "herança social", portanto cada Centro de Tradições Gaúchas é
considerado um novo "grupo local" que visa auxiliar para o melhor funcionamento da
"engrenagem" da sociedade. Por "grupo local" é entendido o grupo de famílias que
vivem próximas e compartilham hábitos comuns.
O `pago; por exemplo influencia a vida dos seus membros, estabelece limites a vida social ( quais as famílias que podem ser convidadas para as festas) mantém elevado grau de cooperação (...). O indivíduo conhece perfeitamente os costumes e os princípios morais instituídos pelo seu "pago" (...). Todas essas circunstâncias influem para que o "grupo local" se constitua numa potente barragem para as transgressões à ordem pública ou moral (furto, sedução, adultério, etc.) (Lessa, 1999, p.16).
Para Auguste Comte a mulher ascendia moralmente sobre os homens, era
"guardiã da moral": como mãe, esposa e filha não estaria corrompida pelos vícios do
mundo fora do lar, faria do mundo doméstico e da família um santuário de
preparação para o mundo social. Esta concepção está presente na obra de
Cezimbra Jacques, Patrono do Tradicionalismo, quando atribuiu à mulher sul-rio-
grandense a plena garantia moral do lar doméstico, que segundo ele, esteve
dignamente compenetrada nas nobres funções de esposa, mãe e irmã, contribuindo
para elevação física e moral do homem, e com isso conseguindo "retemperar" a raça
que fez do sul-riograndense um "povo varonil":
55
(...) em, regra geral, ela tem se tornado, felizmente, surda às doutrinas anárquicas que pretendem arredar as mulheres do digno papel de esposa, mãe e irmã ou, em uma palavra, de formar cidadãos e mantém-se firme no lar doméstico, para a felicidade da nossa terra, na posição de fiel sublime anjo da guarda do filho e de inspiradora do marido e do irmão" (Jacques, 1997, p.47).
Esta mulher do Rio Grande do Sul, descrita por Cezimbra Jacques, está
carregada de uma memória que denota a construção histórica do gênero feminino:
para um povo hospitaleiro, com homens valentes e nobres, resultado de um clima
puro, de um cruzamento de raças fortes e de uma alimentação simples não poderia
faltar uma figura feminina doce e pura, capaz de inspirar os homens desta terra, nos
seus "feitos magnânimos".
(...) esse cruzamento de açorianos, paulistas, espanhóis e indígenas, e esse contato dos dois povos, sul-rio-grandense e platino, deram á mulher sul-rio-grandense a beleza e graça da andaluza, a inteligência da francesa e um coração que encerra os grandes sentimentos da humanidade, a par da doçura e da digna submissão ao homem (op. cit., p.47).
Nos anos de 1949-1950 as mulheres entraram nos Centros de Tradições
Gaúchas e passaram a constituir uma parte importante deste projeto que atribuiu às
mulheres, à família e à educação papéis fundamentais dentro da doutrina
tradicionalista que pretendia estabelecer-se como hegemônica, e por isso
preconizava dar atenção especial às novas gerações.
As prendas passaram a fazer parte do Movimento Tradicionalista e, segundo
Barbosa Lessa: "Não fossem as prendas, seríamos meia dúzia de homens tomando
mate" (apud Paixão, 1991?, p. 48).
Para que a prenda passasse a fazer parte da memória tradicionalista vários
mecanismos foram criados e passaram a agir no interior desse universo - danças,
vestimentas, concursos de prenda e canções - criando um imaginário que a inseriu
56
na história gaúcha e deu a ela um "lugar" na memória. Ao percorrer este caminho de
constituição da figura da prenda,
vou analisá-lo através de três itens: A Invernada das Danças, A
Indumentária da Prenda e A Mulher que Espera.
2.1. A Invernada das Danças
A prenda começou a participar no CTG com um lugar certo para sua atuação:
como o par do gaúcho na representação de sua danças, levando para CTG a sua
"graça e beleza". Ela é o par romântico para o "herói dos pampas", a pureza e a
delicadeza são elementos tidos como naturais, vistos como inerentes à "mulher
gaúcha". O gaúcho, descrito como homem "forte e valente" encontrava na prenda a
sua companheira idealizada: uma mulher bonita, recatada, doce e graciosa. Em seu
texto "Prendas e Antiprendas", Luiz Fernando Veríssimo, descreve o padrão
feminino do CTG como o de uma mulher submissa:
Nossa história toda foi guerreira, campeira e patriarcal. Em sociedades assim o homem faz da mulher menos do que um assessor, um acessório. A mulher é subalterna e ai que não goste. Nada mais educativo do que nossas danças tradicionais, em que os homens sapateiam, batem as esporas, cruzam os facões e brilham enquanto as prendas rodam a saia (apud Louro, 1987, p. 9).
Essa memória guerreira do gaúcho também se constrói em conjunto com a
constituição de uma mulher que espera o seu retorno, a figura masculina é a
afirmação da valentia e, ao mesmo tempo, da fragilidade feminina. Essa idéia da
57
dança como representação da "verdadeira alma gaúcha" está descrita no "Manual
de Danças Gaúchas":
As danças que apresentamos nesse manual estão impregnadas do verdadeiro sabor crioulo do Rio Grande do Sul, são legítimas expressões da alma gauchesca. Em todas elas está presente o espírito de fidalguia e de respeito à mulher, que sempre caracterizou o campesino riograndense. Todas elas dão margem a que o gaúcho extravaze sua impressionante teatralidade. Danças que sufoquem a teatralidade do gaúcho, ou que venham colidir com o respeito que o gaúcho nutre pela mulher, jamais poderiam vingar num ambiente gauchesco (Lessa e Côrtes, 1997, p. 17).
As danças reproduziram esta perspectiva, tornando-se um elemento central
de ligação da prenda com o Movimento Tradicionalista e o principal atrativo para as
jovens que decidem começar a freqüentar o CTG.
A representação das danças foi uma necessidade para os fundadores do "35"
CTG. Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, encarregados de buscar aquelas que teriam
sido as danças do Rio Grande do Sul, saíram a campo tentando descobrir passos e
também inventaram coreografias que hoje são difundidas como danças tradicionais47
da sociedade gaúcha. Relatando uma dessas tentativas os tradicionalistas acima
citados contam que conseguiram localizar o último remanescente do grupo que
dançava sob orientação de Cezimbra Jacques, Estácio José Pacheco, que recordara
da música da "Tirana", dançada em grupo sob coordenação de um mandante. Este
relato é rico porque expressa essa constituição, através da dança, de um prenda
que é enfeite, que prende o gaúcho com seu encanto e sua delicadeza.
Os homens postavam-se numa fila, as mulheres em outra, separados cerca de três metros e olhando-se face a face. Uma e outra fila avançavam,
47 A Primeira apresentação de Dança Tradicionalista, fruto dessas pesquisas, aconteceu em 1950 quando Porto Alegre sediou a III Semana Nacional do Folclore e o grupo do "35" montou um festival gauchesco para apresentar.
58
recuavam, os homens faziam volta em torno das mulheres, as filas tornavam a se separar. No momento de girar, ou no momento de retornar às posições iniciais, os homens deviam `enfeitar' o sapateado com variações, taconeios, ponteados, puxados. As mulheres limitavam-se a 'sarandear' graciosamente. Da metade para o final a dança se enriquecia de mímica através de lenços: ora as mulheres `prendiam' os homens a seus lencinhos, ora os homens `puxavam' suas companheiras pelo lenço. Uma verdadeira linguagem amorosa era traduzida, assim, pelo agitar dos lenços (Lessa e Côrtes, 1975, p.510).
Numa tentativa de historicizar estas danças, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes
recorrem a Nicolau Dreys para distinguir um "gaúcho do campo" - mestiço, auxiliar
dos estacieiros e pouco social - do gaúcho estancieiro e do peão de estância, que
dançavam nos bailes ou fandangos realizados no campo, descritos por Cezimbra
Jacques.
Em "Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul",
Nicolau Dreys descreve um "gaúcho vulgar", que o Tradicionalismo recalcou para
construir o "gaúcho heróico":
Os gaúchos parecem pertencer a uma sociedade semelhante à dos antigos tártaros zaporojos. Geralmente aparecem sem mulheres e manifestam pouca atração para com elas. Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos têm da moral social apenas as idéias vulgares e sobretudo uma sorte de probidade condicional que os leva respeitar a propriedade de quem lhes faz benefício ou neles deposita confiança. (...) ele quer dinheiro principalmente para jogar, ou para adquirir a posse de qualquer brinquedo que, como as crianças, excitou sua cobiça. (...) o tempo passa-se a jogar, tocar ou escutar uma viola nalguma venda, e às vezes, porém com raridade, dançar uma espécie de `chula' grave, como eu vi alguns deles praticarem (apud Lessa e Côrtes, 1975, p.35-36).
Este discurso do "guasca", que não tem a dança como seu momento de
diversão e que não gosta de mulher, foi transposto por outro discurso que apresenta
um gaúcho inserido nas danças e sensível aos "encantos femininos". Uma
construção que tem como uma de suas fontes, as informações de Cezimbra
Jacques, que ao fundar a sociedade tradicionalista "Grêmio Gaúcho" em 1898,
59
pretendeu reviver os "bons costumes gaúchos", apresentando algumas pesquisas
sobre estes costumes. Suas pesquisas têm sido objeto de questionamentos,
contudo para os tradicionalistas, Cezimbra Jaques é considerado o primeiro
estudioso das tradições riograndenses, e seus registros sobre cantigas e
sapateados nas danças gaúchas tornaram-se referências:
Os bailes em que eram elas dançadas denominavam-se fandangos, os quais nos primeiros tempos constituíam os divertimentos dos salões das altas classes (antigos estancieiros), descendo até as senzalas dos peões, que mais tarde com suas chinas eram os únicos apologistas dessas danças, cujos vestígios ainda se encontram na região serrana e na Serra Geral. (...) Nos sapateados do fandango havia certos puxados de pé cuja execução dependia de uma ginástica bem difícil, pois que cerravam todos a um tempo a sapateada, batiam com o salto do botim ou com a roseta da espora sem interromper a dança e no mesmo tempo faziam o puxado. Entre as altas classes, que até pelos anos de 1840 ainda era muito usado, foi sendo substituído pelas danças vindas da Europa (apud Lessa e Côrtes, 1975, p. 37).
Esta passagem trás a informação de que fandangos seriam, inicialmente,
bailes dos "salões das altas classes", referência que não encontra concordância com
a definição feita dessa palavra no Dicionário:
Fandango: [do Espanhol fandango] 1. uma dança espanhola contada e sapateada, em compasso ternário (3/4) ou binário composto (6/8), andamento vivo, ao som das guitarras e das castanholas. 2. música para essa dança. 3. canto popular espanhol. 4. dança rural portuguesa sem canto. 5. Bras. Sp. Espécie de coretê, chula. 6. Bras. S. Baile popular, especialmente rural, ao som de viola ou de sanfona, no qual se executam várias danças de roda e sapateados (...) (Ferreira, 1995, p. 289).
Além de conferir ao fandango uma origem nobre, esta citação do Patrono do
Tradicionalismo, também é importante porque apresenta um outro elemento
presente na constituição da prenda pelo Tradicionalismo - a figura da china. A china,
apesar de estar presente nos relatos como a figura feminina que acompanhou este
60
gaúcho histórico, é recalcada no discurso do CTG, passando a prenda a ocupar este
papel como "legítima" representante da "mulher gaúcha", com características
opostas às que descrevem o perfil da china.
Este contraponto com a china aparece em outras passagens do livro "Danças
e Andanças da Tradição Gaúcha", quando Barbosa Lessa e Paixão Côrtes analisam
que a popularização da gaita serviu para difundir os novos ritmos de pares
entrelaçados, num momento histórico em que caracterizaram uma divisão entre o
"baile de sociedade", com excessivo zelo moral e o "bochincho" ou "baile misturado",
da farra, da ralé e das chinas.
Nas festas da ralé preferia-se agora, apertar a `china' nos braços, ao ritmo da polca, ao invés de cortejá-la com maneirosos sapateios. O abraço desencadeou o erotismo e, nas ramadas mal iluminadas por lampiões, peões e prostitutas substituíram definitivamente por reuniões desbragadas em que a dança se misturava à cachaça e, eventualmente, a brigas de adaga (Lessa e Côrtes, 1975, p. 62-63).
A configuração da china nos fandangos, transmitida através das poesias e
canções, faz parte da elaboração da china como representação da "mulher
desonesta", e serve para estabelecer a prenda como o símbolo da "mulher honesta",
o oposto da china. No texto "China, galpão e bolicho", Barbosa Lessa (1984) relata a
denúncia de um pároco contra o capitão comandante das Missões que mantinha
relações com uma china, dando um mau exemplo para a livre aproximação entre
soldados e mulheres índias: "O difícil mesmo é que se encontrasse um homem, em
suas andanças de fronteira, sem levar uma china à garupa do cavalo" (p. 111).
A prenda é construída em negação a um tipo social que precisava ser
refutado, a mulher prostituta que a china representava, e apresenta-se como a
antítese formadora de um novo imaginário social que inseria as mulheres de maneira
61
singular, esteriotipada e idealizada, reencarnando a imagem feminina do "anjo
tutelar" e "rainha do lar".
A história tradicionalista contempla ilustrações a respeito da "origem" da
"mulher gaúcha", o discurso revela uma "sociedade gaúcha" que iniciou com os
casais de açorianos, com os tropeiros e soldados que constituíram estâncias e
formaram famílias. Esta família é entendida como o marco fundador de uma moral
com profunda implicação social: a moral da estância que teria estabelecido uma
relação harmoniosa entre as classes sociais, fazendo do galpão um "clube de
homens livres convivendo democraticamente", e da "mulher gaúcha" uma figura
mais sociável em relação ao restante do país.
