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A Sociologia da Crise Recente no Brasil: Breves Reflexões
Por Volney Aparecido de Gouveia
“O Estado fica estável quando produz panóplias de consciência” Grun, R. (2017)
“A política é uma batalha para controlar o Estado”. Collins, R. (1994)
O Brasil dos anos 10 tem se constituído em farto objeto de análise dos cientistas
sociais, notadamente a partir do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da
República em abril de 2016. O rol de acontecimentos políticos, jurídicos e econômicos
tem sido fecundo campo de experiências para se explicar o grande fenômeno de
pessimismo que se abateu sobre o país a partir de 2014, quando a palavra "crise" se
espraiou de várias maneiras, tanto pelo seu caráter econômico, manifestado na queda
consecutiva da atividade econômica; jurídico, manifestado nos desdobramentos da
operação Lava Jato; quanto social, refletido nas manifestações de rua que tomaram o
país nas grandes e médias cidades a partir de 2013 e, mais recentemente, no acirramento
das disputas políticas entre grupos de esquerda e direita do espectro ideológico. Haveria
assim uma disputa sobre quem passaria a dominar o “discurso da narrativa” acerca da
conjuntura de crise e das formas de sua superação.
Algumas perguntas prévias para reflexão tornam-se necessárias como eixo para
o delineamento dos argumentos acerca dos fenômenos aqui estudados:
1. Por que, a despeito dos indicadores socioeconômicos do país terem melhorado
substancialmente desde o início dos anos 2000, o clima de desolação tem se espraiado
por toda a sociedade?
2. Quais elementos sociológicos poderiam nos ajudar a compreender a dinâmica da crise
e seus atores, enfatizando suas inter-relações?
3. No desenrolar da crise, quais as relações existentes entre classes sociais e suas
representações à luz das interpretações de algumas correntes da Sociologia?
Algumas hipóteses para estas perguntas são colocadas nos seguintes termos:
1. A partir de 2004, os avanços econômicos e sociais do país foram apropriados de
forma distinta pelos atores sociais. Na margem, alguns se apropriaram mais que
proporcionalmente dos benefícios econômicos do que outros, determinando graus
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diferentes de apoio ao governo destituído de Dilma Roussef e constituindo a base da
divisão entre aqueles que a apoiavam e os que se opunham a ela. Houve o acirramento
da disputa eleitoral de 2014 e o esgarçamento das relações políticas entre Executivo e
Legislativo, com brutal perda de apoio político com os avanços da Operação Lava Jato,
o que dificultou a agenda de recuperação econômica. Some-se a isto o “decopling” entre
o discurso e a prática da classe política, cujos indícios de envolvimento em
irregularidades foram ofuscados pela crise política e econômica: a maior divulgação e
disseminação de práticas corruptas cometidas por agentes públicos disseminou a crença
de que o Estado foi tomado de assalto e que, portanto, deveria o cidadão-eleitor
“esclarecido”, sem mecanismos diretos para reverter tais processos, apoiar-se na ação da
justiça como mecanismo de vingança.
2. A atuação de membros do judiciário1 e dos órgãos de investigação do Estado
(Procuradorias, Polícia Federal, Tribunais etc) apropriaram-se do “discurso da
honestidade e do combate à corrupção” a partir da deflagração das investigações do
âmbito da Operação Lava Jato, contando com apoio expressivo da imprensa na
divulgação – algumas vezes de forma ilegal – de suspeitas de corrupção em órgãos
públicos. Outra parte da sociedade, que podemos chamar de classe média organizada,
parece não ter se contentado com as melhorias de sua condição econômica e passou a
elevar - antes velado - o tom das críticas ao governo eleito de Dilma Rousseff em 2014.
