a próxima idade média - roberto vacca

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Page 1: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca
Page 2: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

SUMÁRIO

Introdução 1

I - Quando atingimos o joelho 7

II - Razões erradas de uma improvável parada de expansão 15

III - Os grandes sistemas e a sua engenharia 25

IV - A insubmissão dos grandes sistemas 35

V - A impotência elétrica 43

VI - Congestionamento urbano e paralisações dos transportes 51

VII - O bloqueio das comunicações (telefônicas, telegráficas, postais) 67

VIII - Esperanças mal ocultas e temores infundados em relação aos computadores

eletrônicos 77

IX - Falta de água e excesso de lixo 89

X - A conjuração dos sistemas urbanos 93

XI - A inutilidade da guerra como meio de destruição 101

XII - Inutilidade da contestação 107

XIII - Uma causa remota da degradação dos sistemas: a crise da administração 115

XIV - Diferenças nos períodos iniciais e na duração da próxima Idade Média em vários

países 123

XV - Benefícios a curto prazo e danos secundários a longo prazo das situações

involutivas do tipo medieval 129

XVI - Evolução das formas de vida associativa anteriormente ao knock-out e na

próxima Idade Média 137

XVII - Fundamentos de uma nova tradição 145

XVIII - Projeto de comunidades monásticas capazes de conservar a cultura e favorecer

um novo renascimento 153

A PRÓXIMA IDADE MÉDIA

Orelha do Livro da Edição de 1975

Em 1965, nos Estados Unidos, trinta milhões de pessoas, de repente, ficaram sem

energia elétrica durante quatorze horas. Somente na cidade de Nova York, seiscentas

mil pessoas ficaram bloqueadas nas ferrovias metropolitanas. Quatro anos depois

repetiu-se o black-out, que tornou a ocorrer passados outros dois anos. Em 1969, ainda

em Nova York, como decorrência de um aumento inesperado de tráfego, uma central

telefônica automática ficou bloqueada e, por dois dias consecutivos, foi virtualmente

impossível conseguir linha nesta central.

Page 3: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

1970: o sistema ferroviário Penn Central, que serve às cidades de Nova York e

Filadélfia, por um acúmulo de circunstâncias ocasionais, sofreu uma pane tão grande

que 117 trens, de um total de 413, não correram e 290 das 296 viagens efetuadas

registraram grandes atrasos. As comunicações nas estradas ficaram

supercongestionadas, as decolagens e aterragens nos aeroportos passaram a ser

realizadas com atrasos cada vez mais imprevisíveis.

O sistema "estalou": estes fenômenos não são, na verdade, esporádicos e independentes

uns dos outros, mas representam a primeira advertência da degradação desta tecnologia

responsável pelo conforto e existência das populações altamente concentradas nas

metrópoles e megalópoles. Já as conquistas da ciência e da tecnologia não são

suficientes para fazerem funcionar os grandes sistemas, que proliferam de modo

desordenado, mal projetados e não integrados entre si, e a crescer muito além de seus

limites, avizinhando-se das condições de instabilidade, nas quais se tornam

ingovernáveis.

Este livro - escrito por um especialista em Engenharia de Sistemas - analisa outros

sintomas, ainda não revelados, da deterioração dos sistemas. Explica como se chegou a

esta situação e descreve como, porque e quando as grandes cidades começaram a

morrer, arrastando, neste seu retrocesso, os mais avançados países da atualidade.

Roberto Vacca nasceu em Roma em 1927.

Laureado em Engenharia Eletrotécnica, projetou e construiu linhas de transmissão de

energia elétrica de alta tensão, engenhos automatizados, aparelhos mecânicos e circuitos

de cálculo eletrônico.

Desde 1962, dirige uma empresa romana que constrói sistemas de controle eletrônico.

Em 1961, recebeu o título de Visiting Fellow da Universidade de Cambridge, na

Inglaterra, e em Harvard, na América. Desde 1960 é livre docente de Automatização do

Cálculo, e entre 1960 e 1966 foi encarregado do Curso de Computadores Eletrônicos na

Faculdade de Engenharia da Universidade de Roma.

Publicou um livro didático sobre computadores eletrônicos e numerosos artigos

científicos e técnicos, publicados em Automatização e Instrumentação, A Pesquisa

Científica, Atos da Academia dei Lincei, Traffic Quaterly, Matemática de Computação

e problemas referentes ao cálculo eletrônico e de engenharia de sistemas.

Em 1958, escreveu contos e ensaios. Em 1963 publicou uma coletânea de contos de

science-fiction: O Robô e o Minotauro, e em 1965, um volume de ensaios e contos:

Exemplos do Futuro.

Ocupa-se da Teoria dos Números, Psicologia, Filosofia e também, ativamente, da

Agricultura.

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Nota em junho de 2001:

Page 4: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Na parte inicial do livro (Caps. 1 a 13), Vacca levanta o problema da dificuldade de se

administrar sistemas urbanos muito grandes e complexos, com os riscos de exibirem

comportamento caótico e fora de controle. O capítulo 5 tem muito a ver com a crise

energética de hoje.

Na parte final (Caps. 14 a 18), o autor infere que tais sistemas complexos chegarão a um

ponto de ruptura, desmembrando-se então em muitos sistemas pequenos e

independentes, similar à organização social da Idade Média.

A primeira parte é um alerta. A segunda contém previsões de ruptura global que até hoje

não se têm verificado.

Introdução

1. Então vi descer do, céu um anjo que tinha na mão a chave do abismo e uma grande corrente;

2. Ele agarrou a dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos;

3. Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até

se completarem os mil anos. Depois disto é preciso que ele seja solto por pouco tempo.

4. Vi também tronos e nestes sentados aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as

almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus e pela palavra de Deus, aqueles que não

adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem e nem receberam o sinal da besta na fronte e nas

mãos; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos.

5. Os outros mortos não reviveram até que se completassem os mil anos. Esta é a primeira

ressurreição.

(Apocalipse de São João Evangelista, cap. XX)

A leitura desta passagem do Apocalipse foi o bastante para convencer uma multidão de

homens que o fim do mundo chegaria com o ano 1000 da nossa era. Os homens

sentiam-se condenados e impotentes e procuravam refúgio e perdão na oração e na

penitência: inúmeras horas de trabalho foram perdidas pela população ativa, que

passava de joelhos o tempo antes empregado em atividades produtivas.

Passou o ano 1000 e o mundo, é claro, não acabou. Mas nem por isto as crendices e

superstições apocalípticas sofreram uma queda digna de nota. Durante o correr dos

séculos seguintes, astrólogos e numerólogos tiveram grande divulgação ao predizer

cataclismos e desgraças. Na história dos últimos séculos, cataclismos e desgraças não

faltaram, mas suas datas e características não coincidiram com aquelas antecipadas de

modo casual e gratuito pelos profetas improvisados.

No momento em que escrevo, faltam trinta anos para terminar o segundo milênio de

nossa era e, por motivos diversos dos de mil anos atrás, muitos esperam para breve uma

trágica catástrofe total. Os profetas de hoje não dizem que devemos temer anjos,

dragões e abismos, mas que devemos temer o holocausto nuclear, a superpopulação, o

aniquilamento e o desastre ecológico.

Aqueles que anunciam catástrofes iminentes são hoje tão numerosos que John Crosby,

em artigo no Observer de 13 de setembro de 1970, inventou um novo termo para indicar

a sua atividade: "doomwriting" - que pode ser traduzido por "catastrografia". Crosby

afirma que as catástrofes anunciadas nunca se verificaram, que as condições de vida na

Page 5: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

cidade e no mundo em geral nunca foram melhores do que agora e zomba dos

"catastrógrafos", acusando-os de pessimismo e de sustentar opiniões facilmente

aceitáveis apenas para tirar proveito de seus escritos.

Devem ser muitos os que estão de acordo com tal ponto de vista, haja vista que a

opinião corrente é a de que no ano 2000 a população do mundo será de seis bilhões de

pessoas; e especialistas afirmam ainda que nos próximos trinta anos a população

mundial superará o dobro da atual, que é estimada em três bilhões e meio. Fred Charles

Iklé, do Massachusetts Institute of Technology, asseverou que em 2000 "a população

mundial será de sete a oito bilhões de homens, mais do que os cinco bilhões", como

previu, em 1963, num estúdio da Rand Corporation.

Considerando que a opinião a respeito desta previsão é quase unânime, estou

convencido de que a previsão não será cumprida. De resto, há outros indícios de que as

taxas atuais de crescimento do número de homens e das estruturas criadas pelos homens

serão quase anuladas ou invertidas. Não é preciso detonar alguns quilomegatons de

bomba-H para matar centenas de milhões de homens. O mesmo resultado pode ser

conseguido através de meios menos violentos e mais eficazes como, por exemplo,

tornando a vida dos enormes e densos conglomerados humanos dependente de sistemas

tão complicados que se tornem ingovernáveis. Esta segunda hipótese de catástrofe - pela

sua aridez formal, por sua casualidade e pela sua falta de premeditação - parece mais

trágica do que a primeira.

Escrevi este livro para analisar um dos tipos de catástrofe que poderá ocorrer em virtude

da deterioração dos grandes sistemas que se tornam excessivamente complicados. A

minha hipótese é de que os grandes sistemas de organização, tecnológicos, associativos,

continuam a crescer desordenadamente até atingirem dimensões críticas e instáveis.

Neste ponto, a crise de um único sistema não será suficiente para provocar distúrbios

nas grandes concentrações metropolitanas, mas uma concomitância casual de distúrbios

em muitos sistemas na mesma área poderá deflagrar um processo catastrófico que

paralisará o funcionamento da sociedade mais desenvolvida, produzindo a morte de

milhões de pessoas.

Dediquei alguns capítulos à descrição dos caracteres das crises já incipientes dos

sistemas de produção e distribuição de energia, dos transportes, das comunicações, do

aprovisionamento de água, da incineração de lixo, do tratamento das informações. Estas

crises são, provocadas, pelo congestionamento crônico de quase todos os grandes

sistemas, projetados e estruturados, de modo errado ou, o que é pior, disseminados sem

planos pela inadequada capacidade e disponibilidade de informações daqueles que

deverão controlá-los e prever seu crescimento ulterior.

Não se pode demonstrar rigorosamente, a priori, que uma casual conjunção de eventos

deterioráveis e congestivos conduzirá a uma catástrofe - pelo menos seguindo um

desenvolvimento idêntico ao que descrevo. Entretanto, parece bastante verossímil que

as nações mais desenvolvidas se encaminham para crises de grandes dimensões e

considero oportuno aceitar certas hipóteses e esmiuçar em detalhes as conseqüências

lógicas para demonstrar mais realisticamente quais são os perigos mais iminentes que se

podem esperar.

Chamei de "Idade Média" esta futura situação de crise generalizada.

Page 6: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Os países menos desenvolvidos (ou em via de desenvolvimento, ou subdesenvolvidos,

ou ainda simplesmente atrasados) serão envolvidos apenas superficialmente pela crise.

Deste modo, cerca de setenta por cento da população mundial não será muito atingida

pela primeira onda de destruição. Os países mais adiantados, por seu turno, são mais

vulneráveis aos danos conseqüentes da deterioração dos grandes sistemas. A nova Idade

Média coincidirá, portanto, com uma situação que somente deverá atingir a população

dos países mais adiantados. Se considerarmos entre estes os europeus, inclusive a União

Soviética, os da América do Norte e o Japão, estamos falando - em 1970 - de cerca de

novecentos milhões de pessoas, ou seja, cerca de trinta por cento da população mundial.

Morrendo 450 milhões de homens nos países mais desenvolvidos, param: o progresso

das ciências, a pesquisa tecnológica, as grandes construções civis, a produção industrial

em série e a baixo custo, o funcionamento integral da estrutura organizadora e diretiva

da sociedade moderna. Com um certo atraso, os países do terceiro mundo sofrerão

graves conseqüências secundárias pela falta de manufaturados, produtos de longa

duração, remédios, instrumentos e implementos de produção e consultas e diretrizes

anteriormente fornecidos pelas nações mais desenvolvidas.

A reorganização será lenta e árdua e, no caminho da reconstrução, não serão

necessariamente favorecidos os países que antes estavam na vanguarda. Os novos

mandatários e os novos governos dos países estarão decididos a trocar entre si know-

how e informações, assim como empenhar-se-ão no trabalho de encontrar novas formas

eficientes de vida associativa e organizada, levando em consideração a capacidade de

motivação e a agressividade dos vários grupos de homens.

A duração da próxima Idade Média será menor do que a da anterior Idade Média: talvez

um século em lugar de um milênio.

É impossível saber se os historiadores do futuro escolherão 1960 ou 1980 ou uma outra

data convencional posterior para o início desta Idade Média. Há muitos indícios de que

já começou uma época de fenômenos degenerativos, tanto que não parece absurdo falar

hoje de uma próxima Idade Média, levando-se em conta que a expressão compreende

três hipóteses: que uma era de desordem, destruição e deterioração esteja para começar;

que este início seja iminente; e que esta era será seguida por uma outra de

Renascimento. A última hipótese não tem outra justificação senão a periódica

alternativa de todas as coisas humanas até agora geralmente verificada.

No século XX estamos habituados a considerar as mudanças como a característica mais

constante de nosso mundo, e somos induzidos a procurar antecipar as próximas

transformações. Richard Lewinsohn, no seu livro Die Enthüllung der Zukunft (A

Descoberta do Futuro), demonstra que hoje somos muito mais predispostos a fazer

previsões e planificações do que o fomos no passado. Minha convicção nesta sua

demonstração justifica que eu escreva que uma "Era Medieval" está ainda no início,

ainda mais se considerarmos que só sé começou a falar da Idade Média passada depois

que ela terminou (o primeiro a usar a expressão "media tempestas", ao que tudo indica,

foi Giovanni Bussi, Bispo de Aleria, ao responder a um elogio de Nicolo Cusano,

composto em 1469).

Não será difícil acusar este livro de catastrófico e de pessimista. Nós, pessimistas,

porém, chamamos realismo ao nosso modo de ver as coisas, e não deixamos de ser

Page 7: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

menos eficientes do que os otimistas no preparo dos remédios e nos projetos das

inovações.

Roma, fevereiro 1970 - março 1971.

I - Quando atingimos o joelho

Imagine que o leitor esteja dirigindo um enorme caminhão por uma estrada de subida. A

rampa aumenta e torna-se necessário passar à marcha de força. Depois de haver

engrenado a primeira, o motor continua a ser exigido: o aclive se acentua mais ainda. O

trabalho é árduo, mas o motor é muito potente e parece não haver risco de falha.

Entretanto, o capô do motor aparece cada vez mais no nosso campo visual e parece que

está se aproximando da vertical. A subida continua a aumentar. Não se pode pensar em

voltar atrás e não se pode prever quando a estrada ficará plana. O problema é saber se o

caminhão capotará antes disto ou não.

Este fato se assemelha ao comportamento de todas as curvas que representam a variação

no tempo de qualquer número que mede um aspecto da nossa civilização. Tudo cresce,

tudo aumenta e, a cada ano, a velocidade deste aumento é maior.

A população do mundo era de oitocentos milhões em 1750, de um bilhão e duzentos

milhões em 1850, de dois bilhões e quatrocentos milhões em 1950 e hoje ultrapassa a

casa dos três bilhões.

A velocidade máxima dos meios de transporte era de sessenta quilômetros por hora em

1850, de 160 em 1900, de 1600 em 1950 e agora os astronautas viajam a velocidades

em torno de quarenta mil quilômetros por hora. O número de automóveis em circulação

na Itália dobra a cada quatro anos.

Do mesmo modo aumenta, segundo leis semelhantes, a extensão das estradas, o número

de telefones, de comunicações telefônicas, de viagens aéreas, de livros que se editam a

cada ano, o número de elementos de qualquer classe de objeto ou de atividade.

Todas estas medidas têm, portanto, um caráter de crescimento contínuo e exponencial, e

suas variações obedecem a uma lei matemática bem conhecida: a dos fenômenos de

crescimento em presença de fatores limitativos. Inicialmente, os fatores limitativos

quase não fazem sentir seu efeito, mas, a partir de um dado momento, começam a ter

ação preponderante. Passam a ocorrer, então, fenômenos de saturação e a curva

apresenta um "joelho". Deste modo, o aumento da subida da curva se reduz cada vez

mais, e depois, a subida começa a diminuir até um ponto em que não há mais

crescimento. A medida do fenômeno considerado torna-se constante e a curva que a

representa é uma reta horizontal. Terminou a subida. Chegamos a um planalto.

Da mesma maneira que um caminhão, que segue por uma estrada cada vez mais

íngreme, e corre o risco de capotar antes de chegar ao planalto, a curva abordada acima

não é menos dramática. Na verdade, nem sempre na natureza as coisas ocorrem de

maneira assim moderada. Frequentemente, o efeito dos fatores limitativos não se faz

Page 8: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

sentir de maneira gradual, mas surge de imprevisto e, em lugar de um joelho

arredondado, o que ocorre são oscilações turbulentas acompanhadas de fenômenos

desorganizados e destrutivos.

A probabilidade de que ocorram variações rápidas, violentas e incômodas é assim muito

maior do que a correspondente à hipótese de que cada transição se verifica de modo

gradual, lento e suportável. É melhor que se esforce no sentido de prever as graves

conseqüências da primeira hipótese - a mais provável - aceitando o ponto de vista de R.

Lewinsohn de que todos nós somos profetas, não tanto porque decidamos sê-lo, mas por

absoluta necessidade.

A propósito, é curioso notar como este tipo de pesquisa se encaminha para

conseqüências extremas e, como é óbvio, não é muito popular. Isto se relaciona com o

fato de que cada um de nós, que vivemos em uma sociedade desenvolvida, é

testemunha, durante toda a vida, de crescimentos e auMentos de densidade (de homens,

casas, máquinas, etc.) e não se consegue imaginar situações diversas, como de

paralisação ou contração. Cada fenômeno de afrouxamento, de recessão, de crise, é

implicitamente considerado como passageiro e o mesmo termo "conjuntura" que

originariamente se usava para definir o período no qual as colheitas do ano precedente

estavam terminando, enquanto as novas ainda não tinham sido feitas, indica como estes

fenômenos de afrouxamento podem se conservar anormais e, transitórios. E, com efeito,

a apreciação dos dados e das experiências dos últimos 150 anos está de acordo com

ponto de vista e leva a concluir que os planificadores são muito conservadores e

prevêem crescimentos e aumentos em medida insuficiente. Esta conclusão é

substancialmente correta. Tradicionalmente, os projetistas e os engenheiros estão

atrasados em relação à evolução da realidade em que operam e, assim, projetam

estradas, linhas telefônicas, casas, para satisfazer exigências que existiam dez anos antes

da redação do projeto e não para as exigências de um futuro mais ou menos longinquo.

As exceções são poucas e de destaque. Ocorre-nos, por exemplo, o nome de Pierre

Charles L'Enfant, engenheiro do Exército, que planificou e projetou, com grande

providência (planned and designed with great foresight) a cidade de Washington, D.C.

A capital dos Estados Unidos - concebida no final do século XVIII - funcionou a

contento pelo menos durante 150 anos. A obra de L'Enfant foi asperamente criticada no

seu tempo: toda vez que alguém se referia a ele era para tachá-lo de subornável e

dissipador.

Não basta, todavia, simplesmente, dar-se conta do fato de que as dimensões de certo

problema estão aumentando: é preciso também determinar a lei segundo a qual estão

crescendo e a que leis obedecerão para crescer em um futuro menos próximo.

Infelizmente, acontece que alguns planificadores menos avisados aplicam princípios de

infantil linearidade nos seus cálculos de previsão e, naturalmente, depois se dão conta

de que a realidade mudou muito mais depressa do que tinham previsto. Também em

níveis mais evoluídos, e quando as leis de crescimento são conhecidas e expressas por

meio de simples fórmulas matemáticas, pode ocorrer que os planificadores mais

informados adotem expressões empíricas indevidamente simplificadas e cometam, por

conseguinte, erros graves.

Page 9: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

De tudo o que foi dito, poderá parecer que cada previsão normalmente estará errada, ao

contrário do que sustentava a tese inicial, de que, mais cedo ou mais tarde, se chegaria a

um joelho de algum tipo. Parece oportuno, portanto, dar uma demonstração da

impossibilidade de que as atuais taxas de crescimento se mantenham imutáveis por

longo tempo.Tomemos o exemplo da explosão populacional, problema

indubitavelmente grave e para o qual, muito freqüentemente, surgem remédios de vários

tipos.

Assim, se tomarmos como lei de crescimento do número de homens que compõem a

população mundial uma das fórmulas mais modestas e prudentes das que foram

sugeridas, esta fórmula leva à conclusão de que, dentro de sua prolongada validade,

teremos, dentro de dois mil anos, uma população mundial de 150 bilhões de habitantes,

ou seja, quase um homem para cada metro quadrado da superfície terrestre (excluindo-

se os mares) e dentro de oito mil anos uma população de 1011 (1 seguido de 23 zeros)

de habitantes, com uma densidade de 666 milhões de pessoas por metro quadrado. O

absurdo desta segunda situação - se se tivesse necessidade de comprová-la - é

confirmado pelo fato de que ela implicaria na igualdade do peso de toda a população

terrestre e o peso do globo terrestre (inclusive o pesado núcleo central constituído

principalmente, de níquel e ferro). É óbvio que os fatores limitativos entrarão em ação

muito antes de se atingir qualquer uma das duas hipotéticas metas citadas.

Um típico exemplo da sensível ação dos fatores limitativos - que levam à saturação -

está no crescimento do parque automobilístico nacional de, diversos países. Como já se

disse, na Itália o número de automóveis dobra a cada quatro anos nos Estados Unidos da

América, por sua vez, o número total de automóveis dobra a cada quinze anos, ou seja,

de modo muito mais lento. Isto significa que a curva na América está num ponto mais

alto e é menor a inclinação da exponencial, que tende para um valor assintótico

constante. Quando a assíntota for alcançada, o número de automóveis crescerá

aproximadamente no mesmo ritmo da população total supondo-se, naturalmente, que,

neste momento, a população ainda esteja crescendo.

Vejamos agora quais poderão ser os sutis inconvenientes relativos ao alcance doce e

gradual do joelho na curva de crescimento da população e das utilidades relativas

(habitação, meios de transporte e de comunicação). É bastante plausível que somente

agora os projetistas e os engenheiros começaram a projetar e construir visando às

necessidades futuras e maiores, em lugar das do passado e mais restritas. Deste modo,

deveremos construir obras imponentes orientadas para um futuro que já terá superado o

joelho e se encontrará numa fase de aumento decrescente ou estabilidade. Neste

momento, o inconveniente será que o equilíbrio da sociedade seja conturbado como

conseqüência de um desperdício dos recursos disponíveis empregados para construir

obras e fornecer serviços excessivos relacionados com um pedido não mais crescente.

Certamente, não se pode deixar de considerar que uma situação deste tipo se verifique,

aquela que Dickson Carr chamava de maldição inserida nas coisas em geral (the

cussedness of things in general). Obviamente, porém, não há nada de trágico nas

hipóteses que os projetistas e os planificadores lançam na perseguição do crescimento

velocíssimo do resto da sociedade, empenhando-se de tal maneira neste encalço que se

tornam incapazes de parar a tempo, de ultrapassar qualquer razoável obstáculo. Não se

dão conta de que também a riqueza pode destruir ou congelar a produção das estruturas,

tornando-as hipertróficas e inúteis.

Page 10: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Muito mais interessante a considerar, e muito mais perigosa, é a outra hipótese: a de que

as curvas de crescimento dos vários parâmetros que medem a nossa civilização

apresentam acentuados overshoot ou andamentos, nos quais o valor assintótico de

equilíbrio, para o qual tende a curva, é logo superado de maneira marcante, ocorrendo,

depois, uma diminuição dos valores representados na curva, tão íngreme quanto o

aumento inicial. Em seguida, um novo aumento que supera novamente o valor de

equilíbrio e assim sucessivamente, até que, moderando-se, estas oscilações, o valor de

equilíbrio é alcançado. Os fenômenos do overshoot se verificam, como já se referiu,

quando os fatores limitativos não exercem a sua ação de modo contínuo e equilibrado e,

de início, são superados pelas causas de expansão até um dado momento em que

possam exercer uma ação cumulativa e lançar em excesso, de novo, os fatores de

expansão. É possível estudar-se matematicamente este tipo de fenômeno, mas tal

estudo, porém, não permite melhorar muito a qualidade e a eficácia das nossas

previsões, já que uma utilização concreta das fórmulas e dos processos requer a

disponibilidade de dados e valores que, com efeito, normalmente falham, e um

conhecimento das relações de causalidade entre os fenômenos, conhecimento este

certamente muito mais profundo do que o atual.

Não interessa, todavia, determinar o número das alternativas que poderão decorrer da

medida dos fenômenos que observamos respectivamente acima e abaixo de seus valores

de equilíbrio, nem o período destes fenômenos de oscilação, sobretudo porque estes

hipotéticos andamentos têm um valor teórico e, na verdade, sabemos que se tornam

irreconhecíveis quando se sobrepõem outros fenômenos, no momento não previsíveis,

além do fato de que a ação cumulativa dos eventos casuais, em número notável,

"encobre" cada curva que se refira às teorias mais próximas da realidade.

A previsão que servirá de base às considerações que seguiremos é que se tenha, pelo

menos, um overshoot, ou melhor, que as dimensões dos grandes sistemas cresçam muito

além do início de cada equilíbrio duradouro e que devam, depois, necessariamente

decrescer de novo a níveis inferiores aos atuais. Deste modo, defino como "Nova Idade

Média" o período de tempo que vai do momento em que se atingirá o máximo do

overshoot ao momento em que, superado o mínimo, será iniciado um novo período de

expansão.

É claro que não pretendo referir-me aqui a uma recessão ou a uma crise, ainda que seja

tão grave como a de 1929, mas a fenômenos de importância relativa muito maior. Uma

das minhas teses é a de que a proliferação dos grandes sistemas até atingirem dimensões

críticas, instáveis e antieconômicas, será seguida por uma deterioração rápida, tanto

quanto a expansão precedente, e será acompanhada por numerosos acontecimentos

catastróficos. Por conseguinte, serão duas as características principais que deverão ser

reconhecidas como sintomas do início da próxima Idade Média: a primeira será uma

brusca diminuição da população (seguida por uma posterior contração mais lenta); a

segunda será um dilaceramento dos grandes sistemas e sua transformação num grande

número de pequenos subsistemas independentes e autárquicos.

A diminuição da população foi uma das características da precedente Idade Média

(Roma tinha mais de um milhão de habitantes na época imperial e cerca de trinta mil no

ano 1100), que ocorreu na península italiana e em todo o Mediterrâneo, embora alguns

historiadores afirmem que isto foi causa e não efeito da Idade Média. Este ponto de

vista é discutível. Por seu turno, outros sustentam que a diminuição da produtividade e o

Page 11: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

abandono da agricultura não dependeram do decréscimo do número absoluto dos

habitantes do Império, mas das mudanças na destinação da mão-de-obra e,

particularmente, da diminuição da disponibilidade da mão-de-obra servil. É discutível a

questão de quais tenham sido as causas e efeitos da queda do Império Romano.

Todavia, tal questão não é relevante dentro das considerações que estou fazendo, uma

vez que uma causa de retrocesso identificável com uma diminuição da população hoje é

certamente assente: a população está crescendo quase em todas as partes do mundo. Por

isso mesmo, não obstante os fatos tenham ocorrido no passado, no futuro uma brusca

diminuição de população não poderá ser a causa primeira de queda e de retrocesso, mas

será efeito do retrocesso e das quedas produzidas por outras causas.

Se postulamos agora apenas que a população mundial decresça efetivamente dentro de!

poucos anos, obviamente, como consequência do que afirmamos, os bens de consumo,

os bens duráveis e todos os produtos industriais rapidamente se tornarão

superabundantes e sem valor. Uma conseqüência posterior será a interrupção de toda

atividade de pesquisa e inovação, da concorrência e da emulação. Também a pesquisa

científica de base, se não for interrompida, sofrerá uma diminuição e uma estagnação,

causadas, entre outros motivos, pela falta dos produtos industriais mais avançados, de

organização e de financiamento.

Esta antecipação apocalíptica não pode ter prosseguimento se se procurarem paralelos

fáceis entre a Idade Média que terminou há alguns séculos e a próxima. Não procurarei,

deste modo, calcular a probabilidade de novas migrações dos povos, identificando

gratuitamente os chineses de hoje com os godos, os vândalos ou os hunos. Não vou

antecipar um despertar do espírito religioso. Quero apenas mostrar os modos pelos quais

os grandes sistemas se formaram e cresceram desmedidamente e que devem ser

analisados a fim de se conhecerem as causas de sua deterioração que já se percebe por

numerosos indícios.