Esta "sociedade gaúcha" imaginada, diferencia-se, no discurso tradicionalista,
da sociedade brasileira que teria sido iniciada só por homens, mantendo durante o
período colonial uma estrutura cuja a unidade econômica do engenho teria
confinado a "mulher brasileira" a não participar dos salões de baile, tornando-as sem
encanto e segregadas pelo ciúme dos seus maridos. Situação oposta ao cenário
gaúcho idealizado pelo CTG, que reforçou a antiga tese da existência de uma
confluência dos fatores favoráveis, como o uso do cavalo e a abundância de carne,
atuando no sentido da "evolução gauchesca", tornando os campeiros do Rio Grande
do Sul mais abertos à dança com a participação da mulher e pouco propícios aos
"folguedos" exclusivamente masculinos, portanto, heróis românticos.
Ao contrário, a `mulher gaúcha' não precisou fugir dos ambientes de trabalho e - desde que respeitasse o galpão como cenáculo masculino- pode participar mais amiúde do convívio com os homens (Lessa e Côrtes, 1975, p. 69-70).
62
O discurso sobre a "mulher gaúcha", reelaborado no Movimento
Tradicionalista, foi fortemente alimentado por descrições feitas pelos viajantes
estrangeiros, Auguste de Saint-Hilaire, Nicolau Dreys e Arsène Isabele, convertidos
em representações culturais hegemônicas a respeito da existência de uma "mulher
gaúcha", mais sociável, educada e hospitaleira. Seus relatos são usados para
distinguir as "mulheres gaúchas" como menos presas, menos escondidas, mais
bonitas e mais desembaraças do que as mulheres das demais regiões do Brasil,
também servindo para diferenciá-las das mulheres das outras regiões platinas.
No ensaio intitulado "Mulheres de 35", Aldira Retamozo, afirma que as
mulheres rio-grandesenses "diferiam das mulheres de outras regiões, conforme o
atestam viajantes estrangeiros (.... )". Ela analisa o contexto em que estavam
inseridas as mulheres brasileiras do século XIX, sendo vistas como submissas,
destinadas ao casamento, analfabetas, recebendo apenas noções de costura,
bordado, culinária e outras "prendas domésticas", ao contrário das mulheres rio-
grandenses, apresentadas como mais desenvoltas, "pois não se escondiam à
presença de estranhos, com eles conversando com naturalidade, sem a perda da
sua dignidade nem o aviltamento de sua moral" (1987, p. 7).
Em "Aspectos da Sociabilidade Gaúcha", Barbosa Lessa e Paixão Côrtes,
desenvolvem a tese da existência de um acentuado espírito de "cordialidade e
desembaraço" entre as mulheres como conseqüência direta de um elevado espírito
de sensibilidade entre os homens do Rio Grande do Sul, e do "elemento humano"
formador das primeiras estâncias.
Dessa forma, o modo de ser da "mulher gaúcha" é atribuído: ao modo de vida
nas estâncias do Sul; ao prazer e a alegria de lidar com o gado; ao menor número
63
de escravos; à participação do patrão e dos seus filhos junto com os peões nos
rodeios. Tudo isso configuraria um "ambiente moral" no campo diferente das
senzalas, este ambiente teria proporcionado à mulher rio-grandense participar dos
rodeios (aplaudindo as proezas de seu pai, de seu irmão, de seu noivo) e teria
possibilitado a muitas mulheres assumirem a chefia da estância (enquanto os
maridos lutavam longe).
O discurso acima descrito considera-se "autorizado" pelos relatos dos
viajantes, para referendar a representação a respeito da "sociabilidade gaúcha",
seus autores citam Nicolau Dreys descrevendo a sua passagem no Rio Grande do
Sul, em 1817, numa carreira de cavalo:
As senhoras assistem também esses divertimentos, como indispensável e mais apreciável ornamento da festa; elas se apresentam ou a cavalo ou em carrinhos; distribuem-se e vão assentar-se sobre um declive relavo de algum terreno elevado, d' onde podem presenciar tudo sem serem incomodadas, ao mesmo tempo que os escravos se ocupam mais longe em preparar um cozinha campestre (apud Lessa e Côrtes, 1985, p. 40).
A leitura que fiz dos diários dos viajantes, no entanto, só consegue reforçar a
idéia, hoje corrente aos estudos de gênero, que não existe "uma" mulher a ser
estudada, tanto no Rio Grande do Sul como em qualquer outro contexto, mas sim
uma pluralidade de mulheres. O trecho acima citado, inclusive pode ser lido e
interpretado como referência de que no Rio Grande do Sul muitas mulheres também
encontravam-se confinadas ao papel submisso de "ornamento", como as demais
mulheres do restante do país.
Existem trechos de Saint-Hilaire em que são relatadas algumas
características de determinadas mulheres, vestindo-se com "simplicidade e
64
decência", com um "tom distinto", tocando piano ou cantando, "claras e coradas" e,
"algumas bonitas".
Encontrei maneiras distintas em todas as pessoas da sociedade. As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens, estes as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou desejo de agradar, qualidade aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No interior, como já o afirmei centena de vezes, as mulheres se escondem; não passam de primeiras escravas da casa, e os homens não têm a mínima idéia dos prazeres que podem usufruir com decência. Entre as senhoras que vi, hoje em casa de Sr. Patrício, havia algumas bonitas; na maior parte eram muito brancas, de cabelos castanhos escuros e olhos negros; algumas graciosas, mas sem aquela vivacidade que caracteriza as francesas (Saint-Hilare, 1997, p. 40).
Porém, não é possível buscar uma uniformização, imaginar que todas as
mulheres fossem cordiais e delicadas, estas passagens não autorizam falar de "uma
mulher gaúcha", mas de homens e mulheres que viviam de distintas maneiras.
Outros trechos, de Arsène Isabelle, por exemplo, enfocam a falta de liberdade
das mulheres no Rio Grande do Sul e apresentam uma realidade de ignorância,
sofrimento, aborrecimento e severidade dos maridos "tiranos" com relação as suas
mulheres no "santuário" doméstico. Além disso, Isabelle também descreve as
mulheres de Porto Alegre como sobrecarregadas na maneira de vestir e sem a
graciosidade e ingenuidade conclamadas.
Aborrece-me repetir mas é uma verdade que não posso silenciar, as brasileiras desta Província, não são nem belas nem graciosas; em vão exageram e sobrecarregam-se de jóias, broches, flores e ninharias: tudo isso não anima sua tez, nem dá expressão a seus olhos, nem, enfim, esse ar de liberdade nos movimentos que, primeiro de tudo, seduz nas Portenas. Procura-se em vão ler em sua fisionomia o estado de alma; ela não indica nada, nem mesmo ingenuidade; têm, em público, um rosto de autômatas e nada mais; eis o que fizeram os portugueses! (Isabelle, 1983, p.63).
2.2. A Indumentária da Prenda
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A prenda é uma invenção nova, surgiu com os Centros de Tradições
Gaúchas, através do grupo fundador do "35"- CTG. Ao criá-la também foi preciso
buscar elementos de como compor esta figura.
Com referência às "prendas" tivemos que improvisar algum figurino que nos parecesse lógico, enquanto tomávamos consciência de um novo item a acrescentar aos próximos formulários de pesquisa-de-campo: a indumentária gauchesca nas festas do passado. (...) No fim as `prendas entraram em cena, com seus vistosos vestidos floreados (Lessa e Côrtes, 1975, p. 110-111).
A prenda deveria vir ornada de uma vestimenta específica, representativa
daquilo que os tradicionalistas imaginavam que fosse a forma de vestir da "mulher
gaúcha" no passado, a qual o Movimento queria perpetuar através da prenda.
Os estudos tradicionalistas apresentam um histórico do vestido da "mulher
gaúcha", assim definido: até 1750, o "tipoy" (longo, de algodão crú, de dois panos,
com abertura para os braços e pescoço, amarrado à cintura com um cordão); após o
"chiripá" como saia; de 1820 a 1870 o vestido da moda européia (de seda ou veludo,
botinhas, travessa no cabelo, leque, meias e chale); a mulher campesina usava saia
e casaquinho, meias e sapatos fechados, cabelos soltos ou trançados; a partir de
1870 vestiu-se de forma variada; e com o surgimento do Movimento Tradicionalista
adotou o vestido de prenda (ressurgimento dos modelos antigos).
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FIGURA 2: Estancieira gaúcha FIGURA 3: China das Vacarias
FIGURA 3: Mulher Gaúcha FIGURA 4: Prenda Tradicionalista
Fonte das figuras: Livro “A Indumentária Gaúcha”, de Antonio Augusto Fagundes, p. 38, 40, 42 e 44)
Este vestido de prenda é apresentado como a síntese da "sobriedade e
beleza da mulher gaúcha", conforme o "ABC do Tradicionalismo Gaúcho":
67
De chita, o vestido de prenda conserva a simplicidade da mulher gaúcha, sem afetar a beleza de um ser de padrões morais superiores. Vestida de chita, sapato simples e uma flor no cabelo, a prenda gaúcha é o mais original quadro de beleza, pintado pela natureza (Lamberty, 1989, p. 101-102).
O vestido de prenda é uma peça fundamental desta simbologia que envolve a
"invenção das tradições", o vestido deveria enfeitar a mulher, valorizar seus
movimentos nas danças e, especialmente, traduzir a idéia da mulher romântica,
"naturalmente" delicada, dócil e dependente do homem forte e independente.
Analisando que os registros históricos reservam pouco espaço às mulheres e
que quando o fazem obedecem a critérios de ordem e de papel,
Michele Perrot observa que a cidade no séc. XIX é um espaço sexuado e que
as mulheres são focalizadas pelos cronistas, através das roupas que usam:
Nela as mulheres se inserem como ornamento, estritamente disciplinadas pela moda, que codifica suas aparências, roupas e atitudes, principalmente no caso das mulheres burguesas cuja lazer ostentatório tem como função mostrar a fortuna e a condição do marido. Atrizes no verdadeira sentido do termo, elas desfilam nos salões, no teatro ou no passeio público e é a forma como se vestem que interessa os cronistas (Perrot, 1989, p. 10).
Essa natureza simbólica do vestido como parte do ritual que o
Tradicionalismo quer preservar, para estabelecer modos de pensar e agir, reflete o
destaque feito no livro "Indumentária Gaúcha", quando o autor resgata a situação do
uso do luto, que deveria ser fechado ou completo, pelo falecimento da mulher, do
marido ou dos pais, durante uns seis meses:
A mulher usa meias pretas, severo vestido preto e um pano preto na cabeça. O homem usava botas pretas, bombachas pretas (...). Depois, entre um e seis meses, dependendo da dor que se quer demonstrar, se alivia o luto: a mulher usa um vestido cinzento, conservando muitas vezes as meias pretas (ou fumês) e o lenço. O homem usa bombacha xadrês, camisa xadrês ou branca (...) (Fagundes, 1996, p. 27)
68
A partir de algumas passagens e relatos a respeito da vestimenta feminina, de
alguns vestígios do passado e também da criatividade da mãe de Paixão Côrtes que
confeccionou o primeiro "vestido de prenda" para sua filha participar do Baile
Gaúcho em 1947, foi elaborada a primeira versão do futuro vestido de prenda,
apresentado publicamente pelo "35"CTG em 1949 e regulamentado como a
Indumentária Oficial da Prenda, pela tese apresentada por Luiz Celso Yarup, no 34°
Congresso Tradicionalista Gaúcho (1989).
O vestido de prenda difundiu-se a partir de um conjunto de rituais, das danças
apresentadas, dos bailes e saraus, dos desfiles e de outras cerimônias cívicas e
comemorações. O vestido de prenda foi oficializado como indumentária gaúcha,
passou a fazer parte da "tradição", tornou-se a pilcha feminina que figura ao lado do
gaúcho com sua indumentária composta pela bombacha48 e acessórios.
O vestido de prenda é uma inovação, apesar de revestir-se de um caráter de
antigüidade. Através do seu uso repetitivo popularizou-se tornando-se parte do
sonho de jovens e crianças que imaginam viver essa personagem prenda, a "mulher
gaúcha" criada pela visão tradicionalista. O Movimento Tradicionalista Gaúcho
passou a regimentar a confecção deste vestido que estabeleceu-se como um dos
componentes mais importantes na divulgação do Movimento, também passou a
instituir normas e, ao mesmo tempo, estabelecer "laços com o passado" a fim de dar
maior autenticidade a sua criação.
O vestido de prenda é oficializado como "Pilcha Gaúcha" para representar a
visão atual da "mulher gaúcha", sua regulamentação se deu com a Lei N° 8. 813, de
48 Bombacha: calças largas presas por botões acima do tornozelo; peça fundamental da pilcha masculina.
69
10 de Janeiro de 1989, que oficializou como traje de honra preferencial no Rio
Grande do Sul.
(...) o `vestido de prenda', criado nos primórdios do Movimento Tradicionalista, dentro dos pressupostos da indumentária mais simples do Rio Grande, procurou conservar a padronagem e a sobriedade do vestido padrão da mulher gaúcha, seguindo, também, alguns aspectos da moda vigente. Em todas as épocas e locais a mulher evidenciou a preocupação de estar bem vestida, bela e admirada, buscando os artifícios da moda e evocando sempre a funcionalidade, a adequação aos momentos do uso, originalidade e beleza (Coletânea da Legislação Tradicionalista, 1999, p. 218).
O MTG como órgão coordenador das atividades tradicionalistas no Rio
Grande do Sul disciplinou o uso "adequado" das pilchas: estabeleceu o comprimento
do vestido, as estampas, a textura e as cores dos tecidos, o estilo das mangas, os
enfeites como babadinhos, rendas e fitas, o tipo e as cores das meias e sapatos, o
estilo do penteado, da saia de armação e da "bombachinha49; além disso limitou o
uso do decote, de acessórios e de maquiagens, estabeleceu o que é permitido e
proibido na confecção do vestido de prenda dentro de um padrão. Os manuais a
respeito da indumentária feminina repetem as expressões: "sem exageros",
"discretos", "atendendo a idade e a ocasião do seu uso", "cuidado para não
descaracterizar", "sem contrastar com o recato da mulher gaúcha".