Nestas perspectivas, apresenta-se neste artigo uma discussão sobre aspectos
teóricos e objetivos do dissenso nacional em torno da política e da economia. A
primeira parte procura apresentar elementos teóricos da ciência social que nos ajuda a
compreender as motivações dos atores para dominar determinado discurso apoiando-se,
por exemplo, nas interpretações de Grun (2011), Brass (2000), Boltanski (1999), Collins
(1994) e Bourdieu (1989). A segunda parte apresenta um breve panorama sobre a
evolução da economia no período pós 2002, procurando identificar elementos que
justifiquem o quadro favorável da economia e que produziram efeitos políticos e
econômicos como as eleições dos presidentes Lula (2006) e Dilma (2010 e 2014) e dos
elementos políticos e sociológicos que se interagiram para acirrar o conflito de classes,
1 Segundo Bourdieu (2012), “há um certo número de agentes sociais — entre os quais, os juristas — que
representaram um papel eminente e que construíram progressivamente essa coisa que chamamos de Estado, ou seja, um conjunto de recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social em conjunto, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque têm atrás de si a força do oficial”
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procurando na sequencia tratar brevemente dos aspectos que motivaram o acirramento
dos discursos e do dissenso nacional, sendo este um ponto de inflexão das correlações
de forças políticas. Por último, procura-se relacionar a crise com os elementos de
cultura e representações sociais numa perspectiva bourdieusiana e boltanskiana,
apresentando ao final algumas considerações finais.
1. Classes Sociais, Dominação, Diálogos e Conflitos: Abordagens Teóricas
Para a Ciência Social, as relações contratuais entre os agentes da sociedade não
possuem determinismos previamente conhecidos. Existem elementos subjetivos que são
aceitos relativamente sem ser questionados (taked for granded). A própria sociedade
institucionaliza visões de mundo e comportamentos os quais seus membros os seguem
sem, no entanto, questioná-los. Seria o caso de situações habituais e recorrentes do dia a
dia que, de tão reproduzidas, tornam-se “normais” ou “habituais”. Quando a construção
de um objeto não reflete a visão da sociedade, um problema social transforma-se em um
problema sociológico. A teoria da tradição do conflito, desenvolvida por Marx, e mais
recentemente a teoria das revoluções, que teve como expoente Max Weber passou a
interpretar a dinâmica social como multidimensional (não idealista) e sem um caráter
materialista, mas para o qual “o todo era uma mistura das partes em conflito” (Weber
apud Collins, 1994).
Segundo Collins (1994), outra categoria de análise de Weber são os grupos de
status. Setores organizados possuem sentimento de pertencimento e estão dispostos a
lutar por seus interesses. Para o autor, “classes são grupos que compartilham um
determinado grau de monopolização em algum mercado”. A base dos conflitos sociais
está nas relações de poder e não mais na propriedade.
A nova teoria do diálogo, desenvolvida por Bourdieu (1989), apresenta os
mecanismos de construção da lógica de dominação na sociedade em cinco formas: a
doméstica, que pressupõe que o grande (forte) ajuda ao pequeno (fraco) e o subjulga; a
cívica, que trata das relações políticas; a industrial, que busca continuamente ganhos de
escala na produção de riqueza; a comercial, na qual agentes compram barato e vendem
mais caro e inspirada, que trata das relações culturais. Para o autor, a dominação não é
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algo relevante desde que os atores se se contrapõem às maneiras de atuação da
dominação, cobrando-lhe coerência. Esta seria a lógica para os pequenos reivindicarem.
No entanto, para Boltanski (1999), a polarização política entre agentes é
resultado da construção de mitos, que estabelecem lógicas de justificação. As denúncias,
ou críticas dos representados aos representantes, produzem crenças. Por exemplo, a
lógica dos atores comerciais é a de que o bem só existe se os contratos forem
cumpridos; para o industrial, reduzir impostos é sempre melhor que mantê-los ou
aumentá-los, ainda que se comprometam os investimentos públicos; nas relações
cívicas, combater a corrupção só vale para quem estiver na política e não para o cidadão
comum. Em todos estes casos, a crença vale mais que o fato em si, o que impede a
reflexão e a mudança de conduta.