A observação de que os processos de crescimento e de expansão, atualmente em curso,

não poderão prosseguir indefinidamente, é claramente banal. Por outro lado, não creio

que seja banal a tentativa de prever quando se atingirá o joelho, e que fenômenos

turbulentos poderão ocorrer em correspondência com a passagem de um regime variável

para um eventual regime uniforme. Não será possível examinar (ou apenas enumerar)

todos os diferentes tipos de. processos através dos quais se poderá passar da situação

atual para uma situação estática futura. Limitar-me-ei, portanto, a apresentar adiante,

dentro do razoável, a hipótese citada da ocorrência de um único overshoot seguido por

uma igual e rápida contração e descida, expondo as conseqüências lógicas até o fim do

período que defini como a próxima Idade Média.

As considerações que se seguem não podem ser consideradas como extrapolações

estatísticas, numericamente apreciáveis no que diz respeito à probabilidade de sua

efetiva ocorrência, mas apenas devem ser apreciadas como intuições ou puramente

baseadas em extrapolações de dados numéricos ou corno aquelas que possam contribuir

para resolver o problema central da deterioração irreversível dos grandes sistemas.

Naturalmente, o interesse maior da análise das causas de deterioração dos grandes

sistemas será o de produzir técnicas, procedimentos e modificações adequados e

próprios para evitar outra grave deterioração. Nos capítulos seguintes, dedicados aos

problemas particulares dos mencionados grandes sistemas, examinarei a possibilidade

Page 12: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

de salvação que existe para cada um e procurarei delinear quais as providências

indispensáveis para que a situação não degenere, inevitavelmente, para formas instáveis

e, assim, para formas degradadas. Certas conclusões já podem ser antecipadas: as de que

as soluções necessárias não estão ainda sendo aprestadas, ao passo que as soluções

simples são insuficientes e as mais precisas ainda não estão à vista. A fé na engenharia

de sistemas está mal colocada e é oportuno começar a pensar, desde já, nos projetos de

unidades operativas independentes, aptas a conservarem informações, a sobreviverem à

Idade Média e a permitirem um novo Renascimento.

II - Razões erradas de uma improvável parada de expansão

Entre os comentadores de assuntos norte-americanos faz-se menção ao epitáfio que

Harold S. Geneen, o vulcânico Presidente da ITT (Internacional Telephone and

Telegraph), quer ditar para seu túmulo. O epitáfio deverá dizer que naquele lugar jaz o

homem que conseguiu para sua corporação um aumento anual do faturamento maior ou

igual a quinze por cento durante muitos anos (a seqüência ainda não se interrompeu),

obtendo, no mesmo período, lucros anuais significativos.

A segunda parte do epitáfio não é menos importante do que a primeira. Na verdade, é

muito mais fácil aumentar o faturamento, aceitando uma diminuição dos lucros ou uma

perda, do que não assegurar lucros também crescentes.

Com efeito, numa economia em expansão, os resultados conseguidos por Geneen são

realmente excepcionais. Portanto, de acordo com o que foi dito no primeiro capítulo,

chega-se à conclusão de que os resultados conseguidos por Geneen parecem mais

notáveis e únicos, se atentarmos para o fato de que a probabilidade de que um homem

consiga fazer crescer muitas vezes a organização que criou, ou dirige, é muito baixa. Se,

no século passado, os criadores e os amplificadores dos impérios industriais e

comerciais foram Muitos, não haverá muitos Geneen no próximo século.

A minha tese é, deste modo, que teremos, dentro em breve, uma oscilação com subida a

valores gerais bastante maiores do que os atuais, seguida de uma brusca descida até um

mínimo e, afinal, uma nova subida com inclinação não muito baixa. Procurarei

demonstrar que a amplitude total compreendida entre o máximo positivo e o mínimo

seguinte será algumas vezes maior que a amplitude dos ciclos de prosperidade e de

crises que ocorreram nos últimos cem anos.

Esta última circunstância atribui já um caráter dramático aos eventos que estou tentando

prever. Mais explicitamente, os dramas a que me refiro consistirão de hecatombes de

populações muito mais notáveis do que aquelas, relativamente irrelevantes, causadas

pelas guerras, pelos acidentes de tráfego e pelas epidemias. A drástica redução da

densidade dos homens na Terra trará conseqüências profundas sobre cada forma de vida

associativa e muitas das novidades serão duramente suportáveis.

Frente a esta perspectiva parece curioso que exista atualmente uma corrente de

pensamento que considera já como dramático e perigoso em si o fato de que uma

Page 13: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

expansão contínua está se verificando, e supervaloriza os inconvenientes da situação

atual nos países desenvolvidos. Contudo, o número de pessoas que se opõem ao

crescimento do produto nacional bruto, ao aumento das dimensões dos grandes sistemas

e as suas conseqüências atuais é tão grande, e. suas vozes são tão fortes, que seus pontos

de vista merecem ser referidos e discutidos.

Já fiz referência ao fato de que tais pessoas se preocupam com isto por motivos errados,

ainda que muitas críticas que fazem ao sistema sejam justas e, até mesmo, muito

tímidas. De resto, seria de pouca significação que, sem citar as fontes, eu adotasse um

ponto de vista composto, constituido de muitos autores, e criando, assim, um

interlocutor muito cômodo que, indubitavelmente, seria muito mais fácil de contradizer.

Prefiro, por isso, citar extensamente e, então, discutir com um dos mais sérios e

distintos defensores dos pontos de vista a que já fiz menção: E. J. Mishan, Professor de

Economia da London School of Economics, e, particularmente, seu livro The Costs of

Economic Growth (Staples Press, 1967).

Alinharei, primeiramente, os argumentos do Professor Mishan que acredito relevantes

no presente debate (mencionado, obviamente, o texto original com uma exposição mais

completa).

I - A expansão econômica, expressa como aumento do produto nacional bruto, como

elevação do nível de renda pessoal médio, como aumento da disponibilidade média dos

bens duráveis de consumo, ou como aumento da quantidade de energia utilizada per

capita, deve ser mantida em nível desejável somente quando conduza a uma situação

geral otimista. Uma ótima situação é aquela em que não existe nenhuma redistribuição

dos recursos da sociedade (meios de, produção, etc.) e que, leve a uma maior

disponibilidade total dos bens aos seus valores de mercado. Em uma situação ótima, o

valor do mercado de cada bem coincide com seu custo marginal (o custo marginal é

definido, notoriamente, como a adição ao custo total relacionado à produção de uma

posterior unidade do bem em exame).

II - O conceito de otimização acima exposto não pode, porém, ser baseado em

considerações dos preços de mercado, porque à produção de, cada bem estão

inevitavelmente associadas "antieconomias externas", definidas como danos infligidos

aos outros membros da sociedade (eventualmente não implicados no processo de

produção, nem interessados no uso dos bens produzidos) em conseqüência da produção

e do uso dos bens.

III - Conseqüentemente, a definição da situação ótima, dada no ponto I, deve ser

corrigida, impondo-se a identidade do valor de mercado não somente ao custo marginal

de produção, mas também à soma do custo marginal de produção e do valor dos danos

infligidos ao restante da sociedade com a produção ou com o uso do bem considerado.

Esta soma é definida como custo marginal social.

E até este ponto é fácil estar de acordo com o Professor Mishan, o qual observa, muito a

propósito, que a causa mais provável pela qual os economistas convencionais e os

estatísticos governamentais não se dão conta dos fatores "antieconômicos externos" é a

de que os valores relativos não são medidos ou, então, são avaliados com extrema

dificuldade e que, por outro lado, é muito difícil, seja do ponto de vista das técnicas de

medida ou do ponto de vista conceitual, estabelecer relações de causa e efeito entre cada

Page 14: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

setor da economia e cada tipo de "antieconomia externa". Estas dificuldades não podem,

porém, ser invocadas para sustentar que a "antieconomia externa" - não sendo

facilmente medida não existe, ou então, que é de importância desprezível.

Prossigamos com a lista das teses de Mishan, que apresenta a série das coisas que

parecem mais perigosas na sociedade opulenta e crescente. Aqui, Mishan se torna

decisivamente polêmico e se compromete com afirmações do tipo desta: "a invenção do

automóvel particular é um dos grandes desastres que atingiram o gênero humano" (the

invention of the private automobile is one of the great disasters to have befallen the

human race). As suas aversões se concentram contra as seguintes situações:

IV - A excessiva difusão da motorização particular: porque produz destruição da riqueza

como conseqüência da congestão do tráfego, porque polui o ar, porque. prejudica a livre

contemplação das belezas naturais e arquitetônicas, porque deteriora o caráter e a mente

dos automobilistas durante os longos e lentos trajetos no tráfego congestionado, e

porque suga uma importante parte da possibilidade de investimento na produção de

outros autoveículos, quando os mesmos recursos poderiam sem empregados na

produção de bens mais recompensadores.

V - A excessiva difusão do tráfego aéreo: porque produz barulhos que incomodam os

habitantes das zonas próximas aos aeroportos e porque reduz as dimensões do nosso

planeta, tornando-o um lugar reduzido, menos interessante e menos misterioso.

VI - O turismo de massa: porque é responsável pela destruição de tantas belezas

naturais, seja através do simples passeio dos turistas, seja por causa da proliferação dos

artefatos para alojamento, alimentação, deslocamento e o divertimento dos turistas.

VII - O culto da eficiência: porque obriga muitas pessoas a desenvolver encargos

despersonalizantes, repetitivos e deprimentes, impedindo-as de desfrutar a sua

criatividade e a sua inventiva em atividades mais produtivas independentes do tipo das

seguidas pelos hábeis mestres artesãos.

VIII - A falta de, reservas territoriais separadas, nas quais pudessem se congregar e

viver todos os que abominassem o automóvel, o rádio transistor e os barulhos do

espaço, onde pudessem levar uma vida mais amena e num ritmo mais lento, gozando as

alegrias da família e as dos contatos humanos válidos e aprofundados, como acontecia

há muito tempo atrás.

IX - A conquista excessiva que a publicidade e a moda fazem de grande número de

pessoas (para as quais criam necessidades artificiais) que são forçadas a consumir,

integrando-se, cada vez mais profundamente no processo econômico do sistema e

piorando o nível de seu gosto.

X - As tentativas e os projetos dos engenheiros para melhorar as situações

congestionadas através de uma profunda modificação das estruturas de base. É típico o

caso do Relatório Buchanan (redigido em 1962 pelo Professor C. Buchanan a pedido do

Ministério dos Transportes da Inglaterra), que sugeriu reestruturar as cidades com uma

urbanística o uma arquitetura orientadas segundo as necessidades do tráfego, a exemplo

de uma rede de estradas e de edifícios articulada com vários níveis, a fim de evitar os

cruzamentos e assegurar um fluxo contínuo de tráfego e livre de obstáculos. A solução

Page 15: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

preferida de Mishan seria, por outro lado, a de deixar a cidade como se encontra e abolir

todo o tráfego particular, investindo grandes somas no melhoramento dos transportes

coletivos.

É bastante claro que na formulação das teses, da quarta a décima, segundo a numeração

que usei acima, há uma infiltração ideológica, muito importante - como Mishan, de

resto, admite sem reserva. Procurarei limitar ao mínimo a controvérsia ideológica na

exposição das minhas objeções e apresentar, principalmente, considerações

quantitativas, em lugar de demonstrar que os inconvenientes citados por Mishan são

graves, não tanto em si, mas porque representam sintomas de uma tendência para uma

situação muito mais grave, de intrínseca instabilidade e de congestão total, da qual

poderá bem surgir aquilo que defini como a próxima Idade Média.

No que se refere aos pontos IV e X, é oportuno lembrar a existência de intermináveis

polêmicas entre os técnicos da circulação e do tráfego, muitos dos quais querem ver

eliminado o transporte público (como acontece em muitas partes dos Estados Unidos),

enquanto outros querem favorecer nitidamente os transportes coletivos (com locais

próprios, com desvios de estacionamento para os veículos particulares, etc.). E aqui

temos de observar que, em todas as cidades nas quais as condições de tráfego são piores

e constantemente congestionadas, nota-se também que uma percentagem preponderante

dos locais viários são utilizados para estacionamentos - ou melhor, para conter veículos

parados - e que falta uma moderna e eficiente instrumentação para o controle e

regulamento do tráfego. Nas cidades em que o estacionamento fora das ruas tornou

possível a construção de estacionamentos subterrâneos ou elevados, a situação é muito

melhor, e o sistema existente das vias urbanas mostrou-se suficiente para satisfazer a

demanda do tráfego. Um bom exemplo é a cidade de Madri, onde já existem

estacionamentos fora das ruas para mais de 25 mil veículos, enquanto que

estacionamentos para um igual número de veículos estão em construção. Em Roma e

Nova York não existem iniciativas deste tipo em números relativos e de comparação, e,

por isto mesmo, a situação é muito pior. Os instrumentos eletrônicos utilizados para

regular automaticamente o tempo real do tráfego urbano podem contribuir para

aumentar a capacidade de transporte das vias existentes e a velocidade média dos

veículos nos deslocamentos urbanos até em vinte por cento e, além disso, fazem

desaparecer os mais graves fenômenos de congestionamento e da formação de filas de

espera. É verdade que riem sempre grandes sistemas de regulamentação eletrônica do

tráfego obtiveram sucesso no fluir do tráfego urbano. São muitos também os casos de

clamoroso insucesso nestas tentativas e, é claro, tais casos podem despertar uma grande

desconfiança nas possibilidades das técnicas eletrônicas de resolver os problemas da

circulação das vias de tráfego. Entretanto, é preciso notar também que os maiores

insucessos ocorrem quando se emprega uma engenharia de sistemas de baixo nível

enquanto que, sem justificativa, deixa-se de empregar um calculador eletrônico

numérico de grandes dimensões, que poderia assegurar o sucesso da operação. Como

veremos, porém, as coisas não se passam assim: não se pode, logicamente, concluir que

cada possível solução tecnológica deva revelar-se inadequada pelo simples fato de que

muitas soluções tecnológicas, às quais se recorreu, singularmente demonstram-se

ineficientes ou ainda danosas. Em geral, muitas soluções técnicas e sistemáticas, cujo

sucesso deveria ser esperado naturalmente, logo de início mostram uma forma banal e

mesmo deterioradora, e isto é outro fator que leva ao pessimismo, uma vez que surge a

possibilidade de que os grandes sistemas existentes nas nações mais desenvolvidas

atingem sem abalos um estado de equilíbrio.

Page 16: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

No que se refere ao item V, observaremos rapidamente que os barulhos produzidos nos

ares não são um flagelo assim tão grave, já que recentes pesquisas psicológicas parecem

indicar que o trabalho humano não se prejudica de modo apreciável em função do nível

de barulho ao qual G homem está exposto. A circunstância mais grave é, de novo, a do

congestionamento do tráfego de aeronaves, seja no ar, seja em terra, nos aeroportos, e, a

propósito disto, podem-se repetir os argumentos já citados quando nos referimos ao

tráfego urbano de veículos. Além do mais, acresce a circunstância de que a velocidade

dos transportes aéreos tem por conseqüência economias externas (ou melhor,

"antieconomias") conexas com a possibilidade de diminuir as imobilizações dos bens e

encargos relativos, de tal modo que estes fatores deverão ser levados em conta e sua

contribuição deverá ser considerada como um acréscimo positivo ao balanço econômico

dos transportes aéreos.

O item VI contém um paralogismo: toda inibição do turismo de massa, realizada através

de regulamentos ou da imposição de tributos econômicos artificiais e, adicionais,

implica no fato de que as belezas naturais são salvas da deterioração, causada pela

presença das multidões, e conservadas para poucos eleitos. Ora, a seleção destes poucos

eleitos é um trabalho que não pode ser realizado com equidade. O problema poderia ser

focalizado de modo mais premente se se pudesse demonstrar que a presença da

multidão provoca, em cada caso, uma destruição irreversível dos recursos naturais. Mas

esta demonstração não pode ser feita, pois existem exemplos convincentes de

regulamentos de salvaguarda do meio ambiente e de determinados locais que obtiveram

um sucesso indiscutível. Além disso, o problema não é tão grave assim, se atentarmos

para o fato de que existe cerca de um habitante para cinco hectares de terras emersas do

globo. Contudo, tal problema poderia tornar-se grave se a densidade da população

terrestre continuasse a crescer no ritmo atual. Esta última hipótese, porém, pressupõe

um aumento muito maior da densidade populacional dos grandes aglomerados urbanos:

e é esta a situação crítica e temível que poderá levar a um equilíbrio instável e provocar,

então, os graves fenômenos de ruptura aos quais já acenei - muito antes que os efeitos

de segunda ordem, referentes ao turismo, possam provocar alguma sensata preocupação.

Minha objeção ao item VII, que critica o assim dito culto da eficiência, consiste na

negação dos fatos adotados para sustentar a tese. É sabido que os cientistas de hoje são

muito mais numerosos do que todos os existentes desde o início da história da

humanidade e já mortes: em termos de números absolutos, então, não há noticia de

nenhuma outra época em que tantas pessoas tenham obtido tantas maciças retribuições

com o desfruto de suas invenções e de sua criatividade. De passagem, isto é verdade;

embora se tenha de considerar a circunstância de que o nível intelectual e profissional

de muitos dos cientistas de hoje é bem mais baixo do que se pensa. Raciocinando

também em termos percentuais, a conclusão não muda. De fato, não há sentido algum

em comparar as condições de vida dos melhores artesãos de qualquer século passado

com as dos operários menos especializados que trabalham nos grandes estabelecimentos

industriais automatizados de hoje. Se nos referirmos aos Estados Unidos da América,

verificaremos que o percentual da população ativa empregada na agricultura era de 65

por cento, por volta de 1850; de 38 por cento, em torno de 1900; e, hoje, é inferior a 12

por cento. Levando-se em consideração o percentual da população ativa empregada nas

atividades terciárias (serviços, distribuição e deslocamento dos bens), é claro que

também há 120 anos os artesãos de alto nível representavam uma exígua minoria da

população. O deslocamento mais significativo ocorreu da agricultura para a indústria e

também da agricultura para os serviços: já em 1956, nos Estados Unidos da América,

Page 17: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

era maior o número de pessoas empregadas em atividades terciárias do que o de pessoas

empregadas em atividades produtivas (agricultura e indústria). Somente quem já viveu

no campo pode compreender bem o quanto a atividade, desenvolvida pelos

trabalhadores da terra em urna economia de subsistência primitiva exige e embrutece

mais do que as tarefas típicas dos operários de uma indústria moderna. A pretensa

amenidade do ritmo mais lento de vida está relacionada, freqüentemente, com a

inatividade forçada e deprimente: o valor dos contatos humanos aprofundados,

edificantes e autênticos se reduz, com efeito, a uma absoluta pobreza cultural, à rudeza

das relações estereotipadas, a uma troca de fórmulas verbais constantes, que codificam,

por decênios, uma forma imutável que se transforma em uma forma de humorismo.

Não me parece que haja dúvidas de que a maior disponibilidade, de informações, a

maior possibilidade de pesquisas eficazes e de progresso a níveis culturais e

profissionais mais elevados, que hoje existem, constituam elementos positivos à luz de

qualquer visão do mundo que afirma o primado dos valores humanos sobre aqueles

expressos exclusivamente em preço.

Vamos examinar, a seguir, as teses expressas nos itens VIII e IX. O desejo de reservas

territoriais separadas, nas quais esteja ausente qualquer forma derivada da mecanização

e também evitada qualquer comodidade que advenha do emprego de, aparelhos

barulhentos, incomodativos e deprimentes, poderia ser estudado mais seriamente num

contexto geral e prescindindo das inclinações excêntricas de poucos e isolados

indivíduos, se a experiência já não tivesse sido levada a cabo há muito tempo. Mas já

existem, por exemplo, no Estado da Pensilvânia, algumas comunidades dos menonitas

que não permitem nem a posse nem o uso de automóveis, rádio, televisão, telefone,

telégrafo, máquina fotográfica, cinema, bebidas alcoólicas e tabaco. Se bem que estas

condições coincidam com as mais desejáveis pelos que abominam o torvelinho da vida

moderna, não há notícias de que tenham ocorrido emigrações dignas de nota para

aquelas comunidades, ainda que se tenha feito em torno de tais comunidades uma certa

publicidade em revistas ou em documentários cinematográficos. Deve-se refletir sobre o

fato de que semelhantes asilos só encontram favores particulares da parte de esporádicos

amadores.

Neste ponto, devemos abordar a questão da definição do bom gosto e de sua influência.

Tenho por certo que toda tentativa de dar curso forçado a um bom gosto oficial leve

necessariamente a imposições e perseguições odiosas, A este respeito existem exemplos

na sociedade soviética: não se levando em conta as polêmicas sobre o realismo

socialista e as interpretações stalinistas da arte, a respeito do que é melhor silenciar, é

interessante notar como as últimas tendências que parecem prevalecer na pátria dos

sentimentos coletivos - onde existem também ideologias que não justificam as

vantagens -, ao que tudo indica, estão nitidamente orientadas para um incremento dos

sentimentos privados e individuais.

É compreensível que certas manifestações de gosto uniforme e de pouca elaboração

possam se tornar odiosas: a reação individual pode ser, de uma maneira razoável,

apenas de exemplo e de testemunho. Cada classificação de bom gosto contém

necessariamente elementos estatísticos e de referência à composição dos grupos que

preferem certas formas mais do que outros. Os conceitos objetivos tomados a priori são

obviamente insensatos. No Paquistão existem certos tipos de música que se tocam

apenas pela manhã e que seriam de péssimo gosto se tocadas à tarde: tachar de ridículo

Page 18: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

este costume não tem sentido, sub specie aeternitatis, do mesmo modo que se

ridicularize a paixão pela música ligeira ou pelo futebol.

Como quer que seja a, os incômodos e os transtornos da sociedade contemporânea nas

nações desenvolvidas, se podem ser maiores dos que os que existiam no passado - e

isto, corno já se viu, é muito discutível - são de importância insignificante no que tange

ao desastre final. Quem se preocupa muito com isto parece - para usar uma comparação

apocalíptica que cabe nesta argumentação - um prisioneiro num carro todo fechado, que

lamenta o desconforto da viagem e não tem nenhum pensamento para o destino que o

aguarda ao final da viagem.

III - Os grandes sistemas e a sua engenharia

Antes de ilustrar algumas situações atuais de deterioração dos grandes sistemas e de

antecipar outras futuras e mais graves, é oportuno definir o que se entende por grandes

sistemas e descrever como são projetados.

Sem pretender apresentar uma formulação científica ou definitiva, chamo de grande

sistema qualquer organização cujo funcionamento implique em: participação de um

número bastante relevante de pessoas - como operadores ou como usuários; existência

de um procedimento formal ou formalístico; emprego de, máquinas ou aparelhos, onde

todos os elementos citados contribuem para satisfazer movimentos "específicos" para

obter um certo objetivo unitário.

Existem exemplos de sistemas muito antigos. Certamente, podemos considerar como

um grande sistema a organização do projeto, da mão-de-obra e da utilização dos meios

tecnológicos, que tinha como finalidade a construção das grandes pirâmides do Egito.

Na época moderna, o impulso produzido pelos já citados fenômenos de expansão e

crescimento conduziu à proliferação dos sistemas de grandes dimensões. E podemos

citar:

os sistemas de comunicações telefônicas, telegráficas ou telex através de um país

ou de um continente;

os sistemas ferroviários, compreendendo: estações, estradas de ferro, material

rodante, sistemas de sinalização e de segurança, sistemas de emissão de bilhetes

e de tarifas, pessoal e usuários, serviços auxiliares;

linhas aéreas e sistemas de controle de tráfego aéreo;

sistemas de regulamento, controle e vigilância do tráfego de veículos nas cidades

e nas auto-estradas;

sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica;

sistemas postais;

processos industriais automatizados de produção;

sistemas militares de defesa, compreendendo vigilância e pré-alarme de radar,

meios eletrônicos de interceptação e resposta.

E esta lista está longe de ser completa, já que foi redigida para categorias bastante vastas

e gerais.

Page 19: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Muitos dos sistemas citados foram estruturados sem que os projetistas tivessem feito

planos a longo prazo e depois têm de modificá-los gradualmente para satisfazer as

exigências crescentes determinadas pelo aumento das dimensões dos problemas. Muitas

vezes, o sucesso destes acréscimos é modesto.

Se bem que, é claro, muitas vezes os engenheiros de sistemas sejam chamados a projetar

sistemas inteiramente novos, partindo do zero, muito mais freqüentemente a obra dos

projetistas consiste numa reestruturação dos sistemas existentes e reconhecidos como

inadequados, ou então em uma modernização, decidida com a finalidade de, melhorar o

serviço que prestam, aproveitando a possibilidade de automatização adequada no

momento e a disponibilidade de aparelhos de medida e controle eletrônico e de

calculadores eletrônicos universais, aos quais possam ser confiadas numerosas tarefas

de elaboração, decisão e controle, tradicionalmente entregues a operadores humanos.

A notável complexidade é uma característica comum a quase todos os grandes sistemas.

Conseqüentemente, seu planejamento, ou replanejamento, requer uma análise acurada

das finalidades institucionais do sistema, da sua estrutura e do fluxo de informações que

vai receber. Esta análise impõe que os objetivos do sistema sejam redefinidos de modo

formal e que disso se estude um modelo matemático, ou melhor, um conjunto de

fórmulas e procedimentos matemáticos ou de diagramas que permita prever o

comportamento do sistema sem proceder à sua efetiva criação. O modelo matemático

deverá conter elementos de probabilidade para levar em conta situações reais não

determinadas - como são todas aquelas em que o número dos elementos em jogo é

muito relevante. Por exemplo, quando se projeta uma rede telefônica, não se pode, de

modo algum, saber, a priori, quantos futuros assinantes poderão realizar uma

comunicação ou estarão falando em determinado momento, e a única coisa que se pode

fazer é prever diversas alternativas e, elaborar o projeto de modo que as conseqüências

de cada alternativa prevista sejam aceitáveis.

Como acontece freqüentemente, quando uma realidade complicada é esquematizada por

meio de relações matemáticas formais, a descrição dos fenômenos ou dos processos

reais que é fornecida pelas fórmulas não é completamente fiel. Assim, o que acontece é

que as previsões baseadas unicamente na mecânica do modelo matemático poderão

estar eivadas de erros, tanto maiores quanto menos aproximado é o modelo. É

necessário, portanto, dar eficácia ao modelo a fim de decidir se ele pode ser usado de

modo útil e em quanto importa esta utilidade. Desta maneira, serão projetados

experimentalmente os resultados que poderão ocorrer, antes previstos por meio do

modelo, e depois encontrados na prática, de modo a determinar as diferenças entre as

previsões e as medidas efetivas.

Nesta altura, já se escolheu a tarefa que o sistema deve cumprir, assim como a

linguagem (matemática) com a qual se falará do sistema com precisão.

O passo seguinte é definir a lógica do sistema, ou melhor, decidir o que deve acontecer

a cada um dos seus elementos em cada uma das situações com que se pode deparar

durante sua passagem (espacial ou temporal) através do processo. Este estágio do

projeto, que é indicado com o nome de projeto seqüencial (single thread design), ainda

não tem o objetivo de determinar as soluções tecnológicas, ou os tipos de aparelhos, ou

ainda a organização dos operadores humanos eventuais - mas, apenas, o de definir as

Page 20: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

funções que devem ser encontradas em um dado elemento, do instante em que penetra

no sistema ao instante em que sai dele.

Além de estabelecer o que desejamos que aconteça em cada possível circunstância a

cada telefonema, a cada trem, a cada aeroplano ou a cada carta - o histórico das quais

deve ser pré-ordenado e governado pelo sistema - devemos levar em conta o fato de que

o número destes elementos, que se encontram simultaneamente no âmbito do sistema, é,

geralmente, muito alto. Os sistemas dos quais nos ocupamos são aglomerados - de alta

densidade - e, portanto, apenas em casos muito raros, o projeto seqüencial. relativo a

elementos singulares pode resolver completamente os problemas que se apresentem. Por

outro lado, o projeto seqüencial não resolve os problemas de incompatibilidade qUe

surgem quando dois ou mais elementos exigem simultaneamente o cumprimento de

uma função do sistema, assegurada por aparelhagens e serviços de capacidade limitada.

De modo mais geral, pode-se dizer que o sistema deve ser projetado para condições de

tráfego intenso - ou melhor, de modo a poder funcionar também quando ocorra uma

congestão contida entre os limites razoáveis.

A definição do que seja razoável, nestes limites, é uma questão sutilíssima e muito

discutível. É certo, porém, que estes limites devam existir, diferentemente do sistema

que se torna cada vez mais complicado e mais custoso de realizar.