Em "Práticas da Memória Feminina", Michele Perrot afirma que o vestuário
está ligado a aparência, (que cabe às mulheres preservar) e que a moda é uma
tirania exercida sobre o corpo das mulheres, porém este dever (que pode gerar
prazer ou profundo tédio), educada a memória: "Uma mulher inscreve as
circunstâncias de sua vida nos vestidos que ela usa (...) (1989, p. 14).
49 Bombachinha: é uma peçada indumentária da prenda, usada sob o vestido, devendo ser confeccionada, segundo as normas tradicionalistas, com tecido leve, em cor branca e com rendinha na ponta.
70
O vestido de prenda, carrega toda uma simbologia da imagem da mulher
idealizada pelo Movimento, uma mulher que traduz na sua "essência" um conjunto
de "valores femininos", como a sensibilidade, a cordialidade e a beleza. A prenda é a
personificação da mulher "enfeite", submissa, porém, portadora de um grande
"destino social", o de "guardiã da moral, dos bons costumes e do zelo cívico", tão
importantes para a formação dos "verdadeiros tradicionalistas" preconizada pelo
Movimento através dos seus CTG's.
As minunciosas diretrizes da "Indumentária da Prenda Atual" publicadas e
divulgadas pelo MTG, são ilustrativas da forma como a vestimenta torna-se
fundamental na produção da prenda no imaginário tradicionalista:
1. O TRAJE: vestido, saia e casaquinho, de uma ou duas peças, com a barra da saia no meio do pé, podendo ser godê, meio godê, em panos, em babados ou evasês, com cortes na cintura, caderão ou corte princesa, atentando para a idade e estrutura física 2. MANGAS: longas, três quartos ou até o cotovelo; podendo ser lisas ou levemente franzidas (não bufantes), com aplicações de fitas, bordados, babadinhos ou similares, sem exagero, no máximo duas aplicações. 3. DECOTE: geralmente sem decote. Admite-se, no máximo, um leve decote, com ou sem gola, sem expor os ombros e o seio, sem contrastar com o recato da mulher gaúcha. 4. GOLAS; se usadas, podem ser arredondadas, sobrepostas, tipo plaetó, padre, com ou sem detalhes, sem exagero. 5. ENFEITES: podem ser rendas, apliques, bordados, passa-fitas, gregas, fitilhos, fitas, viés, babadinhos lisos ou estampados miúdos, plissês, crochês, botõezinhos forrados, nervuras ou favos. Não sobrecarregar a fim de evitar a desfiguração dos modelos. A decoração com tecidos aplicados ou trabalhados com fitas que formam pontas de lanças e ondas devem ser evitados, optando-se pelos motivos florais, os quais compõem a tradição gaúcha. 6. TECIDOS: podem ser lisos, estampados miúdos, xadrez miúdo, petiotpois, riscado discreto, de acordo com as estações climáticas. Não são permitidos apenas os tecidos transparentes sem forro, slinck e similares, tecidos brilhosos (lamê, lurex e outros para uso à noite em festas não-tradicionais) e tecidos em cores contrastantes, chocantes ou fosforescentes. 7. SAIA DE ARMAÇÃO: deve ser discreta e leve, na cor branda. Se tiver babados, estes devem concentrar-se no rodado da saia, diferentemente da indumentária típica baiana. 8. CORES: de acordo com a sincronia das cores e a relação com a idade e o momento do uso. Evitar cores contrastantes, chocantes e fosforescentes, assim como 0 preto (luto); a cor branca fica convencionada para uso das
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noivas e debutantes. Não usar combinações com as cores da bandeira do Rio Grande do Sul. 9. BOMBACHINHA: branca de tecido leve ou rendada, deve cobrir os joelhos. 10. MEIAS: devem ser longas, brancas ou beges, para moças e senhoras. As mais madura podem usar meias de tonalidades escuras. 11. SAPATOS: pretos, brancos ou beges, poder ter salto 5 ou meio salto com tira sobre o peito do pé, que abotoe do lado de fora. 12. CABELOS: devem estar semi- presos, presos ou em tranças, enfeitados com flores discretas que podem ser naturais ou artificiais, sem brilhos ou purpurinas, combinando com o vestido. As senhoras mais jovens, eventualmente, podem usar travessas simples ou com flores discretas e passadores nos cabelos que poderão estar semipresos em coques ou penteados curtos. Fica facultado o uso de enfeites nos cabelos das senhoras em respeito à idade ou ao gosto pessoal. 13. MAQUIAGENS: discreta e de acordo com a idade e o momento social. 14. ACESSÓRIOS PERMITIDOS: a) fichu de seda com franjas ou de crochê, preso com broche ou camafeu. b) chalé (especialmente para as senhoras) c) Brincos (jóia ou semi jóia) discretos. d) Um ou dois anéis (jóia ou semi jóia) e) camafeu ou crochê. t) capa de lã ou seda. g) Leque (senhoras ou senhoritas) em momentos não coreográficos. h) Faixa de prenda ou crachá. i) chapéu(feminino) em ambientes abertos. 15. ACESSÓRIOS NÃO PERMITIDOS: a) Brincos de plástico ou similares coloridos. b) Relógio e pulseiras. c) Luvas ou meia-luva de renda, crochê ou tecido (ressalva-se no uso do traje histórico urbano). d) Colares. e) Sombras e batons coloridos em excesso, uso de cílios postiços, unhas pintadas em cores não convencionais (verde, azul, amarelo, prata, preto, roxo, etc.) f) Sapatilhas do tipo ballet, amarradas na perna. g) Saias de armação com estruturas rígidas em arame, barbatanas e telas de nylon. (Coletânea da Legislação Tradicionalista, 1999, p. 219-220221)
Estes itens demonstram a rigidez da indumentária gaúcha instituída pelo
MTG, a qual também serve para estabelecer uma concepção bastante conservadora
de sociedade, que visa instituir e padronizar comportamentos sociais, e para isso
busca estabelecer algumas referências históricas. Foram estipulados princípios da
vivência tradicionalista, como "dignidade, urbanidade, sociabilidade e moralidade",
que visam "coibir" condutas sociais em desacordo, "orientar" o comportamento e
72
"preservar" a honra, a nobreza e a retidão de caráter, estes princípios fazem parte
da intitulada "Ética Tradicionalista":
Art. 1 ° . - O Código de Ética Tradicionalista tem por escopo e definição de procedimentos que regulem a conduta social das pessoas físicas que atuam no meio tradicionalista sob orientação do Movimento Tradicionalista Gaúcho (op. cit., p.114).
Os discursos tradicionalistas apresentam a ética como "ciência moral",
caracterizada por atitudes e sentimentos de sinceridade, reverência, brio, decência,
dignidade, decoro, pudor e respeito. A construção de gênero que atravessa esse
discurso, faz parte do discurso moral que estabelece o que é permitido e o que não
é permitido como comportamento das mulheres no CTG.
Este aspecto da filosofia não escrita do Tradicionalismo, que diz sobre o permitido e o proibido dentro das entidades tradicionalistas, mas informalmente. Por que não se realizam bailes de carnaval dentro do CTG? Por que o Papai Noel não entra em CTG? Por que não existe homossexual no Tradicionalismo? Por que não existe droga? Nada disso é proibido pelos estatutos ou regimentos internos e, no entanto, a Ética do Tradicionalismo disciplina esses assuntos sem o uso de sanções, apenas por sua força intrínsica, forte tudo o que a gente leva naturalmente dentro de si (Fagundes, 1997, p.43).
2.3. A Mulher que Espera
Assim como a vestimenta, as danças e os concursos de prendas, articulam
todo um aspecto simbólico que envolve a constituição da personagem prenda,
também, as poesias e canções gaúchas têm abordado a prenda, dentro da chamada
temática romântica. Existe uma vertente bem característica nessas poesias e
canções, que criam uma imagem da "mulher gaúcha" frágil, indefesa, que chora a
73
partida do gaúcho valente e provedor, mas que na sua ausência enfrenta o desafio
da sobrevivência e do trabalho, na defesa da família, porém, sempre olhando o
horizonte infinito a espera do seu amado.
A imagem de um homem livre e guerreiro partindo para a guerra e a de uma
mulher que fica a chorar e esperar, tornou-se matéria poética. Em, "Mulher Gaúcha",
vimos que a luta e o sofrimento não desviam a mulher do seu "destino", de esposa e
mãe:
No humilde rancho de um posto, um moço encilhou o cavalo beijou a prenda e se foi. (...) E durante largo tempo ficou a moça na porta olhando a estrada a chorar, sem saber por que o marido tem que partir e lutar. (...) Então a moça franzina tomou uma decisão: esqueceu delicadeza, ternuras de quase noiva e atou os cabelos negros debaixo de um chapelão e se atirou no trabalho, cuidando de casa e campo, de gado e da plantação. (...) E a moça voltava ao rancho, tão moça ainda e tão só! E quando fitava a estrada, só via o vazio do nada, o nada, o silêncio e o pó. (...) Bendita mulher gaúcha que sabe amar e querer! Esposa e mãe, noiva e amante que espera o guasca distante e acaba por compreender que a vida é um poço de mágoa onde cada pingo d'água só faz sofrer e sofrer. (Fagundes, mimeo)
74
Nas canções gaúchas, há várias construções representativas das mulheres
na sociedade, cada uma delas idealizada como a "mulher gaúcha". Há nestes
versos, desde a figura da prenda como ornamento que dança e roda a saia, até a
prenda como mulher campesina, valente e guerreira que enfrenta perigos. O que
pode ser identificado é que ambas elaborações, têm uma mesma matriz teórica a
respeito da mulher e se prestam para legitimar, a partir de imagens diferentes, a
concepção da mulher como "anjo da guarda do filho" e "inspiradora do marido e dos
irmãos", reafirmando sua posição no espaço doméstico.
Assim a prenda está descrita em "Fragmentos Memoriais de um Anônimo":
Não retratem, por respeito, minha prenda em belos panos floreados com fitas e flores no cabelo em tranças, dançando valsas e chamamés dolentes, em romancescos fandangos de campanha. Porque não a campesina? Audaz parceira, de estrada e sonho, mãe, amante, esposa, amiga (Menezes, 2000, p. 54).
Uma figura de mulher descrita como exemplo de "mulher gaúcha" pelos
tradicionalistas é Anita Garibaldi, no livro "A Cavalo Anita Garibaldi!: Piquete Anita
Garibaldi", de Elma Sant"Ana, ela é promovida a símbolo por sua história de moça
pobre, "porém honrada", órfão de pai, com um casamento aos 14 anos, infeliz e
desfeito, "porém não concretizado", que aos 18 anos conheceu o José Garibaldi
junto as tropas farroupilhas, encontrando o "amor a primeira vista", tendo com ele
seguido em confirmação a sua "coragem ímpar e dedicação incondicional". A
heroína é descrita como Anita do "amor heróico a Garibaldi", que por ele combateu,
foi feita prisioneira, fugiu a nado, cavalgando, pariu seu primogênito e lutou por todos
75
os meios para salvar o filho. A autora conclui que, por sua história, também por estar
ao lado do marido na Itália, Anita foi nomeada "heroína dos dois mundos" e descrita
como uma "esposa condigna".
A história de Anita, é a história de uma mulher que não foge ao seu "destino
de gênero", como mãe e esposa, uma história que penetra na construção da
memória da "mulher gaúcha", conforme expressa o depoimento do prof. Mozart
Pereira Soares:
Anita Garibaldi, nascida em Santa Catarina, que viveu em Laguna, é uma mulher gaúcha extraordinária e cujo despertar cívico se deu pelo fato de que ela veio a conhecer o grande `condottiere' que foi Garibaldi, durante o cerco de Laguna, durante o combate, que Garibaldi encontrou aquela mulher ao seu lado, na sua embarcação debaixo do fogo e do bombardeio; municiou, animou, fez tudo aquilo que a mulher gaúcha tem feito ao longo da nossa história. Portanto, Anita Garibaldi, mulher gaúcha, é inteiramente própria. Foi uma mulher extraordinária em todos os sentidos. Nessas circunstâncias, acho que ela merece muito bem ser considerada como a síntese sociológica e até cívica da mulher com as suas virtudes (apud Sant"Ana, 1993, p.16).
O romance "O Tempo e o Vento", de Érico Veríssimo é um forte exemplo de
criação literária, que formula uma narrativa inserida num contexto histórico do Rio
Grande do Sul, imprimindo uma construção de gênero. Segundo Lélia Almeida
(1996), o texto estabelece papéis sociais para as mulheres (dentro de casa) e para
os homens (nas lutas e nos campos) e ao descrever as amantes indignas, apresenta
um modelo feminino a ser seguido: o de esposas dignas e mães exemplares.
A referida autora analisa em "As Mulheres d'Tempo e o Vento", que uma
leitura do texto de Érico Veríssimo pode impugnar a ideologia machista da sociedade
patriarcal gaúcha, em função da representação das personagens femininas Ana
Terra e Bibiana Terra como "mulheres fortes", ao lado de personagens masculinos,
guerreiros e viris, como o Capitão Rodrigo. No entanto, Lélia Almeida, propõe uma
76
leitura não homogênea das personagens femininas da obra e percebe que a
construção recorrente no texto é a do mito das mulheres fortes, mas que esta força
vem do recato, da responsabilidade, do sacrifício, "qualidades tecidas pelo
sentimento da maternidade e pela função de esposa".
A fortaleza e superioridade moral das mulheres está legitimada pela sua função `natural': a maternidade. Tanto no aspecto que são elas que cuidam e reerguem o mundo dos homens quanto no de ser fecundadas e gerar, a gestação é vista como caminho de promessas para um futuro e para a possibilidade da esperança (Almeida, 1996, p. 26).
A leitura que faço das canções, não busca fatos empíricos da chamada
"mulher gaúcha", o interesse está na constituição de uma memória que, através dos
versos, acredita ser capaz de recuperar o passado coletivo. Entendo que este
trabalho de "solidificação da memória" presente nas canções, não é um resgate do
passado das mulheres no Rio Grande do Sul, mas uma reconstrução do passado
num processo de seleção e ressignificação dos acontecimentos.