Ainda na perspectiva boltanskiana, alguns têm “direito” à dúvida e outros não
têm (fracos). Aqueles que têm o direito criam mitos e os legitimam, produzindo uma
“humanidade comum” na qual o seu não cumprimento gera conflitos. Para efeito de
analogia, o uso de expressões do tipo “mensalão”, “petrolão”, “imprensa golpista”,
“golpe”, por exemplo, podem ser “mitologias” criadas para legitimar a narrativa de
quem as pronuncia. Por dominarem o discurso, os detentores do poder econômico
(componentes do espaço) são menos permeáveis às denúncias (críticas). Já aos grupos
representados (componentes do campo), as denúncias ganham lógica e se auto-
justificam. É possível perceber sua lógica quando, por exemplo, os canais de
comunicação divulgam uma pauta seletiva: dependendo da sua visão política, o
tratamento dado nas coberturas é enviesado com o intuito de convencer pela construção
de uma lógica que só nos resta acreditar na versão apresentada; ou mesmo na política
quando candidatos de origem humilde são eleitos e recebem a crítica de que, para
exercer a política, dever-se-ia exigir curso superior para um suposto melhor exercício do
mandato. O poder é comandado pelo político (mídia, economia, judiciário) e o sistema
político perdeu o anteparo de um dos campos na contemporaneidade. Estes campos
brigam entre si para manter ou ampliar seus interesses. (Foucault apud Brass, 2000)
Esta lógica é similar à conceituação de denominação realizada por Foucault
(Foucault apud Brass, 2000). A denominação produz a institucionalização, que produz a
profissionalização de diversos segmentos que abordarão o tema. Existe uma lógica de
negação que visa reafirmar nossas posições contrarias sobre um tema. Por exemplo,
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quando se fala que se odeiam posições conservadores, estamos reafirmamos posições
contrarias que impedem o predomínio dos elementos negados. Quando se critica
Bolsonaro, seu domínio fica circunscrito à sua base de apoio, que não reflete o
pensamento coletivo. Assim, sua existência é importante para reafirmar a negação.
2. A Experiência Econômica Recente e o Ponto de Inflexão do Dissenso
A partir dos anos 2000, o Brasil avançou consideravelmente no combate à
pobreza (+20 milhões de pessoas saíram da miséria), na geração de emprego (+15
milhões de empregos gerados), na ascensão da classe C ao mercado de consumo (mais
de 35 milhões) e no controle das dívidas interna e externa (a dívida líquida do governo
brasileiro evoluiu de 60% do PIB em 2002 para 34% em 2014, uma queda de 26 pontos
percentuais. Por outro lado, nos anos recentes, mantivemos um ritmo de crescimento
econômico raquítico (média de 1,6% nos últimos 4 anos contra uma média de 4% no
período 2004-2010). Quanto à inflação, já no segundo governo Lula ela ficou em 5,1%
em 2010 e, ao final do governo Dilma (2014), evoluiu para 6,2%. No entanto, em 2015
a inflação subiu a patamares de dois dígitos e fortaleceu a percepção de crise. (BCB e
BNDES, 2017)
No campo das políticas sociais, as profundas transformações ocorridas na
sociedade brasileira recente, com a ascensão de novos atores sociais a partir das
políticas de inclusão social, geraram nos grupos beneficiados uma “consciência de
classe” que passou a exigir a consolidação de seus próprios direitos. A consolidação de
direitos reduziu a pobreza e ampliou as possibilidades de ascensão social, notadamente
por programas de distribuição de renda (Bolsa Família, ProUni, FIES, Minha Casa
Minha Vida, Luz para Todos, Pronaf, dentre vários outros).
Este conjunto de transformações econômicas e sociais permitiu que o
capitalismo brasileiro recente se consolidasse na medida em que inseriu no mercado de
consumo milhões de pessoas, construindo assim novos campos de atuação dos atores
sociais. Este capitalismo se reestruturou e apontou para novas dimensões sociais e
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construiu novas justificações, produzindo mais embates na sociedade2 e criando uma
nova consciência de classe: a de que a condição de pobreza, ou as dificuldades
econômicas, não eram fatalidades que condenam a maioria historicamente excluída.