Um bom exemplo pode ser dado pelas redes telefônicas. Por óbvias razões confidenciais

e indesejáveis de interferências, aceita-se o princípio de que nenhum assinante possa

completar uma chamada para outro assinante já ocupado em outra conversação. Não se

levando em consideração este caso limite, porém, será possível evitar qualquer

fenômeno de congestionamento telefônico - definido como uma situação em que o

assinante X não consegue completar a chamada para o assinante Y, que está livre, pelo

fato de que as linhas existentes estão ocupadas por conversações entre outros assinantes

diferentes de X e Y - simplesmente instalando um número tal de linhas de, conexão

entre todos os assinantes, dois a dois entre si, e de todos os modos possíveis. Mas, esta

estrutura das redes telefônicas será inaceitavelmente custosa e, como tal, não pode ser

levada em consideração dentro do complexo telefônico. Basta pensar que o número de

linhas necessárias para conectar cem mil assinantes dois a dois e de todos os modos

possíveis será de cinco bilhões. Por isto, à parte o fato de que existem soluções técnicas

para reduzir o número de linhas telefônicas, normalmente as redes são projetadas de

modo que!, aproximadamente, não mais de vinte por cento dos assinantes possam falar

ao mesmo tempo: malgrado esta limitação, nas redes bem projetadas a espera imposta

àqueles que desejam efetuar uma chamada telefônica é de duração muito breve e os

casos em que a chamada não pode ser feita durante um espaço de tempo relativamente

longo são muito raros. Por outro lado, é verdade que, por exemplo, todo o sistema

telefônico dos Estados Unidos da América ficará bloqueado se 25 milhões de

americanos decidirem simultaneamente falar ao telefone.

Os projetistas de sistemas seguem, em geral, o principio de que não é aconselhável - e

isto leva a soluções muito custosas - estruturar o sistema de modo a satisfazer também

às exigências das situações características de uma baixíssima probabilidade. Deste

modo, um sistema é considerado bastante bom se funciona satisfatoriamente durante

364 dias por ano, ainda que, se por um dia por ano, em média, funcione de modo

completamente inadequado.

Page 21: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

(As coisas se complicam, porém, quando a probabilidade de certos eventos de

congestionamento - desprezivelmente baixa na época em que o sistema foi projetado -

começa a crescer - exatamente o que sucede, com a expansão econômica, com a

explosão demográfica e com a melhoria das condições da vida média. Acontece, então,

que os serviços prestados pelo sistema se tornam cronicamente insuficientes porque o

funcionamento se desenvolve em condições de tráfego muito intenso: o

congestionamento se torna quase contínuo e a maioria dos usuários recebe um serviço

deteriorado e insatisfatório.)

Uma vez definidas detalhadamente as funções do sistema, é necessário definir a

estrutura e, particularmente, resolver o problema centralização-descentralização - ou

seja, decidir se os serviços prestados pelo sistema podem ser mais vantajosamente

assegurados por uma grande e única aparelhagem central em lugar de subdividida em

muitas aparelhagens mais simples e especializadas, geralmente instaladas em locais

diversos e distantes entre si. A primeira solução é claramente preferível se o sistema tem

uma extensão topográfica limitada, e, é ainda preferível se o tipo de funções que devam

ser realizadas pelas aparelhagens é bastante complicado (por exemplo: cálculos

matemáticos complexos), porque aí é preciso usar máquinas dotadas de grande poder de

elaboração, sendo conveniente investir maiores capitais em uma única aparelhagem que

preste muito maior número de serviços. Entretanto, se os locais onde os dados são

elaborados estão geograficamente distantes uns dos outros (por exemplo: filiais de

bancos), aumentam os custos das comunicações entre os locais onde são fornecidos os

dados e o elaborador central. Também, neste caso, a centralização é mais fácil, e

preferida, pela disponibilidade dos terminais econômicos através dos quais é possível

comunicar nos dois sentidos com um grande computador e centralizado.

Por outro lado, a solução descentralizada é preferível quando as elaborações são

bastante simples e uma duplicação (ou repetição) de funções em aparelhos periféricos

idênticos uns aos outros se torna mais econômica do que um sistema centralizado que

implique em custosos canais de comunicação.

Nos sistemas se pode reconhecer um fluxo principal, que é aquele dos objetivos para os

quais o sistema é projetado - homens, veículos, mercadorias, unidade de energia,

mensagens, etc. - e um fluxo de controle constituído de sinais (produzidos automática

ou manualmente) que transmitem à unidade ou à organização de governo do sistema

informações sobre o estado do mundo, relevantes àquele problema. Da elaboração

destes sinais de entrada e de saída que, em geral, representam simbolicamente as

decisões tomadas e alimentam de modo oportuno pontos de ação (máquinas ou homens)

dependem as decisões a serem postas em prática. Fazem também parte do fluxo de

controle os sinais representativos de informações, os quais não devem, necessariamente,

ter, por conseqüência, determinadas ações de governo, mas que devem transmitir ao

pessoal encarregado da vigilância do sistema dados que lhes permitam conhecer a

situação em um dado momento, reconhecer a ocorrência de acontecimentos anômalos e

intervir diretamente nestes casos, adotando os procedimentos normais de controle.

Entre as fases realizadas ao fim do processo, está a da dita implementação tecnológica,

ou definição dos serviços prestados, características e típicas dos aparelhos de medida, de

transmissão das informações, da elaboração dos dados, de controle e da atuação prática

das decisões. Em nenhum caso, é necessário projetar e construir instrumentos e

aparelhos especiais, tendo como único objetivo satisfazer a necessidade de

Page 22: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

funcionamento do sistema - e a decisões deste tipo se chega, efetivamente, na fase final

do projeto do sistema. Em outros casos, integram-se no sistema instrumentos e

aparelhos existentes e projetados para outras finalidades: desta maneira, ocorre com

bastante freqüência que a disponibilidade de certas máquinas, ou de certas invenções

técnicas, forneça a idéia inicial para a estruturação do sistema ou, pelo menos,

influencie decisivamente no conceito.

Cada sistema deve satisfazer as finalidades para as quais é projetado e construindo. No

sentido de, que esta afirmativa não fique genérica e inútil, para cada sistema deve ser

definida uma cifra de mérito - ou medida de eficiência - que permita saber "quão bem"

funciona o sistema, ou seja, em que medida, alcance efetivamente os objetivos

prefixados. Para ser útil e significativa, uma cifra de mérito deve ser medida

quantitativamente de modo simples e econômico e dotada de significado físico

imediatamente apreciável. O exemplo mais significativo é aquele em que se possa

definir uma cifra de mérito que indique quão longe está o sistema de um funcionamento

ideal e ótimo - correspondente, deste modo, a cem por cento dos serviços requisitados.

Esta situação, que se realiza plenamente quando se procura definir o rendimento de

máquinas que transformam a energia térmica em energia mecânica, é, por outro lado,

muito rara quando se trata de avaliar a prestação dos grandes e complexos sistemas do

tipo dos que nos ocupamos. Malgrado a aparente linearidade e simplicidade dos

requisitos de uma boa cifra de mérito, ocorre freqüentemente que estes requisitos não

podem ser completamente satisfeitos. Entretanto, também ocorre com freqüência que os

avalistas de sistemas cedam à tentação de confiar em estimativas feitas "pelo

sentimento", na base de uma experiência direta, mas medida quantitativamente, de

algum aspecto particular problema.

Por outro lado, é claro, na nossa definição dos grandes sistemas, que muitos destes não

têm o objetivo de obter um único tipo de resultado concernente a uma única classe de

objetos, mas sim objetivos múltiplos, cada um dos quais interessa a diversas categorias

de usuários ou de elementos, os quais se apresentam em números relevantes. E não se

pode resolver com meios simples o problema de decidir qual será a melhor entre duas

únicas soluções diversas e alternativas - quando uma delas oferece soluções melhores do

que a outra pelo cumprimento de uma parte dos objetivos prefixados, ao passo que

apresenta características nitidamente inferiores para a satisfação de outros objetivos

essenciais. Existem técnicas matemáticas para ordenar, segundo certos critérios de

preferência, as diversas soluções de um dado problema de sistema: a aplicação destas

técnicas conduz, entretanto, a conclusões expressas em fórmulas dificilmente

apreciáveis por aqueles que devem fazer a escolha final e que são, com freqüência,

administradores e não matemáticos ou técnicos em pesquisa operativa.

É este um dos pontos mais críticos de toda a engenharia sistemática, já que isto

influencia escolhas vitais que podem definir irreversivelmente a direção do

desenvolvimento, da pesquisa e das realizações em um determinado campo por lapsos

de tempo bastante longos. Além do mais, a disponibilidade de critérios de avaliação a

posteriori é necessária a fim de que seja possível um processo de realimentação

(feedback), que permita, de início, resultados eficazes para melhorar os modelos

matemáticos, as estatísticas, e submeter a uma revisão de segunda aproximação as

mesmas características do sistema, as prescrições lógicas e também as funções

singulares e as características das várias partes do sistema e dos aparelhos empregados.

Page 23: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Não obstante esta grande dificuldade na mesma definição e na utilização das cifras de

mérito de finalidades avaliáveis, é costume, atualmente, dos projetistas, e ainda mais

dos vendedores, afirmar que seus sistemas são excelentes. os procedimentos da

excelência seguidos, porém, são definidos com clareza formal apenas em casos muito

raros, e a afirmação de que uma solução sistemática é excelente tem, freqüentemente,

caráter de propaganda e a finalidade de criar a impressão de que o sistema de que se fala

é o melhor possível.

Ora, não se levando em conta a citada dificuldade epistemológica de comparar

resultados efetivos ou resultados projetados com o funcionamento ideal e ótimo,

correspondente a cem por cento das exigências que o sistema deve satisfazer, quando

este funcionamento ideal não pode ser definido, é preciso lembrar que em cada

problema de sistema o número de variáveis a considerar é muito grande e o número de

suas diversas combinações (ou das decisões acerca do modo de tratar cada uma das

variáveis) é enorme. Uma vez que a muitíssimas combinações de variáveis ou de

decisões, embora não a todas, correspondem outras tantas possíveis soluções

alternativas do problema, para se poder afirmar sensatamente que uma determinada

solução é ótima é preciso ter examinado a constituição técnico-econômica e as

implicações (resultado, balanço custos/benefícios !cios, segurança de funcionamento,

vida provável) de todas as soluções e possuir dados suficientes para afirmar que a

solução escolhida é efetivamente melhor do que as outras, sob todos os pontos de vista.

Este procedimento será de tal maneira longo e custoso que resultará proibitivo: para

vetá-lo se apresentam, de resto, considerações práticas, no sentido de que a efetiva

realização a curto prazo de um sistema apenas satisfatório é muito mais desejável do

que a realização de um sistema melhor depois de muito tempo e com um custo de

projeto muito maior.

A este propósito, Raiffa e Schlaifer, com muita autoridade, sustentam que seria

oportuno renunciar a todos os critérios de excelência (ou otimização) (optimizing) em

favor de critérios de adequação (satisficing) aos objetivos prefixados. E, com efeito, o

que sucede na prática, nos estágios iniciais de projeto de um sistema (e alguns

projetistas parecem envergonhar-se disso), é que algumas decisões basilares são

tomadas de modo principalmente intuitivo, afastando-se radicalmente diversos tipos de

soluções possíveis e renunciando, por isso mesmo, à sua avaliação analítica. Somente

depois que a constituição do sistema, nas suas grandes linhas, já está decidida é que se

procede a uma análise formal das poucas alternativas que restam.

Como veremos a seguir mais detalhadamente, a sistemática está hoje em crise, não

apenas por causa das dificuldades expostas até agora, e que têm caráter conceitual, mas

também por causa de elementos muito mais banais, presentes, porém, numa maioria

quase, preponderante de casos que me e

1. Muitos engenheiros, diretores, ministros, administradores, não suspeitam nem de leve

da existência dos problemas suscitados pelos sistemas e acreditam que cada situação

crítica possa ser resolvida radicalmente por meio de obras, aparelhos ou máquinas

especiais, ou seja, por meio de soluções técnicas ou tecnológicas "de manual"

concebidas individualmente para fornecer um único resultado ou para remediar

determinado inconveniente. É raro que algum deles imagine que as prescrições ditadas

para resolver um problema se oponham àquelas às quais se recorre para resolver um

Page 24: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

problema parecido. Por outro lado, este tipo de situação aparece, na realidade, com

muita freqüência.

2. Também quando um dado técnico tirado de um manual poderia resolver um certo

problema isolado, esta solução não é adotada - por inércia, omissão ou desinteresse.

3. As previsões sobre futuros desenvolvimentos das situações criticas, habitualmente,

não são, nem de longe, tentadas, ao passo que, nos casos excepcionais, em que tais

tentativas são feitas, estas se limitam a modestas extrapolações lineares, sem nenhum

esforço de imaginação que possa permitir reconhecer o próximo surgimento de

situações drasticamente novas e de elementos completamente diferentes daqueles até

então notados. A conseqüência disto é que cada realização sistemática já nasce velha e

antiquada.

"Concluo, portanto, que, variando a sorte e permanecendo os homens em suas

obstinações, são felizes enquanto concordam entre si, e infelizes quando discordam."

(Maquiavel, O Príncipe, XXV)

4. Muitos projetistas de sistemas dividem o problema principal em problemas parciais,

cada um dos quais é resolvido com técnicas relativamente simples e baseadas sobre

hipóteses de linearidade (simples proporcionalidade, entre efeitos e causas), enquanto

todas as questões relativas ao funcionamento integrado e simultâneo destas várias partes

são relegadas à responsabilidade de aparelhos que podemos denominar de "versáteis"

(aparelhos de adaptação, intercomunicação e tradução), cujo projeto (talvez por causa

de sua dificuldade) quase sempre recebe muito menos atenção do que a que é dedicada à

solução dos problemas parciais citados.

5. Muitos administradores de projetos de sistemas supervalorizam o significado do

procedimento da documentação destinada a registrar e controlar as especificações, o

projeto, as variantes e o progresso do sistema que se deseja realizar e acabam por

confundir a realidade com o que está no papel para representar o procedimento com ela

relacionado, ou, melhor: desprezam a existência da realidade, e consideram verdadeiro e

real apenas o que está projetado no papel. Elaboram, assim, sistemas coerentes e que

funcionam no papel, mas divorciados da realidade e, em grande parte, inúteis.

Este último tipo de situação tem caráter mais geral do que foi dito aqui e tem raízes

profundas na tradição de incompetência diretiva (mismanagement) que é uma das

causas remotas da grande crise iminente - e que examinarei mais profundamente a

seguir.

IV - A insubmissão dos sistemas

Em 1958, Philip Bagby escreveu, em seu livro Culture and History: "As únicas

dimensões de uma cultura, ou melhor, o número de pessoas que a praticam não parece

constituir per se uma característica muito significativa - se bem que, naturalmente, a

organização política e econômica das grandes áreas implica problemas um tanto

diferentes dos das pequenas áreas."

Page 25: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Seria surpreendente que um dos mais acurados e profundos cientistas contemporâneos -

entre os que tentaram uma análise lógico-experimental da História e da Civilização - se

tivesse livrado, de modo assim simplista, de uma questão tão grave, quando ainda hoje a

maioria dos planificadores, dos técnicos, dos que lidam com os sistemas e dos políticos

subestimam culposamente as conseqüências que incidem sobre os grandes

conglomerados modernos.

Existe, por outro lado, há anos - e está se agravando continuamente - um trágico

problema de congestionamento dos grandes sistemas nos eixos próximos aos maiores

centros urbanos o tipicamente representados por fluxos de pessoas, veículos,

mercadorias, energia, comunicações e resíduos. O público menos informado lamenta o

congestionamento cotidiano do tráfego nas vias urbanas e interurbanas e do tráfego

aéreo, da impropriedade e instabilidade --- redes de comunicações. Estas situações

causam distúrbios e contratempos a grande número de pessoas e, é claro, provocam

destruição de bens.

As cifras em jogo são enormes, mas, não obstante, não se dispõe de valores precisos e

completos de sua importância: a elaboração de análises sistemáticas neste campo é uma

necessidade urgente. Todavia, citemos alguns dados a título de exemplo.

A Federal Aviation Agency, dos Estados Unidos, calculou, em 1969, que a falta de

aeroportos e de aparelhamentos aeroportuários adequados somente na cidade de Nova

York provocará uma perda para a economia da cidade da ordem de 125 bilhões de liras

no ano de 1975 e de quatrocentos bilhões de liras por ano em torno de 1980.

O Ministério do Trabalho italiano afirma que o congestionamento do tráfego de

veículos representa para a população uma perda atualmente calculada entre um e dois

trilhões de liras por ano.

Os técnicos especializados em vários campos freqüentemente costumam identificar

singulares impropriedades às quais atribuem uma parte respeitável da responsabilidade

destes aspectos de insatisfação da vida urbana. É freqüente o caso de aparelhos já

existentes que, se empregados em larga escala, melhorariam em muito a situação, mas

que, ao invés disso, são usados esporadicamente ou mesmo nunca são empregados.

Por exemplo: a aeronáutica militar americana usa largamente, e com grande vantagem,

o radar tridimensional, mas a Federal Aviation Agency acha que ele não é bastante

preciso para a aviação civil.

No campo do regulamento do tráfego de veículos urbanos, os planificadores, muitas

vezes, estão convencidos (algumas vezes levianamente) de que razões de orçamento

impedem a resolução dos problemas por meio de obras de engenharia civil mais ou

menos importantes - por exemplo, cruzamentos a dois ou três níveis mediante viadutos

ou passagens subterrâneas ou estacionamentos fora das vias de circulação, cuja

finalidade é reservar toda a via para os veículos em lugar de mantê-las com

estacionamento. Parece razoável, então, voltar-se a falar em técnicas mais econômicas

de regularização semafórica, mas, uma vez tomada esta decisão, muitas vezes se

renuncia ao emprego de regularização eletrônica que proporciona seqüências variáveis

em tempo real em função do tráfego, e se dá preferência a aparelhos eletromecânicos de

pouca confiança e que funcionam em tempos determinados. Renuncia-se, deste modo, à

Page 26: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

utilização plena de rendimento máximo das estruturas existentes, que poderiam, por

outro lado, proporcionar um aproveitamento satisfatório dos sistemas viários

antiquados.

Uma instrutiva casuística pode ser encontrada em Reger K. Field sob o título

significativo de "Os Problemas da Instrumentação Urbana Põem por Terra os Técnicos

Aeroespaciais" (Electronic Design, vol. 16, nº 26, 4 de janeiro de 1968). O trabalho de

Field apresenta alguns casos clamorosos de necessidades das metrópoles nos campos

das comunicações, do controle do tráfego sobre pneus ou sobre trilhos, da

instrumentação dos sistemas de aprovisionamento de água, dos esgotos e do controle da

poluição atmosférica, que algumas das maiores indústrias, empenhadas nos programas

aeroespaciais, já tentaram resolver sem sucesso.

Cumpre notar, a esta altura, que também as decisões indiscriminadas de utilizar

computadores eletrônicos numéricos para tentar a solução de qualquer problema de

controle ou do uso de sistemas complexos - postulando-se como ilimitada a

"flexibilidade" deste tipo de máquina - constituem, com efeito, sofismas. Antes de

recorrer ao computador, é preciso que o processo de controle ou de uso esteja

completamente definido e formalizado, ou melhor, tenha sido confrontado e resolvido

satisfatoriamente o problema estrutural do funcionamento do sistema a prescindir da

implementação tecnológica correspondente.

O emprego de instrumentação inadequada ou desproporcional contribui, certamente,

para agravar os problemas das megalópoles e já um aumento neste sentido representa

um desafio à capacidade das indústrias eletrônicas mais avançadas. Mas não é aceitando

este desafio e obtendo sucessos marcantes nesta direção que se pode esperar resolver

completamente o problema. Por outro lado, existem dois tipos de deficiências no

sistema, os quais não se pode remediar simplesmente projetando e realizando certos

aparelhos especiais, nem resolvendo simples problemas puramente técnicos.

O primeiro tipo de deficiência é característico dos casos em que são apresentadas teorias

bem fundamentadas e bem elaboradas sobre o funcionamento dos sistemas

considerados, mas estas teorias não são aplicadas com os dados precisos por simples

incompetência ou por um aumento inesperadamente rápido das dimensões e das

complicações do sistema.

Pode-se citar o caso da teoria da estabilidade estática e dinâmica das redes elétricas para

o transporte de energia, codificada classicamente por S. B. Crary, e notar que a

disponibilidade da teoria demonstrou não estar em condições de evitar o black-out de

novembro de 1965 no Nordeste dos Estados Unidos - enquanto os parâmetros relativos

às entradas de funcionamento dos interruptores automáticos e o grau das proteções

diferenciais foi escolhido erradamente. Pode-se citar ainda o caso da teoria do

congestionamento dos sistemas telefônicos, que não serviu para evitar os graves

fenômenos de paralisação na rede telefônica de Nova York ou na de Paris, pois que as

extrapolações preventivas a respeito do aumento da demanda possuíam graves erros e

defeitos

O tipo de deficiência sistêmica citada pode ainda ser evitado, seguindo-se processos

unívocos de racionalização, sem inventar nada de radicalmente novo.

Page 27: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

O segundo tipo de deficiência citado consiste na falta de teorias, de conceitos

sistemáticos e de modelos matemáticos adequados para representar a realidade e prever

OS desenvolvimentos. E este o caso das concentrações das megalópoles, como e

oportuno fazer como um sistema único. E este também o caso de alguns subsistemas

que fazem parte cio sistema megalopolitano: por exemplo - se bem que estejam

definidos e também utilizados modelos matemáticos do tráfego de veicules em vastas

áreas urbanas, não existe uma teoria a respeito destes fenômenos que tenha conseguido

um aperfeiçoamento comparável ao sas teorias estatísticas sobre o funcionamento e,

utilização das redes telefônicas. E quando falta a teoria, não se podem fazer previsões

sensatas sobre o tempo necessário para defini-la e verificá-la o que e tanto mais

verdadeiro se se observa que as tentativas de progresso são lerias, multas vezes, em

direções escolhidas ao acaso, o que importa numa velocidade do progresso

extremamente baixa (parece proporcional à raiz quadrada do tempo gasto na pesquisa).

Se todas as vantagens obtidas com as soluções de manual fossem efetivamente

alcançadas, as situações correspondentes melhorariam ou seriam menos trágicas e

poderiam ser, pelo menos, adiadas - mas, provavelmente, não se evitaria a ameaça grave

que muitos sintomas induzem como iminente. A destruição das riquezas, as frustrações

e os aborrecimentos causados Pelos fenômenos dissiPadores não são, entretanto, o pior

dos males. As concentrações urbanas criam uma estreita interdependência entre todos os

grandes sistemas convergentes, cada um dos quais pode assumir funções parcialmente

supletivas das tarefas normalmente desempenhadas pelos outros (uso do telefone no

caso de bloqueamento do sistema postal; recurso aos deslocamentos pessoais no caso de

não funcionamento dos sistemas telefônico e postal). O pior dos males reside, portanto,

no fato de que muitos grandes sistemas na mesma área entrem simultaneamente em

crise. Para tornar mais concretamente apreciáveis as possíveis conseqüências funestas

desta hipótese, consideremos separadamente alguns fenômenos congestivos que

ocorreram nos últimos anos em uma das áreas mais avançadas tecnologicamente, mas

na qual existem também os sistemas maiores e mais concentrados: a costa nordeste dos

Estados Unidos da América.

A 9 de novembro de 1965, a rede de interconexão de transporte de energia elétrica de

New England, no Estado de Nova York, a Ontário (Canadá), apresentou condições de

instabilidade e, conseqüentemente, faltou energia por períodos de tempo de até quatorze

horas em uma área ocupada por trinta milhões de pessoas, anulando-se uma potência

total de cerca de quarenta mil MW, igual a quase o dobro da potência de todas as

centrais italianas de produção de energia elétrica: hidrelétricas, termoelétricas e

nucleares. Somente na cidade de Nova York, seiscentas mil pessoas ficaram bloqueadas

nas ferrovias metropolitanas. A mobilidade dos habitantes foi depois limitada pelo fato

de que permaneceram parados os motores elétricos das bombas de gasolina, tornando,

assim, impossível qualquer fornecimento de combustível.

A 9 de janeiro de 1970, o sistema ferroviário Penn Central, que serve a Nova York e

Filadélfia, sofreu, por acumulo de circunstâncias ocasionais, um tal deterioramento do

próprio nível de serviço que 117 trens, de um total de 413, não partiram, e 290, das 296

viagens efetuadas, sofreram consideráveis atrasos.

No outono de 1969, um aumento inesperado da demanda de serviço na rede telefônica

de Nova York, acompanhada por um agravamento de qualidade da manutenção, teve

por conseqüência um bloqueio praticamente total de uma central automática, em cujas

Page 28: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

redes, por dois dias consecutivos, não se conseguiu, virtualmente, obter uma linha livre,

e várias mesas de usuários da área de Nova York foram obrigadas a longas esperas e a

repetidas renúncias às comunicações.

As paralisações do tráfego urbano são tão sentidas na Itália como nos Estados Unidos, e

não vale a pena citar alguns casos mais clamorosos.

Imaginemos, agora, uma situação em que todas as crises sobra as cidades ocorram ao

mesmo tempo e sejam acompanhadas de condições meteorológicas extremas: por

exemplo, durante uma forte nevasca ou em temperaturas muito baixas. Conquanto se

possa argumentar que a probabilidade de uma tal concomitância de eventos críticos seja

extraordinariamente baixa, parece óbvio que, esta hipótese enseje a previsão de uma

catástrofe de dimensões jamais vistas. Por outro lado, os efeitos das crises singulares

não se somarão aritmeticamente, mas se amplificarão reciprocamente. Milhões de

pessoas morreriam de fome e de frio por motivos e de modos que descreverei

detalhadamente.

O congestionamento dos sistemas urbanos ocorre agora a níveis absolutos muito mais

altos e com densidades maiores do que no passado. Estão em curso de elaboração

teorias matemáticas destinadas a definir os níveis críticos do congestionamento e a

determinar os valores-limites inatingíveis das dimensões de um sistema urbano. Estes

limites dependem do número, das dimensões e dos tipos de canais de intercâmbio

disponíveis e, também do número, da qualidade e da eficiência do emprego de meios

técnicos para reduzir a "resistência" ou dificuldade que os canais opõem aos fluxos que

os percorrem.

Os cálculos indicam e a história confirma que as cidades antigas, em que circulavam

pedestres e veículos de tração animal, não podiam ter mais de dois milhões de

habitantes. Os limites atuais de densidade populacional, impostos pela mobilidade dada

pelos meios de transporte modernos e pelo grau de eficiência com que são utilizados,

são discutíveis. Se bem que tenha sido sugerido um limite teórico de quarenta milhões

de habitantes, devemos observar que até agora ainda não existem cidades com mais de

vinte milhões de habitantes, mas - seja ou não possível uma existência estável - os

ritmos atuais de desenvolvimento parecem tender a níveis nitidamente superiores e

instáveis, dos quais se poderá rolar bruscamente para níveis muito baixos. As

conurbações que primeiro superarão os vinte milhões serão a cidade de Nova York, com

as áreas densamente populosas de Nova Jersey, e o conjunto de Tóquio e Iocoama, que

já estão se aproximando dos dezesseis milhões.

Já citei a típica ineficiência operacional do sistema ferroviário Penn Central: a sociedade

proprietária daquele sistema faliu no início do verão de 1970. As causas remotas da

falência podem ser encontradas, sem dúvida, na desorganização do sistema: vagões

inteiros de mercadorias eram simplesmente perdidos, trens não podiam partir por falta

de locomotivas, não se podia constituir comboios com mais de 75 vagões para percursos

continentais, unicamente para evitar colocar no trem um outro operário encarregado dos

freios durante a travessia de Indiana, como prescrevem os regulamentos daquele Estado.

As causas próximas da falência financeira podem ser, por sua vez, identificadas com as

decisões erradas da direção. Nos últimos cinco anos, o Presidente do Conselho de

Administração da sociedade, Stuart T. Saunders, iniciou uma diversificação das

atividades sociais, investindo cerca de noventa bilhões de liras em empreendimentos

Page 29: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

imobiliários, na esperança de obter lucros percentuais que fossem pelo menos o dobro

dos conseguidos pela ferrovia e que eram de 2 a 9 por cento. Inicialmente, esta decisão

parecia genial, mas, com a contração da economia americana e os abalos de Wall Street,

as novas atividades imobiliárias levaram a fortes perdas a que se somaram as da gestão

ferroviária (35 bilhões de liras em 1969; quatrocentos milhões de liras por dia em 1970).

A falência tornou-se inevitável. Será interessante ver o que acontecerá com o

funcionamento operativo da Penn Central depois que a nova gestão tiver tempo de fazer

sua prova.

Apresentei tais fatos somente para mostrar como uma degradação de sistema pode ser

acelerada em conseqüência de mismanagement financeiro.

Em geral, as crises ocorridas no passado e, devidas a causas econômicas (como a de

1929) parecem também mais graves do que as devidas à guerra. Os sistemas

econômicos apresentam um comportamento cíclico - com período e amplitude variáveis

- e é sintomático que os que dirigem estes sistemas (governantes, financistas e

banqueiros) tenham idéias muito vagas (como qualquer outro, de resto) sobre as causas

e as maneiras como ocorrem os ciclos econômicos. No século passado, C. Juglar

pretendeu provar que os ciclos econômicos tinham um período de 7 a 9 anos; J. Kitchin

sustentava que os ciclos duravam quarenta meses de um boom a outro e N. D.