A imagem da mulher também está presente nas canções, como parte da
natureza de um Rio Grande do Sul que tem planícies lindas, um "céu azul", um povo
heróico, homens de destaque e mulheres belas, como é cantada em "Querência
Amada":
Querência amada planícies, serras os braços que me puxa da linda mulher gaúcha beleza da minha terra (Teixeirinha, 199-?, 2v)
A prenda aparece nos versos que proclamam a vida na campanha como um
lugar idealizado, melhor de viver, de gente trabalhadora, forjada na guerra, num
77
tempo passado que não se quer esquecer, onde a mulher e o cavalo são os
prazeres do gaúcho. Esta construção está presente em "Eu sou do Sul":
Na fronteira `los hermanos' é prenda, cavalo e canha viver lá campanha é bom demais que um santo missioneiro te acompanha e companheiro se puder vem lavar a alma no rio Uruguai (Saldanha, 199-?, 7v)
O aspecto interessante, no estudo da constituição da memória da prenda a
partir das canções, é perceber que elas refletem um passado que apontava o
destino para o gênero feminino, no qual a mulher é a prenda - a "mulher que
espera". Segundo nos indicam os estudos de gênero50, a construção do feminino se
faz relacional com o a construção do masculino, portanto, ao mesmo tempo que a
figura da prenda é tecida como aquela que chora a partida do homem amado, a
imagem do gaúcho é reproduzida como livre, sem rédeas, sem dono, forte e valente.
"Prenda Minha" está na tecitura desse discurso:
Vou me embora, vou me embora prenda minha tenho muito o que fazer, tenho de parar rebanho prenda minha, nos campos do bem querer. (DP, 2000, 8v)
As canções populares do Rio Grande do Sul são repletas da constituição
dessa memória que captura a prenda para a história, e nelas a figura da china é um
recurso bastante usado. Uma construção que nos leva a identificar a existência de
um tipo social como aquele descrito por Nicolau Dreys, "vulgar e tomado por vícios",
50 Ver os estudos de Dagmar Meyer "Do Poder ao Gênero: uma Articulação Teórica Analítica" e Guacira Lopes Louro "Nas Redes do Conceitos de Gênero".
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que tem ao seu lado uma mulher muito distante daquela idealizada pela prenda que
é desrespeitada e chamada de china. A china, assim como a prenda também é
representada como uma mulher dependente e submissa.
Não chora minha china véia, não chora Me desculpe se eu te esfolei com as minhas esporas Não chora minha china véia, não chora Encosta tua cabeça no meu ombro E esse bagual velho te consola (Saldanha e Claudio, 1998, l v).
Os versos destas canções estão atravessados por histórias que pertencem a
memória coletiva do Rio Grande do Sul, uma multiplicidade de imagens de mulheres
que se unem para compor um "consenso", são prendas, estancieiras, chinas,
morenas, campesinas, "ritas" e "anitas"; através delas é delineado uma construção
da identidade entrelaçada aos papéis sociais historicamente determinados para o
gênero feminino.
O gênero como uma construção social e histórica de sujeitos femininos e
masculinos, indica que a prenda é apenas uma das construções do feminino que se
efetivaram no Rio Grande do Sul. Porém, a prenda foi oficializada como memória
das mulheres, preservada pelo Movimento Tradicionalista como modelo de um "jeito
de ser feminino", que conserva padrões morais de recato e submissão
historicamente estabelecidos para as mulheres.
Podemos analisar, partindo da definição de gênero feita por Joan Scott
(1995), para a qual "o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos" (p. 86), que os elementos que
constituem o gênero estão presentes na representação da prenda: primeiro, a
prenda evoca símbolos de delicadeza e pureza; segundo, sua imagem é
79
normatizada pelo MTG que define como deve ser seu modo de agir, vestir e falar;
terceiro, ela está presente na organização social, especialmente nos CTG's; quarto,
ela funda uma identidade subjetiva da "mulher gaúcha".
A prenda, representada através das canções e poesias como uma lutadora é
a mulher que espera o marido, para quem ela vive; o vestido de prenda é a imagem
do recato, e da pureza idealizada para o "ser feminino", e as danças nas invernadas
dos CTG congregam toda essa simbologia de na tentativa de "reviver" um passado
imaginado onde os gaúchos heróicos cortejavam suas damas em bailes de "alta
classe".
No processo de construir sentidos para o passado, o Tradicionalismo constrói
a prenda como representação da "mulher gaúcha", estabelecendo um padrão que
pretende determinar os atributos da "verdadeira mulher gaúcha". Assim a prenda
reproduz a moral conservadora concebida a partir das concepções, católica e
positivista, que influenciaram seus fundadores.
80
CAPÍTULO 3.
PRIMEIRA PRENDA: PRENDA DE PRIMEIRA
Até este capítulo estive investigando as representações, os discursos e as
práticas tradicionalistas estabelecidas para formar a prenda como memória do
Tradicionalismo, construída em conjunto com a produção de gênero. Neste capítulo,
trabalho com o "vivido"51 pelas prendas no Movimento Tradicionalista, no seu CTG,
lugar onde se concretiza a fantasia de "ser" prenda.
Trabalho a hipótese de que a prenda é parte do projeto educativo do CTG, ela
é educada para ser exemplo da conduta moral desejada pelo Movimento
Tradicionalista e para transmitir esses valores às novas gerações, da qual ela é o
espelho.
Nesta perspectiva de trabalho, o CTG é muito mais que o palco das prendas,
constitui a possibilidade de apreendermos o projeto que as mulheres estão
submetidas, a produção da memória, as relações de gênero mantidas pelo
Movimento e a possibilidade de análise desse processo de criação, bem como a
redefinição de significados de gênero expressa pela imagem da prenda.
Os depoimentos das prendas constituem uma possibilidade de penetrar no
espaço do CTG, lugar de convivência dos (as) tradicionalistas e lugar de vivências e
51 0 relato do vivido é uma construção, impossível de ser apreendido a não ser como um processo de que cada prenda faz para estabelecer sua relação com o CTG e o Movimento.
81
experiências das prendas. As fontes orais não foram "interrogadas" em busca de
informações das "causas e origens" explicativas da hierarquia de gênero no CTG,
mas na busca de indícios da formação da memória tradicionalista entrelaçada com a
formação de uma memória individual da prenda, que ela própria ajuda a reconstruir.
As entrevistas, em forma de relatos de experiências das prendas, visaram
aproximar àquela prenda imaginada, cantada e declamada em versos, das prendas
que encaram a tarefa de objetivar esta figura. Elas são adolescentes, jovens e
adultas, que não poderiam ficar fora deste trabalho, porque a formação do
imaginário tradicionalista passa pelo ato de "reviver o passado", e as prendas
representam este momento de constituição da memória e do gênero. Ouvi-Ias
significou enfrentar o desafio de explorar os depoimentos de doze mulheres e
estabelecer um diálogo entre elas e as demais fontes exploradas. Conforme Antonio
Montenegro (1994) é possível perceber que: "A história, enquanto representação do
real se refaz, se reformula, a partir de novas perguntas realizadas pelo historiador ou
mesmo da descoberta de outros documentos ou fontes" (p. 19).
O desafio deste trabalho é analisar as narrativas das prendas no conjunto dos
conceitos propostos, construindo uma história da prenda no imaginário
tradicionalista. A partir da concepção de gênero/memória que conduziu esta
pesquisa os depoimentos das prendas possibilitam uma análise que procura não
ficar presa à "uniformização" dos discursos apresentados, mas que também busca
uma marca do pessoal, do individual e muitas vezes do contraditório, que cada
depoimento pode apresentar, tendo em vista que: "os significados mais simples, são
provavelmente os mais convincentes" (Thompson, 1992, p. 205).
82
Ouvi as prendas com objetivo de apreender, pela voz de cada uma, as
práticas de construção individual da prenda concebida como uma figura singular e
histórica: a "mulher gaúcha". Busquei saber como elas exteriorizam o conjunto de
características formadoras do mito da prenda, que cada uma tem que representar,
sem descaracterizá-la ou desprendê-la do seu "destino de gênero".
As entrevistas compõem um bloco de sete "prendas de faixa52, de 13 a 18
anos, estudantes; outro bloco de três ex-prendas, de 20 a 31 anos, com profissão
liberal, exercendo funções na patronagem das entidades tradicionalistas que
participam; e um terceiro bloco constituído por duas mães de prendas, de 48 e 50
anos, casadas, donas de casa e com funções nos CTG"s que atuam.
As entrevistas foram feitas dentro dos CTG"s; as depoentes fazem parte do
"35" CTG, em Porto Alegre (1a Região Tradicionalista), do Centro de Pesquisas
Folclóricas "Piá do Sul", em Santa Maria (13ª. Região Tradicionalista) e do Piquete
"Crina de Potro", em Dilermando de Aguiar (13ª. Região Tradicionalista). Cada uma
delas falou das suas atividades dentro do criação seu CTG, ou Piquete, do seu
papel e da condição de ser prenda, ou "prenda de faixa". Estas são histórias
individuais, com um forte apelo uniformizador devido às práticas disciplinares
normativas do MTG, que nos permitem vislumbrar o processo educativo no qual as
52 Prendas de faixa: prendas que detêm títulos de Primeira, Segunda e Terceira Prenda; mirim, juvenil e adulta; do CTG, da Região Tradicionalista, do Estado, entre outros títulos criados, como Prenda "Dente de Leite", Prenda Farroupilha, Prenda RBS, Prenda Simpatia, Prenda do Rodeio, Prenda do Município, etc.
83
prendas estão inseridas, a sua chegada no Movimento, a sua formação e
transformação em prenda ideal.
0 texto que passo a desenvolver, usando fontes orais, remete não apenas a
uma transcrição de entrevistas, mas a uma elaboração; os depoimentos passam a
ser citados, permeados pôr uma análise que interpreta as palavras das prendas em
conjunto com as demais fontes e com os (as) autores (as) estudados (as). Uma
operação que nas palavras de Núncia Constantino (1997) é assim definida:
História é síntese que, por sua vez, é forma original de exposição. Selecionamos, simplificamos, organizamos, decantamos, escrevemos e reescrevemos. Preenchendo lacunas na narrativa, com nossas reflexões teóricas, desenvolvemos um estilo, que é a união do conteúdo e forma (p. 118).
O texto a seguir é um encontro com as prendas, com o olhar individual da
experiência de ser prenda, a expressão da "mulher gaúcha": simpática e educada;
que emerge de uma elaboração diária, de uma reafirmação de práticas e discursos
dos idealizadores e dos atores e atrizes do Movimento Tradicionalista.
Este estudo está estruturado em três itens: Ingresso no CTG, Preparação
da Prenda e Ser Prenda.
84
3.1. Ingresso no CTG
FIGURA 6: II° Fórum Tradicionalista - "35 anos MTG" - Outubro/2001 - Santa Maria
(...) eu ingressei no Movimento Tradicionalista com seis anos. Quem me trouxe para cá para o '35'1 (...) foi a minha irmã (...) convidaram ela para dançar, ela entrou na Invernada e nos trouxe para cá (...) e a primeira coisa que eu participei foi do Concurso de Prendas (...) eu tinha sete anos. Era muito pequena, muito criança para entender muita coisa. (...) Logo depois eu entrei na Invernada de Danças Mirim (...) (Sabrina)53.
53 Sabrina tem 16 anos, foi 1" Prenda mirim e la Prenda juvenil do "35" CTG
85
O ingresso de uma prenda no CTG é narrado de uma maneira muito especial,
acontece muito cedo, ainda jovens ou crianças, conforme observa-se na legenda da
foto acima, e está fortemente vinculado aos valores conservadores transmitidos pela
família, que geralmente incentiva, e quando a referência não é o próprio pai ou a
mãe, são os irmãos, tios, ou qualquer outro membro da família que as conduzem
para o CTG.
O primeiro contato das prendas com o Tradicionalismo é feito especialmente
através da dança; assim como as prendas pioneiras, as demais prendas continuam
entrando no CTG pela Invernada das Danças. Primeiro é o desejo de dançar, de ter
um vestido dos sonhos, depois vêm os concursos e outras atividades de acordo com
o destaque e projeção alcançada nas realizações artísticas e, principalmente, pela
conquista de uma faixa de Primeira Prenda. No CTG elas são envolvidas e
seduzidas pelas danças, vestidos e concursos:
(...) eu iniciei no tradicionalismo em 1992 com o incentivo de uma tia (...) eu entrei e comecei a dançar na Invernada Mirim do CTG (...) Participei do Concurso de Prendas Mirins, onde fiquei em primeiro lugar. (...) depois eu concorri na região (...) comecei a dançar na Invernada Juvenil e este ano resolvi participar do Concurso de Prendas Juvenis do `35' CTG (Andresa). 54
(...) eu entrei através do meu irmão, como ele gostava de dançar, ele começou a freqüentar o CTG e dançar nas Invernadas, (...) eu entrei na escolinha de danças mirins, (...) comecei me interessar ser prenda, (...) fui escolhida ser Primeira Prenda Mirim do `Piá do Sul ; e depois concorri para a Décima Terceira (Camila). 55
(...) eu comecei aos cinco anos, vinha para cá para o `35' com meu padrinho e a minha madrinha (...) quando eu fiz dezesseis anos eu voltei para o `35; comecei a dançar no Grupo de Projeção Folclórica (...) quando eu ganhei o
54 Andresa tem 15 anos, já foi 1° Prenda mirim, 1' Prenda juvenil do "35" CTG, é 1° Prenda da 1' Região tradicionalista do Estado do Rio Grande do Sul. 55 Camila tem 13 anos, é 1' Prenda mirim do "Piá do Sul".