Até o histórico sete a um da Alemanha sobre o Brasil na Copa do Mundo de
2014, o país vivia uma euforia há muito não existente: crescimento econômico, geração
de emprego e renda, combate à pobreza, emergência da chamada "nova classe média",
efeitos relativamente neutros da crise financeira americana de 2008, sede do país dos
jogos internacionais (Copa e Olimpíada), dentre outros. Enfim, parecia que tudo dava
certo!3
E eis que parece que tudo ruiu na sequência. Dois mil e quatorze seria o ponto de
inflexão para o pessimismo profundo! Tudo aquilo que parecia positivo parecia ter-se
desnudado e se transformado no pior dos mundos. Além da derrota acachapante no
campo de futebol, o campeonato das eleições de 2014 pôs o país num processo político
de profunda divisão! Ao final das apurações das urnas, o governo recém-eleito obteve
pouco mais de 1/3 (38%) de todos os votos (válidos, brancos, nulos e abstenções),
enquanto os outros 2/3 (62%) concentraram-se no candidato da oposição e nos votos
brancos, nulos e abstenções.
Já início do novo governo (2015), a inflação retomou fôlego em razão do
reajuste de preços públicos (água, luz, combustível etc) e da disparada do dólar (ainda
que sob o efeito de muita especulação de investidores); a taxa de emprego não só parou
de subir como passou a apresentar queda (construção civil, setor automotivo, indústria
etc). A utilização da estratégia de estímulos fiscais teve efeito limitado, pois os
2 Chama a atenção a liderança nas pesquisas de intenções de voto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, segundo o Instituto DataFolha (2017), cujo desempenho contrasta com a abordagem recorrente dos canais de comunicação tradicionais sobre a cobertura exaustiva de investigações contra a corrupção no Brasil, associando a corrupção como algo exclusivo dos governos Lula e Dilma, o que em tese deveria repercutir nas próprias intenções de voto. Este “decopling” entre desempenho eleitoral favorável e denúncia de corrupção mostra aparentemente que a percepção de parte do eleitorado é a de que “todos os governos se envolvem em corrupção, mas este pelo menos melhorou minhas condições de vida” (aspas do autor). 3 Nelson Rodrigues, em uma clássica crônica de 1958, expressou sua inquietação sobre o
comportamento do brasileiro em situações desafiadoras. O autor cunhou a expressão "complexo de vira-lata" para designar um comportamento característico do brasileiro que é o de ostentar picos de otimismo infundado em determinados momentos, seguidos de vales de desolação e sentimento de angústia. Estaria o brasileiro, segundo Rodrigues, sempre vivendo extremos de sentimento. Ao se referir à seleção brasileira de futebol, antes da partida contra a Suécia em 1958, disse ele: “o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética” (Rodrigues, 1958). Tal teoria se pôs à prova no Brasil recente.
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objetivos foram parcialmente alcançados. Se por um lado houve manutenção da renda e
do emprego, por outro o ritmo de expansão econômica ficou muito aquém do desejado,
pois as empresas acabaram por entesourar os ganhos obtidos com as desonerações
fiscais e não ampliaram os investimentos. A contribuição da Formação Bruta de Capital,
que considera basicamente a produção industrial doméstica acrescida as importações e
excluídas as exportações, foi negativa em 2012 e 2014 (-1,63% e -2,1%); e em 2011 e
2013 variou um pouco mais de 2%. (IPEA, 2016) Este desempenho fragilizou a
economia e contribuiu para piorar a percepção de crise econômica pela sociedade e
classe política como um todo.
A taxa de juros, importante referência para o financiamento da atividade
produtiva, já havia iniciado processo de elevação ainda no primeiro ano do governo
Dilma, acentuando-se no segundo. De abril de 2013 a agosto de 2016, a taxa básica de
juros, definida pelo Banco Central, praticamente dobrou (7,25% para 14,5%), e a
atividade econômica encolheu, no mesmo período, quase 13% (BCB, 2017).
A conjuntura de forte retração econômica iniciou uma reversão de expectativas
sobre as condições políticas do governo em continuar a gestão da economia. E, somada
ao aprofundamento das investigações no âmbito da Lava Jato, forjou o ambiente
político perfeito para a derrubada do governo. As alegações de que o governo vinha
praticando as chamadas “pedaladas fiscais” funcionaram como um biombo para
justificar o pedido de afastamento, ainda que não houvesse indícios claros de que a
então presidente Rousseff estivesse praticado crime constitucional. Deflagrou-se daí um
forte movimento de pressão política para seu afastamento, cujo mote seria o combate à
corrupção. O conservadorismo brasileiro reafirmou o discurso contundente da crítica,
como se tivesse seu monopólio natural para condenar determinadas práticas políticas.