Kondratieff dizia ter constatado ciclos de 45 anos de duração. Estas interpretações de

certa regularidade nos fenômenos do passado não permitiram, contudo, prever o futuro

econômico com alguma segurança. Se estas previsões fossem possíveis, os

procedimentos corretivos das situações de inflação ou de recessão seriam perfeitamente

definidos e mais eficazes e o funcionamento das bolsas de ações não seria de tal

maneira que pudesse ser comparado a um jogo de azar.

Com efeito, a ignorância no terreno da economia e a incapacidade de governar os

sistemas econômicos são as manifestações mais notáveis e flagrantes de uma situação

mais geral: enquanto as dimensões e as complicações dos sistemas tendem a crescer

além de qualquer nível anteriormente considerado como um limite superior, a

capacidade de dirigir e governar esses sistemas - em lugar de crescer - deteriora-se e se

manifesta cada vez mais inadequada.

Os grandes sistemas se tornam cada vez mais "ingovernáveis". Ninguém sabe como

estabilizá-los e poucos procuram prever as conseqüências de sua crescente instabilidade.

Um destes poucos é o Professor Jay W. Forrester, do Massachusetts Institute of

Technology, que analisou, por meio de modelos matemáticos em computadores, o

funcionamento e os processos de desenvolvimento e de regressão de empresas, de

cidades e, mais recentemente (J. W. Forrester, World Dynamics, Wright Allen, 1971),

de todo o sistema mundial. A análise de Forrester é interessantíssima, nova e muito

profunda, e por meio dela será possível determinar a quantidade e tornar mais precisas

as previsões de repentina destruição dos grandes sistemas que estou apresentando.

Forrester escreveu que as soluções dos grandes problemas de sistemas são complicadas

e "contra-intuitivas" por causa da não-linearidade dos sistemas e do número muito alto

dos anéis de feedback que eles contêm. Sabemos que as soluções intuitivas válidas no

caso de problemas mais simples muitas vezes não são usadas: devemos acreditar,

portanto, que as novas e não óbvias soluções que permitirão governar os grandes

Page 30: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

sistemas ainda são mais remotas e longínquas e não virão em nosso socorro em um

futuro previsível.

V - A impotência elétrica

É bastante raro que as indústrias produtoras de um certo bem invistam durante dois anos

somas enormes em publicidade, com a finalidade de aumentar as vendas, para só então

perceberem, após o sucesso da campanha publicitária, que sua capacidade produtiva é

nitidamente inferior à demanda - tanto que são obrigadas a dirigir acalorados apelos aos

fregueses no sentido de que limitem voluntariamente o consumo de seus produtos.

Entretanto, isto é exatamente o que sucedeu com as sociedades norte-americanas

produtoras de energia elétrica, que até 1968 procuravam fazer aumentar o consumo de

energia, induzindo o público a usar aquecimento elétrico e ar condicionado, mas que, no

verão de 1969, pediam a todos que reduzissem o consumo, advertindo que se a

autodisciplina fosse insuficiente, seria necessário recorrer a um racionamento

obrigatório.

Neste campo, as coisas se tornam mais difíceis, porque o tempo necessário para

construir uma grande central de produção de energia elétrica, ou uma linha de alta

tensão de uns duzentos quilômetros de extensão, é de alguns anos do momento em que,

se toma a decisão até o empreendimento da nova obra, Por esta razão, é impossível aos

produtores americanos satisfazer a tempo a demanda, que eles mesmos tinham

contribuído para criar, e também por esta razão será indispensável planificar as novas

implantações a longo prazo e empregar os esforços adequados nos programas de

pesquisa e desenvolvimento. Isto, às vezes, não ocorre. Em média, as sociedades

produtoras de energia elétrica na América têm gasto nos últimos anos apenas 0,2 por

cento de sua receita, enquanto o Bell System, que é o maior concessionário norte-

americano de redes telefônicas (as quais, por seu turno, estão em situação muito crítica,

como veremos detalhadamente em um dos capítulos seguintes), gastou cerca de 1,9 por

cento de sua receita.

Em 1950, quando eu estava na universidade, ensinava-se que a necessidade de energia

elétrica nos países desenvolvidos, e na Itália em particular, dobrava cada dez anos e,

então, esta informação era bastante exata. Foi muito curioso encontrar novamente o

mesmo dado, vinte anos depois, no Business Week (número de 11 de julho de 1970,

pág. 52), apresentado como estimativa da Federal Power Commission, que avalia a

demanda de energia elétrica para 1990 igual a quatro vezes a atual (o que corresponde

exatamente ao dobro em cada dez anos). Foi ainda mais curioso ler no mesmo artigo

que "alguns técnicos predizem o dobro da demanda de energia a cada oito anos" e,

sempre no mesmo texto, que a demanda está crescendo de doze por cento ao ano - o que

corresponde ao dobro a cada seis anos, mais ou menos. Business Week é uma revista

séria, que documenta apuradamente as suas notícias, tomadas das mais informadas

fontes federais e industriais, e que já em novembro de 1969 começara a publicar

previsões sobre a crise de energia esperada para o verão de 1970. Ora, o fato de que

sejam apresentados num editorial, impassivelmente e sem comentários, dados tão

contraditórios, dá a nítida impressão do que o conhecimento da situação de base neste

campo seja muito confuso nos Estados Unidos. Esta impressão é confirmada se se notar

que a revista indica, entre as causas da crise de energia, uma grave carência de carvão

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fóssil, e cita - como dado dramático - a circunstância de que em 1969 a indústria

queimou 7,8 milhões de toneladas de carvão a mais do que foi extraído das minas

durante o mesmo ano, tanto que se teve de recorrer bastante às reservas. Este deficit de

carvão fóssil pode causar certa impressão em quem não saiba qual é a produção total

das minas americanas: se se observar, porém, que nos Estados Unidos são extraídos, em

média, dois milhões de toneladas de carvão por dia, verificar-se-á que o deficit

acumulado em um ano corresponde apenas a quatro dias de produção mineral, ou, em

outras palavras, a pouco mais de um por cento da produção anual - o que não deve ser

particularmente grave.

De resto, este sistema é tão grande e complicado que ninguém sabe exatamente como

funciona, ou melhor, porque está deixando de funcionar. Na realidade, no tocante ao

abastecimento de carvão às centrais térmicas - à parte a situação objetivamente difícil

dos minérios e dos transportes ferroviários (insuficiência do número de vagões

especiais) - parece, que um dos inconvenientes principais está na alocação irracional das

disponibilidades existentes, isto é, o carvão, quando existe, se encontra em lugares

errados. A Tennessee Valley Authority (que afirma ter reservas particularmente baixas

em comparação com as normais), no verão de 1969, teve, de improviso, que decidir a

transferência de duzentas mil toneladas de carvão da sua central de Bull Run para a

central de Kingston, por meio de caminhões, para poder manter em funcionamento a

segunda central.

Os fatos a que me referi dão um exemplo concreto do que afirmei: a crise de um sistema

(neste caso, dos transportes ferroviários) pode contribuir para agravar a crise de um

sistema diverso (neste caso, o sistema de produção de energia elétrica).

As dificuldades dos produtores de energia se somam, amplificando as dos construtores

de máquinas elétricas, os motivos mais comumente citados desta dificuldade são: falta

de pessoal especializado, baixa produtividade, indiferença dos subordinados, greves e -

no que toca a novas obras, lentidão administrativa e controvérsias jurídicas. Em 1969,

os produtores estadunidenses tinham projetado aumentar a potência instalada de 26.384

MW, mas o consumo levou a um aumento de apenas 22.470 MW, ou seja, inferior em

15 por cento ao programa.

Estes atrasos e estas desproporções tornam a situação americana muito semelhante à

italiana: esta última melhorou, enquanto a primeira deteriorou-se nitidamente. Nos anos

cinqüenta, os engenheiros eletrotécnicos italianos acreditavam ser uma fábula o fato de

que há mais de vinte anos jamais faltara força nas redes de distribuição americanas, ao

passo que na Itália os diagramas da tensão das redes apresentavam variações muito

grandes e lamentavam-se as interrupções de fornecimento a cada mês, senão a cada

semana, ou mesmo a cada dia.

Depois de 1967, começaram a registrar-se nos Estados Unidos casos mais importantes

de interrupção do serviço. Em dois anos - da metade de 1967 à metade de 1969 -

ocorreram 179 casos de interrupção que a Federal Power Commission considerou

bastante importantes para analisá-los individualmente, e oitenta deles foram devidos a

desarranjos das máquinas ou a funcionamento defeituoso de sistema.

O estado de coisas descrito acima tem andamento relativamente gradual e contribui

certamente para criar as premissas de crises mais graves e imprevistas; mas é destas que

Page 32: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

é mais interessante tratar, pois farão parte integrante da ruinosa avalancha que defini

como o surgimento da próxima Idade Média.

Depois do black-out (já citado no capítulo precedente) de 9 de novembro de 1965 na

zona Nordeste dos Estados Unidos e em Ontário, ocorreu outro em 1967, que durou dez

horas, nos Estados de Pensilvânia, Nova Jersey e Maryland. Em 1966, na zona de Saint

Louis, a demanda de energia para os aparelhos de ar condicionado, durante uma onda de

calor no verão, obrigou a Union Electric Company a racionar a distribuição de energia à

cidade durante alguns dias. Em fevereiro de 1971, Nova York ficou novamente no

escuro durante quatro horas.

Aquilo que interessa mais, do ponto de vista sistêmico, é observar quais as decisões, os

planificações e os remédios sugeridos ou adotados para evitar a repetição dos black-outs

totais citados. Com este objetivo, merecem ser examinados, em detalhes, as conclusões

da Federal Power Commission, que redigiu um relatório em três volumes, dedicado à

planificação coordenada e ao funcionamento das grandes produções de energia, a fim de

assegurar a máxima confiança e para evitar futuras ocorrências de desarranjos em série

e de interrupções do serviço em escala regional ou nacional.

Charles Concordia, da General Electric - que é, talvez, o mais competente especialista

contemporâneo no tocante aos problemas da estabilidade e confiança das grandes redes

elétricas -, escreveu ("Considerations in Planning for Reliable Electric Service", IEEE

Spectrum, agosto de 1968) que, para obter um nível de segurança satisfatório, não há

necessidade de mudanças revolucionárias, mas basta apenas aplicar princípios salutares

de projeto, planificação e exercício. Neste ponto, um pessimista poderia dizer que a

normal aplicação destes princípios salutares já constitui uma mudança revolucionária;

mas, discutir as definições seria menos instrutivo do que um exame das sugestões

concretas apresentadas por Concordia (que ele modestamente define como muito

óbvias) e um confronto entre estas sugestões e os resultados do citado relatório da

Federal Power Commission.

Concordia sublinha corretamente que a maior parte das interrupções de fornecimento de

energia elétrica são causadas pelas redes periféricas de distribuição e não pelos grandes

sistemas de geração e transmissão. Contudo, as interrupções que dependem destes

últimos têm conseqüências muito maiores e, sobretudo, podem causar vastas crises

secundárias de sistemas separados de comunicações, de transporte, de defesa, de higiene

pública, etc., e merecem, por isto, uma atenção especial. Se consideramos aceitável uma

interrupção do serviço uma vez a cada cinco anos, por causas devidas às redes de

distribuição, é razoável aceitar que as interrupções devidas aos sistemas de produção e

transmissão ocorrem dez vezes menos freqüentemente, ou seja, uma vez a cada

cinqüenta anos (com duração média de interrupção igual a uma hora). Para obter isto,

Concordia propõe três ordens de providências:

1. Os sistemas de produção e transmissão de energia devem ser projetados de modo que

para cada futuro encargo previsto, a capacidade de produção e de transmissão esteja

sempre pronta a impedir que qualquer incidente precipite condições para a ocorrência de

um segundo. Por exemplo: se um alternador entra em pane, a energia que ele transmitia

à rede antes do desarranjo é repartida entre as outras centrais, que continuam

funcionando, o que pode contribuir para evitar condições de sobrecarga em outros

alternadores que, por sua vez, podem ser postos fora de funcionamento pela ação de

Page 33: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

aparelhos automáticos de segurança. Este tipo de desarranjo "em cascata" pode

propagar-se em tempos brevíssimos e até anular inteiramente a energia gerada por um

grande sistema, sem que os operadores se dêem conta do que está acontecendo, e sem

que possam intervir manualmente para dirigir a situação e melhorá-la. No caso do

black-out do Nordeste da América do Norte, em novembro de 1965, a reação inteira em

cadeia se concluiu em quatro segundos, a partir do instante em que um interruptor em

pane cortou, repentinamente, uma das linhas de 230 kV, que emitia na rede a energia da

Central Sir Adam Beck nº 2, próximo à Catarata de Niágara.

2. Os sistemas de produção e transmissão devem funcionar dentro de limites tais que

assegurem reservas de capacidade suficientes para evitar os desarranjos em cascata. Este

segundo principio permite descontar a margem de erros da capacidade existente

segundo os projetos e se refere ao modo como os sistemas possam ser utilizados.

O aumento das linhas elétricas de interconexão é, genericamente, uma coisa boa, porque

permite distribuir a demanda de vastas áreas de maneira mais equilibrada entre um

número maior de centrais de produção. Porém, a complexidade do sistema que obtém o

aumento das interconexões pode tornar mais difícil - e até mesmo impossível - uma

eficiente vigilância automática do sistema. As margens de segurança não devem, por

isto mesmo, ser aumentadas indiscriminadamente, mas calculadamente balanceadas

com a necessidade de dispor continuamente de informações significativas que permitam

intervenções automáticas, simples e eficazes.

3. Se se prescindir das margens de segurança no projeto e depois na realidade, pode

sempre acontecer que ocorram condições críticas, seja pela concomitância de eventos de

baixa probabilidade, seja, mais simplesmente, por incúria ou por erros humanos. É

preciso, portanto, dispor e prever disposições finais de emergência que possam

minimizar a importância e a duração das interrupções de serviço. Para evitar crises de

dimensões muito relevantes, o melhor jeito é o de isolar parcelas de carga elétrica

predeterminadas geralmente usadas para rebaixamento de freqüência: algumas

subsidiárias serão prejudicadas, mas a integridade do sistema, no seu complexo, será

conservada.

As sugestões de Concordia estão também no relatório da Federal Power Commission e

o próprio autor o cita favoravelmente. O volumoso relatório contém, porém, muito mais

e é interessante examinar a importância relativa atribuída às várias questões.

As conclusões e as recomendações da comissão são subdivididas em 34 subseções ao

longo de nove capítulos.

O primeiro capítulo, com três subseções, se refere à formação de organizações de

coordenação. O segundo capítulo, com onze subseções, trata da planificação dos

sistemas interconexos. O terceiro capítulo, com nove subseções, se ocupa do exercício

dos sistemas interconexos. o quarto capítulo, com três subseções, prescreve normas para

a manutenção dos sistemas interconexos. O quinto capitulo, com uma subseção, indica o

desejo da definição de critérios standard unificados para o projeto, construção, exercício

e manutenção dos sistemas de produção e transmissão de energia. O sexto capítulo, com

três subseções, sugere providências de emergência. no intuito de assegurar a

continuidade de funcionamento dos sistemas de defesa e de outros sistemas críticos. O

sétimo capitulo, com duas subseções, estabelece a responsabilidade dos construtores,

Page 34: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

especialmente no que trata das provas e experiências dos aparelhos. O oitavo capitulo,

com uma subseção, invoca uma melhoria da educação profissional necessária para

produzir em maior número técnicos e engenheiros de bom nível. O nono capítulo, com

uma subseção, propõe trocas de informações técnicas com países estrangeiros que estão

enfrentando problemas semelhantes de projeto e de uso.

A estrutura do relatório é claramente racional, mas é inquietante observar que cinco das

subseções citadas têm o objetivo de sugerir a instituição de comissões, ou melhor, de

organizações que se ocupem, na verdade, mais de escrever outros relatórios do que

qualquer outra coisa. E que há familiaridade entre as inspeções e reuniões dos técnicos e

sua inutilidade, na maioria dos casos apenas vacilantes.

Seis das subseções do relatório propõem incrementos das dimensões dos sistemas e, de

novo, dão a antipática impressão de que as questões de racionalização tenham recebido

menos atenção do que as atinentes ao aumento indiscriminado das reservas e da

capacidade instalada. Os desenvolvimentos pouco dirigidos nesta direção são mesmo

aqueles que conduzem a situações críticas de instabilidade e de insubmissão.

Finalmente, oito subseções são concernentes às providências de emergência para

minimizar a gravidade das conseqüências dos black-outs que não podem ser evitados,

malgrado as precauções citadas. Seria, talvez, muito pessimista sustentar que a atenção

dedicada às providências de emergência é excessiva e denota uma desconfiança de base

no sucesso das medidas sistemáticas voltadas para assegurar a continuidade do uso. Que

a preparação para as emergências seja ainda hoje insuficiente está claramente

demonstrado pelo fato de que, durante a grande interrupção de 1965, ocorreram graves

danos aos turboalternadores das centrais térmicas, porque as bombas de lubrificação de

seus grandes tampões ficaram sem alimentação - e isto foi suficiente para produzir

paradas dos êmbolos e tais desgastes que puseram fora de uso os grupos por alguns

meses, simplesmente pela falta de lubrificação durante a transitória parada das contrais.

A Federal Power Commission sublinha a necessidade, que, contudo, deve ser

descontada, de prever alimentações de emergência - além dos serviços auxiliares das

centrais (lubrificação, iluminação e comunicações) - também para: aeroportos,

telecomunicações em geral, defesa militar e civil, repartições governamentais, sistemas

de transporte de massas, comunicações e controles relativos às missões espaciais,

serviços hospitalares e ferrovias metropolitanas.

Uma situação crítica parecida com a americana existe no Japão, onde o consumo de

energia elétrica dobra a cada cinco anos e as linhas de transporte de energia, antiquadas

e inadequadas, são particularmente pouco seguras e caracterizam-se por um rendimento

muito baixo.

É difícil profetizar se as melhorias sistemáticas da produção e da transmissão de

energia, estudadas em muitos paises, terão sucesso ou não. Minha previsão pessoal é

bastante pessimista.

Um fator negativo posterior pode ser o das ações de sabotagem e da não-colaboração ao

autocontrole do consumo por parte de grupos de contestadores. Se os sistemas fossem

mais sólidos, não valeria nem a pena citar estes tipos de fatores marginais. Entretanto,

Page 35: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

dentro de pouco anos, também esses poderão produzir efeitos não desprezíveis e talvez

representar a gota d'água que falta para entornar o copo.

VI - Congestionamento urbano e

paralisações dos transportes

Numa quarta-feira de junho de 1953 as ruas do centro de Roma eram percorridas por

automóveis de todos os tipos. Eram pulIman de turistas e velhos caminhões. Eram autos

de antes da guerra e pequenas jardineiras Fiat. Eram aqueles que ostentavam a sua nova

Millecento - finalmente modernizada na carroceria - ou a sua luzidia Appia recém-

comprada. Se bem que, naquele tempo, o número de licenças de automóveis, em Roma,

ainda não tivesse chegado a duzentos mil, a capacidade de transporte das vias do centro

histórico foi superada pelo volume, porque a disciplina do tráfego era, então, mais

casual e caótica do que a atual. E ocorreu um dos primeiros e maiores

congestionamentos de tráfego.

Na Via Nazionale se andava mui lentamente. A Via Quattro Fontane estava

completamente bloqueada. No Corso, a distancia entre os pára-choques era de poucos

centímetros. Os veículos que se achavam na Praça do Tritão ficaram imobilizados mais

de uma hora. Depois de meia hora que a sua poeirenta camioneta estava parada no

mesmo lugar na Via Sistina, os componentes de uma banda municipal provinciana, de

visita, começaram a tocar uma marcha. Subitamente, quase todos os automobilistas que

estavam engarrafados começaram a acompanhar a música com suas buzinas. O ritmo se

difundiu numa área muito grande da cidade, e foi seguido também por aqueles que

estavam muito distantes para ouvir a música da banda. Os pedestres sorriam. Os que

estavam nos carros não diziam palavrões e não estavam irritados pela perda de tempo

inesperada. Havia uma atmosfera de festa injustificada, induzida pela satisfação de que

também a Itália atingira um nível de motorização tal que já permitia esses

engarrafamentos e aquelas "marmeladas de automóveis", das quais até então só se tinha

conhecimento pelos relatos horripilantes e pesarosos elas páginas da Seleções do

Reader's Digest. O bloqueio do tráfego urbano por breve tempo não foi uma maldição,

um aborrecimento, mas um sinal de distinção, um símbolo de status.

Hoje, o tráfego congestionado é reconhecido por todos como lima praga - pelo tempo

que se perde, pelo stress que provoca, pela poluição que gera, pela paisagem que

deturpa - mas, estranhamente, a maioria atribui a este mal características de

inelutabilidade e impersonalidade, como se se tratasse de uma força da natureza

pertencente à mesma categoria do mau tempo. Por outro lado, os eventos ocorridos nos

últimos vinte anos não eram muito difíceis de prever, nem seria muito mais difícil

prescrever remédios apropriados. Isto não foi feito e - por exemplo, em Roma e em

Nova York - tomou-se implícita e cegamente a decisão de se destinar as vias urbanas

muito mais para conter veículos parados do que para fazer com que autos em

movimento circulassem por elas. Não é difícil fixar um rápido cálculo para determinar

qual o custo do emprego de uma parte de rua de cidade considerada como garagem:

somando-se os custos de pavimentação e manutenção, e acrescentando-se a isso o lucro

cessante devido à impossibilidade de fazer fluir por esta parte, ocupada por carros

estacionados, uma corrente de tráfego, temos como resultado que, o custo de um lugar

ocupado por um automóvel no asfalto da rua equivale hoje, em média, à imobilização de

Page 36: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

um capital de setenta milhões de liras. Tal investimento é claramente desproporcional às

vantagens que se logrará: além disso, deve-se notar que em tais cálculos não entra quem

utiliza tais vantagens.

A lista das coisas que foram deixadas de lado e que aconteceram depois, sem que fosse

tomada qualquer decisão consciente e de peso para prescrever providências ou para que

se alcançasse uma situação aceitável, é muito longa, e todas as escolhas são implícitas e

não evitaram os males contemporâneos. O número dos automóveis em circulação dobra,

na Itália, a cada quatro anos, e nos Estados Unidos da América, que está mais próximo

da saturação, a cerca de cada quinze anos, mas enquanto os parques de veículos se

agigantavam, os planificadores ficavam esperando que, de algum modo, tudo acabaria

bem melhor. Em Roma se falou muito do metropolitano, porém foram ridiculamente

lentas e ineficazes as atividades de projeto e, de construção para recuperar o atraso de

quase meio século em comparação com outras capitais européias. Nos Estados Unidos

da América, durante cerca de sessenta anos, não se projetou nem construiu nenhum

novo sistema de trânsito urbano de massas: o primeiro, após este longuíssimo lapso de

tempo, é o BART (Bay Area Rapid Transit; System), projetado para São Francisco e

para a área da baía circunvizinha, de 1951 a 1967, e que se, espera entrará em serviço,

pelo menos em parte, em 1971.

Nos Estados Unidos, a taxa de crescimento anual do número de veículos em circulação

continua a diminuir e esta será uma circunstância favorável, especialmente, se

comparada com outro fator, o de que nos EUA as auto-estradas interurbanas e urbanas

desenvolveram-se de maneira excepcional. Mas, neste ponto, cabem duas observações.

A primeira e que a relação custo/benefício relativa a uma nova auto-estrada norte-

americana parece sensivelmente mais desfavorável do que a relativa à extensão e

melhoramento dos sistemas de transporte coletivo, onde a decisão de incrementar as

auto-estradas, além de certos limites, não parece a mais razoável. A segunda

consideração é que os sistemas de auto-estradas, muito complexos e ricos de percursos

paralelos, conexões e entroncamentos, tornam-se dificilmente usaveis por quem não os

conheça perfeitamente, malgrado os esforços de tornar a sinalização a mais fácil

possível. Sabemos muito bem, na Itália, que se nos enganarmos numa saída da Auto-

Estrada do Sol, alongaremos nosso percurso total em algumas dezenas de quilômetros.

Entretanto, na auto-estrada do Sol o problema é simples: trata-se de recordar o nome de

uma estação ou a sua distância progressiva e prestar atenção suficiente para identificar

um ponto sobre uma linha reta. Nos Estados Unidos, por sua vez, para seguir

corretamente certo percurso de distância média nas proximidades de uma grande cidade,

exige-se a memorização de posições de uma dúzia de pontos de desvios e um único erro

pode dobrar ou triplicar o percurso projetado.

Para ajudar os automobilistas americanos, o Department of Transportation concebeu um

sistema de instrumentos do futuro: o ERGS (Electronic Route Guidance System ou

sistema eletrônico de guia de escolha de percursos). No sistema ERGS, o veículo leva a

bordo um aparelho transmissor automático, no qual, no início de cada viagem, o

motorista impõe manualmente o código convencional da localidade para a qual se

dirige. O veículo transmite automática e continuamente o código de seu destino e,

quando passa sobre uma espiral colocada em cima da pavimentação da estrada, o código

é transmitido e enviado a um computador central em tempo real, o qual - enquanto o

veículo ainda está transitando sobre a espiral - determina qual deva ser a próxima

manobra do carro e retransmite, através da espiral, para o receptor de bordo, um sinal

Page 37: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

que acende um indicador direcional luminoso. O motorista é, assim, informado acerca

da manobra a realizar na próxima bifurcação: seguir em frente, tomar a direita ou a

esquerda, e sendo guiado em cada um dos pontos de escolha que encontra pode atingir

sem problemas seu destino.

O custo do sistema ERGS é muito alto: supondo-se que possa ser produzido em série,

somente o transmissor de bordo custará algumas dezenas de milhares de liras. O

Department of Transportation decidira experimentar um sistema reduzido a algumas

centenas de bifurcações e desvios e para poucas dezenas de veículos, mas,

recentemente, também a realização do sistema reduzido foi adiada indefinidamente por

falta de fundos.

O problema não seria tão grave, se fosse apenas a falta de dinheiro que retardasse ou

bloqueasse as inovações futurísticas. Grave também é a falta de dinheiro para os

trabalhadores e os sistemas mais corriqueiros ("de manual"). E não me refiro aqui a

casos singulares e excepcionais, como o da cidade de Turim (onde há 35 anos não se

constrói nenhuma passagem subterrânea), mas à situação insatisfatória de cada

metrópole.

Já desde a Primeira Guerra Mundial, os congestionamentos do tráfego nos Estados

Unidos da América tinham tomado proporções preocupantes e as esperas nos

cruzamentos já se tornavam muito longas. Para diminuir esta perda de tempo, Harry

Haw inventou, em 1927, os sistemas semafóricos comandados, a tempos variáveis, pelo

próprio tráfego, e começou a instalá-los no Connecticut.

Os semáforos que comandam o tráfego contam automaticamente, por meio do

elementos sensíveis chamados roladores, o número de veículos que surgem num

cruzamento, de cada via do tráfego, e alongam ou diminuem o tempo do sinal verde

destinado a cada fluxo, proporcionalmente à sua importância numérica. Quando, numa

via que leva a um cruzamento, não aparecem veículos, o sinal verde não surge para este

fluxo, o que constitui uma vantagem para as outras correntes do tráfego que não são

paradas inutilmente, como acontecia com os semáforos de tempo fixo. As vantagens

conseguidas com os semáforos que comandam o tráfego são intuitivamente óbvias e

também estão documentadas em estudos teóricos e de relevantes usos comparativos.

Não obstante tudo isso, os semáforos que dirigem o tráfego somente começaram a ser

usados na Itália em 1962, ou seja, com 35 anos de atraso. E a culpa deste retardo, e da

lentidão com que estes sistemas modernos se difundiram na Itália, pode ser atribuída à

divergência tecnológica. Por seu turno, na própria América, onde foram inventados, os

semáforos que comandam o tráfego são empregados, ainda hoje, em pouco mais de

trinta por cento dos casos. Por fidelidade à tradição, e por cálculos errados de economia,

dois terços dos novos semáforos que se instalam todos os anos nos Estados Unidos

ainda são controlados por aparelhos de tempo fixo. E este é apenas um exemplo de

como são tolamente rejeitadas vantagens sensíveis (avaliadas aproximadamente entre 10

e 30 por cento de diminuição dos tempos de percurso médio), que se poderiam obter

com meios simples e seguros e com uma relação custo/beneficio muito favorável.