86
concurso eu comecei a me interessar bastante pelo Movimento Tradicionalista e a lutar pelas causas tradicionalistas (Fernanda). 56
Além da família, a escola serve de referência e estímulo à prática do
Tradicionalismo, fazendo parte do projeto educativo do MTG que estabelece atenção
primordial às novas gerações. Os livros didáticos apresentam textos, que falam dos
gaúchos e suas pilchas, de seus valores e do Movimento Tradicionalista Gaúcho
criado para cultuá-lo. Nestes textos não há uma idéia de construção histórica e a
prenda não é referida ; porém, ela aparece nas gravuras, como podemos observar
na capa do livro "Terra Gaúcha" (1993), distribuído pelo Ministério da Educação e
Cultura e amplamente usado em sala de aula.
FIGURA 7 : Capa do livro “Terra Gaúcha”, 1993.
56 Fernanda tem 20 anos, foi 1ª. Prenda adulta do “35” CTG, é Posteira Cultural do “35” CTG
87
As escolas também desenvolvem atividades tradicionalistas de caráter cívico,
algumas mantém grupos de danças, participam de desfiles, comemorações e
escolhem a Prendinha da escola.
(...) eu participava de um departamento na escola onde eu estudava (...) depois desfilei na Semana Farroupilha (...) me interessei pela escolinha e comecei a dançar (...) fui passando, gradualmente, pelas Invernadas e foi aí que eu entrei; eu gostava desde pequena (...) (Gabriele). 57
(...) desde pequena eu já gostava de CTG, participava de projetos que tinha na escola, como prêmios, concursos (...) foi meu tio, ele começou a entrar e trazer toda a família (...) entrei no grupo de dança (...) eu resolvi concorrer a prenda (...) Segunda Prenda Juvenil, depois eu peguei Primeira (...) foi aí que começou minha história no tradicionalismo (Andressa). 58
Ao Movimento é atribuído o mérito de produzir grandes benefícios sociais,
através da solidificação da família e "memorável recuperação dos saudáveis e
dignificantes hábitos e costumes do Rio Grande" (Ferreira, 1999, p. 109). As prendas
são educadas para assimilar essa idéia de que no CTG (ambiente familiar e sadio)
estão protegidas dos problemas "de fora", dos vícios e das condutas sociais
consideradas indignas.
(...) eu entrei para o Movimento Tradicionalista através dos meus pais, meus pais se criaram dentro do CTG, e como não podia deixar de ser diferente eu segui o caminho deles (...) o melhor caminho é tu estar dentro do CTG e não dentro de alguma boate (...) tu aprende a conviver e a ver que o CTG é um dos poucos lugares saudáveis que existe ainda para se conviver em família e se conviver dentro de um grande grupo (...) (Franciele).59
57 Gabriele tem 14 anos, é 2' Prenda juvenil do "Piá do Sul" 58 Andessa tem 15 anos, é 1° Prenda juvenil do "Piá do Sul". 59 Franciele tem 18 anos, é la Prenda adulta do "Piá do Sul".
88
(...) quem me influenciou entrar no CTG foi a minha mãe porque foi aqui no '35' que ela conheceu meu pai (...) quando eu tinha sete, uns oito ou nove anos, ela me convidou para eu entrar na Invernada (Yasmin).60
(...) a gente assim, vê tantas coisas, drogas, tu vai numa boate só o que tu vê é o pessoal ali lidando com drogas, então eu acho assim tão sadio hoje o tradicionalismo, tu tem que mais é valorizar, ir para lá e levar teus filhos, convidar teus amigos. Eu valorizo tradicionalismo porque eu acho muito sadio; eu acho que se todas as pessoas pensassem um pouco e levassem isso, porque lá, lá tu, lá eu acho que tu, pelo menos ta, é um caminho, é um caminho (Marta).61
Existe uma formulação que estabelece a idéia de que esses valores estão no
retorno a um "lugar puro", de hábitos mais saudáveis, portanto um lugar mais feliz.
Esse lugar é a campanha, pertence a um passado idílico que o CTG acredita poder
resgatar.
Perpetuar a cultura, mas a verdadeira cultura, não aquela cultura de manual, (...) gostar de sentar na beirada de um fogo, de um fogo-de-chão, por mais que tenha aquela fumaça, assar um pedaço de carne e conversar, tomar um chimarrão em volta, num grupo sentado e ali passar a cultura, verbalmente que seja, (...) não só manual, não regras, não normas, existe, mas essas normas são intrínsicas, dentro de cada um, a gente age da mesma forma, até mesmo sem conhecer, a parte teórica que a gente sabe que existe (Marlize).62
São depoimentos que nos permitem vislumbrar a relação forte que o
Movimento Tradicionalista estabelece com a sociedade, conseguindo atingir o
imaginário das crianças e outras faixas etárias, que influenciam-se pelas atividades
tradicionalistas (danças, concursos, desfiles).
60 Yasmim tem 12 anos, foi 1' Prenda mirim do "35" CTG, é 1` Prenda mirim do Estado. 61 Marta tem 30 anos, foi Prenda juvenil do CTG Tropïlha Crioula, é patroa do Piquete de Laçadores "Crina do Potro". 62 Marlize tem 31 anos, foi 2 vezes Primeira Prenda do CTG Tropilha Crioula, é capataz do Piquete de Laçadores "Crina de Potro".
89
FIGURA 8: II° Fórum Tradicionalista - "35 anos MTG" - Outubro/2001 - Santa Maria
(..) Prenda, se tu for olhar no dicionário, quer dizer uma coisa mimosa, delicada (...) é a maneira que a gente tem de se comportar (...) a prenda tem de ser bastante discreta, bastante educada (...) alegre (...) É o perfil da prenda, alegre, delicada, educada (Sabrina).
A prenda é mitificada, representando um conjunto de significados que atribuiu
historicamente às mulheres um papel social - o seu "destino de gênero",
submetendo-as ao espaço privado, fora do alcance das decisões políticas e
econômicas, e ao controle masculino. Conforme parte da entrevista reproduzida na
legenda da foto acima, a prenda ideal é aquela que "naturaliza" essa "condição
feminina", que reveste-se de atributos como graça, beleza e delicadeza para
desempenhar o seu papel.
A existência de um "comportamento adequado" é um aspecto forte no
depoimento das prendas, configurando-se como o ideal da prenda - ter uma conduta
90
exemplar, ser espelho, ser modelo. Percebe-se a função da prenda no projeto
educativo do CTG, ela deve influenciar com seus "atributos femininos" as demais
jovens a aderirem ao Movimento, ela deve manter no imaginário popular o símbolo
de uma "mulher gaúcha" de grande sociabilidade e conduta admirável, ela deve
cumprir o seu papel educativo no espaço do CTG e ajudar a formar os "costumes
cívicos e a moral elevada".
(...) tu tem que ser o espelho do CTG (...) as pessoas vão citar o nome do '35'( ...) tu tem sempre que te comportar, tu tem que organizar palestras, levar o nome do CTG em frente. (...) sendo prenda, está representando a tua entidade, ainda mais sendo o `35; o pioneiro das tradições, tu és lembrado (Andresa).
(...) deve se vestir, vestido de prenda (...) deve se comportar adequadamente (...) não fazendo as coisas que as prendas que não são de faixa podem fazer (...) ser comportada, tem que dar exemplo para as outras (Camila).
Uma prenda na entidade tem que ser o exemplo, principalmente tem que vestir a roupa a caráter, mas o comportamento tem que ser sempre o exemplo (...) (Gabriele).
(...) a prenda é o convite do CTG (...), principalmente simpática, recepcionar bem, tratar bem os convidados (...) a prenda ideal tem que ser o exemplo da casa e o convite (...) tem que se vestir de acordo (...) o vestido (...) falar normal (...) se comportar muito bem, respeitar bem as normas do tradicionalismo (Andessa).
(...) quando nós éramos prenda seria uma (...) menina, uma senhorita, que conseguisse transmitir nela o CTG, mostrar. Eu acredito que a prenda seja (...) o espelho do CTG, o jeito que o CTG gostaria de ser, meiga, participativa, simpática (...) (Marlize).
3.2. Preparação da Prenda
91
FIGURA 9: II° Fórum Tradicionalista - "35 anos MTG" - Outubro/2001 - Santa Maria
(...) de bom tem muitas coisas, é bom tu ir em eventos, e ser vista, assim, a Primeira Prenda juvenil do "35"; ah, que bom ter Prenda, a gente está precisando ali para dar uma palestra no colégio, alguma coisa assim, é bom! Tu vai em eventos bons, tu aprende muita coisa boa, mas tudo que é demais enjoa né? Tem eventos como congressos, convenção, aquelas coisas assim que te cansa, ou é muito calor tu tá pilchada, ou o assunto tá muito massante, tu não agüenta mais escutar, ou tu viaja à noite toda, então no outro dia de manhã tem que estar bem, tem que estar sorrindo lá, dando oi para todo mundo, sendo simpática; às vezes cansa. Essa é a parte chata (Andresa).
O conceito de tradição como "a transmissão de valores, de geração a
geração" é seguido em todos os âmbitos do CTG, aplicado especialmente nos
92
setores infantis e juvenis onde são educados(as) segundo os princípios do
Tradicionalismo. As prendas participam de eventos, que são as convenções, os
congressos e palestras tradicionalistas, lugares onde acontece a sua formação
tradicionalista e que para algumas prendas são considerados a parte cansativa do
Movimento, conforme foi registrado no depoimento transcrito na legenda da foto
acima.
Participando das invernadas de danças as meninas passam a seguir
determinados padrões de comportamento que embora não façam parte do mundo
social "real" em que estão inseridas, são vivenciados no Centro de Tradições através
de diversos rituais.
Um desses rituais é o Concurso de Prenda, que no Movimento Tradicionalista
passou a ter um papel de grande destaque e atrair muitas meninas, jovens ou
crianças, que desejam conquistar a faixa de Primeira Prenda do seu CTG,
alimentando o sonho de tornar-se Primeira Prenda da Região Tradicionalista ou de
ser a Primeira Prenda do Estado. Esse concurso tem diversas finalidades,
internamente aglutina as mulheres em torno desse ideal, reúne filhados (as) nos
diversos bailes onde acontecem os concursos, divulga o Tradicionalismo e
principalmente, educa as mulheres para "ser" Prenda.
O Concurso de Prendas está inserido nesse projeto de "formação das novas
gerações" proposto pelo MTG e, especialmente, estabelece um "lugar especial" para
mulheres no Movimento, o fazer-se prenda, uma expressão da "mulher gaúcha".
Dentre as finalidades do Concurso observa-se o sentido "educativo", disposto no art.
2° do seu regulamento:
93
I - despertar na criança, o gosto pelas tradições e estimular sua gradativa e natural integração ao meio tradicionalista (...); ll - estimular as jovens a uma participação mais efetiva no Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, colaborando na organização de eventos sócio- culturais e projetos (...); lll- elevar o nível cultural e intelectual das prendas das Entidades filiadas, desenvolvendo nas jovens tradicionalistas o interesse pelo estudo e pesquisa (...), proporcionando-se, também, o aperfeiçoamento dos seus dotes artísticos e do seu relacionamento social; IV - escolher, anualmente dentre as candidatas aquelas que melhor representem as virtudes, a dignidade, a graça, a cultura, os dotes artísticos, a beleza, a desenvoltura e a expressão da mulher gaúcha. V - envolver as comunidades, principalmente as escolas, visando a divulgação dos princípios e ações do Movimento Tradicionalista Gaúcho (Coletânea Legislação Tradicionalista, 1999, p.168).
A análise dos itens expostos acima indica a construção da figura da prenda
dentro do seu "destino de gênero", com uma participação social restrita aos eventos
culturais e projetos assistenciais, que deve desenvolver se intelectualmente para
melhor cumprir seu papel social na educação e transmissão dos valores morais e
cívicos. Como expressão da "mulher gaúcha", as prendas são "naturalmente" dignas
e virtuosas e belas.
Com a ampla divulgação dos Concursos de Prenda, a oportunidade de
exposição na mídia, o evento de escolha das candidatas tornou-se palco de grandes
disputas, o que levou o Movimento a combater a chamada "guerra" entre as
prendas, pois este deveria cumprir o seu papel dentro da estratégia de formação das
gerações futuras. Da prenda é exigido, cada vez mais, conhecer quais são as suas
atribuições dentro do CTG e do MTG, muitas delas estudam para os Concursos de
Prendas desde crianças. Os princípios dos concursos são colocados de maneira
muito profunda entre as concorrentes, a prenda é responsabilizada como
representante desse conjunto de valores que o Tradicionalismo objetiva "disputar" na
sociedade.
94
Para tornarem-se prendas, as meninas passam por diversas provas (de
história, geografia, culinária, artesanato, declamação, dança), e também pelo desafio
de desenvolver um conjunto de atividades junto a comunidade tradicionalista e fora
dela. Cada uma delas elabora um projeto de divulgação e preservação daquilo que
foi selecionado pelo Movimento Tradicionalista como "memória gaúcha", depois são
apresentados relatórios das atividades. Conforme o Regulamento de Concurso de
Prendas:
Art. 30 - No RELATÓRIO DE ATIVIDADES (15 pontos) serão avaliados DOIS PROJETOS desenvolvidos pela Prenda, um dentro do tema MTG VAI A ESCOLA, e outro dentro do tema CTG NÚCLEO DE FORTALECIMENTO DA CULTURA GAÚCHA, bem como a sua participação em EVENTOS OFICIAIS DO MTG (op. cit., p.179).
O Concurso de Prendas é um elemento importante como momento de
formação, as prendas estudam para representar bem sua entidade, realizar bem
suas atribuições artísticas, assistenciais, mantendo e preservando os princípios do
que foi escolhido como expressão da "mulher gaúcha".
O Concurso de Prendas no Rio Grande do Sul foi regulamentado no XV
Congresso Tradicionalista, realizado em Santiago, no ano de 1970. Antes, as
escolhas aconteciam com os títulos de "Mais Prendada Prenda", "Mais Linda
Prenda" e "Primeira Prenda", porém não havia o concurso de provas culturais e
artísticas .63
Os Concursos de Prendas, realizados em todo o estado, nas 30 regiões
Tradicionalistas, até chegar na fase estadual, seguem o regulamento instituído pelo
63 63 O Concurso Estadual de Prendas também é chamado de Ciranda Cultural, para fins de apresentação de projetos para captação de recursos.