Neste aspecto, a agenda do rigor moral parece ter sido uma "pegadinha" para expandir o
conservadorismo. Como corolário veio o discurso do rigor econômico, o qual se apoiou
no rigor moral para se reproduzir. Então, toda e qualquer suspeita tornou provável a
culpa daquele que estava sob suspeita.
O governo Dilma, ainda que legitimamente eleito em 2014, não ostentou apoio
político majoritário no seio da sociedade, o que exigia dele um discurso político mais
pacificador para se construir consensos acerca das medidas de ajuste econômico a ser
tomadas a partir de 2015. As condições de apoio parlamentar no Congresso também
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pioraram. A estratégia do primeiro governo Dilma consistiu em pacificar o país,
buscando, ainda que não o conseguisse, “acalmar a classe média e a imprensa, os dois
principais críticos de seu antecessor na Presidência da República” (Diap, 2014). No
entanto, na segunda experiência, as resistências ao governo eleito continuaram, tendo
em vista que na própria campanha se repetiu a forte oposição da classe média, da
imprensa e dos setores empresariais. Adicionalmente, os ajustes econômicos de
recuperação das finanças públicas que viriam a seguir serviriam de fator agravante para
o apoio político no Congresso, cuja nova composição tornou-se mais conservadora. Para
o Diap, “na eleição de 2014 a oposição cresceu, ficou mais coesa e tomou gosto por
criar dificuldades para o governo da presidente Dilma, que se reelegeu por uma margem
apertada de votos” (Diap, 2014).
As condições políticas deram eco e projeção às críticas ao governo, diminuindo
sua base de apoio no qual o ponto de inflexão foi quando o então presidente da Câmara
dos Deputados, Eduardo Cunha, aceitou o pedido de afastamento da presidente Dilma
depois que um grupo de parlamentares alinhados ao governo apoiou na Comissão de
Ética investigação sobre ele. Em represália, deu prosseguimento ao processo de
cassação ainda que não houvesse elementos jurídicos que o sustentasse. A partir deste
momento, inicia-se no país o que Foucault (1989) chamou de regimes de verdade: a
produção de notícias e eventos e a culpabilização indiscriminada sem provas
produzindo verossimilhanças que condenaram sumariamente sem provas irrefutáveis.
Assim, iniciou-se no país uma disputa pela apropriação do poder simbólico, uma
dominação do discurso a partir da ação do Estado. Como apontou Bourdieu (2012), “o
Estado se apresenta como uma espécie de reserva de recursos simbólicos, de capital
simbólico, que é ao mesmo tempo um instrumento para certo tipo de agentes e o objeto
de lutas entre esses agentes”. O governo que sucedeu a Dilma apresentou uma agenda
econômica social e econômica radicalmente diferente daquela que vinha sendo adotada.
Os setores empresariais e de comunicação, em sua maioria, passaram a aprovar esta
agenda e a difundirem pelos canais de comunicação, procurando convencer a sociedade
de sua relevância e pertinência. De fato há por parte dos agentes do Estado (judiciário,
Ministérios Públicos, Procuradorias, Polícia Federal) e do próprio Executivo a
utilização do discurso sobre necessidade de reformas sem levar em consideração os
anseios e interesses dos próprios atingidos pelas medidas, como os trabalhadores em
específico e os beneficiários de políticas públicas em geral. Tem-se então que as
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disputas pelo domínio da narrativa visam instituir um tipo de atuação do Estado em
defesa de grupos sociais específicos: a classe média, que deseja pagar menos impostos;
as camadas mais pobres da população, que desejam ampliar seu acesso aos serviços
públicos e ao emprego e à renda; as empresas, que reivindicam condições para
ampliarem a acumulação de capital; os bancos, que exigem o cumprimento dos
contratos e o pagamento dos juros da dívida pública; ou mesmo os canais de
comunicação, que utilizam o discurso da “mordaça à imprensa” mediante qualquer
tentativa do Executivo em encaminhar reformas do sistema nacional de comunicações.
Trata-se, então, de quais destes atores, com suas visões, predominarão na condução das
políticas de Estado e/ou para quem estaria este Estado atuando.