No campo do tráfego urbano de veículos, quase todos aqueles que vivem na cidade,

particularmente se dirigem automóvel há certo tempo, possuem curiosas e práticas

sugestões e soluções finais gratuitas para todos os problemas que afligem a cidade, e

especialmente para os problemas relativos ao congestionamento. Estas soluções são,

Page 38: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

muitas vezes, acatadas somente porque aquele que a propõe tem uma posição

importante e provoca, deste modo, decisões forçosamente adotadas. Já vimos que uma

decisão muito importante a de utilizar as ruas para conter veículos parados, em lugar de

usá-las para veículos que andam - é tomada quase sempre do modo tácito, implícito,

passivo. Outras soluções mais radicais - e, entretanto, pouco divulgadas - são

apresentadas e repetidas tão freqüentemente de modo a conservar o que, em muitos

casos, será aplicado, na prática, com força de lei. Estas soluções possuem em comum

uma redução dos níveis de serviço, ou melhor, um racionamento obrigatório da

capacidade de serviço existente, que deveria atingir o objetivo de tornar aceitáveis as

condições de tráfego - pelo menos para os poucos que ficam em circulação.

A interdição total dos centros urbanos para os veículos individuais e Particulares é

identificada freqüentemente, com a solução final do problema. Com efeito, isto equivale

a uma redução das dimensões do problema, pelo menos em uma ordem de grandeza, na

hipótese de que nenhum outro procedimento sistemático possa servir para dirigir os

sistemas existentes, dada a sua atual situação, e tendo em vista as tendências atuais do

desenvolvimento posterior. Em inglês se diz que esta solução equivale a "Jogar fora a

criança junto com a água do banho". Poder-se-ão esperar resultados semelhantes com a

proibição de construir novas viaturas ou sujeitando a produção automobilística a cotas-

limite. Mas estas soluções alternativas não são apresentadas por ninguém, talvez por seu

absurdo, ou pelo suposto ou real poder dos produtores de automóveis.

Por outro lado, ainda se aplicam com certo sucesso, proibições de estacionamento em

áreas urbanas centrais, durante algumas horas cruciais do dia. Estes procedimentos

confirmam que um dos maiores fatores de congestionamento urbano é a presença de

muitos veículos parados nas ruas. É, entretanto, errada a solução de eliminar

indiscriminadamente estes veículos parados, em lugar de construir estacionamentos fora

das vias de circulação. Em Madri, Paris, Londres e em muitas cidades alemãs e suíças, a

construção de numerosos estacionamentos subterrâneos serviu para dar fluidez ao

tráfego nas vias urbanas sem tolher brutalmente a circulação da maioria dos usuários

particulares. Não é verdadeira a afirmação do que os novos estacionamentos fora das

ruas agravam os problemas existentes por um aumento de demanda, devido à sua

disponibilidade: as vantagens que se obtêm liberando as ruas são maiores do que as

presumidas desvantagens pelo aumento do número de veículos. Em conclusão,

consegue-se, deste modo, oferecer um serviço melhor - um maior número de usuários.

Mas, a finalidade das considerações precedentes é apenas de demonstrar,

incidentalmente, que, para o tráfego de veículos, existem soluções sistemáticas vitais.

Mais relevante é a constatação de que, atualmente, os sistemas de transporte urbano não

são otimistas, mas criados de modo casual e esta sua tendência de desenvolvimento

continua a prevalecer, não havendo nenhum sintoma de uma iminente administração

mais racional das vias de comunicação das cidades. Em quase todos os grandes centros

urbanos, a engenharia de sistemas não tem vez: todas as decisões são tornadas, na

esperança de que seja criado um número mínimo de oposições a curto prazo, e esta não

é a única justificativa.

A ignorância dos termos numéricos do problema é evidente também nas expressões

mais banais da vontade dos legisladores. Por exemplo, a proibição de estacionamento

em fila dupla - contravenção algumas vezes chamada de "obstrução da circulação" -

vale, quase sempre, na Itália, uma multa de três mil liras. Mas este valor de multa não

Page 39: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

leva em conta e não compensa o fato de que um veículo que faz fila dupla, obstruindo

uma pista de tráfego, causa prejuízos muito maiores aos outros usuários da via de

circulação que, em média nas grandes metrópoles, gastam de dez a trinta mil liras Por

hora. Esta circunstância, obviamente, não pesa em nada se considerarmos que o

aumento da multa para trinta mil liras seria muito impopular.

Ao nível da estruturação dos sistemas de controle do tráfego, a ignorância não é menor.

Os jornalistas ridicularizam a proliferação indiscriminada dos semáforos nas cidades

italianas e contribuem para manter situações em que, por falta de controle, criam-se

engarrafamentos em cruzamentos a que convergem apenas uma dezena de automóveis

Afirma-se nos Estados Unidos que o número mais apropriado de cruzamentos

sinalizados em uma área urbana seja dado, aproximadamente, dividindo-se por mil o

número de habitantes naquela área. Na Europa, e na Itália em particular, os índices de

sinalização são muito mais baixos e num nível tecnológico muito mais atrasado, que

garante a segurança se o tráfego é escasso mas se torna inadequado para permitir um

fluxo ordenado, veloz e sem perda de tempo, se o tráfego é intenso. Citemos alguns

dados de 1970: Turim: um cruzamento sinalizado para cada 4.500 habitantes Milão: um

cruzamento sinalizado para cada 6.300 habitantes Gênova: um cruzamento sinalizado

para cada 6.950 habitantes Roma: um cruzamento sinalizado para cada 7.000 habitantes

Paris: um cruzamento sinalizado para cada 9.500 habitantes

Acontece, porém, estranhamente, que esta grave falta de racionalização não exerce seu

influxo deletério com a continuidade e com as tristes conseqüências que poderiam ser

esperadas. Todos já lemos algumas dezenas de artigos de jornais que anunciam: "A

Cidade Explode" - "O Fluxo de Aço se Congela nas Ruas da Cidade" - "O Tráfego

Automobilístico na Cidade É Mais Lento do que as Carroças de Cavalos". Na grande

maioria dos dias do ano, atravessar nossas cidades requer, hoje, quase exatamente o

mesmo tempo requerido há dez anos atrás, quando o número de automóveis era muito

inferior (na Itália cerca de um quarto do número atual).

Devido à falta total de regulamentação racional e de predisposição de alternativas, nos

últimos anos, os que se utilizam de uma via de tráfego encontram-se totalmente

abandonados a si mesmos, e reagem do único modo possível, impondo-se uma

autodisciplina limitativa. Um número crescente de pessoas tem-se recusado a empregar

tempos maiores do que um certo limite para o percurso de seus itinerários habituais e

limitam, voluntariamente, o uso do automóvel aos dias de festas. Para diminuir seus

tempos de deslocamento nos dias úteis, mudaram de casa, aproximando-se mais do

local de trabalho, transformaram seus próprios horários habituais, passaram a utilizar-se

dos transportes coletivos ou passaram a deslocar-se a pé: alguns passaram a utilizar-se

de bicicletas ou de motonetas. Por conseguinte, o volume de tráfego efetivo nos centros

urbanos, nos dias úteis, é pouco diferente do de cinco ou dez anos atrás, e em cerca de

35 minutos pode-se percorrer dez ou doze quilômetros ao centro de Roma, Milão,

Turim ou Paris - salvo exceções. O sintoma que causa mais preocupação é, porém, que

as exceções se tornam cada vez mais freqüentes. Há dez anos atrás, poderia ocorrer uma

vez em cada seis meses que se levasse, num determinado percurso, um tempo duas

vezes maior do que o normal. Há cinco anos atrás, o mesmo evento ocorria uma vez por

mês e agora acontece uma vez a cada duas semanas, ao passo que uma vez a cada seis

meses se verifica que se leva mais de três horas para se andar quatro ou cinco

quilômetros na cidade.

Page 40: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Cada vez que algumas dezenas ou algumas centenas de milhares de pessoas sofrem

atrasos superiores a uma hora em seus percursos habituais, suas reações de

aborrecimento ou de medo são muito grandes. Nos dias seguintes ao do engarrafamento

de tráfego, de dimensões muito grandes, vêem-se em tráfego pouquíssimos autos e os

tempos de trânsito diminuem bruscamente a valores trinta ou quarenta por cento

inferiores aos normais. Depois, gradualmente, a lembrança do choque se atenua e, em

cerca de uma semana, o volume de tráfego torna a crescer e com isto se alongam os

tempos de percurso. Sobre o altiplano quase horizontal que representa os tempos de

trânsito normal, encontram-se, cada vez mais freqüentemente, picos correspondentes a

tempos de trânsito anormalmente longos: a altura destes picos torna-se maior com o

passar dos anos. Cada pico é seguido por um vale dos tempos de trajeto menor -

correspondente ao aparecimento em cena dos muitos automobilistas em estado de

choque - que tem a primeira parede de inclinação muito acentuada e que sobe depois, de

modo mais suave, até alcançar de novo o planalto.

Não é difícil entender por que as coisas acontecem deste modo. O efeito da lenta

autolimitação - a longo prazo no emprego dos veículos particulares e o de fazer

aumentar continuamente o número dos automobilistas que devem entrar em circulação

quase ao mesmo tempo, mas que, com efeito, permanecem parados a maior parte do

tempo. Nenhuma lei, nenhuma autoridade dirige a inércia ou o movimento desta loja -

muito grande - de veículos quase sempre inúteis. Seu grande número e a absoluta

arbitrariedade de seus proprietários tornam o fenômeno totalmente casual. Quanto mais

crescem as dimensões deste autoestacionamento potencial, mais cresce a probabilidade

de que, imprevisivelmente, em um dia qualquer, numa via de tráfego haja tantos carros

que provoquem um grande engarrafamento. Este aumento de probabilidade se manifesta

com um aumento da freqüência dos grandes engarrafamentos e com um aumento de sua

gravidade.

Este tipo de fenômeno é fortemente influenciado pela experiência dos homens que

concorrem para que ele surja. Também num país de motorização antiga, como os

Estados Unidos da América, há vinte anos - quando o parque automobilístico norte-

americano não atingira ainda cinqüenta milhões de veículos - ocorreram

congestionamentos que duraram dois ou três dias, tendo os helicópteros da polícia

levado alimentos para as crianças das famílias bloqueadas. Hoje, quando há na América

cerca de cem milhões de autos, congestionamentos tão graves não ocorrem - não tanto

porque há mais auto-estradas, mas porque grande maioria dos usuários aprendeu a evitar

aqueles riscos.

Na Itália, nunca ocorreram bloqueios tão graves, e a unidade de medida do tempo de

congestionamento é ainda a hora e não o dia. Seja na Europa, seja nos Estados Unidos,

porém, está-se criando uma injustificada e implícita confiança de que o

congestionamento urbano e nas estradas não é uma tragédia, mas apenas um

aborrecimento. E esta confiança, aliada ao aumento ininterrupto de número de veículos

em disposição, está preparando engarrafamentos monstruosos, que poderão ocorrer sem

nenhuma razão particular, excetuando-se acontecimentos incidentais de um dia de

chuva ou de greve dos meios de transporte público, quando muitos automobilistas

querem sair todos juntos para a rua. Neste momento, cada quilômetro de via urbana

conterá duzentos automóveis e sua velocidade será rigorosamente nula. os cruzamentos

e as praças ficarão inextricáveis e muitos abandonarão seus inúteis carros parados,

fechando-os à chave para manifestar a própria vã irritação. O bloqueio do tráfego durará

Page 41: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

muitos dias; talvez semanas. O terrível emaranhado poderá ser partido nas suas orlas por

poucos guindastes ou pelos esforços de raros voluntários. A volta à normalidade será

lentíssima.

Esta catástrofe poderá ocorrer a qualquer momento e as suas conseqüências secundárias

serão: impossibilidade de locomoção para os bombeiros, para os médicos e para a

polícia e, sobretudo, impossibilidade de transportar e distribuir alimentos a grande

número de pessoas. Devem-se levar em conta também os efeitos das descargas de gás

de centenas de milhares de autos parados com os motores ligados, durante as horas em

que ainda não se perdeu a esperança de voltar para casa pelas próprias rodas.

Os eventos que descrevi bem poderão ser o elemento desencadeador da hecatombe que

assinalará o início das mais graves degradações que conduzirão à Idade Média e à morte

das metrópoles, os fenômenos de congestionamento - do tipo mais usual e menos grave

do que o dos exterminadores acima acenados - podem ser descritos, estudados e

previstos por meio de expressões matemáticas. As mesmas relações matemáticas se

aplicam, por exemplo, ao congestionamento das conversações e das demandas de,

serviço nas linhas telefônicas. Examinei primeiramente o congestionamento do tráfego

de veículos porque é muito mais perigoso do que o telefônico. Por outro lado, quem

inicia a discagem de um número de telefone e não chega a completá-lo, pode facilmente

sair do sistema simplesmente repondo o fone. Quem, entretanto, se encontra num

engarrafamento de trânsito dentro das toneladas de aço de seu auto, o máximo que pode

fazer é abandonar sua viatura e seguir a pé, mas não conseguirá, com meios simples,

sair da confusão em que se encontra. Também a interferência indébita no caso dos

telefones pode ser aborrecida e indiscreta se as duas conversações são transmitidas na

mesma linha. No caso da circulação de veículos, contudo, se dois autos tentarem

ocupar, simultaneamente, a mesma posição no espaço, é claro que sofrerão deformações

permanentes e eventualmente também poderão sofrer deformações permanentes ou

ferimentos os ocupantes dessas viaturas.

As coisas se agravam ainda mais se considerarmos o tráfego aéreo. Os aviões não

somente não podem ser tirados de um espaço congestionado com meios simples e de

modo instantâneo, como também não podem ficar indefinidamente na situação de

congestionamento no ar: se não conseguirem aterrar antes do término de sua autonomia

de vôo, cairão por terra. Esta eventualidade, porém, pode ser obviamente evitada, uma

vez que não há noticia, até agora, de que um avião tenha caído por falta de combustível,

depois de ter retardado a aterragem, em virtude do congestionamento dos corredores

aéreos. Os controladores do tráfego aéreo mantêm sempre amplos coeficientes de,

segurança, e preferem não dar ordem de partida aos aviões que podem superlotar, de

maneira inadmissível, o espaço sobre o aeroporto de chegada. Para manter estas

situações de segurança tem acontecido, contudo, que os aeroplanos mantidos no solo

com os reatores acesos, à espera da partida, consomem todo o combustível e têm de

voltar a reabastecer-se para depois se colocaram de novo na fila a fim de aguardar a

liberação da pista de decolagem.

O congestionamento dos aviões ocorre ou nos espaços aéreos, ou mais propriamente nos

corredores aéreos preparados para os diversos percursos, ou em terra: nas pistas de

decolagem e de aterragem, nas pistas de interconexão e de distribuição e nos

estacionamentos terminais. No entanto, o congestionamento dos aviões em vôo tem

relação direta com os sistemas de controle que funcionam próximos de seus limites

Page 42: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

máximos e que, por isso mesmo, tornam mais inseguras as condições de vôo, como é

demonstrado pelo crescente número de near miss, ou colisões em vôo evitadas por um

fio. O congestionamento do espaço aéreo implica também em enormes atrasos nas

aterragens, pois é necessário separar a tempo os aviões que os sistemas de controle só

conseguem separar insuficientemente no espaço.

O congestionamento em terra, nos aeroportos, aumenta os atrasos sofridos antes das

aterragens, também já retardadas por causa da espera nas pistas: por seu turno, cada

aeroplano só lentamente se consegue livrar das intrincadas e desordenadas correntes de

tráfego nas pistas e nos estacionamentos. O problema é tão sério que a Port of New

York Authority, em junho de 1970, destinou quatrocentos mil dólares ao projeto do

sistema STRACS (Surface Traffic Control System, ou sistema de controle do tráfego na

superfície), que será desenvolvido pelo Transportation Systems Center da LFE

Corporation. O sistema STRACS registrará, por meio de reveladores, a presença e a

passagem de aviões pelos aeroportos e poderá segui-los e controlar-lhes o percurso,

parando-os mediante sinais luminosos, antes dos pontos de: intercessão, com a trajetória

de outros aeroplanos em terra, ou de veículos de serviço, ou de emergência, e dirigindo

a prioridade de passagem de modo a minimizar os tempos totais de trânsito. Em outras

palavras: também para os aviões em terra são necessários semáforos.

Não menos necessários são os controles dos aviões em vôo, e já está sendo empregado

em certa escala o sistema ARTS (Automated Radar Terminal System ou Sistema

Automático de Radar de Aeroportos), que permite aos controladores do tráfego

identificar as manchas luminosas de qualquer avião na tela (porque são

automaticamente associadas a indicação luminosa do número de vôo) e calcular também

a que altitude se encontram os aparelhos (também está indicada explicitamente na tela,

em números).

Mas, os sistemas automáticos de controle não podem remediar indefinidamente o

equilíbrio entre o crescimento contínuo do tráfego aéreo e das dimensões dos aviões, e a

falta de aeroportos e de estruturas aeroportuárias. Nos Estados Unidos, calcula-se que,

de 1970 a 1980, será necessário construir mais de oitocentos novos aeroportos com uma

despesa de cerca de um bilhão de dólares. Será necessário também ampliar os

aeroportos existentes - mas não é difícil prever que tanto as novas construções quanto os

melhoramentos das estruturas atuais serão levados a cabo lentamente e já chegam muito

tarde.

J. H. Shaffer, Administrador da Federal Aviation Agency, afirmou brutalmente que de

1970 a 1980 o caos nos aeroportos e nos sistemas de transporte aéreo será inevitável,

porque o tempo técnico necessário para modificar de modo sensível a situação existente

é da ordem de decênio. Neste ponto, deve-se observar que, por mais pessimista que

pareça uma previsão a médio ou longo prazo, feita por um administrador, na maioria

dos casos os fatos se encarregam de demonstrar que a tal previsão era até muito

otimista, no fim de tudo. No caso dos transportes aéreos, uma posterior agravante é

representada pelo fato de que os aviões se tornam cada vez mais barulhentos: os

aparelhos a jato são mais barulhentos do que, os de hélice, e os supersônicos comerciais

serão ainda mais barulhentos do que os atuais a jato. Por conseguinte, os habitantes das

zonas onde serão projetados novos aeroportos, ou aquelas que compreendem

ampliações dos aeroportos existentes, opor-se-ão a estas novas obras para salvaguardar

Page 43: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

a relativa quietude de suas casas e conseguirão, senão impedir, pelo menos retardar o

início dos trabalhos.

Como em tantos outros casos, as vantagens a breve prazo das novas invenções técnicas

e das novas máquinas - neste caso, os aeroplanos - não apresentam problemas maiores

no período inicial de disponibilidade; quando, porém, estas inovações são usadas por

um número de pessoas que cresce exponencialmente, a dificuldade congestiva a médio e

longo prazo se faz sentir com todo o seu peso. A gravidade do problema sistêmico, no

que tange aos transportes aéreos, pode ser argüida recordando-se que o número máximo

de aviões que se encontram simultaneamente em vôo sobre os Estados Unidos é hoje de

cerca de quatorze mil, e que a maior parte deles não é controlada de terra nem segue

regras de vôo instrumental, mas voam apenas sob controle visual do piloto.

É interessante examinar as previsões para o período 1968-1993, feitas por William W.

Seifert, Diretor do Project Transport do Massachusetts Institute of Technology, era um

memorial apresentado em maio de 1968 a um seminário do Institute, of Electrical and

Electronics Engineers. Seifert prevê que em 1993 a população dos Estados Unidos será

de trezentos milhões de pessoas (contra os duzentos milhões atuais) e que o número de

automóveis crescerá dos cem milhões atuais para duzentos milhões. Nestas condições,

as previsões do especialista americano são de que os problemas do tráfego urbano serão

resolvidos - mediante a separação em vários níveis do tráfego de pedestres, do

automobilístico e dos estacionamentos - somente nas poucas cidades de construção

inteiramente nova, enquanto nas cidades já existentes, malgrado a construção de

numerosos sistemas de trânsito rápido sobre trilhos, o congestionamento do tráfego se

tornará um estado permanente - com velocidade média de doze quilômetros por hora e

com freqüentíssimos bloqueios totais do tráfego durante horas. A grande e única

inovação, no que tange ao tráfego de autos, será das auto-estradas automatizadas, nas

quais os veículos não serão mais guiados manualmente, mas dirigidos automaticamente

por aparelhos eletrônicos instalados a bordo, através de sinais emitidos por um cabo

subterrâneo ao longo da própria estrada. As linhas aéreas - ainda segundo Seifert -

transportarão setecentos milhões de passageiros por ano (contra os 130 milhões do ano

de 1968). Os numerosos pequenos aeroportos, de nova construção, serão reservados aos

aviões de decolagem vertical (VTOL) e àqueles que possam decolar e aterrar em poucas

dezenas de metros (STOL). As ferrovias convencionais serão totalmente abandonadas e

substituídas por pequenos vagões dirigidos automaticamente, andando sobre colchões

de ar em lugar de trilhos, e movidos por motores elétricos lineares de indução.

Afirmo que estas previsões de Seifert são totalmente irreais e privadas do mais

elementar bom-senso. Assim, não se pode imaginar que o tráfego nas vias de transporte

possa deteriorar-se lentamente até assumir características claramente inaceitáveis. Os

fenômenos de degradação poderãoser apenas repentinos e brutais e conduzir a uma

mudança radical da situação, tendo-se em vista que qualquer tipo de transporte que

reduza a própria eficiência abaixo de um certo nível - por mais baixo que se possa

admiti-lo - será necessariamente abandonado por grande número de usuários até deixar

no sistema um número de pessoas convenientemente exíguo para as quais o serviço será

nitidamente melhor. Os usuários que deixaram o sistema (supondo-se que tal sistema

ainda perdure) terão de aceitar uma diminuição drástica de sua mobilidade e

provavelmente, com isso, um rebaixamento muito sensível de seu padrão de vida.

Page 44: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

O próprio fato de que uma voz autoritária, proveniente de um dos mais avançados e

sérios institutos de pesquisa do mundo, proponha uma solução complicada para o

problema relativamente mais simples do regulamento do tráfego nas auto-estradas,

enquanto sustenta que não há solução para o tráfego urbano, mostra o quanto é alta a

probabilidade de que nos próximos anos - ou nos próximos decênios - não sejam

encontradas soluções eficazes. Igualmente insatisfatória é a impressão que se tem ao ler

as visões futurísticas de Seifert, porque se baseiam sobre simples dados técnicos, como

os trens velocíssimos sobre colchões de ar ou como os aviões VTOL ou STOL, e não

em soluções sistêmicas integradas e globais. Como muitos outros, Seifert dá as fórmulas

verbais justas ("... é preciso começar a considerar inteiramente o problema dos

transportes como um sistema, e necessário se torna que comecemos a nos dirigir para o

desenvolvimento de um grupo interconexo de sistemas de transportes, cada um dos

quais satisfaça aquela parte da demanda total para que é planejado, sendo conveniente

interferir nos outros sistemas parciais"), mas não consegue enchê-las com o conteúdo

dos projetos adequados. Enquanto as coisas andarem assim - e não há sinais de mudança

- a instabilidade dos sistemas de transportes continuará a crescer e o perigo representado

por sua paralisação se tornará cada vez mais grave e mortal.

VII - O bloqueio das comunicações

(telefônicas, telegráficas, postais)

Uma das críticas que os dirigentes e os planificadores de tendência coletivista movem

aos regimes capitalistas é a de que a livre concorrência, ou supostamente tal, é danosa

porque provoca o gasto de dinheiro e recursos em publicidade e na duplicação de

esforços tendentes a fabricar produtos que diferem uns dos outros em mínimos detalhes,

e que não dão ao público nenhuma vantagem a mais com sua ilusória variedade, ao

passo que o sistema tem a única finalidade de maximizar os lucros dos grandes

complexos industriais e comerciais. Sustentam, pois, os coletivistas que se poderia obter

uma utilização muito mais eficaz dos recursos e uma melhor qualidade dos produtos e

dos serviços se, concomitantemente com a concorrência, uma autoridade central

definisse o que deve ser fabricado, por quem, quando, em que quantidade e com que

determinadas características: isto e, um regime de monopólio controlado pelos poderes

públicos.

Ora, se há um grupo industrial que tenha podido gozar de todas as vantagens

imagináveis de uma situação de monopólio - e que, entretanto, está sob o controle

bastante eficiente de um poder público como a Federal Communications Commission

norte-americana (pelo menos no que se pode falar de eficiência do poder público) - este

é, indubitavelmente, a American Telephone & Telegraph Co., que há quase cem anos

tem nos Estados Unidos o monopólio da fabricação dos telefones e da construção e do

uso das redes telefônicas. Por isso mesmo, é de se esperar que deva ser ótimo o sucesso

desta gigantesca sociedade, pelo menos do ponto de vista dos lucros obtidos pelos

acionistas, como também da qualidade dos serviços fornecidos.

E, sem dúvida, o Bell System (constituído pela A.T. & T., uma holding que compreende

a Long Lines Division, os Bell Telephone Laboratories, que se ocupam de pesquisas de

base, a Western Electric, que fabrica aparelhos, e 24 companhias regionais) pode se

gabar de um primado impressionante entre todas as sociedades industriais no que diz

Page 45: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

respeito as inovações científicas produzidas pelo grupo (basta citar o transistor

inventado em 1948 e a Teoria das Informações de autoria de Claude Sharmon, quando

este trabalhava para os laboratórios Bell). Não obstante tudo isto, os negócios

econômicos e os serviços técnicos da A.T. & T. não estão hoje em condições muito

brilhantes.

O estado das comunicações telefônicas nos Estados Unidos, por outro lado, deteriorou-

se de modo tanto mais flagrante quanto mais se tem em vista que o sistema Bell era

considerado, ainda há pouquíssimos anos atrás, como não apenas o maior mas também

o mais moderno e eficiente do mundo. A degradação começou na segunda metade de

1968, nas áreas de maior concentração urbana, e particularmente na cidade de Nova

York, onde, já em 1969, a situação era verdadeiramente trágica. Os atrasos no serviço, a

impossibilidade de estabelecer comunicações, o número de defeitos não reparados por

dias ou semanas, tudo criou um tal estado de coisas que, por exemplo, a Benton &

Bowles Inc. - uma grande empresa de publicidade - comprou uma pagina inteira do

New York Times unicamente, para publicar os nomes dos seus oitocentos dependentes

junto com um breve comentário que dizia: "Vocês talvez não acreditem que estas

pessoas ainda trabalham conosco, porque não conseguem falar ao telefone: mas aqui

estão todas - venham encontrá-las e vê-Ias."

O quartel-general da A.T. & T. ficou quase inalcançável por telefone durante muitos

meses, porque era ligado à central automática Plaza-8, uma das mais congestionadas. A

New York Telephone Co., do grupo A.T. & T., foi citada em juizo com um pedido de

ressarcimento de 330 milhões de dólares por um grupo de cidadãos do distrito Bedford-

Stuyvesant, que lamentavam os danos causados pelo deterioramento do serviço nos

últimos três anos.

O caso dos telefones americanos é bem típico das degradações sistemáticas em larga

escala: nele se reconhecem todas as causas remotas e próximas da deterioração e seus

habituais modos de desenvolvimento.

O sistema telefônico americano é muito grande (mais de cem milhões de usuários),

cresceu mui rapidamente, dobrando em menos de vinte anos e é muito concentrado.

Somente, na cidade de Nova York - onde o número de usuários é de onze milhões,

superior em mais de vinte por cento ao número total de telefones na Itália - são gerados

mais de dez por cento dos 350 milhões de telefonemas efetuados diariamente, nos

Estados Unidos.

A causa primeira da crise eclodiu em virtude de graves erros de previsão. Em 1967, a

New York Telephone Co. previu uma estagnação no aumento do produto nacional bruto

e não deduziu que a demanda do serviço telefônico cresceria em 1968 em mais de

quatro por cento. Por conseguinte, reduziu em 24 milhões de dólares o orçamento para

novas obras. Por outro lado, a demanda cresceu em 1968 e em 1969 de modo brusco e

maciço, devido a diversas causas: aumento da atividade da Bolsa de Wall Street,

incremento da transmissão de dados numéricos nas linhas telefônicas entre os centros de

elaboração eletrônica, decisão das entidades de assistência de pagar também o telefone

de seus clientes. Além disso, parece que as pessoas começaram a telefonar mais,

simplesmente porque achavam melhor ficar em casa a fim de evitar os engarrafamentos

do trânsito e a violência nas ruas e, quando saiam, deixavam o fone fora do gancho para

fazer crer a eventuais ladrões, que telefonassem antes do golpe para saber se havia

Page 46: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

alguém em casa, que havia alguém em casa. Neste, caso, o funcionamento das centrais

de tipo antiquado, ainda em uso, ficava seriamente impedido.

Inicialmente, este salto imprevisto na curva da demanda foi considerado como uma

aberração temporária, mas a curva não se estabilizou como se esperava: subiu mais e

continuou subindo.