95
MTG, e desenvolvem-se em três categorias: mirim (entre 9 e 12 anos), juvenil (entre
13 e 16 anos) e adulta (17 anos).
Para concorrer as candidatas devem corresponder à idade e à escolaridade
exigidas, devem ser solteiras, não ter filhos e não ter união estável. Elas devem
submeter-se a uma série de avaliações, conforme consta no regulamento:
Art. 22 - fazem parte do concurso as seguintes avaliações: escrita, artística, oral, caracteres pessoais, mostra folclórica ou arte tradicional e relatório de atividades. (op. cit., p. 173).
As provas escritas são elaboradas a partir da seleção de conteúdos de
história, geografia, tradição, Tradicionalismo e folclore; a redação versa sobre temas
atuais ao Tradicionalismo e atuação das mulheres no Movimento. Estes temas são
estudados a partir de uma bibliografia divulgada pelo MTG, e cada etapa da prova é
pontuada com notas; conforme pode ser observada no quadro abaixo.
96
Quadro Demonstrativo das Avaliações
Categoria Avaliação do conhecimento (escrita)
Avaliação da Comunicação Oral
Avaliação das Habilidades Artísticas
Avaliação dos caracteres pessoais
Avaliação da Mostra Folclórica ou Arte Tradicional
Avaliação do Relatório de Atividades
Observação
Mirim Noções de Geografia/RS 10p Noções de História/RS 10p Noções Trad/Tradic/Folc 15p TOTAL 35 pontos Até 2 horas
Exposição Oral TOTAL 10 pontos Até 5 minutos
Tocar ou Cantar ou Declamar 5p Dançar 5p TOTAL 10 pontos Até 10 minutos
Boas Maneiras Simpatia Graciosidade e Indumentária Beleza TOTAL 15 pontos
Mostras de trabalho ou Pesquisa TOTAL 15 pontos Até 7 minutos
2 Projetos e participação em eventos TOTAL 15 pontos
Juvenil Geografia/RS 10p Noções de História/RS 10p Noções Trad/Tradic/Folc 15p Redação 5p TOTAL 35 pontos Até 2 horas
Exposição Oral TOTAL 10 pontos Até 7 minutos
Tocar ou Cantar 5p Declamar 5p Dançar 5p TOTAL 15 pontos Até 15 minutos
Boas Maneiras Simpatia Elegância Indumentária Beleza TOTAL 15 pontos
Mostras de trabalho ou Pesquisa TOTAL 10 pontos Até 7 minutos
2 Projetos TOTAL 15 pontos
Redação sobre assuntos da atualidade e de interesse do MTG. Ênfase nos aspectos relacionados à mulher
Adulta Geografia/RS 10p Noções de História/RS 10p Noções Trad/Tradic/Folc 15p Redação 5p TOTAL 35 pontos Até 2 horas
Exposição Oral TOTAL 10 pontos Até 7 minutos
Tocar ou Cantar 5p Declamar 5p Dançar 5p TOTAL 15 pontos Até 15 minutos
Boas Maneiras Simpatia Elegância Indumentária Beleza TOTAL 15 pontos
Mostras de trabalho ou Pesquisa TOTAL 10 pontos Até 7 minutos
2 Projetos TOTAL 15 pontos
Redação sobre assuntos da atualidade e de interesse do MTG. Ênfase nos aspectos relacionados à mulher
Fonte: Coletânea da Legislação Tradicionalista, 1999, p.182.
A prenda também é educada pelo rigoroso sistema de provas (artísticas e
teóricas) que realizam durante a disputa do concurso de Primeira Prenda. Elas são
"obrigadas" a estudar muito, conhecer a bibliografia tradicionalista e desenvolver as
habilidades artísticas esperadas das prendas dentro do CTG. Elas são embuídas a
representar bem o seu papel, muitas vezes, também movidas pela disputa, para isso
passam por uma preparação que lhes capacita para assumir as funções esperadas
da detentora do título de Primeira Prenda.
97
Eu comecei a me preparar (...) estudando para a prova escrita (...) para a prova artística (...) musical e a declamação. (...) eu fui prenda eu realizei alguns projetos (...) para arrecadar fundos para as entidades carentes (...) agora eu realizo um trabalho com as prendas atuais(...) (Fernanda).
(...) eu tive que estudar bastante (...) geografia, história, tradição e tradicionalismo, tem que se preparar bastante porque a prova é tudo sobre o CTG (...) também sobre a história do seu CTG (Yasmim).
(...) quando eu comecei a concorrer (...) estudar sobre história do Rio Grande do Sul, geografia do Rio grande do Sul, tradição, tradicionalismo e folclore. (...) eu comecei a me incentivar, e comecei a gostar de ler assuntos sobre o tradicionalismo. (...) Muitos livros, também li de poesia (...) para depois poder concorrer em rodeios (Andresa).
Começa pela prova escrita onde as listas de livros são enormes para ler. (...) A segunda parte é a prova artística, onde tem que apresentar uma dança de Invernada, que é a dança tradicional, tem que declamar (...) era obrigatório 0 cantar, e agora voltou (...) a gente tem que falar para o público, explicando projetos futuros ou projetos realizados durante a gestão (...) (Sabrina).
(...) eu estudei história do Rio Grande do Sul, a geografia e a história do Brasil, lendas, tudo que está envolvido com a história do tradicionalismo, a história do nosso CTG (...) (Andressa).
Reproduzindo a concepção da mulher como "sexo afetivo", as prendas
tornam-se as pessoas melhor preparadas para defender e divulgar o
Tradicionalismo, cumprindo mais uma vez sua função educativa de transmissora dos
"costumes do passado", tal como são imaginados pelo Movimento. Elas passam a
declamar, ser oradoras, fazer palestras, participar de congressos.
(...) As prendas organizam palestra. Muitas gostam também de declamar, de cantar também em rodeios de entidades tradicionalistas (...) adoro dançar e declamar (...) atualmente estou declamando uma poesia de dezoito estrofes (...) Os Olhos do Negrinho, de Dimas Costa (Andresa).
Nós vamos em outras entidades representar o CTG, nas escolas(..) na Semana Farroupilha (...) apresentar um projeto (...) são as atividades externas (...) Falar mais e fazer as crianças entenderem (...) o que é tradicionalismo, qual é a nossa história, nossa geografia (...) fazer as pessoas se interessarem pelo CTG (Andressa).
98
Todo concurso de prenda e peões é muito trabalhoso. As crianças estudam meses se preparando para as provas. As danças. A minha filha não era ainda do CTG, então teve que aprender a dançar, teve que aprender a declamar, aprender tudo que é necessário para o concurso e, claro, mãe participa junto. Mãe estuda, mãe enlouquece junto (Rosane)64.
(...) a minha base dentro do tradicionalismo foi com a minha família, que me ensinou quase tudo que eu sei sobre o tradicionalismo (...) essa parte teórica (...) fui a bastante palestras (...) congressos (...) livros (...) li livros de Barbosa Lessa, de Paixão Côrtes (...) dão uma boa base do que é ser um bom tradicionalista mesmo (Francieli).
Toda participação da prenda é com vistas à representar bem "a verdadeira
mulher gaúcha", considerando as funções historicamente destinadas ao sexo
feminino: ensinar, cuidar, zelar, limpar, arrumar e decorar.
(...) eu participo dos eventos, ajudo a promover os eventos, dia de baile a gente vem aqui ajudar a arrumar o salão, decorar (...) (Andressa).
(...) Nós temos a parte social que a gente desenvolve bailes, jantares, jantares dançantes, almoço, e ali já vem mais a parte das prendas que trabalham mais na parte social; são bailes, jantares (Marta).
A disciplina imposta pelo regulamento do MTG é conhecida e seguida pelas
prendas, as quais são condicionadas a agir segundo as normas, até mesmo o falar,
conforme descrito no art. 26:
Art. 26 - na avaliação da comunicação oral pretende-se verificar a capacidade da candidata de se expressar com naturalidade e fluência empregando linguajar correto e sem gírias ou tiques, respeitadas as características regionais. (Coletânea Legislação Tradicionalista, 1999, p. 178)
Este conjunto de regras, escritas (ou não), vão formando a prenda ideal, a
Primeira Prenda:
64 Rosane tem 48 anos, é dona de casa, mãe de 1° prenda, é capataz cultural do "35" CTG.
99
(...) uma prenda jamais deve falar gírias, deve ter um comportamento adequado, não pode `ficar; não que uma prenda não possa namorar, mas não pode ficar se agarrando, de abraço e beijo em público (...) uma prenda para se vestir corretamente (...) lá no manual está escrito como é a altura do vestido de prenda (...) tecido, comprimento (...) deve saber falar em público (...) um comportamento nota dez (...) (Fernanda).
(...) uma prenda ideal, ela tem que ser uma prenda que valoriza a nossa tradição (...) hoje em dia as prendas acham que é só pegar a faixa (...) tu tem que saber respeitar aquela faixa (...)tem que saber tudo (...) ser uma prenda de respeito, ser uma prenda simpática, educada (...) não acho que não namore, mas (...) dentro da entidade, que ela não fique naqueles agarramentos que hoje em dia (...) respeitar a faixa que ela carrega (...) respeitar o CTG (...) que respeitar o próprio tradicionalismo (...) (Franciele).
(...) nós na época de prenda, existia determinadas normas, que nunca vi isso em papel, mas digamos, um código de honra, que seria, tu tinha que ser amigável com todas, não poderia, ter que dançar com todas, não poderia dar carão; o jeito de se portar, não poderia dançar, mesmo que tu tivesse vontade de ficar com um rapaz, não poderia dançar a noite inteira com aquele rapaz, não poderia beijar dentro do CTG, não poderia dançar muito apertado e isso era, nós éramos cobrados em relação a isso (...) (Marlize).
Apesar do processo formativo da prenda visando maior conhecimento, a
avaliação dos "Caracteres Pessoais" não é dispensada pelo concurso, pois o mito da
"mulher gaúcha" construído pelo Tradicionalismo, também é composto pelas
características de sociabilidade e beleza.
Art. 29 - A avaliação dos Caracteres Pessoais será desenvolvida durante as provas orais, artísticas, da mostra folclórica e ou arte tradicional observando-se as boas maneiras, a elegância, a desenvoltura, a simpatia, a beleza e a indumentária de acordo com os princípios do MTG. (Coletânea Legislação Tradicionalista, 1999, p. 179)
3.3. Ser Prenda
100
FIGURA 10: II° Fórum Tradicionalista - "35 anos MTG" - Outubro/2001 - Santa Maria
Eu adoro o vestido, eu me sinto bem com o vestido, a gente se sente a, a rainha né, a princesinha que, que está encutida em todas as mulheres (...) (Marlïze).
É possível identificar alguns símbolos que constituem esta representação da
prenda como princesa: seu vestido de dama, a flor no cabelo, os seus gestos
delicados na dança; todos eles formando um conjunto romântico que reforçam a
imagem da mulher submissa dependente e ingênua, compondo uma "identidade
feminina". A razão não consegue explicar como a figura da prenda pode atrair jovens
que vivem num contexto tão diferenciado, é aí que percebe-se a força do mito na
mentalidade do povo, na busca de uma identidade coletiva.
101
A foto de abertura deste item mostra três prendas de faixa do Rio Grande do
Sul, usando pilchas, porém esta indumentária não representa apenas uma
referência às "mulheres gaúchas do passado", ela também reveste-se de uma
simbologia que transforma o vestido de prenda em um vestido de "princesa"; a
Primeira Prenda do Rio Grande do Sul, na foto, usa uma coroa, outro elemento
simbólico das princesas e rainhas. Tudo isso faz sonhar.
O depoimento reproduzido na legenda da referida foto, introduz a idéia de
"princesinha", prenda princesa, àquela que sonha com seu herói. O gaúcho mítico
também é uma elaboração formulada a partir do mito do herói clássico, da Europa
Medieval, o cavaleiro, cuja referência mais importante é a aptidão para proteger
lindas e frágeis donzelas em perigo.
Segundo Jung (1999), sonhar é uma capacidade de comunicação do
indivíduo com o seu inconsciente, mas o inconsciente é entendido como parte tão
vital e real da pessoa quanto o mundo consciente. As prendas, através de parte de
seus relatos citados abaixo, expressam essa comunicação, como um "momento
mágico", um sonho; falam do ato de "vestir-se de prenda" e despreender-se para
reviver o passado, para tornar-se outra pessoa. O vestido de prenda já não
representa apenas o objeto em si, passa a relacionar-se com àquelas que vestem a
indumentária, através dos sentimentos e emoções que pode provocar.
(...) no momento que a gente escuta a pessoa que está apresentando o concurso chamar o nome da gente (...) prenda de uma entidade como o '35'é um sonho que não tem explicação, é um momento mágico (...) (Fernanda).
Eu tenho treze vestidos de prenda (...) fora os que eu danço na Invernada (...) quando eu coloco uma pilcha eu me torno outra pessoa (...) tu tem que ter respeito pela tua vestimenta, as tuas atitudes têm que mudar (...)
102
(Fernanda). (...) eu tenho mais ou menos dez vestidos (...) eu pôr um vestido é como se eu tivesse buscando no passado (...) toda nossa tradição, revivendo tudo que os nossos antepassados viveram (...) naquela época que se usava vestido, que não podia mostrar o cotovelo (...) toda recatada, é muito bom, é muito bonito isso (Andresa).
(...) eu tenho mais ou menos oito ou nove vestidos. Eu gosto muito de ser prenda (...) vestir um vestido de prenda, eu sinto muito orgulho quando eu visto um vestido e venho representar meu CTG (...) isso me dá muitas forças (Yasmin).
(...) a gente vê as outras (...) a gente sonha: um dia eu ainda vou ser prenda; eu pelo menos tinha um sonho, e realizei meu sonho. Eu tenho doze vestidos de prenda (Andressa).