Na contramão da interpretação durkheimiana, não parece haver então espaço
para uma sociologia do consenso. Os históricos conflitos de classe no país ainda exigem
um longo período de tempo para superá-los. O contexto de assimetria social (sociologia
do conflito), ao contrário da coesão social proposta por Durkheim, deve produzir ainda
mais conflitos até que novos consensos sejam alcançados. Mas numa interpretação
bourdieusiana, não é possível entender o conflito se não se entender o consenso.
(Durkheim apud Collins, 1999).
A forte polarização política deflagrado no país ao final de 2014 criou novas
representações políticas. A persistência no discurso de retomar as políticas de
desenvolvimento social, deflagrada pelo governo afastado e abandonada pelo governo
de Michel Temer, reacende as chamas do senso de pertencimento de uma classe
excluída que passa a enxergar na reação da agora oposição (Partidos de Esquerda e a ex-
presidente Dilma Rousseff) uma alternativa viável e necessária em 2018.
3. Crise, Cultura e Representação
Para Bourdieu (1989), as classes são um “conjunto de agentes que ocupam
posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a
condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses
semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes” (Boudieu, 1989). No
caso brasileiro, as classes ascendentes perceberam melhoras efetivas em suas vidas e
elevaram assim sua consciência de classe, tornando-se de alguma medida menos
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permeáveis às críticas de setores mais conservadores da sociedade. As transformações
sociais no país, decorrentes da inclusão de milhões de brasileiros ao mercado de
consumo material e cultural, produziu a consciência de classe naqueles que,
historicamente e na sua maioria, estiveram majoritariamente alijados de renda e
emprego. Os avanços produziram mudanças de cognição social que foram percebidos
naqueles que reconheceram nos governos de esquerda a responsabilidade por sua
ascensão social. Estudo da FGV (2011) apontou que os 20% mais pobres tiveram no
período de 2001 a 2009 um aumento de renda de 49,5%, enquanto os 20% mais ricos
tiveram um aumento de 8,9%, atribuindo este desempenho aos programas sociais
adotados no período e à ampliação do acesso à educação.
Além da crise econômica, aprofundada pela crise política, seguiu-se a batalha da
informação. Até então ela tem sido conduzida pelos grandes veículos de comunicação
impresso e eletrônico e representado uma visão acerca do que parece “certo” ou
“errado”. Se seu papel é o de informar e formar, então se poderia imaginar que suas
ações estariam a serviço da “opinião pública”. Sua abordagem sobre economia e política
reflete seus interesses em proporção maior que o da responsabilidade de informar com
certa isenção, praticando o contraditório. As investidas midiáticas transformaram-se em
potente fio condutor de influência nas opiniões de seus espectadores, tornando-as
eficazes na difusão de uma cultura de “dominação” cujo discurso passou a ser aceito
como natural entre aqueles grupos que se colocam contra o governo legítimo.
Numa perspectiva krausiana, a dominação está na cultura e não na economia. As
dificuldades econômicas podem nem ser tão graves assim, mas se se propagar pelos
canais de comunicação que determinada situação econômica é grave, então o discurso
obtém grande aderência nos grupos sociais, notadamente naqueles contrários a quem o
próprio veículo de comunicação critica.4
Existe uma homologia nas dimensões da crise pós-2014. As razões das críticas
ao governo afastado pareciam similares, mas cada um dos atores (judiciário, classe
média, classe política, empresários, estudantes etc) as tinha não por um consenso de
grupo ou por certezas jurídicas, mas porque havia no país “um grande esquema de
4 Levantamento do LEMEP (2017) por meio do Manchetômetro mostra que a cobertura dos veículos de
comunicação é parcial. De janeiro de 2015 a maio de 2017, do total 6,8 mil notícias negativas publicadas sobre os governos Dilma e Temer no período, já considerando o tempo de mandato de cada um, 75% delas se concentraram no Governo Dilma e 25% no Governo Temer, evidenciando o engajamento dos veículos à agenda dos respectivos governos.
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corrupção nunca antes visto” (grifo do autor) e cujo crença espraiou-se por segmentos
sociais. O poder desta argumentação afastou qualquer análise racional sobre o exercício
do direito de defesa. Tornou-se um poder simbólico no qual vale mais a cultura
disseminada sobre o fato do que a veracidade do fato em si.