Tendo em vista a existência da crise e o fato de que suas dimensões poderiam ser

apreciadas por qualquer observador menos atento, a New York Telephone Co. decidiu

aumentar os seus investimentos anuais em aparelhagens, destinando para isso um bilhão

de dólares. Pode-se ter uma idéia do que isto representa, sabendo-se que o total

destinado pela A.T. & T. para todos os Estados Unidos é de 7,5 bilhões de dólares Mas,

o tempo de que precisava a indústria manufatureira e o tempo técnico impediram que os

eleitos deste remédio fossem sentidos antes de dois ou três anos.

A segunda causa da crise é financeira. A prazo mais longo, calculou-se que em 1979 os

investimentos da A.T. & T. devem alcançar 150 bilhões de dólares somente para manter

os serviços existentes, para estendê-los, dentro em breve, também, aos videotelefones e

para incrementá-los proporcionalmente à demanda. Esta necessidade de capital é

enorme: a A.T. & T. espera - mas não pode estar certa satisfazê-la em parte, oferecendo

aos investidores particulares duzentos milhões de novas ações e uma quantidade

comparável de obrigações, pretendendo, por outro lado, recorrer a um aumento das

tarifas que, já agora, deverão incrementar as entradas anuais em dois bilhões de dólares.

O aumento das tarifas, porém, não será automático, mas tem de ser aprovado pela

Federal Communications Commission, a qual, seguramente, se oporá a alguns dos

pedidos e, enquanto isso, favorecerá a curto prazo os interesses dos usuários, talvez

obrigando-os a prazo mais longo a sofrer os incômodos de um serviço telefônico

deteriorado de modo estável.

Os 150 bilhões de dólares necessários até 1979 não bastarão, contudo, para completar a

modernização do Bell System - se bem que representem 15 por cento aproximadamente

do produto nacional bruto americano em 1971. Além disso, está previsto que a

passagem das centrais telefônicas convencionais para aquelas completamente

eletrônicas não será completada antes do ano 2010.

As decisões erradas dos responsáveis pelos telefones dos EUA foram favorecidas pela

confiança excessiva nas inovações técnicas, representadas por estas centrais de

comutação inteiramente eletrônicas e que funcionam, por isso mesmo, com velocidade

muito superior à das tradicionais eletromecânicas. O emprego das novas centrais, que,

no futuro, terá sensíveis vantagens, no momento causa sérios embaraços (de que não se

pode ficar alarmado: trata-se de normais "distúrbios da dentição que é a expressão usada

pelos técnicos para definir os inconvenientes ocorridos nos primeiros tempos do

emprego de cada novo produto complicado e, em particular, no período inicial de cada

grande inovação ligada a uma parte vital de um sistema existente).

Todos esses aborrecimentos somam-se uns aos outros sem que os dirigentes da A.T. &

T. tenham possibilidade de adotar preventivos a tempo. A resposta oficial às críticas que

partiam de todas as partes era de que ninguém poderia prever um aumento tão rápido da

demanda de serviço telefônico. Contudo, em fins de agosto de 1970 mudou o presidente

da New York Telephone Co. O novo presidente, William M. Ellinghaus, não deveria

Page 47: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

apenas melhorar os vencimentos dos dirigentes do grupo, mas também melhorar os

vencimentos dos operadores de centrais e dos mantenedores, que tinham piorado

terrivelmente: em 1969, quarenta por cento do pessoal deste tipo tinha menos de, um

ano de experiência nestas atividades. Além do mais, eram necessários verdadeiros

contorcionistas, para instalar e manter os cabos telefônicos em Manhattan, onde - sob as

ruas - não há lugar para mais nada.

Se bem que se justifiquem previsões pessimistas, com base rios elementos examinados,

deve-se considerar que todos os problemas telefônicos vão-se agravar ainda mais,

porque cresce muito rapidamente a transmissão nas linhas telefônicas de dados

numéricos, com a finalidade de ligar entre si vários computadores, ou de fornecer

diretamente ao computador central dados provenientes de locais distantes.

Os atrasos nas comunicações interurbanas no sistema WATS (Wide Area Telephone

System) são maiores nas tardes e inicio de noite dos dias úteis, entre as 17:30 h e 19

horas, que no resto do dia. O período indicado é aquele em que as filiais e sedes

distantes de bancos e organizações comerciais transmitem aos computadores, situados a

centenas de quilômetros, os dados contábeis do dia. Estas comunicações estão sendo

usadas em escala cada vez maior, tanto que o presidente da A.T. & T., Frederick R.

Kappel, afirmou, em 1961 e em 1964, que o volume de comunicações para a

transmissão de dados entre os computadores, dentro de quinze anos, seria maior do que

o das comunicações orais entre os usuários humanos. O que Kappel afirmou não ficou

muito claro, pois ele não precisou se se referia ao número de chamadas ou à quantidade

de informações transmitidas. A este propósito, iniciou-se uma polêmica entre o porta-

voz da A.T. & T. e, entre outros, Reger W. Hough, do Stanford Research Institute.

Hough sustenta que as comunicações vocais, nos próximos vinte anos, ocuparão as

redes telefônicas por tempo superior ao de todas as outras aplicações juntas. Mas, ainda

que se aceite tal afirmativa, deve-se ter em conta que o elenco dos tipos de informações

que já podem ser transmitidos pelas linhas telefônicas é tão grande que a soma deles

contribuirá para sobrecarregar o sistema telefônico e agravar o congestionamento e a

instabilidade. Entre outros, pode-se transmitir pelas linhas telefônicas: imagens de

videotelefones; programas de televisão de circuito fechado; transmissão à distância em

fac-símile de jornais e gravuras; sinais de buscas automáticas de dados contidos em

fichas eletrônicas e centros de informações especializados; dados para a reserva

automática de lugares em meios de transporte; cotações da Bolsa e compra e venda de

títulos e ações, etc.

Não é de se esperar que as futuras e piores crises dos sistemas telefônicos causem

diretamente destruições e mortes, salvo acontecimentos excepcionais, como, por

exemplo, a impossibilidade de telefonar pode causar a morte de poucos indivíduos pelo

atraso ou falta de socorro médico ou de bombeiros. Por outro lado, os danos causados

pela inundação de Florença em 1966 teriam sido talvez reduzidos se as ligações

telefônicas entre as estações de guarda e as autoridades da cidade fossem melhores e

mais rápidas.

Em geral, a crise dos sistemas telefônicos e telegráficos agravará a crise de outros

sistemas chamados a fornecer funções substitutas daquelas inutilizáveis, de

comunicação por fio (como no caso daqueles que, não podendo falar pelo telefone, se

deslocam, ou procuram se deslocar, com um veiculo, contribuindo para agravar um

engarrafamento de tráfego já iniciado), e tornando impossível o fluxo de informações

Page 48: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

em qualquer outra situação de emergência, criando obstáculos aos grupos de socorro ou

de manutenção. Deve-se destacar, em seguida, que, assim que chega ao conhecimento

de grande número de pessoas a existência de uma situação nova e anormal, a reação

quase automática - que já vem ocorrendo há muitos anos - dessas pessoas é procurar o

telefone e falar com outras pessoas (talvez procurando demonstrar que são os primeiros

a saber de tal situação). Por exemplo: quando morreu Franklin Delano Roosevelt, a 12

de abril de 1945, enorme número de pessoas decidiu, de repente, chamar alguém ao

telefone e, como conseqüência disto, toda a rede telefônica dos Estados Unidos (que

então compreendia menos de trinta milhões de aparelhos) ficou congestionada e

bloqueada durante algumas horas.

Como nos outros casos, falei, sobretudo, da situação norte-americana, porque na

América as concentrações são maiores do que em outros lugares, e as crises

conseqüentes se manifestam naquele país antes que nos outros. Na França, a situação

não é muito diferente. A espera média para conseguir a instalação de uma nova linha

telefônica é de um ano. Os engenheiros de uma grande sociedade de construção

eletrônica, cujo escritório fica próximo de Monthléry, a cerca de 25 quilômetros de

Paris, para falarem com os laboratórios e a sede da empresa, rio Boulevard Bessières, no

17º Distrito, na parte setentrional da cidade, têm de esperar, todas as manhãs, durante

três ou quatro horas.

A situação italiana, deplorável até alguns anos atrás, melhorou com a recente extensão

da tele-seleção para ligar os nove milhões de telefones no território da república, mas

ainda não é totalmente satisfatória. Os sistemas europeus estão sendo conectados entre

si, cada vez mais estreitamente, e isto agravará os congestionamentos, para os quais

contribuirão também as concentrações sempre crescentes nas capitais e nos grandes

centros.

Um sistema de comunicações, que recentemente tem dado muito que falar, devido à sua

baixíssima eficiência - conseqüência, sobretudo, de greves - é o dos correios, nacional e

internacional.

Os correios e os telefones são sistemas estreitamente ligados entre si e aptos a se

substituírem. Durante a longa greve dos correios em 1969 na Itália, e em 1971 na

Inglaterra, difundiu-se o hábito não somente de transmitir por telefone informações

normalmente transmitidas por carta, mas também o de fechar acordos comerciais

formais pelo telefone, ditando pelo fone os termos de contratos que o serviço postal só

entregaria meses depois.

Os sistemas postais dos Estados Unidos da América e da Itália parecem-se muito,

malgrado as dimensões diferentes: mais de oitenta bilhões de encomendas por ano

distribuídas pelos Correios norte-americanos contra quase seis milhões dos Correios

italianos. (Esta diferença, em termos relativos, ocorre também em outros aspectos do

campo econômico: o produto nacional bruto norte-americano, em 1970, atingiu quase!

um trilhão de dólares, ao passo que o produto nacional bruto italiano, no mesmo ano, foi

de oitenta bilhões de dólares; o número de veículos produzidos nos Estados Unidos foi

de doze milhões e o número correspondente na Itália de 1,3 milhão.)

Entre as características comuns do sistema postal italiano e do americano, podemos

destacar:

Page 49: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

deficiência e atrasos nas entregas;

organização sistêmica antiquada;

baixa produtividade e baixos salários do pessoal;

alta freqüência de greves;

forte deficit no balanço orçamentário (para os Estados Unidos, o deficit atingiu,

em fins de 1970, um bilhão e 200 milhões de dólares);

pouco sucesso no emprego de códigos de endereçamento postal.

A parte certas idiossincrasias individuais (como, na Itália, os freqüentes e inesperados

atrasos, de até uma semana, na entrega de telegramas-cartas, e, nos Estados Unidos, a

preocupação de controle para incriminar quem envia, pelos correios, material obsceno),

a principal diferença entre os dois países é de que na América admite-se a concorrência

particular aos correios estatais, enquanto que na Itália esta concorrência é ilegal, exceto

no que tange a modestas agências de entregas. A outra diferença é de que os

administradores e políticos italianos são mais otimistas e exaltam, pelo menos em

público, a alta eficiência e as brilhantes conquistas dos próprios sistemas ou repartições,

não obstante a realidade seja notoriamente triste, enquanto os seus correspondentes

norte-americanos são mais francos nas críticas, mais realistas nas suas previsões. É

conveniente examinar cada uma das afirmações e propostas destes últimos.

O Diretor-Geral dos Correios do governo Johnson, Lawrence F. O'Brien, ao reconhecer

que seu departamento era empregado em uma corrida contra a catástrofe (a race with

catastrophe), a 3 de abril de 1968, propôs que o Departamento dos Correios fosse

transformado em uma agência governamental sem finalidades de lucro. Esta reforma,

retomada no governo Nixon em 1970, deve ensejar certa independência à administração

postal, permitindo-lhe eliminar o deficit do balanço melhorar o serviço e as condições

de trabalho dos empregados e retirar do poder público a faculdade de promoções e

novas admissões. Atualmente, os representantes sindicais dos empregados postais não

se preocupam de modo algum em realizar entendimentos diretos, porque qualquer

melhoria salarial somente pode ser decidida pelo Parlamento. Já que é sempre o

Congresso dos Estados Unidos quem pode decidir a reforma, não se pode esperar que o

sistema melhore em breve. Entretanto, as reformas são indispensáveis: o atual Diretor-

Geral dos Correios, Winton M. Blount, definiu seu departamento como "um

anacronismo de alto custo e de maximização do trabalho" (a high-cost labor-intensive

anachronism). Como sempre, as soluções sistêmicas devem preceder - seja no tempo,

seja na hierarquia - às puramente técnicas. Por outro lado, os grandes problemas

sistêmicos não podem ser resolvidos pelo uso apenas de novas máquinas automáticas.

Parece, entretanto, que nos Estados Unidos se depositam excessivas esperanças nas

vantagens que se poderão obter com o incremento do emprego dos selecionadores

automáticos (já usados com discreto sucesso há mais de um decênio) e na instalação das

leitoras ópticas automáticas. Os selecionadores semi-automáticos, cada um dos quais

trabalha simultaneamente com um máximo de doze operadores, distribuem

automaticamente as cartas entre 277 saídas, após o operador ter carimbado em cada

carta o código convencional de saída, deduzido do endereço e com base numa

correspondência que o empregado tem de memorizar o percentual de erros destas

máquinas, cada uma das quais pode classificar até 36 mil cartas por hora, é de cerca de

cinco por cento. As leitoras ópticas automáticas funcionariam melhor se os endereços

fossem carimbados com caracteres de estampa especial. Está-se fazendo um esforço de

pesquisa no sentido de se construir uma máquina automática que possa ler os endereços

manuscritos.

Page 50: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Não quero dizer com isto que as máquinas semi-automaticas ou automáticas sejam

inúteis. Pelo contrário; a situação postal também na Itália seria melhor se elas fossem

empregadas em maior número. Afirmo, porém, que, ao mesmo tempo em que é possível

melhorar bastante a prestação dos serviços postais sem o emprego de máquinas novas,

deve-se pensar também em uma situação em que as máquinas novas sejam empregadas

e permaneça a deterioração do sistema, já que sua estrutura não se modificou.

Vale a pena citar o sistema postal sueco, considerado o mais eficiente do mundo, não

obstante tenha de manter ligação com localidades perdidas, a grandes distâncias, no

extremo norte. Os correios suecos colocam em atividade cerca de 1,5 por cento de seu

orçamento (que é muito modesto: 170 bilhões de liras) e asseguram a entrega dentro de

24 horas de noventa por cento das cartas postadas. O selo para uma carta normal custa

setenta liras.

Esta indicação positiva, porquanto marginal, pode levar a outra afirmativa: também em

outros aspectos, a situação sueca, no campo dos grandes sistemas, é muito melhor do

que nos outros países. Na Suécia, as concentrações de população são limitadas (em toda

a Escandinávia não há cidade com mais de um milhão de habitantes) e os grandes

sistemas não são tão grandes e congestionados. Estas condições poderão impedir a

degradação dos sistemas suecos e, talvez, salvar a Suécia do advento da próxima Idade

Média.

Mas o caso sueco não justifica uma visão otimista do futuro de toda a Europa, corno, da

mesma maneira, não se deve esperar um futuro otimista para os Estados Unidos

somente porque há informações consoladoras no Nebraska, que, com um milhão e meio

de habitantes, é o trigésimo quinto Estado da União, em população.

Em Nebraska, as autoridades locais e o Departamento de Transportes iniciaram o

Projeto 20/20 que se destina a criar um sistema integrado de todas as comunicações de

emergência da região. O animador do Projeto 20/20, D.G. Penterman, idealizou centros

de desvio de todas as chamadas de emergência para organizações destinadas a cada tipo

de incidente. O número de locais sob continua supervisão pôde ser, por conseguinte,

reduzido, já que os mesmos postos de revezamento se ocupam simultaneamente de

socorro médico, incidentes de tráfego, delitos, tumultos, cataclismos naturais, incêndios.

Ao mesmo tempo, unificaram-se os projetos de todos os sistemas de comunicações do

Estado, onde se tem a certeza de que cada rede, quando não é utilizada, fica disponível

para finalidades diversas das de seu funcionamento normal. Também são empregados

nos serviços diários os canais de emergência das redes militares e da defesa civil. A

economia alcançada - além do aumento dos rendimentos, dificilmente calculado - foi tal

que apenas o orçamento inicialmente previsto para a televisão educativa bastou para

pagar inteiramente o projeto, que, naturalmente, compreende também a difusão, por

cabo coaxial, dos programas educativos de TV.

O exemplo de Nebraska não foi seguido por muitos Estados ou organizações

americanas. Como normalmente acontece, as coisas funcionam quando há um homem

ou um grupo de homens iluminados, informados e ativos que as façam funcionar. São

muito poucos os lugares onde isto ocorre.

Page 51: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

VIII Esperanças mal ocultas e temores

infundados em relação aos computadores

eletrônicos

Os calculadores numéricos são cérebros eletrônicos.

Os cérebros eletrônicos funcionam mais velozmente do que os

cérebros humanos e cometem menos erros de cálculo.

É possível definir um modelo matemático de qualquer sério

problema sistêmico.

É, seguramente, conveniente usar computadores eletrônicos para

resolver qualquer problema de elaboração de dados, de controle e

de governo dos grandes sistemas.

Uma vez confiada a computadores eletrônicos a gestão de todos

os grandes sistemas, corre-se o risco de que estas máquinas

substituam completamente o homem e o tornem escravo.

As cinco afirmações precedentes constituem, infelizmente, a única justificação de

muitas decisões, que são tomadas para definir a solução de problemas que interessam a

milhões de homens. Este tipo mesmo de decisão é igualmente considerado como

particularmente brilhante e moderno, apesar de que algumas das cinco afirmações às

quais me referi sejam destituídas de sentido e outras delas possam ser consideradas

verdadeiras apenas em determinados contextos e após acurados exames.

Apraz a quase todos os homens obter o máximo de resultado com o mínimo de esforço

e, pois, não é de espantar se muitos responsáveis por decisões importantes esperam

evitar trabalho pesado e esforços de imaginação e preferem optar pela adoção de um

computador eletrônico, que deverá assegurar a direção otimizada do sistema e garantir,

com a sua flexibilidade, o alcance imediato das soluções e a fácil modificação dos

programas para se dar conta de idéias novas que, no entretempo, possam ser

materializadas. Deveria, pelo contrário, ser óbvio que em loterias desse tipo jamais se

vence,

Se não estão satisfatoriamente definidos o projeto seqüencial, a estrutura e a lógica do

sistema considerado, e não estão resolvidos os problemas relativos ao eventual

congestionamento do sistema, não se poderá obter qualquer vantagem sensível com o

emprego do computador. Quando se instala um computador sem se haver,

primeiramente, procedido à análise sistêmica necessária, termina-se, fatalmente,

transmitindo nos programas dos computadores as estratégias e as estruturas sistêmica

mais simples possíveis - com o objetivo de não se arriscar a um insucesso de grandes

proporções. Assim, existem sistemas em que certo número de processos são governados

por um computador eletrônico numérico e por esta única razão são qualificados como

moderníssimos e eficientíssimos, embora prestem, de fato, serviços muito modestos e

pouco interessantes.

Neste ponto, cabe discutir, brevemente, o conceito próprio de flexibilidade, qualidade

da qual, há vinte anos, os construtores dos computadores eletrônicos se vangloriam em

grande parte de seus escritos publicitários. Quando se diz que um computador eletrônico

Page 52: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

numérico é uma máquina muito flexível, o que se pretende, de fato, dizer é que não é

uma maquina construída para uma finalidade específica, mas que pode ser utilizada

indiferentemente para resolver problemas matemáticos e lógicos dos mais diversos tipos

- mas bem entendido: contanto que tenham sido antes redigidos os programas

necessários para fornecer as soluções procuradas. Este trabalho da redação dos

programas do computador ou da produção de completas bibliotecas de programas e de

sistemas de programação capazes de habilitar um computador a absorver dados é,

freqüentemente, subestimado, ao passo que, em muitos casos, o custo relativo

(constituído, sobretudo, de mão-de-obra profissional altamente especializada, além do

tempo necessário ao computador para as provas dos programas) supera o do

equipamento instalado no centro de cálculo. o termo software foi criado para definir,

com precisão, as tarefas dos computadores viáveis pela existência de bibliotecas de

programas e de rotinas auxiliares e pela disponibilidade de linguagem simbólica de

programação. (o termo oposto a software é hardware - literalmente "materiais sólidos",

no sentido de ferramentas, e, por extensão, também equipamentos em geral - empregado

para designar as unidades de efetiva consistência física que compõem o computador

considerado.)

Quando um fabricante de computadores afirma que as suas máquinas são versáteis está

claro pois que destaca uma verdade indiscutível - do mesmo modo como um fabricante

de caminhão poderia dizer que os seus veículos são versáteis, porque podem servir para

transportar carne enlatada, livros, condensadores eletrolíticos ou cucurbitáceas. No caso

do caminhão, porém, basta carregar-se objetos diversos e levá-los ao seu destino -

enquanto que no caso dos computadores é preciso, primeiramente, dispor do software

necessário para resolver efetivamente os problemas dos quais o computador tem

capacidade para tratar, após ter sido programado. A flexibilidade dos computadores, em

conclusão, não garante totalmente que os cálculos confiados ao software possam ser

viáveis, nem que possam ser economicamente exeqüíveis.

Os programas, o software e, em geral, os modos de utilização de um computador

eletrônico não podem ser melhores nem mais eficientes do quanto o sejam o pessoal de

programação que os produziu. Nos últimos vinte anos, a demanda de programadores

cresceu com incrível velocidade e foi necessário treinar, apressadamente, novas levas.

As deficiências no treinamento dos programadores e a inexperiência daqueles que os

dirigiam tiveram por conseqüência que, mesmo em poderosíssimas organizações

industriais, as novas atividades mecanizadas sofreram insucessos clamorosos. Em lugar

de tornar disponíveis dados elaborados mais rapidamente e com maior segurança, os

resultados vêm se verificando com atraso e cheios de erros. Ao invés de prestar um

serviço ao menos equivalente, com custos menores, os custos se elevaram. Nos últimos

anos, portanto, muitas sociedades industriais e comerciais americanas, de grande porte,

decidiram minimizar o risco no empreendimento de novas atividades mecanizadas por

meio de calculadores eletrônicos e confiaram, em empreitada, todo o trabalho de

organização dos centros de cálculo (máquinas e pessoal) e toda a responsabilidade de

elaboração - até à produção dos resultados finais - às sociedades externas especializadas

nesse tipo de trabalho.

Essas circunstâncias foram citadas unicamente para chamar a atenção sobre a gravidade

dos aspectos puramente de aplicação dos sistemas de computação eletrônica.

Page 53: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Não se resolve problema algum simplesmente comprando ou locando um calculador e

contratando alguns engenheiros e alguns matemáticos.

Num certo ponto de vista, é lamentável que as atividades dos laboratórios e as

realizações da indústria eletrônica tenham obtido tanto sucesso público. A conseqüência

desse fato é que os mais atualizados e progressistas profissionais e cientistas nos mais

diversos campos de, atividade concebem e projetam soluções meramente em termos de

aparelhos (hardware) e de processos de aplicação de aparelhos (software) - em vez de

em termos de sistemas.

Quando, por exemplo, um banco mecaniza a enorme massa de trabalho constituída pelas

operações contábeis de seus escritórios, avulta muito o fato de que a parte executiva e

aritmética do trabalho é desenvolvida, precisamente, por um computador eletrônico e se

tende a descurar do importantissimo trabalho de análise de processos que deve preceder

à mecanização e que conduz, freqüentemente, à adoção de profundas modificações no

funcionamento da entidade. A análise dos processos é necessária para controlar se os

mesmos são mecanizáveis e para torná-los tal, em caso negativo.

Se essa análise é bem feita, acarreta justamente vantagens, senão comparáveis, pelo

menos maiores do que as obtidas com os meios de elaboração eletrônica; se é mal feita,

o sistema, no seu complexo, funciona pior após a mecanização do que anteriormente à

mesma.

A aproximação sistêmica deveria consistir propriamente na tentativa de otimizar o

funcionamento do sistema no seu complexo, selecionando os dados a elaborar, evitando

as elaborações que dariam resultados supérfluos, evitando as duplicações e, se

necessário, tornando a definir os objetivos essenciais do trabalho a ser desenvolvido,

É sabido que os maiores sucessos registrados no emprego dos computadores eletrônicos

- à parte aqueles conhecidos nos campos de ciência pura e aplicada - verificaram-se nas

aludidas aplicações contábeis e nas de controle dos processos industriais. As primeiras,

especialmente, se caracterizam por uma enorme massa de dados a serem elaborados. A

consideração desse fato conduziu, em muitos casos, a decidir se é necessário empregar

um computador eletrônico toda vez que se depare com dados apreciáveis, sem

considerar, contrariamente, a outra alternativa - que é a de modificar o sistema de

maneira a prevenir e impedir a produção de tantos dados. Um exemplo típico é a

descoberta das informações jurídicas.

Todo ano, os tribunais continuam a proferir sentenças. Toda sentença pode ter

importância - como "precedente" para a decisão de causas e de processos celebrados

após a sua emissão (nos países anglo-saxões, sobretudo, as sentenças precedentes

constituem quase a única fonte de direito e substituem os códigos). Os juizes e os

advogados têm, portanto, de resolver o problema de descobrir as sentenças precedentes

que possam ter alguma importância para o caso de que se ocupam, e, todo ano, devem,

fatalmente, tentar localizá-las entre um número enorme e sempre crescente de outras

sentenças de nenhum interesse, no momento, para os seus objetivos. Pensa-se, agora,

em codificar as sentenças (no sentido de traduzi-Ias em códigos aceitáveis pelos

computadores eletrônicos) e registrá-las na memória dos computadores, utilizando as

mesmas máquinas para descobrir as sentenças interessantes a determinado fim (em

geral, procurando-se no texto da sentença aparecem, ao menos, certas palavras-chave

Page 54: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

capazes de definir o assunto julgado). Uma notável massa de atividade dedica-se a esse

tipo de pesquisa nos Estados Unidos da América do Norte, União Soviética, Bélgica,

França, Itália, Holanda, Luxemburgo, Inglaterra, Tchecoslováquia e nas duas

Alemanhas. Pelo contrário, uma atenção muito menor, de fato quase nula, é dedicada à

reforma dos códigos e dos sistemas jurídicos, a qual, por si só, poderia resolver

basicamente o problema e tornar inútil não apenas o emprego dos computadores, mas a

própria necessidade de conservar uma quantidade, de precedentes crescente ad

infinitum.

Algo de muito semelhante está-se verificando no campo, mais vasto, das publicações

científicas. Publicam-se, atualmente, no mundo, mais de 100 mil periódicos técnicos e

científicos. Mesmo considerando, entre esses, apenas os pertinentes a ramos específicos

de atividades de pesquisa, não se pode esperar que haja tempo de examinar todos para

controlar se algum já não tenha descoberto e publicado os resultados que uma pesquisa

nova pretende obter. Também aqui se sugeriu a utilização de computadores eletrônicos

para memorizar tudo o que se publica no mundo, no campo técnico e científico (como

por exemplo, traduzindo para o inglês todas as publicações que não forem editadas

naquele idioma). Os pesquisadores científicos e técnicos deveriam, posteriormente,

pesquisar nas memórias dos computadores, automaticamente, para tentar descobrir tudo

o que já existe de relevante para as finalidades de sua própria atividade. O problema,

aqui, é, indubitavelmente, mais sério e crítico. Alguém julga que a maior parte do tempo

dos cientistas é ocupada atualmente pela pesquisa bibliográfica: isto não é inverossímil,

se se pensar que já existem, no mundo, 100 mil volumes unicamente de bibliografias

(reunidas em um outro volume denominado World Bibliography of Bibliographies).

Também neste setor seria mais lucrativo analisar a estrutura do processo, que

compreende a elaboração de textos científíco-técnicos e sua subseqüente descoberta,

antes de aceitar sem discutir que se continuem a publicar e a distribuir, todo ano,

milhares de toneladas de páginas e a recorrer, posteriormente, à força bruta - ou seja, a

grandes e velozes computadores eletrônicos - para tornar possível aos eventuais

interessados a leitura das publicações que dizem diretamente respeito à sua atividade. A

alternativa óbvia é constituída pela decisão de, pelo menos, limitar o número de artigos

e de relatórios publicados, ou dos artigos e dos relatórios elaborados. Qualquer cientista

pode fornecer uma extensa lista de publicações cuja impressão poderia ser suprimida

sem que isto fizesse grande diferença. Ninguém deve, sequer, se espantar muito com

esse estado de coisas: os progressos reais e significativos, além de difíceis, são raros.

Existe, certamente, uma providência que, por si só, já contribuiria para reduzir, de modo

essencial, a massa de produções científicas publicadas, entre as quais, posteriormente,

se pesquisariam quais interessam a determinados fins: trata-se de uma radical

modificação das normas e dos processos segundo os quais são decididas as promoções e

é atribuído o mérito no campo acadêmico. Com ou sem razão, julga-se, atualmente, que

o grau merecido por um aspirante a docente seja dado em função do número de páginas

de memórias científicas por ele publicadas. É por este motivo que são mais freqüentes e

numerosas as produções literárias de indivíduos mais jovens, que aspiram atingir graus

superiores justamente em virtude de seus próprios escritos. Normalmente, a produção de

material escrito decresce bruscamente quando se atinge um grau aceitável e superior,

apesar de ocorrer, freqüentemente, que por hábito e por força da inércia, também os

docentes que superaram os limites mais importantes - como o ordinariato, na estrutura

universitária italiana, e o contrato vitalício ou tenure, na estrutura universitária

Page 55: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

americana - continuem a escrever ou a fazer escrever e, muitas vezes, a publicar

memórias demasiadamente longas e de conteúdo escasso ou quase nulo.