(...) antes de eu ser prenda (...) eu olhava para as prendas (...) e dizia assim: ai mãe, eu um dia ainda vou ser prenda do Piá do Sul' e depois da Décima Terceira (...) era um sonho muito grande ser prenda (Camila).
Essa naturalização historicamente construída do papel das mulheres na
hierarquia sexual, está presente em tudo, inclusive no vestir, que faz parte da
construção binária entre os sexos. A indumentária feminina usada nos CTG's, é um
elemento cujo efeito simbólico impõem-se com força através do vestido de prenda
quando idealizá-se vestir e agir como as mulheres gaúchas do passado. Há uma
idéia de retorno, e o vestido da prenda, funciona dentro desta formulação simbólica,
que legitima e mantém a "conduta esperada" para as mulheres: recatadas e
submissas.
Como foi definido por Pierre Bourdieu, em sua obra "A Dominação
Masculina", há uma "incorporação da dominação":
A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de pré-disposições colocadas, como molas propulsoras na zona mais profunda dos corpos (1999, p. 50).
103
Um discurso corrente entre as prendas tradicionalistas é o que absorve a
noção de continuidade, de busca de elementos do passado para dar valor de
autenticidade à figura da prenda; este discurso ultrapassou os limites do dizível
pelos tradicionalistas, mesmo que os livros dos fundadores do "35" (lidos pelas
prendas) narrem a invenção do CTG, das danças, da prenda e do vestido de prenda,
ocorre uma transformação da prenda em "lugar da memória tradicionalista".
As prendas associam as suas atitudes e comportamentos, valores e
sentimentos vividos no presente, a uma "mulher gaúcha" que viveu no passado, e a
partir daí percebe-se que a prenda está na memória, passou por um processo de
"solidificação", embora sua origem seja recente (1949), ela é enquadrada com
origens remotas; oficializa-se como memória cultural gaúcha e faz parte dos
currículos escolares.
A imagem da prenda é envolvida também pela criação de uma figura feminina
exemplar, humilde, simples e dedicada ao mundo doméstico (rancho), de um modelo
de mulher decente e recatada, sem sexualidade. A prenda não seduz, encanta; o
que se observa é que o desejo deve estar fora do CTG. Esse imaginário, de um
modo de ser feminino, maternal, recatado, fraternal, paciente e forjado no sacrifício,
é difundido e traduzido pela figura da prenda, tal como se observa nos depoimentos:
(...) a prenda, antigamente, era aquela mulher que ficava em casa cuidando dos filhos, ou então aquela menina que ficava brincando (...) A pilcha da prenda tem várias regras (...) antigamente, as únicas que usavam decote eram as estancierias que faziam parte da elite, a prenda não. A prenda sempre foi uma pessoa pobre, uma mulher que ficava no rancho (...) (Andresa)
(...) as prendas antigamente, como eu disse, elas ficavam no rancho, cuidando dos filhos, enquanto o marido cuidava da lavoura, ou ia para a guerra (Andresa)
104
(...) precisa estudar, precisa saber os nossos costumes, como a mulher se comportava antigamente (...) como prenda se porta. Que a prenda tem que ser muito bem educada (...) boas maneiras, tem que ser simples, humilde (...) (Cleusa)65
Aqui percebe-se uma contradição: se a prenda representa a mulher pobre e
humilde que ficava no rancho, porque as prendas vestem-se de ricas, de princesas
ou de estancieiras? Esse discurso da "mulher gaúcha", uma humilde dona-de-casa é
também representado por Barbosa Lessa no livro "Mão Gaúcha", onde o autor diz
que o trabalho masculino é o das "lides de campo" e o trabalho feminino são as
"lides domésticas".
FIGURA 11: Mulher varrendo - extraído do livro "Mão gaúcha", p. 58
65 Cleusa tem 50 anos, é costureira e dona-de-casa, é mãe de uma Prenda, é Posteira da Invernada Juvenil (Grupo de Danças) do "3 5" CTG.
105
A gravura reproduzida ilustra o texto de Barbosa Lessa sobre o trabalho
feminino na chamada "sociedade gauchesca", onde a imagem da mulher é descrita
através de uma rotina de sacrifício e dedicação, assim colocada:
Ao clarear o dia:
- ascender o fogo e esquentar a água para o chimarrão;
- servir o café da manhã e cuidar dos filhos pequenos;
- varrer o chão, chamar as galinhas, dar ração aos porcos, recolher os ovos;
E segue:
- juntar a roupa suja, lavar no arroio66 e preparar o almoço;
- lavar a louça e distribuir lavagem67 aos porcos; Após a séstia68:
- debulhar milho, socar canjica e servir o café da tarde;
- fazer trabalhos manuais ou artesanatos (tapetinho de saco de estopa
com ponto de cruz, "pano-de-prato" de saco de farinha, chapéu de palha,
travesseiros de pena de galinha, cobertores e acolchoados de lã, croché, tricô,
bordado), "prendas domésticas consideradas essenciais na formação feminina";
- consertar roupas e confeccionar saias, vestidos ou "bombachas para o
esposo, noivo ou namorado".
Ainda:
- assar o pão, preparar o licor, fazer doces, colher frutas, fazer lingüiça,
queijo, etc.;
Ao entardecer:
- preparar o jantar e o banho das crianças; - servir a janta;
66 Arroio: pequeno rio ou sanga próximo a residência. 67 Lavagem: restos de comida atirado aos porcos. 68 Séstia: ato de dormir após a refeição na campanha.
106
Após a janta:
- lavar e guardar a louça, enquanto "os homens reúnem-se no galpão";
"Dorme-se sob a paz de Deus, no silêncio campesino, até os galos
anunciarem a madrugada seguinte". (Lessa, 1996, p. 58).
Essa discurso tradicionalista sobre a mulher no passado é cultuado nos
CTG"s, é entendido como a "tradição", representação que passa pela "princesinha",
pela "pobre", pela "recatada e honesta".
(...) O CTG é isso. É, retorno (...) é culto ao antigo, àquela tradição, e dentro dessa tradição, se mantém como era antigamente. Não se aceita muitas modificações (...) tu pode ver na própria música, esses movimentos anti-chê-music que anda por aí, é exatamente isso. Nós não queremos perder nossas raízes, das músicas, como eram feitas; das pessoas, como se trajavam; de como as pessoas agiam dentro daquela educação mais séria, mais rígida, inclusive a maneira de vestir. Não que todo mundo seja obrigado a viver de vestido de prenda e de peão (...) Mas se pode, às vezes até se exige uma postura mais recatada das moças. Nunca com roupas decotadas, ou cavadas, ou de costas de fora. Isso aí não se permite, não se aceita (...) porque é um CTG (...) não é um clube aberto (...) dentro do CTG se exige esse tipo de recato (Rosane).
Existe uma idéia de retorno, de busca de elementos do passado para fundar
uma tradição a ser seguida e preservada, observa-se também, discursos que tentam
imprimir novos elementos a essa construção da prenda, como por exemplo, para
justificar o uso de indumentária masculina:
Só que em relação a indumentária eu tenho um questionamento que eu sempre queria levar adiante; o MTG não aceita o chiripá como uma indumentária feminina, e daí eu questiono: _ como que as mulheres que participaram e lutaram na Revolução Farroupilha, ou as que estavam nas fazendas, indo para o campo, recolhendo cavalos para os homens levar para a guerra, ou para sustentar suas famílias, andavam de vestido de prenda? Eu não aceito. Eu não acredito que elas não usavam uma indumentária mais confortável (...), então usa o chiripá como uma vestimenta feminina também, porque as mulheres, as nossas, as mulheres gaúchas, com certeza usavam chiripá. (Marlize)
107
Outro elemento que faz parte dessa construção da prenda é àquele que
enaltece a figura da mulher, nos "limites estipulados para ela". A prenda aparece
como uma figura importante para o CTG e para o Movimento, seu papel é tido como
fundamental, mas não é o central, é o secundário: ela está por trás cooperando e
não à frente coordenando. Seu espaço segue reduzido à condição de mulher
resignada, de boa esposa e mãe, pois o objetivo não é destacar-se no espaço
público; ela participa apenas para auxiliar os homens que conduzem o Movimento,
cumprindo o papel de ornamento ou de educadoras das novas gerações, que têm
acesso ao conhecimento para transmitir aos futuros líderes do Movimento.
(...) eu acho que sem a participação da mulher, ele não teria ido muito longe. Querendo ou não a mulher está sempre por trás. Ela está sempre ajudando, cooperando. (..) não vá dizer assim, que sejam figuras ilustríssimas, que sejam como nós temos peões que são oradores, que levam o Movimento. Nós temos sim, mas essas prendas elas estão sempre cooperando. Elas estão por trás. Elas estão ajudando. Elas estão cuidando das invernadas. Elas estão cuidando da gurizada, porque esses são a base. Eles vão continuar o Movimento. Estão mais na parte, - como é que eu vou dizer? -, de educação, de educação inclusive escrita, educação de pesquisa, de passar conhecimento, isso a mulher faz (Rosane).
O que chama atenção no depoimento acima é que a depoente usa terceira
pessoa para falar da prenda, não se insere usando a primeira pessoa. Enquanto
capataz cultural do "35" CTG, uma função que anteriormente só fora ocupada por
homens, não se vê como a prenda descrita e cultuada pelo Movimento: essa é
jovem, delicada, que dança e serve de exemplo. Quem seria essa outra mulher com
papéis distintos no CTG?
108
Existem outras mulheres que não são as prendas, que participam de provas
campeiras, que entram para a patronagem (são patroas, capatazes, posteiras,
coordenadoras do MTG), contudo elas aí exercem um "papel masculino", despojam-
se da condição de prenda para exercer estas funções. São mulheres tradicionalista,
mas não são prendas.
Me considero uma mulher, uma mulher do Rio Grande do Sul, uma, como existiam tantas matronas, tantas mulheres que assumiram atividades masculinas, que a gente sabe que existe isso. Eu me sinto uma mulher atuante que está ali para promover a cultura gaúcha, para disseminar, para não deixar morrer, para, para reunir o pessoal em torno de um objetivo maior, que não é ser prenda, ou ser Patroa, ou ser capataz, que ë a perpetuação da nossa cultura (Marlize).
Inclusive, estas mulheres mantém a representação da prenda dentro dos
princípios regrados do Tradicionalismo, que estabelecem um "padrão de
comportamento feminino". A prenda convive com novos padrões de comportamento
mas mantém-se como um símbolo da tradição, como memória da "mulher gaúcha".
Hoje em dia, isso está tudo mudado, porque hoje até a parte campeira, que é a gineteada, o laço, as prendas estão livres para fazer o que bem entenderem nessa parte campeira. Tem uma senhora já, que gineteia na Semana Farroupilha. Tem mulheres que fazem prova de laço, prova de rédeas, em rodeios, em eventos tradicionalistas campeiros. Eu não gosto dessa parte. A única coisa que eu faço na parte campeira é montar a cavalo. (...) eu não gosto muito dessa coisa de carnear, ginetear (...) são partes mais perigosas. Eu tenho medo (...) (Andresa)
109
(...) eu acho que quando tu veste uma indumentária masculina. tu te sente assim meio responsável, pela ocasião que tu está, se tu está num rodeio, tu está ali, tu tem que ser mais responsável, não tirando a responsabilidade de tu está de prenda (...) quando eu estou vestida de prenda as pessoas me olham, tu está mais delicada (...), tem uma diferença tu está com a indumentária masculina quanto a feminina, quando tu está de prenda, tu te sentes mais, o pessoal te vê mais como prenda, aquela coisa mais delicada (...) (Marta).
Diante das mudanças, da variedade de funções que as mulheres assumem
no Movimento, também diante das rivalidades entre prendas e da comercialização
dos símbolos do Tradicionalismo, surgiu a necessidade, dentro do CTG, de
reafirmação dos princípios tradicionalistas e de falar de uma "prenda de verdade",
como está demonstrado no pensamento escrito por uma Primeira Prenda do
"35"CTG:
Ser prenda não é apenas usar um vestido e portar uma faixa, mas sim, amar, o Rio Grande do Sul e cultivar as nossas tradições, sobre todas as coisas. Tem valor ser 1 a Prenda, mas muito mais ser uma "Prenda de Primeira'. Isso sim faz uma 1a Prenda (Relatório de Participação e Promoção de Atividades Tradicionalista, p. 2).
A comercialização da indumentária feminina também significa um espaço no
mercado, um comércio destinado às mulheres, prendas, que adquirem vestidos e
acessórios, buscando estar em concordância com os padrões de uso da pilcha
estipulados pelo MTG, e de acordo com os padrões de beleza, elegância analisados
no item "avaliação dos caracteres pessoais".
110
FIGURA 12: Fonte: Caderno "Santa Maria 144 anos", 17/05/2002, p.37
O livro "A Prenda Tradicionalista", de Darcy Paixão, propõe uma discussão
diferenciando Prenda e Prenda Tradicionalista: a primeira é combatida, por pensar
só na faixa, no rostinho bonito, no belo vestido e nas festas; a segunda é
considerada a "verdadeira", que tem firmeza de princípios, que trabalha pelo
Tradicionalismo, que tem consciência cívica e que mesmo sem faixa, cumpre tarefas
pôr um ideal. A prenda tradicionalista é orientada para servir de exemplo "da prática
correta da hospitalidade gaúcha, do cultivo de valores sadios e honestos e da
preservação de hábitos saudáveis".
É clara a idéia positivista da sociedade regulada por leis gerais, as quais os
indivíduos devem ajustar-se, e dentro desta estrutura, o papel social das mulheres é
111
o de contribuir para o bom funcionamento da "engrenagem" social, como demonstra
o texto abaixo:
A vida em sociedade precisa de comportamentos adequados. O tradicionalismo é uma das ramificações da sociedade. Por isso, a necessidade de uma convivência autêntica e saudável. A prenda deve contribuir na preservação dos bons costumes, infundir preceitos éticos e morais. Ela, geralmente, é tomada como exemplo pelas demais (Paixão, 1995, p.44).