Temos aqui uma questão de digressão da representação. A heterogeneidade da
sociedade brasileira sob os aspectos sociais e econômicos, e suas homologias culturais,
coloca em xeque a teoria que pressupõe que na sociedade há representantes e
representados e que suas relações ocorrem dentro de regras simétricas de informação,
dando-lhe consistência (Teoria da Agência). Mas esta interpretação carrega
intrinsecamente o problema da assimetria de informação (Brass, 2000). Os
representantes, por meio da dominação do discurso ou narrativa sobre temas de seu
interesse, fazem os representados acreditarem nas versões apresentadas. No caso
brasileiro, o próprio afastamento da presidente Dilma Rousseff, sob o movimento pró-
impeachment, consistiu em disseminar a ideia de que havia no país um grande esquema
de corrupção capitaneado pela ex-presidente e seu mentor, não importando a veracidade
das acusações. E, mais recentemente, a mensagem do governo Temer acerca da reforma
da previdência difundida pelos canais de comunicação de que “se não fizermos a
reforma, a previdência quebra” (aspas do autor). Sob estes argumentos, tenta-se
convencer a sociedade da gravidade financeira do sistema previdenciário de forma a
sensibilizá-la a apoiar politicamente as mudanças do sistema, não importando se, em
longo prazo, as reformas terão o efeito de atender ao interesse de grupos específicos de
representantes (governos, empresas de planos de saúde, etc) e não ao interesse da
maioria dos representados.
Estes conflitos estão aderentes à interpretação de Bourdieu (1989) para o qual
desequilíbrios culturais produzem desequilíbrios sociais e/ou políticos. A questão
sociológica colocada então é a de tornar menos opaca esta relação entre representantes e
representados. Para o autor, os sistemas educacionais devem ser priorizados, ampliados
e melhorados para que se criem novas representações sociais. Seus membros passariam
a reivindicar novos status e novos consensos seriam estabelecidos. Em tese elevaria-se o
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nível de consciência coletiva acerca dos seus interesses, levando representantes e
representados a um novo patamar de relacionamento5.
O impasse da crise política e econômica no Brasil recente somente poderá
apresentar novos contornos se, da radicalização dos discursos dos diversos setores,
novos consensos forem construídos. Mas não parece que estamos próximos disto. O
consenso está distante porque o governo Temer não tem apoio popular, seus apoiadores
são apontados em denúncias de corrupção; as medidas econômicas propostas – ainda
que apoiadas por setores conservadores - sofrem forte resistência social; a Justiça, no
âmbito da Lava Jato, instrumentalizou-se e se transformou – aos olhos das classes
sociais mais privilegiadas – em mecanismo de condenação sumária sem o devido rito
transitado em julgado, o que tem promovido forte reação dos movimentos sociais e de
organismos internacionais. Este não reconhecimento da legitimidade do governo Temer
acirra os movimentos de resistência das classes sociais menos aquinhoadas, produzindo
impasses políticos e não produzindo consensos, muito pelo contrário. Parece que a
alternativa mais palatável é aguardar até 2018, quando um novo Executivo e Legislativo
será eleito. Este deveria convocar uma Assembleia Constituinte exclusiva para aprovar,
principalmente, uma profunda reforma política que possa garantir mais transparência na
gestão da coisa pública e mais agilidade na punição de condenados pela Justiça, sem
casuísmo, afogadilho ou jogos midiáticos para a plateia.
Referências
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<https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/seriehistDLSPBruta2008.asp> Acessado em
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BRASS, P. R. (2000). "Foucault Steals Political Science." Annual Review of Political
Science 3(1): 305-330. Seattle, WS, USA.
5 O recuso no governo Temer na modificação da proposta de Reforma da Previdência, e a falta de apoio
político à proposta no Congresso Nacional, evidencia que a reação dos setores que serão atingidos diretamente pelas medidas alterou a correlação de forças e estabeleceu novos marcos para o “consenso”.
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BRASIL. Evolução Recente da Carga Tributária Federal. Disponível em <<
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/arquivo/assec/evolucao-recente-da-
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BOLTANSKI, L. (O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo, SP, Brasil.
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