As vantagens sistêmicas provavelmente oferecidas pelos grandes computadores

eletrônicos, e não materializadas que vínhamos considerando até aqui, não se

concretizaram por razões do tipo organizacional. Há, no entanto, algo pior, no que tange

a erros e falácias conceituais que têm, infelizmente, curso livre no campo dos

computadores, ou da "informática", como alguns gostam de chamar a ciência do cálculo

automático e a teoria das informações e das comunicações. Existem classes inteiras de

aplicações dos computadores que motivaram pesquisas científicas e atraíram

investimentos de capitais também consideráveis em vista da grande exploração

industrial e comercial em alta escala ao passo que aquelas bases do tipo de utilização

projetada são vagas e insubsistentes ou eivadas de impossibilidades intrínsecas ou de

contradições. A característica comum a essas aberrações é que postulam analogias mais

ou menos profundas entre o funcionamento do cérebro humano e o dos sistemas de

computação eletrônica e se propõem redigir programas de computação eletrônica

capazes de substituir o homem na execução de atividades racionais e decisões de alto

nível. Esta substituição do homem pela máquina é, em geral, indicada como desejável

por razões de ordem econômica. E breve dar-se-á conta, porém, de que não apenas não

se realizam as economias esperadas, mas de que o projeto, em sua totalidade, não é

exeqüível: neste ponto, agora, a ênfase se transfere e busca uma justificação para a

atividade desenvolvida, sustentando que a mesma seria para demonstrar cientificamente

a identidade entre o homem e a maquina, que já era, inicialmente, postulada, ou, ao

menos, serviu para emprestar uma importante contribuição a uma provável

demonstração futura dessa identidade.

A dificuldade basilar de toda esta história é, provavelmente, que Norbert Wiener era um

matemático de grande valor e gozava, portanto, de muito prestígio. Conseqüentemente,

quando, em 1948, desenterrou a palavra "cibernética" (inventada, inocentemente, por

Ampère, cento e quatorze anos antes, no contexto de uma classificação geral das

ciências) e sustentou haver fundado a nova ciência do controle e das comunicações nos

animais e nas maquinas, deram-lhe crédito. Ainda hoje, o termo cibernética é uma

palavra polida, seja na Academia de Ciências da URSS, seja no Massachusetts Institute

of Technology e na RAND Corporation - e não deveria sê-lo, como o demonstrou

rigorosa e brilhantemente Mortimer Taube, já em 1961, em seu livro Computers and

Common Sense.

Para explicar o estado das coisas não é necessário retomar as antigas polêmicas, entre

vitalistas e mecanicistas. Ninguém contesta que as atividades do cérebro humano são

possíveis graças a um conjunto de matéria, onde circulam correntes elétricas. Ninguém

nega que também os computadores eletrônicos podem ser definidos como conjuntos de

matérias nas quais circulam correntes elétricas, nem que os computadores eletrônicos

possam executar mais rapidamente do que um homem muitas operações de elaboração

de dados definidos formalmente (no sentido mecânico). O que se nega é que possa

existir, no estágio atual da técnica de computação, um computador capaz de fornecer

respostas equivalentes às de um cérebro humano. Com toda probabilidade, as coisas são

ainda um pouco mais complicadas se é verídico que os computadores são adaptados

apenas a fornecer informações segundo processos formalmente definidos, ao passo que

o funcionamento do cérebro humano é essencialmente do tipo informal.

Page 56: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Sem tentar resolver esta última questão, altamente especializada, basta considerar a

história da cibernética, nos últimos vinte anos. Já no inicio da década de 50, não

somente divulgadores, mas também engenheiros e matemáticos encarregados de

pesquisas avançadas nos institutos de instrução superior prometiam que estariam

disponíveis dentro de poucos anos:

computadores programados de maneira a produzir traduções automáticas, de alta

qualidade, de uma língua para outra ou, pelo menos, do inglês para o russo e do

russo para o inglês.

computadores programados de maneira a demonstrar teoremas novos e

interessantes no campo da matemática, da geometria e da lógica matemática.

computadores programados para jogar tanto xadrez quanto damas, a tal nível,

que o campeão mundial de xadrez não mais seria um homem e sim uma

máquina.

computadores programados a fim de aprender processos e conceitos novos, não

por imposição formal da parte do programador, mas abstraindo as regras com

base em sua experiência do mundo exterior.

Vejamos, por outro lado, como decorreram as coisas.

Diz-se que a Central Intelligence Agency americana traduz todo dia o Pravda inteiro, do

russo para o inglês, utilizando um computador eletrônico: se a história fosse verídica,

não se poderia dizer que o fato seja absurdo, porque mesmo uma tradução de palavra

por palavra (possivelmente feita de maneira a fornecer todos os sinônimos do dicionário

para cada palavra da língua original) pode dar uma vaga idéia do conteúdo do texto

originário. Porém, não se trataria, por certo, de traduções profissionais de bom nível.

Provavelmente, é verdadeiro que esse último tipo de tradução não seja viável

mecanicamente, por razões teóricas e conceituais, o que seria muito longo e complicado

expor aqui, mas, por certo, mais facilmente demonstravel praticamente. Qualquer texto,

escrito em qualquer língua é, com efeito, uma mensagem enviada por uma pessoa a

outra, ou a um grupo de pessoas mais ou menos restrito: para ser compreendido,

pressupõe uma experiência comum acerca da qual cada um dos membros do grupo haja

formado em sua própria mente uma imagem, um modelo do mundo exterior.

É justamente com referência àquela imagem, àquele modelo, que quem recebe a

mensagem poderá dirimir as ambigüidades do texto e compreender, sem esforço, os

eventuais neologismos. Enquanto não se puder fabricar computadores eletrônicos

dotados de memória capaz de poder registrar uma imagem do mundo exterior, a

tradução automática, de bom nível, não será possível e, corno acenei, talvez nem agora

o seja. Até o momento, os computadores eletrônicos têm memórias inadequadas e os

editores, em particular, consideram mais seguro e econômico recorrer a tradutores

humanos,

No que diz respeito à demonstração de teoremas por meio de computadores, existe,

efetivamente, a possibilidade, e é sabido que foram demonstrados pela máquina tanto

teoremas de geometria, quanto de lógica. Lamentavelmente, porém, tratava-se de

teoremas já conhecidos; as máquinas, neste campo, não fizeram avançar um passo no

progresso matemático. E poder-se-ia, aqui, estabelecer um paralelo com o espiritismo:

não tenho razão alguma muito forte para não crer na possibilidade de colóquios com os

espíritos dos mortos; entretanto, enquanto ninguém se comunicar com o espírito de

Page 57: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Piere Fermat e obtiver a demonstração de seu último teorema, recuso firmemente a me

deixar impressionar.

Semelhantemente, emitir um computador as regras para jogar damas ou xadrez é uma

tarefa imediata, mas não se conseguiu, até agora, que alguma máquina tenha jogado

qualquer partida com um nível superior ao de um bom principiante. Estou seguro de

que, em 31 de dezembro de 1971, o campeão mundial de xadrez será, ainda, um homem

e não um computador e, conseqüentemente, ganharei 120 dólares de uma aposta feita há

9 anos com Joe Weizenbaum um dos mais conhecidos especialistas americanos no

campo da inteligência artificial. Estarei pronto a renovar a mesma aposta por alguns

decênios, ainda.

No que concerne à última promessa da cibernética - a disponibilidade de computadores

que aprendem com base em sua própria experiência precedente - as opiniões são

discordantes, porque muitos sustentam havê-los já programado deste modo. Receio

tratar-se, de uma questão de definição. É seguramente possível programar computadores

eletrônicos a fim de que reajam imediatamente a sinais provenientes do mundo exterior

e governem, conseqüentemente, certos processos que esses sinais desenvolvem,

produzindo, com este objetivo, outros sinais. É também possível que, além de fornecer

esses sinais de controle em função daquilo que ocorra no mundo exterior - mas segundo

processos que devem ser previstos e descritos em termos formais e explícitos -, o

computador registre certas estatísticas sobre o comportamento do ambiente externo e,

em função dos resultados, controle de maneira apropriada os sinais ou os aparelhos

postos sob o seu governo. É muito duvidoso, entretanto, que se queira efetivamente

dizer quando se sustenta que um computador pode ser programado de modo a produzir

um tipo ótimo de reação em conseqüência da verificação de eventos ou,

especificamente, de tipos de eventos que o programador não tinha sequer previsto.

Afora o campo do reconhecimento das configurações (na qual o computador poderia ser

tipicamente usado com finalidades postais, isto é, para ler caligrafias correntes jamais

vistas e para distribuir cartas com endereço escrito a mão ou destino certo), parece que

as máquinas dotadas de aprendizagem. são aplicadas (ou que sua aplicação seja

proposta) a objetivos militares.

O caso típico é aquele do ataque de improviso, com mísseis para testes nucleares, feito

por uma superpotência a outra. A superpotência atacada dispõe de um período muito

breve de tempo para organizar a represália: a decisão de fazer partir seus próprios

mísseis, por outro lado, é tão importante que há necessidade de se estar certo de não

incorrer em erro e, pelo menos nos Estados Unidos da América a ordem neste sentido é

pedida ao Presidente. Alguém escreveu, há alguns anos, um artigo aparentemente

científico intitulado: "Um Programa para Simular o Presidente dos Estados Unidos";

não aconteceu, porém, que Johnson ou Nixon tenham delegado sua própria

responsabilidade a uma máquina.

As aplicações do tipo militar constituem, indubitavelmente, uma grande incógnita. Até

que se verifique um conflito mundial, de dimensões muito grandes, não se poderá saber

exatamente quanto êxito será obtido com o emprego dos computadores eletrônicos. É

certo, todavia, que uma das nações que mais fez no emprego dos computadores

eletrônicos foram os Estados Unidos (que sem dúvida mantêm a vanguarda mundial

neste ponto) e, se os Estados Unidos aplicaram computadores para conduzir seu conflito

Page 58: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

no Vietnã, pode-se concluir que os êxitos no campo militar não são certamente mais

freqüentes ou prováveis do que os no campo civil, comercial, industrial ou científico.

Com as considerações precedentes, não pretendo concluir que os computadores

eletrônicos sejam inúteis: tal afirmação seria falsa. Sustento, no entanto, que o emprego

dos computadores eletrônicos não pode, por si só, resolver os problemas de gestão,

administração, organização e estrutura - cuja confusão está provocando a

ingovernabilidade e a instabilidade dos grandes sistemas.

Poder-se-ia arguir, contra as teses precedentes, que os êxitos das missões lunares

americanas demonstram a capacidade de uma das nações mais adiantadas do nosso

planeta: não apenas a de realizar um vasto sistema de funcionamento sem objeção, mas

também de utilizar, no contexto deste sistema, computadores eletrônicos perfeitamente

integrados com as outras máquinas e com os homens no objetivo comum de conseguir

precisões operacionais quase inimagináveis. A contra-objeção é a seguinte: antes de

tudo, as astronaves diretas à Lua partem e voltam uma única vez, razão pela qual - pelo

menos na fase crítica e pelo decurso rápido da missão - não se verifica fenômeno algum

de aglomeração ou de congestionamento. Em segundo lugar, o governo americano, pelo

menos até 1969, despendeu nos programas espaciais mais de cinco milhões de dólares

por ano, ou seja, mais do que o que despendeu, conjuntamente, em transportes aéreos,

abastecimento de água, transportes terrestres, serviços postais, desenvolvimento

regional, controle comercial e pesquisas sobre energia térmica, com finalidades

militares: um investimento deste vulto merece indubitavelmente certo sucesso. Em

terceiro lugar, os recentes cortes nos recursos da NASA e as sensíveis renúncias e

reduções nos programas espaciais americanos parecem indicar que o sistema constituído

pelos americanos, pelos homens, pela organização e pelos financiamentos necessários

ao prosseguimento das missões espaciais, não possui, entre tantas de alta qualidade, a

característica de assegurar a própria sobrevivência e não é, portanto, diferente de todos

os outros sistemas em via de degradação, dos quais aqui nos ocupamos.

E chegamos à. quinta afirmação, referida no início deste capítulo e concernente ao

perigo do controle total dos indivíduos por parte de uma sociedade completamente

dirigida por computadores, numa nação tecnicamente evoluída. Não se pode negar que

os controles financeiro e fiscal podem ser muito eficientes se forem confiados a

fichários obtidos por meio de computadores eletrônicos.

Neste ponto, deve-se observar que se os controles excessivos sobre as atividades

individuais são julgados um mal, então a ineficiência dos sistemas deve ser considerada

positiva. Como de costume, o risco mais grave não está estreitamente relacionado à

simples existência dos meios mecânicos e automáticos modernos, mas ocorre quando

estes meios são utilizados por indivíduos no poder e por organizações de fins

meramente nocivos. Não deveria ser necessário recordar que as degradações e

destruições dos seres humanos, realizadas com técnicas industriais pelos nazistas, não

foram, nem mesmo longinquamente, rivalizadas por algum outro poder estatal. Todavia,

na Alemanha nazista, os planejadores eletrônicos ainda não haviam sido inventados.

IX Falta de água e excesso de lixo

Page 59: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

E. R. Poubelle tinha trinta e nove anos quando foi condecorado com uma medalha de

prata, durante o assédio prussiano a Paris, em 1870: mas não deve a isto a sua fama,

nem à meritória atividade que desenvolveu por alguns anos como professor de direito.

Contudo, o seu nome é pronunciado em Paris com mais freqüência do que o de De

Gaulle, em virtude do fato de que, há mais de oitenta anos, são chamadas de poubelles

as latas de lixo que se encontram nos portões de todas as casas parisienses, em

conformidade a uma postura baixada por Poubelle, durante o seu mandato como

Prefeito do Sena, no período de 1883 a 1896. A postura municipal está em vigor ainda

hoje e, toda noite, os moradores devem despejar o lixo nas poubelles (que devem ser de

modelo padronizado, aprovado pela Prefeitura), que são esvaziadas na manhã seguinte

pelo Serviço de Limpeza Urbana,

A rapidez do serviço de coleta de lixo urbano, obtida recorrendo-se gratuitamente à

colaboração obrigatória dos cidadãos para executar uma parte não descurável. é, por

certo, digna de nota: mais notável ainda é o fato de que esta inovação sistemática levara

oitenta anos para atravessar os Alpes e ser adotada em Roma, onde foi imposta pela

Comuna somente em 1970 - o que confirma que também no campo da limpeza urbana

os sistemas não são governados de modos melhores e mais modernos. Esta observação

pode parecer banal a quem tenha visto os montões de lixo nas ruas - como por exemplo,

em Londres e Roma -, acumulados principal, mas não exclusivamente, em ocasiões de

greves do pessoal encarregado e que são sintomas de uma ineficiência bem mais grave.

A este propósito, observe-se incidentalmente que a consideração sistêmica de um

processo ou de um serviço não pode prescindir da análise e da avaliação do rendimento

do pessoal nele empregado e, portanto, também dos aspectos econômicos e da reação

dos usuários a esse respeito, reação que pode conduzir, eventualmente, a ações sindicais

ou greves, que reduzem a eficiência ou anulam a prestação desse serviço.

A pouca eficiência dos serviços de coleta e eliminação do lixo teve como conseqüência

nos Estados Unidos da América, e, recentemente, em proporção apreciável, também na

Europa, o uso, em escala cada vez maior, dos trituradores de lixo incorporados às águas

- que pulverizam os refugos domésticos e os eliminam, em suspensão na água, através

dos despejadores. Para obter-se o bom funcionamento desses trituradores, é necessário

fazer escorrer água em abundância das torneiras, o que redunda num aumento do gasto

hídrico para uso doméstico e no agravamento do estado de abastecimento das grandes

cidades.

A parte este exemplo ulterior de um caso de ineficiência de um sistema (limpeza

urbana), que contribui para fazer com que outro sistema entre em crise - é interessante

observar que o total sistema de armazenamento e distribuição da água é um dos menos

racionalizados e mais desorganizados. O esbanjamento de água no uso doméstico é

combatido muito fracamente - como nos Estados Unidos, com campanhas publicitárias

contra as torneiras que vazam ou melhor, é institucionalmente aceito, como nos

reservatórios de Acqua Pia, em Roma, onde cada um dos quais recebe diariamente um

metro cúbico de água com jato contínuo: quando a alimentação direta não é utilizada, a

água vai encher um tanque e, quando também este está cheio, é despejada fora

ininterruptamente, vindo a terminar nos esgotos. As necessidades crescem, portanto, de

modo despropositado e grandes vales entre os montes Cat;skills são cheios de água para

funcionar como reservatórios para a cidade de Nova York.

Page 60: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

De alguns anos para cá, fala-se do lixo com frequência crescente, mas, geralmente,

também se fala dos despejos Industriais e de seu perigo e, particularmente, da poluição

do ar (smog), da água dos rios e dos lagos, que estão tão contaminados que não

permitem mais a reprodução da vida vegetal e animal.

Ora, o problema dos despejos industriais e da poluição conseqüente existe

indubitavelmente: basta lembrar que o volume dos despejos anuais das indústrias, tanto

sólidos quanto líquidos, é, numa nação desenvolvida, da ordem de 10 milhões de metros

cúbicos. A gravidade do problema é avaliada segundo ângulos muito diversos: J. Paul

Austin, presidente do Conselho de Administração da Coca-Cola Co. americana, sustenta

que se os despejos industriais não forem limitados, racionalizados e tornados

inofensivos, os Estados Unidos se transformarão, dentro em breve, num vasto cemitério.

A Coca-Cola começou a contribuir, modestamente, para esta obra de minimização dos

danos pela inundação dos despejos, instalando nas proximidades dos supermercados

máquinas que pulverizam o vidro das garrafas usadas e não recuperáveis, de modo a

produzir areia que pode ser utilizada nos parques para divertimento das crianças.

A Reynolds Metals Co. iniciou um programa para a coleta e a reutilização dos bujões de

alumínio vazios, pagando meio centésimo de dólar por cada um deles. No outro extremo

se encontram, diversamente, aqueles industriais, sobretudo americanos, que sustentam

que qualquer legislação mais severa, tendente a obrigar as indústrias a assumir a

responsabilidade pelas conseqüências danosas dos despejos que produzem, causaria

ônus maiores, insustentáveis para as empresas e justamente num momento em que a

economia atravessa uma fase difícil e é necessário que a indústria nacional se mantenha

competitiva em relação à concorrência estrangeira.

Qualquer que seja a posição que se adote com referência a este dilema, o principal

perigo dos despejos industriais em relação aos domésticos, como produtores de

poluição, continuará a existir, apenas na hipótese de que o desenvolvimento industrial, o

aumento da população e o crescimento das dimensões dos sistemas industriais

continuem imperturbaveis por um período indefinido de tempo.

As poluições industriais representam, por certo, um problema grave, mas os processos

que lhes dizem respeito têm um decurso relativamente lento. Suas conseqüências são a

destruição das riquezas naturais e desequilíbrios ecológicos, e não creio serem estes os

aspectos mais relevantes ao fim das considerações a curto prazo relativas às crises

concomitantes dos sistemas de alta concentração. Poderão tornar-se muito mais

relevantes e prementes se as concentrações continuarem a crescer com uma

interpenetração maior do que a atual, entre áreas industriais e urbanas, e se as situações

de instabilidade continuarem a manter-se, sem conduzir a um estado de crise grave e

estável.

A curto prazo, pelo contrário, a presença de, montões de lixo, nas cidades poderá

acarretar conseqüências mais simples e mortais do que as dos despejos industriais. A

matéria-prima não falta - nas metrópoles, das menores às maiores, os volumes anuais de

lixo coletado vão de alguns milhões a uma ou duas dezenas de milhões de metros

cúbicos. As propostas de seu tratamento industrial remunerativo - como o de comprimir

o lixo a pressão muito alta, transformando-o em pequenos blocos, resistentes e

compactos, utilizáveis como aterro para as futuras pavimentações das vias de

comunicação - estão longe de serem concretizadas. Da mesma forma, as aplicações de

Page 61: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

modernas tecnologias não são suficientes, neste campo, para fornecer soluções rápidas e

eficazes. Há alguns anos atrás, uma companhia séria e moderna como a Honeywell teve

um grande insucesso com um sistema de instrumentação eletrônica (compreendendo

medidores de carga, analisadores, registradores, integradores e um grande painel

luminoso, que deveria indicar qualquer dano na aparelhagem) para o controle da rede de

esgotos do Condado de Sacramento, na Califórnia.

É pouco provável que uma crise múltipla dos sistemas urbanos comece por causa de um

deterioração da situação da limpeza urbana. Mas, em lugar disso, o contrário é quase

certo: isto é, na presença de crises de outros sistemas urbanos (eletricidade, transporte,

água) a crise da limpeza urbana torna-se inevitável. Nas metrópoles, o crescimento

rapidíssimo dos montões de lixo agrava as outras crises que se estão verificando (como

por exemplo, prejudicando o fluxo do tráfego, já congestionado), acarreta novas crises

em conseqüência da primeira, como os incêndios produzidos por pessoas inexperientes,

embora bem-intencionadas, que esperam destruir as pilhas malcheirosas pelo fogo -,

facilita a difusão de endemias e doenças - colocando à disposição dos ratos novas fontes

de alimento e favorecendo-lhes, portanto, a mobilidade e agravando qualquer situação

crítica, diminuindo, portanto, a prestação de serviços de todos aqueles que se acham

envolvidos em rápidos fenômenos de degradação dos sistemas.

X - A conjuração dos sistemas urbanos

John Doe vive em Nova York e já está convencido de que os próximos dez anos serão

muito piores do que os dez passados.

Já lhe sucedeu, muitas vezes, ficar bloqueado no tráfego com o seu carro, por algumas

horas e, em um par de ocasiões, ser obrigado a abandonar a viatura e a retornar a casa a

pé, voltando, posteriormente, noite avançada, para recuperar o seu veículo.

Já lhe sucedeu ficar muitas horas sem eletricidade e as conseqüências não foram muito

graves: os legumes que estavam na geladeira se deterioraram e teve de beber uns dois

martinis quentes, teve que fazer muitos percursos a pé e, de manhã, não se barbeou, pois

embora possua três barbeadores, todos são elétricos.

Já lhe sucedeu sofrer um atraso de cinco horas para tomar o avião para Boston (ao passo

que o vôo deveria durar apenas cinqüenta minutos) e perder um dia de trabalho.

Já lhe sucedeu não poder comunicar-se telefonicamente com seus correspondentes

comerciais e permanecer isolado deles por um período em que perdeu boas

oportunidades e certa quantia de dinheiro.

John Doe está preocupado com a possibilidade de que seus filhos se viciem em drogas;

está preocupado com a inflação; está preocupado com os abalos da bolsa; tem medo de

que irrompa a guerra nuclear; receia não conseguir pagar os seus débitos e as suas

hipotecas. Não dispõe, no entanto, de muitas informações sobre a probabilidade de que

todos esses eventos venham a se verificar e não está fazendo muito com vistas a

preparar-se para uma crise.

Page 62: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Ao contrário, a probabilidade de que uma crise se verifique é grande e está crescendo

continuamente, tanto em Nova York, como em qualquer cidade densamente povoada.

Eis um dos modos pelo qual pode se verificar o apocalipse.

Tudo poderá começar com a simples coincidência de uma paralisação do tráfego nas

estradas e nas ferrovias. Como conseqüência, ao final do turno dos controladores em

grandes aeroportos, o pessoal da substituição não chega em sua totalidade. Os

controladores - que já trabalham dez horas diárias durante seis dias da semana - devem

permanecer no serviço, seguindo dois aviões por minuto, na tela do radar, guiando-os na

decolagem e na aterrissagem procurando evitar colisões. Na décima-nona hora de

serviço quase contínuo, a capacidade de atenção de um controlador da torre do

aeroporto O'Hare, em Chicago, diminui sem que o homem, embriagado de cansaço, se

dê conta. O controlador comete um erro grave.

Um quadrimotor, prestes a aterrar, colide com um DC-9, que mal decolara, e os dois

aviões tocam um fio de alta tensão, interrompendo-o.

A carga elétrica do fio interrompido reparte-se, instantaneamente, sobre os outros fios,

já sobrecarregados. As proteções entram automaticamente em funcionamento e a

corrente de toda a rede elétrica de Illinois, Michigan, Ohio, Pennsylvania, Nova York,

Connecticut e de Massachusetts deixa de funcionar. Mas, desta vez, a escuridão é

demorada: dura dias e dias.

O mês é janeiro. A temperatura é de quinze graus abaixo de zero. Recomeça a nevar e

os quebra-neve não podem entrar em funcionamento porque as estradas estão

bloqueadas. Muitos carros consomem toda a gasolina, mantendo o motor inutilmente

ligado enquanto estão bloqueados no tráfego imóvel. O reabastecimento de gasolina

torna-se impossível porque os motores elétricos das bombas não funcionam. Muitos

motoristas abandonam os seus veículos, contribuindo para tornar inextricáveis as

obstruções.

Os trens não funcionam e muitos empregados são obrigados a acampar em seus locais

de trabalho, onde procuram aquecer-se acendendo o fogo. Propagam-se incêndios que

não podem ser extintos porque os carros dos bombeiros encontram as estradas

impedidas e não podem alcançar os locais desses incêndios. Uns poucos milhares de

pessoas começam a morrer onde se produzem cenas de pânico.

A alvorada gélida do dia seguinte encontra a situação inalterada. Cinqüenta milhões de

pessoas são abandonadas à sua própria sorte, sem reabastecimento e sem informações.

Todos tentam telefonar e a rede telefônica, em sua totalidade, fica paralisada. Muitos

procuram alcançar a pé seus familiares, iniciando marchas de algumas dezenas de

quilômetros, que não logram completar: alguns morrem na neve, outros pedem asilo que

não lhes podem conceder e recorrem à violência e por isso mesmo encontram reações

violentas. Começam a entrar em ação muitos milhares das dezenas de milhões de armas

de fogo que estão em poder de particulares nos Estados Unidos.

As providências de emergência e de restauração não podem igualmente ser tomadas,

porque a paralisação dos transportes impede os encarregados de atingir os locais de

trabalho.

Page 63: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Durante o segundo dia é proclamado o estado de emergência e as forças armadas

assumem todos os poderes civis. A paralisação dos aeroportos impede que se recorra a

pontes aéreas para substituir os reabastecimentos através das estradas e ferrovias.

Recorre-se aos helicópteros militares - mas a capacidade destes logo se revela

nitidamente insuficiente para as necessidades.

Ao terceiro dia, começam os saques aos supermercados, os quais os militares tentam

reprimir: algumas centenas de pessoas são mortas nos tumultos.

John Doe se dá conta de estar totalmente despreparado para este tipo de situação. As

duas velas se acabam e todos os aparelhos elétricos dos quais a casa estava repleta estão

parados e inúteis.

José Gutierrez - o porto-riquenho - se encontra muito mais à vontade. Seu nível de

subsistência é mais baixo e as novas condições não lhe são particularmente

esmagadoras: jamais teve telefone e está habituado a ter a luz cortada por falta de

pagamento. A sua casa, portanto, é equipada para funcionar em condições mínimas e

primitivas.

Está acostumado porque sempre viveu em uma situação mais competitiva e mais

violenta. Será José quem matará John Doe para assegurar-se da posse de alguns bujões

de gás liquefeito. Será José quem sobreviverá.

O número de mortos pelo frio e pela fome será, todavia, muito maior e muito mais

significativo do que o das vítimas dos atos de violência. Uma notável contribuição ao

cômputo total será dada pelas mortes nos hospitais.

Durante as duas semanas de duração da crise, morrerão alguns milhões de pessoas.

Depois, as coisas retomarão o seu curso, mas a retomada será lenta e estruturada sob

níveis muito mais baixos do que os precedentes.

A longa paralisação das centrais térmicas, das indústrias e dos motores de combustão

interna tem por efeito a drástica diminuição da poluição atmosférica, mas a

impossibilidade de remover tempestivamente alguns milhões de cadáveres faz com que

recrudesçam as nuvens de smog. As condições deterioradas de higiene favorecem a

propagação de doenças epidêmicas, que causam outras mortes.