A referida obra levanta outro aspecto, que atualmente tem sido objeto de
discurso dos tradicionalistas e de alguns estudos acadêmicos, é a conclamada
participação das mulheres no Movimento Tradicionalista, a sua atuação nas
patronagens dos CTG's, nas cavalgadas e gineteadas e o conseqüente uso de
vestimentas campeiras de montaria. No trabalho intitulado "O Papel da Mulher no
Movimento Tradicionalista", Cristina Rigão afirma que com os concursos de prendas
as jovens passaram a atuar mais ativamente no Movimento, conquistaram espaços e
ocuparam cargos anteriormente destinados exclusivamente aos homens. Para a
autora: "a mulher esta integrada no Movimento Tradicionalista Gaúcho, mostrando
no dia-a-dia suas habilidades, aptidões, inteligência e à força" (1996, p. 24)
Realmente o CTG atualmente abriga outras práticas femininas, mas não são
estas mulheres que servem de referência para o perfil feminino conservado pelo
Movimento Tradicionalista.
Como todo o tradicionalista, a Prenda tem a missão de motivar princípios, boas ações e valores. Cultivar a simplicidade, o recato, a sensibilidade, prudência, cautela, pudor, decência, honra, honestidade, modéstia, elegância, graça, benevolência, responsabilidade, simpatia e alegria de viver (Paixão, 1995, p.44).
112
O Movimento reconhece práticas diferenciadas, influências culturais
diferenciadas, mas ainda procura uma síntese, a "mulher gaúcha". No 30° Concurso
Estadual de Prendas na categoria adulta, a redação aborda o seguinte tema:
O Movimento Tradicionalista Gaúcho procura valorizar a participação da mulher no tradicionalismo. Nas várias regiões do Rio Grande do Sul, as mulheres sofrem influências das culturas locais e apresentam características de comportamento, hábitos e atitudes diferentes ou com peculiaridades típicas do local. A soma, ou a síntese, destas mulheres forma a mulher gaúcha. Disserte sobre essa "mulher gaúcha"; destacando as diferenças existentes entre as mulheres nas várias regiões (Prova 30° Concurso Estadual de Prendas).
Aparece em alguns discursos, o questionamento do papel submisso da
prenda dentro do CTG, tendo como tarefa "arrumar o salão para as festas, servir
chimarrão, declamar poesias, dançar com todos, sem dar carão" e a evocação de
uma mulher mais "capaz, decidida e com luz própria", menos "decorativa" e reduzida
a "ornamento". Porém, percebe-se, que não há nesse discurso uma tentativa de
desconstituir a concepção de gênero que durante séculos tem construído a idéia de
uma "essência feminina" mais delicada, sensível, bela e ingênua, por isso livre dos
"vícios" da esfera pública.
Guacira Lopes Louro (1987), observa que nas décadas de 20 e 30 as
transformações sociais mais amplas exigiam mudanças na imagem feminina e que a
escola procurou combinar características modernas com traços tradicionais, visando:
“formar uma jovem com ‘iniciativa’; ‘competição; ‘segurança' e 'responsabilidade',-
mas onde não se esquecia da 'graça', `meiguice', `docilidade', 'vigilância'. e
‘resistência aos hábitos modernos nocivo’” : (p. 92)
113
O que se observa é uma tentativa de manutenção desses princípios morais
do Tradicionalismo que envolvem a construção da prenda com um papel feminino de
submissão, através do envolvimento de alguns elementos do novo, porém sem
despregar-se da idéia da prenda como uma "mulher especial", cercada de
romantismo e inspiradora "valores nobres".
(...) a mulher de hoje tem ainda mais consciência do seu papel ativo no contexto da sociedade. Costura transformações profundas pela cultura, capacidade de articulação, graça e beleza, fazendo do conhecimento obtido, uma roupagem nova para viver o mundo. É o tradicionalismo abrindo caminhos, adaptando-se aos novos tempos, plantando união e esperança num mundo melhor para todos (Paixão, 1995, p. 42).
Através das vozes das prendas conhecemos um pouco do seu cotidiano no
CTG, do estudo e da preparação para concursos, da recepção de convidados em
festas campeiras, dos saraus e bailes, dos projetos assistenciais, das palestras em
escolas e dos congressos tradicionalistas.
Andresa, Yasmim, Sabrina, Fernanda, Gabriele, Cleusa, Rosane, Camila,
Francieli, Andressa, Marta e Marlize contaram suas experiências no CTG. As suas
narrativas nos levaram a um ambiente de convívio social organizado, controlado;
dentre as passagens mais freqüentes colocadas nas suas falas está o aspecto do
"comportamento", que envolve uma construção de gênero bem definitiva para o "ser
feminino". Toda prática está impregnada pela concepção de representar bem o
papel de prenda - "uma mulher comportada".
A obrigação pessoal que cada uma coloca para si, de vestir-se
adequadamente, de ser discreta, de não namorar (pelo menos em público), de saber
se comportar, estabelece a relação de construção da prenda com a sexualidade,
114
porque ela deve manter uma imagem da mulher imaculada: "da santa mãe e
esposa".
Ao entrar no CTG a prenda é preparada para assumir este papel, o corpo
passa a ser treinado, os gestos delicados são ensaiados na dança, a voz suave é
desenvolvida pela prática da declamação. São práticas permeadas por significados,
que modelam o corpo feminino através de gestos e comportamentos construídos e
reconstruídos a partir do que estabeleceu-se historicamente como modo de ser para
as mulheres.
As práticas de constituição dessa memória da prenda também passam por
aprender "ofícios femininos" (artesanato, confecção de brinquedos antigos, palestras
para as crianças, projetos assistenciais, recepção de convidados, decoração do
CTG, cuidado com a aparência e uso correto da indumentária).
Para ser prenda, memória de uma figura idealizada da "mulher gaúcha", as
elas são orientadas: pelas diretrizes da indumentária gaúcha, as quais prescrevem
os mínimos detalhes do modo de vestir, e pelo código de ética que estabelece o
padrão de conduta. As prendas não criticam esses regulamentos e suas sanções,
porém, como todo comportamento social, ele não ocorre sem contradição, e também
no CTG ocorre o conflito com o que é estabelecido e normatizado como conduta de
prenda:
(...) aqui no "35" foi em 96, a Primeira Prenda Juvenil (...) durante o 4° mês da gestão dela, ela engravidou, então foi feito uma reunião com a patronagem e com o Conselho de Vaqueanos, e eles acharam melhor tirar a faixa dela e passar para a Segunda Prenda Juvenil dela (Andresa).
115
Através das narrativas e das fotos das prendas, conforme apresentado
abaixo, vimos que as prendas passam por um processo educativo que busca a
uniformidade, a "prenda de faixa", torna-se assim a "prenda ideal", a "verdadeira
prenda", que iniciou sua preparação dançando nas invernadas mirim e juvenil, que
estudou para os concursos e que passou a executar projetos e palestras de
divulgação do Tradicionalismo.
FIGURA 13: Grupo de Prendas do "Piá do Sul", Santa Maria, dezembro de 2001
É possível captar que as "prendas de faixa" absorvem as atenções dentro dos
CTG's, elas representam, dão entrevistas, e as que não são "de faixa" sonham
espelhando-se nelas.
Um dos objetivos desse trabalho foi chegar perto dessas jovens mulheres que
vivem a personagem prenda, e apreender como são incorporadas essas práticas
116
que estabelecem a constituição da memória da "mulher gaúcha", intercalada pela
construção do gênero.
Procurei investigar nessas práticas a "fórmula" encontrada para viver essa
mulher mitificada, tão distante do modo de vida da atualidade e como cada uma
delas convive com essas diferenças.
Percebi que as prendas do CTG, são jovens que se sentem atraídas pela
possibilidade de viver essa personagem composta por características "nobres", que
é singular e exemplar, um símbolo que elas alcançam com o título de Primeira
Prenda. A conquista desta faixa passa absorver de tal forma as suas vidas que elas
passam a dedicar-se, excluindo a freqüência na escola, quase inteiramente ao
Movimento.
Também existem algumas vantagens de ser prenda, como ser reconhecida,
ser vista como uma figura especial no Movimento e quando é conquistada a
condição de Prenda Regional ou Estadual há uma exposição na mídia, circula-se
entre autoridades e figuras de destaque, além de alguns outros atrativos como fotos,
entrevistas, desfiles e participação em eventos.
A inter-relação dessa memória da prenda com a construção do gênero é tão
forte que inscreve-se nos gestos e nas mentes das jovens que passam a viver
intensamente o "ser prenda": uma mulher educada, simpática, simples e discreta.
Outras mulheres - como as patroas e capatazes, assumiram papéis diferenciados e
vivenciam outras funções dentro do Tradicionalismo, porém estas não representam o
símbolo feminino construído dentro do CTG, configurado na prenda.
117
CONCLUSÃO
Os caminhos até aqui percorridos representam o trabalho de investigação e
construção que esta dissertação teve como propósito desenvolver: investigar os
discursos e as práticas tradicionalistas que se uniram para fundar uma memória da
"mulher gaúcha" que o Movimento escolheu para cultuar; construir uma narrativa
capaz de unir todos esses elementos a uma teoria estabelecendo uma versão da
história da Prenda no Imaginário Tradicionalista.
Um primeiro caminho, que investigou a criação do MTG no Rio Grande do
Sul, serviu para indicar o "discurso fundador" do Tradicionalismo, aquele que evoca
a idéia do pampa gaúcho, lugar de relações fraternos e democráticos, berço de uma
raça superior, onde um tipo social livre e bravo - o gaúcho, tornou-se símbolo.
O discurso do gaúcho, embuído dos princípios mais elevados como honra e
valentia, também é formador da "mulher gaúcha" - uma figura recatada, digna,
delicada e simpática. O mesmo discurso que apresenta o gaúcho como o macho
valente, apresenta a "mulher do gaúcho" como fêmea delicada.
Dessa forma o Tradicionalismo constrói um discurso sobre a sociedade
gaúcha, que deseja preservar como memória, que é ao mesmo tempo uma
construção de gênero, do significado de ser mulher no Rio Grande do Sul, que
enxergou a mulher como sustentáculo da moral dessa sociedade idealizada.
O CTG é fundado dentro desta concepção positivista e a prenda inventada
pelo Movimento, foi o segundo caminho para este trabalho. A prenda para
representar esta figura definida como a "mulher gaúcha", foi submetida a um
trabalho de elaboração de seus traços, que envolveu a criação de uma indumentária
118
feminina e de danças que afirmam a mulher como ser recatado, delicado e simpático
- um conjunto de características reforçadas nos versos cantados e declamados.
Para legitimar e difundir esta figura de mulher que o Tradicionalismo criou, a
prenda também foi alçada a categoria de "verdade histórica" sendo associada a
momentos e épocas da história oficial do Rio Grande do Sul, como a Revolução
Farroupilha, "lugar" para onde as prendas se reportam dando significado às suas
práticas.
Criada em 1949, a prenda foi sendo envolvida por um processo de
solidificação, passando a integrar o patrimônio cultural do Rio Grande do Sul se
tornando homogenizadora das diversas figuras de mulheres que viveram aqui.
A prenda, não apenas define um perfil feminino, da mulher submissa,
comportada e sociável estabelecido como memória oficial, como também se
sobrepõe à figura da china (memória recalcada), que embora apareça nos textos
tradicionalistas, nos relatos do passado e nos versos das canções, ela não é
referendada como "mulher gaúcha". Essa "mulher gaúcha" é a prenda, a figura
normatizada e moldada para ser cultuada e tornar-se um exemplo.
Os tradicionalistas empenharam-se na "luta da memória" que estabelece para
a sociedade aquela que aparece como verdadeira e torna-se oficial, consolidando
nessa "disputa" o conjunto de valores que o Movimento Tradicionalista estabeleceu
como princípios, onde a prenda reproduz a prática dos valores conservadores que
evocam como referência um passado idealizado.
Um terceiro caminho, conduziu este trabalho a visualizar, através dos
depoimentos das prendas, quais os elementos escolhidos pôr elas para formar a sua
identidade e a sua relação com o Movimento. Nas observações feitas desses relatos
119
identifiquei que as construções individuais transitam entre as várias representações
presentes na figura da prenda: desde a princesinha romântica presente no vestido
de prenda, até a mulher lutadora que assume a estância; ou a pobre mulher do
rancho, forjada no sacrifício e na dor da espera.
A prenda na sua construção individual passa por todas essas representações,
com maior ou menor intensidade dependendo das suas vivências, porém o resultado
dessa elaboração não foge daquilo que foi normatizado pelo MTG: a prenda como
representação da submissão e da abnegação, uma figura que desempenha um
papel decorativo no CTG e nos eventos do Tradicionalismo.
A prenda assim, assume as funções historicamente reservadas às mulheres:
de esposa e mãe. Ela é a educadora, que transmite os valores pregados pelo
Tradicionalismo para as gerações futuras, através das ïnvernadas das danças, das
palestras ministradas nas escolas, dos projetos assistencialistas realizados; ela que
enfeita e arruma o salão para as festas do CTG; ela que recebe os convidados,
estando sempre sorridente e enfeitada, tornado-se também o convite para eventos
futuros.
A análise dos relatos orais, também conduziu essa pesquisa a observar
outras práticas no interior do Movimento, de mulheres tradicionalistas que ocupam
funções tidas como masculinas, como patroas e capatazes de CTG's; porém estas
mulheres não chegam a desestabilizar a figura da prenda como representação
feminina das tradições no Rio Grande do Sul, pois elas já foram prendas ou são
mães de prendas, e seguem exercendo o papel de colaboradoras dentro do
Movimento, que mantêm a prenda como o símbolo da "mulher gaúcha".
120
A análise do conjunto de práticas tradicionalistas demonstrou que servem
para manter a "ordem" de uma moral conservadora que destina um papel submisso
para às mulheres, que formam "efeitos de verdade" na construção de identidade,
onde a hierarquia de gênero é mantida e legitimada através da figura da prenda:
espelho do CTG.
121
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