O surgimento do último fator letal é decisivo: trata-se da peste bubônica, que mata a

metade da população restante. Estima-se que, no século XIV, a peste destruiu entre a

metade e dois terços da população da Europa. Este flagelo não se apresentou mais de

modo sensível após os primeiros anos dos 800, mas, como escreveu Hans Zinsser em

seu livro Rats, Lice and History: "Não temos qualquer explicação satisfatória para a

aparição das epidemias de peste nos países ocidentais e devemos considerar que,

malgrado ser o bacilo da peste infeccioso, a abundância dos ratos e as circunstâncias de

que estes são ocasionalmente infeccionados pela peste e constantemente infestados de

pulgas, o surgimento de uma epidemia requer um peculiar acréscimo de muitas

condições, que afortunadamente não se verificaram simultaneamente na Europa

ocidental e na América no último século. O indício mais provável é o do aumento da

domesticação dos ratos. As epidemias de peste no homem são precedidas, usualmente,

Page 64: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

por vastas epizootias entre os ratos. Em virtude dos tipos de habitação, os modos de

armazenar e de viver, de construir as despensas, etc., que gradativamente se

desenvolveram nos países civilizados, as migrações dos ratos através das cidades e

lugarejos não se verificam mais como anteriormente. Os focos de peste entro os ratos

ficam, portanto, circunscritos a famílias e colônias isoladas."

Escrevia Zinsser, em 1935, que, há agora a novidade constituída pela disponibilidade

dos antibióticos, que, em condições normais de controle higiênico e de funcionamento

dos mecanismos de abastecimentos e das estruturas da sociedade poderiam,

indubitavelmente, abortar uma nova epidemia rio seu nascimento. No entanto, uma crise

urbana como a acima descrita, poderia mesmo ter implicações ecológicas capazes de

desencadear uma epidemia e poderia, posteriormente, manter condições de

desorganização e de escassez de tal monta que permita à epidemia o prosseguir

imperturbada sua ação mortal.

Os ecologistas que hoje lançam gritos de advertência para as perturbações do equilíbrio

do nosso planeta e se colocam em guarda contra a destruição completa de espécies

animais, contra as poluições, contra o aumento de anidrido carbônico na atmosfera - o

qual consegue uma lenta e contínua elevação da temperatura - se encontram agora

enfrentando uma ameaça muito mais grave e direta e de ação muito mais rápida.

Quando esta ameaça for reconhecida, será demasiado tarde para se fazer algo.

Estas crises urbanas não serão exclusividade de Nova York, que serve apenas de

paradigma, mas verificar-se-ão em todas as metrópoles. Esses dramáticos

acontecimentos não poderão, por outro lado, produzir uma Idade Média instantânea.

Constituirão, porém, o primeiro germe e o fator desencadeante de uma profunda

degradação da sociedade e da própria civilização, tal como a conhecemos.

Em quase todas as culturas, os homens jamais se limitaram a sofrer as catástrofes, mas

procuraram sempre atribuir a culpa a alguém, mesmo quando se tratava de secas,

tormentas, dilúvios ou ciclones. Os bodes expiatórios têm sido pessoas isoladas, como

Giona, grupos étnicos, como os hebreus; categorias definidas gratuitamente como

feiticeiros; povos vizinhos; e, às vezes, têm sido até inventados, como totens, deuses e

demônios, antropomórficos ou não, cuja ira era considerada como uma causa das

desgraças que sucederam à humanidade.

Já em 1965, muitos americanos acreditaram que o black-out da eletricidade tivesse sido

causado premeditadamente por agentes comunistas ou anarquistas, mas não foram

empreendidas ações punitivas com bases nessas convicções. Após uma catástrofe

verdadeiramente trágica, a caça às feiticeiras se manifestará de forma tão violenta que,

em comparação a ela, as perguntas, acusações e perseguições do Senador McCarthy

parecerão simples brincadeiras. Inocentes serão mortos - talvez queimados - e crescerá o

número já elevado dos sacrificados. o temor de uma acusação gratuita aterrorizará os

inocentes, a fobia ao propagador de epidemias destorcerá as mentes dos acusadores, não

apenas os estrangeiros mas também os concidadãos serão considerados suspeitos, a

sociedade tornar-se-á mais instável e aprofundar-se-ão as feridas e os danos produzidos

pela crise catastrófica.

As capacidades de organização e de previsão, que governaram até agora, e bastante mal,

a subsistência e o desenvolvimento da sociedade, resultarão inúteis perante as variações

Page 65: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

de urna realidade da qual não houve exemplo semelhante na memória humana. Serão

freqüentes as atividades dissipadoras; ou danosas, decididas simplesmente pela

incapacidade de adaptação à nova situação e pelo hábito de encarar a realidade segundo

velhos esquemas.

Ninguém estará apto a sugerir, por muito tempo, um modelo de funcionamento ou de

previsão de algum sistema sobrevivente e, menos ainda, do supersistema constituído

pela total sociedade,

Mas, obviamente, o supersistema - no qual configuramos hoje a sociedade - não terá

lugar entre os sobreviventes, mas só funcionará em muitos pequenos sistemas, com

escassa comunicação entre si, autárquicos e dotados de certa estabilidade. Esta é outra

semelhança das condições futuras com aquelas da Idade Medieval precedente (séculos

IV a XIV) e podemos esperar que, de novo, as drásticas diminuições da população nas

áreas da terra mais densamente povoadas produzam deslocamentos maciços de homens,

primeiramente para fugir das regiões atingidas pela catástrofe - e, no caso de que,

efetivamente, se desenvolvam epidemias de peste, esses e os movimentos se difundirão

rapidamente - e, posteriormente, para voltar a preencher as zonas de pouca densidade

habitacional e tornadas desejáveis pela livre disponibilidade de casas e objetos

abandonados.

É difícil prever quais as vicissitudes que caracterizarão esses deslocamentos de

população. Provavelmente, a maior parte das migrações será em pequena escala e a

distâncias curtas, com um movimento do tipo pendular em torno dos centros

inicialmente ocupados pela metrópoles e megalópoles.

Relevantes deslocamentos populacionais poderiam, inversamente, suceder em longas

distâncias e representar o ingresso dos povos do terceiro mundo na área atualmente

ocupada pelos despojos da civilização moderna.

Disto resultariam colisões e tragédias que, a prazo relativamente longo, teriam

profundos efeitos sobre o desenvolvimento e as características do provável

renascimento sucessivo. É provável, com efeito, que os decréscimos de população sejam

muito menores nos países do terceiro mundo, onde o crescimento menos fenomenal dos

sistemas instáveis pode ser considerado equivalente a um fator de maior estabilidade.

Poderia ocorrer que a China não sofresse degradações no funcionamento dos próprios

sistemas simultaneamente àquelas dos do mundo ocidental. E isto parece, assim, muito

provável, tendo em vista as respectivas e atuais diretrizes de desenvolvimento. Nesse

caso, será de se esperar uma expansão dos chineses além de seus limites, primeiramente

em direção aos territórios da União Soviética e, depois, em todo o resto do mundo.

É de se imaginar que as correntes de pensamento e, as ideologias da revolução chinesa

ou dos movimentos por ela inspirados venham a ter efeitos, fracos e longínquos, sobre o

desenvolvimento do renascimento que sucederá à próxima Idade Média, assim como as

tradições iniciais de eventuais xamanistas, florescentes entre os Hunos, quando ainda

estavam muito afastados da Europa possam ter sido transmitidos através de migrações e

choques de povos e culturas e haver influenciado, talvez, alguns aspectos do

renascimento ou do humanismo.

Page 66: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

As hipóteses que descrevi são trágicas e, no capítulo XVII, sugiro alguns modos

improváveis para tentar evitar a confirmação das mesmas.

Poder-se-ia sustentar que tudo está correndo muito bem, que estamos no melhor mundo

possível e que é bom que a nossa civilização caia para dar lugar a uma nova, melhor e

mais florescente, num período relativamente remoto. Segundo este ponto de vista,

teremos muito mais a lamentar do que se chorou pelo declínio e queda do Império

Romano: o que podemos afirmar é que o progresso e o desenvolvimento verificados

entre os séculos XIV e XX trouxeram algo de melhor do que o produzido pelos gregos e

romanos. E se esta é a consideração mais otimista que, podemos fazer, equivale a dizer

que a situação é dramática.

XI - A inutilidade da guerra como meio

de destruição

O mundo, tal como é, agrada somente a uns poucos otimistas, suficientemente

fantasiosos para imaginá-lo melhor. Por outro lado, muitos são os homens que querem

mudá-lo e crêem que, presentemente, a atividade mais importante seja a de abalar o

"sistema", em cuja existência reconhecem o mais grave mal e o principal obstáculo a

qualquer melhoramento. Muitos são, também, os que fazem objeção ao mundo atual e

gostariam, talvez, de destruir, também, a estrutura do poder e da economia, mas julgam

que o perigo mais iminente seja a destruição de todo o planeta em conseqüência de uma

nova guerra mundial e que o primeiro objetivo a se propor seja, portanto, o do

desarmamento.

Antes de examinar as causas remotas da degradação dos grandes sistemas e de

descrever o que sucederá após uma degradação total, é conveniente discutir as teses às

quais, para ser breve, chamarei de tese da contestação e do desarmamento. Dediquei a

esta discussão este capítulo e o seguinte.

Se o temor de uma grande guerra mundial fosse, efetivamente, justificado, seria

razoável a preocupação: antes de tudo, evitar a destruição dos grandes sistemas e,

depois, evitar a deterioração.

Talvez não existam substitutos para a guerra. Há muitos decênios vêm sendo feitas

propostas para abolir os conflitos armados e substitui-los por arbitragens internacionais.

Os organismos mais importantes surgidos dessas propostas foram a Liga das Nações -

que não serviu para evitar a guerra da Abissínia, a guerra da Espanha e a Segunda

Guerra Mundial - e a ONU, que não conseguiu impedir a guerra da Coréia, a guerra do

Vietnã, o conflito árabe-israelense, a guerra entre Biafra e Nigéria, nem outras

intervenções armadas mais breves e eficientes, como as elos russos na Hungria e na

Tchecoslováquia.

Lewis Mumford, em seu livro The Culture of Cities, procurou esboçar uma teoria

genérica que prevê o trágico final, por eventos bélicos, do excessivo desenvolvimento

das cidades. Escreve Mumford que ao estágio dos depoli, isto é, de agregação primitiva,

a cidade passou ao estágio de polis e, depois, aquele de cidade-mãe, metropoli. O

Page 67: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

irreversivel processo de desenvolvimento conduz a metrópole a transformar-se em

megalopoli e a desorganização desta produz, fatalmente, a falsa condição da ditadura;

assim, existe a tirannopoli. Para manterem o seu poder os tiranos incitara os cidadãos à

guerra, ou os precipitam, forçosamente, em guerras imperialistas, as quais, juntamente,

com a carestia e as epidemias, destroem as cidades e transformam-nas, ela necropoli, O

último o definitivo estado.

E curioso que Mumford, ao republicar o livro após a Segunda Guerra Mundial,

destacasse que a primeira edição, de 1936, era profética, como o demonstraram as

destruições de Varsóvia, Londres, Stalíngrado, Nuremberg, Berlim, Frankfurt,

Leningrado e Rotterdam, alem de, naturalmente, Hiroshima e Nagasaki. Hoje, 25 anos

depois, todas essas cidades foram reconstruídas e são sede de fenômenos de

congestionamento, demonstrando a inutilidade da guerra corno freio do crescimento dos

sistemas.

Pode-se chegar a conclusões similares, examinando o gráfico da população mundial de

1850 a 1950. De 1850 a 1900, a população do inundo passou de 1.150 milhões a 1.650

(aumento de 43%) e no segundo cinqüentenário o aumento foi de 44%, de 1.650

milhões para 2.350, não obstante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, cujos

efeitos são visíveis apenas no gráfico.

É instrutivo o exame duma tabela na qual estão discriminadas as populações em 1935 e

1966 e as perdas de homens devidas à guerra, em 10 países envolvidos no conflito:

População

1935 Perdas

1939-45 em milhões População

1966

Iugoslávia 14.0 1.70 20.0

Polônia 32.0 5.60 32.0

França 41.0 0.75 50.0

Itália 41.0 0.35 52.0

Grã-Breta 45.0 0.57 55.0

Alemanha 66.0 9.50 77.0

Japão 84.0 6.50 100.0

U.S.A 137.0 1.04 196.0

U.R.S.S. 162.0 13.50 236.0

Tchecoslo 14.5 0.50 14.2

Total 636.5 40.31 832.2

Malgrado a morte, por causa da guerra, de 6,4% da população dos países acima

considerados, nos anos compreendidos entre 1939 e 1945, no período 1935-1966 a

população total dos mesmos cresceu em 31%, ou seja, a expansão demográfica não

diminuiu em proporção apreciável, nem mesmo em virtude da maior guerra que jamais

se travou. Mas há, também, outra consideração ainda mais importante: Patrick M. S.

Blackett, era seu livro Military and Political Consequences of Atomic Energy,

publicado em 1948, demonstrou como os bombardeios de áreas urbanas, durante, a

Segunda Guerra Mundial, tiveram conseqüências militares quase desprezíveis. Os

bombardeios de Hamburgo, por exemplo, no verão de 1943, mataram mais de 60 mil

pessoas, mas tiveram, também, o efeito de abaixar muitíssimo o padrão de vida da

cidade e a demanda de pessoal afeito aos serviços urbanos; como conseqüência pôde ser

Page 68: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

suprida a carência de mão-de-obra de que antes se ressentiam as indústrias da região e,

dentro de cinco meses, a indústria havia recuperado 80% do potencial de produção

precedente. O abalo da produção da indústria alemã deveu-se, por outro lado, aos

bombardeios de precisão efetuados nos sistemas de transportes.

A situação presente difere muito daquela da Segunda Guerra Mundial, em conseqüência

da atual disponibilidade de bombas nucleares. Se supusermos, porém, que, em caso de

uma terceira guerra mundial, venha a ser posta em prática a lição aprendida durante a

segunda a respeito dos efeitos um tanto minguados dos bombardeios indiscriminados,

seremos levados a julgar que, também, numa próxima guerra, as hecatombes,

provavelmente, serão irrelevantes em relação ao fenômeno mais maciço da explosão

demográfica.

Pode-se, certamente, indagar, nesta altura, se os arsenais nucleares preparados pelas

grandes potências - e, já agora, também pelas não tão grandes - são quantitativamente

suficientes para aniquilar essas mesmas nações e, talvez, aniquilar completamente toda

a humanidade. Entretanto, a hipótese do holocausto nuclear - tornada possível pela

capacidade de overkill (isto é, de exterminar todo adversário) já adquirida pelos menos

pelos Estados Unidos e pela União Soviética - não muda, substancialmente, o quadro

das previsões sobre o futuro de nossa civilização. E vejamos por quê.

A primeira eventualidade - isto é, a da destruição da totalidade, ou quase, do gênero

humano - é, seguramente, a pior sob todos os pontos de vista, mas equivale ao

desaparecimento da civilização, tal qual a conhecemos, e, como quer que seja, ao

desaparecimento dos aspectos de congestionamento das concentrações urbanas que

formam o objeto da minha indagação. Esta hipótese letal tem, por isto, conseqüências

horríveis, e tão definitivas que não vale a pena determo-nos sobre ela. Nem por isto,

porém, se deve deixar de procurar evitar a concretização da hipótese - ou seja, o uso

indiscriminado e generalizado de bombas nucleares: todo movimento que propugna

pelo desarmamento ou pela diminuição das armas nucleares deve ser apoiado; no

entanto, as modalidades desse apoio, as esperanças ou as probabilidades de êxito no

intento nada têm a ver com a exposição que vou aqui conduzindo.

A segunda eventualidade é a de que as armas nucleares não venham mais a ser

utilizadas, pelo próprio temor de uma destruição total e de que continuem, portanto -

como acontece atualmente -, as guerras do tipo convencional. Esta segunda hipótese não

é improvável e há o fato precedente da abstenção do emprego de gás asfixiante, durante

a Segunda Guerra Mundial. Como se viu, porém, o número de pessoas eliminadas por

meio de guerras convencionais é irrelevante em relação às crescentes dimensões dos

problemas de que nos ocupamos aqui, e para os quais também esta segunda

eventualidade é destituída de interesse. Em caso de sua verificação, poder-se-ia, quando

muito, remover o problema por alguns anos e, retardar a instabilidade em cuja direção

os grandes sistemas continuariam, igualmente, a marchar.

A única hipótese relevante é a de uma guerra atômica, que reduza em um ou dois

bilhões, em tempo curtíssimo, a população mundial. Não parece provável que isto possa

ocorrer, porque seria necessário com esse objetivo, que o número de bombas nucleares

explodidas e os locais das explosões fossem escolhidos e alvejados com muita precisão.

O objetivo visado pela estratégia de cada uma das partes em conflito seria o de infligir,

Page 69: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

classicamente, o máximo dano a uma ou mais das outras nações implicadas e isso

conduziria a amplos morticínios e a todas as outras coisas desse calibre.

A única circunstância que poderia limitar significativamente o número de mortos é que

a ineficiência e a ingovernabilidade dos grandes sistemas não estão, por certo, limitadas

aos sistemas urbanos, mas caracterizam, igualmente, os sistemas militares. Não está

excluído, pois, que os militares procurem matar uma grande porcentagem do gênero

humano, mas consigam, somente, eliminar algumas centenas de milhões de homens, ou,

quando muito, um bilhão. O estado de coisas que se viria, assim, a criar seria, então,

muito semelhante àquele já descrito da metade aproximada da população dos únicos

países desenvolvidos, já que nestes estariam concentrados os objetivos da maior parte

dos mísseis nucleares.

Para todos os fins sistêmicos, portanto, a hipótese de uma nova grande guerra mundial

representa somente uma variante, não particularmente significativa, de outras hipóteses

já levantadas e não configura, certamente, a ação de um fator limitativo capaz de evitar

o alcance da instabilidade dos grandes sistemas e assegurar o não advento da próxima

Idade Média, que se apresenta como a eventualidade ainda mais trágica, cuja

probabilidade cresce independentemente do estado de paz ou de guerra do mundo.

XII - Inutilidade do contestação

A 7 de agosto de 1934, a equipe de futebol da cidade de Dun Dealzan, na República da

Irlanda, jogava fora de casa, no campo de Banbridge, em Ulster. A equipe católica

viajara de trem, e ao chegar sentiu a atmosfera hostil reinante. Depois, durante a partida,

o ânimo do público protestante estava exaltadíssimo e o jogo para os visitantes era, de

fato, difícil. Chovera e o terreno estava pouco firme. Os católicos estavam, também,

enlameados, além de contundidos, quando retornaram ao vestiários, derrotados por 5 a

1. Foram acompanhados à estação por uma pequena multidão que queria gozar até o

último minuto o abatimento dos vencidos.

Quando o trem do retorno se movimentou em direção ao sul, uma voz de dentro da

multidão gritou: "Esta noite, rangerão os dentes no Vaticano."

A idéia contida na base dessa história - de que Pio XI seja posto, continuamente, a par

de qualquer caso mínimo em que se confrontem católicos e protestantes, eficientemente

informado pelas famosas ramificações capilares das organizações jesuíticas e dos

ativistas católicos - não é a menos absurda das suposições de muitos contestadores dos

dias de hoje, a respeito do poderio da grande indústria e da sua infalível eficiência em

planejar a arregimentação dos trabalhadores de todos os níveis e a submissão das

massas a um controle total.

Não é fácil referir-se brevemente, e de modo significativo, aos pontos de vista dos

contestadores e dos que protestam, porque faltam em seus escritos as definições dos

termos usados; as passagens e as concatenações entre os argumentos são gratuitas; as

informações sobre os fatos são cronicamente deficientes, de tal forma que qualquer

interpretação das idéias expostas pode ser, apenas, hipotética.

Page 70: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Os contestadores não são citados unicamente por se exprimirem mal, mas, sobretudo,

porque suas idéias mudam muito rapidamente e se desviam de seu curso. Pouco tempo

depois de que Herbert Marcuse colocou junto em seus estudos Hegel, Marx e Freud,

Charles Reich tentou superá-lo inventando a etiqueta da Consciência III, aplicável

àqueles que se liberaram e seguem todo o instinto, fumando maconha e não aceitando

responsabilidades. Falar-se-a, agora, por alguns meses, do revigoramento da América

imaginado por Reich. Contudo, provavelmente, enquanto escrevo, qualquer outro está

preparando uma nova fórmula, que porá de lado Charles Reich e proporá novas

liberações e verdades mais intuitivas e vastas, mas, igualmente arbitrárias.

De qualquer maneira, as teses dos que protestam são bastante conhecidas e divulgadas.

Segundo elas, a industrialização estabelece o terror na sociedade e força a maior parte

da população a executar trabalhos alienantes. Mesmo quando os poderosos não

empreendem ações violentas e diretas, sua propaganda abole toda a possibilidade de

escolha, já que as alternativas apresentadas são ilusórias, em sua totalidade,

correspondentes à finalidade de manter o sistema em funcionamento. A cibernética e os

computadores podem contribuir para o controle total da existência humana.

Este modo de encarar as coisas é característico, propriamente, dos drop-out, isto é,

daqueles que escaparam do sistema e deixaram de freqüentar a escola ou de trabalhar.

Não existem, no meio deles, verdadeiros maoístas. Com efeito, mesmo entre aqueles

que assim se designam, não se encontram senão alguns vestígios dos princípios

fundamentais da revolução chinesa: o uso da razão; o recurso da argumentação;

prioridade da instrução - particularmente da técnica e científica -; conservação e

desenvolvimento da indústria; aumento da produtividade; melhoramento da organização

não somente política e, ideológica, mas também contábil, hierárquica, produtiva -;

disciplina militar, não apenas com os objetivos táticos, mas baseada na figura do

soldado, que é igualmente cidadão, técnico e estudante.

Os verdadeiros maoístas propor-se-iam objetivos concretos, a curto prazo, e entre eles

estaria, seguramente, o de manter a integridade e a eficiência não somente dos

equipamentos industriais, mas da totalidade dos mecanismos de produção. os drop-out,

pelo contrário, afirmam serem irrelevantes quaisquer questões de organização,

quaisquer problemas concretos e quaisquer planos propostos para satisfazer as

necessidades de grandes massas de homens. Não consideram importante o fato de que a

liberação da coerção industrial faça diminuir a produtividade e que, conseqüentemente,

milhões de homens ficam reduzidos à miséria. Negam a concatenação lógica entre a

falta de! técnicos que estudam de modo coercitivamente eficiente -, a conseqüente

incompetência técnica do pessoal e os desastres e as hecatombes devidos a essa

incompetência. Consideram importante unicamente a destruição do sistema.

Essa destruição deveria começar com a negação de certas necessidades, como a luta

pela sobrevivência, a necessidade de se ganhar a vida, os princípios da eficiência, da

competição, a necessidade de produtividade e a de reprimir os instintos. A essa negação

das necessidades podem acompanhar ações destrutivas para minar a autoridade e

estabelecer a paz.

O objetivo final é o de atingir o reino da liberdade: para tal é preciso que se

desenvolvam novas necessidades, no sentido biológico, e uma teoria do homem que

gere nova moral, herdeira e negativa da moral judaico-cristã, que libere as atividades

Page 71: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

sexuais da repressão que sempre sofreram e assegure a todos solidão, calma, beleza e

felicidade "não merecida". Para todos, o trabalho deveria tornar-se, um jogo.

Ora, é uma boa norma de higiene mental escolher-se um trabalho que agrade, divirta e

apaixone. Mas essa simples consideração, puramente importante para a orientação das

escolhas pessoais, não é suficiente para resolver, de modo geral, os dilemas da

população inteira. Ter-se-ia atingido na República Popular Chinesa e no Japão o

objetivo de tornar o trabalho, em si, desejável além dos limites do horário e

prescindindo da remuneração: nos países do Extremo-Oriente, entretanto, esse

resultado, seria corretamente obtido por meio de fortes estímulos de motivação, e mais

facilmente assim do que por meio de vagas declarações de inexorabilidade do fim.

Essas aspirações poderiam ser consideradas como religiosas, por sua gratuidade e

também porque indicam que muitos daqueles que as exprimem esperam a libertação por

um profeta armado, que destrua os poderosos e proteja os oprimidos; por um ditador

bondoso, que guie os confusos. E, fatalmente, o messias aguardado pelos contestadores

se assemelharia muito ao homem forte desejado pelos reacionarios.

As semelhanças entre certos movimentos de protesto e os reacionários não são casuais.

De fato, os dois tipos de movimentos têm uma base comum anti-intelectual, ambos

afirmam a primazia de ação sobre a teoria e sobre o pensamento em geral, ambos

recorrem prazerosamente mais à violência do que à persuasão e veneram

romanticamente a juventude. As instituições de alguns drop-out assemelham-se mais às

de Adolf Hitler do que às de Henri Bergson. Com o mesmo nome, os movimentos de

anti-cultura recordam a famosa frase de Goebbels: "Quando ouço a palavra cultura, levo

a mão à pistola."

A culpa mais grave dos contestadores é, no entanto, a sua ingenuidade. É falsa a sua

crença em um vasto esquema pré-ordenado, danoso e desprezível, atribuído ao

complexo comercial-industrial-militar.

Esses esquemas, quando existem, podem ser considerados, seguramente, execráveis -

mas, não certamente, pré- ordenados com eficiência. A ingovernabilidade dos grandes

sistemas, que venho descrevendo, é um fato muito concreto e demonstra que as reais

involuções das sociedades desenvolvidas não são premeditadamente desejadas por

quem quer que seja.

Assim, vamos sendo introduzidos nesses sistemas de modo casual e desordenado e este

mesmo modo implica em que o sistema se degradaria e findaria por si só, mesmo que

não sofresse ataques externos.

É estranho que aqueles que dedicam a maior parte de sua atividade à enumeração e à

crítica dos defeitos da sociedade contemporânea tenham deixado de considerar o maior

defeito: a deficiência e a fragilidade sistêmica.

Quando novas estruturas eventuais da sociedade têm certa esperança de se

desenvolverem e de durarem, ocorre, novamente, que estão sendo considerados os seus

aspectos sistêmicos e que estão sendo resolvidos, de modo racional, problemas que

envolvem grandes números. Essa necessidade se impõe, com idêntica força, tanto em

relação às estruturas antigas, que não podem sobreviver se não forem racionalizadas,

Page 72: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

quanto às novas, que não podem, sequer, começar a existir se as mesmas condições não

se verificarem.

Aqui se encontra, ao contrário, o mais completo vácuo, Ninguém desenvolveu planos ou

projetos para obter, contemporaneamente, a elevação do padrão de vida de grandes

massas de pessoas, a disponibilidade de tempo - seja dos mestres, seja dos alunos - para

dedicar-se à instrução da massa que atinge níveis cada vez maiores, renunciando,

porém, a manter alta a eficiência e a aumentar a produtividade. As preocupações

ideológicas impedem até de se suspeitar da existência dos problemas sistêmicos. Parece

que as noções técnico-científicas dos contestadores derivam de mentes com, pelo

menos, um século de idade. Nos últimos cem anos, pelo contrário, sucederam muitas

coisas tanto no campo da ciência pura, quanto no da técnica e da organização industrial

e interpretar o mundo atual como se fosse o de Thomas Alva Edison, com o acréscimo

de alguns milhões de televisores, de automóveis e de estabelecimentos industriais um

pouco maiores, não conduz, por certo, à compreensão da realidade contemporânea.

A ninguém valeria a pena ocupar-se das afirmações e teorias dos contestadores se a

consideração única de seu grande número não levasse a julgar que, as suas ações podem

acelerar, sensivelmente, a degradação dos grandes sistemas.

Já se sentem as conseqüências indiretas de seus atos. A porcentagem crescente de drop-

out entre os jovens depaupera as novas levas de técnicos e de profissionais, criando uma

situação à qual muitos industriais atribuem a responsabilidade pela decrescente

produtividade de suas organizações.

As ações diretas - como as agitações, as greves gerais, as ocupações de universidades,

fábricas, edifícios públicos e os bloqueios das estradas - podem paralisar a vida de uma

nação inteira, como ocorreu na França, em meados de 1968. Estimou-se que a economia

francesa necessitaria de um ano inteiro para recuperar as perdas sofridas naquele Inês de

paralisação.

Entretanto, essas atividades subversivas são, de modo geral, episódicas, e não parecem

capazes de conduzir a revoluções propriamente ditas, por causa da falta de planos

preestabelecidos: os bons revolucionários devem ser, também, planejadores decentes.

Odon Pohr - que foi, por breve período, ministro do governo revolucionário de Bela

Kun, em Budapeste - sustentava que todo golpe de estado tem lugar no momento em

que o sucesso ou o insucesso são decisivos apenas pela disponibilidade ou pela falta de

uma série apropriada de selos postais.

Não é necessário crer-se numa vasta conspiração internacional que coordene, as revoltas

estudantis de Berkeley e da Sorbone, de Berlim e de Roma, para atribuir, também, aos

fenômenos das contestações as características de um grande sistema. No entanto, não se

pode nem mesmo falar em uma degradação desse sistema, porque nunca atingiu, nem

parece que vá atingir, um grau apreciável de eficiência. Os contestadores, portanto, não

conseguiram criar uma nova sociedade, mas poderiam ser bem sucedidos, em qualquer

caso, ao darem golpes fatais em sistemas já degradados. Todavia, ainda nisso, suas

probabilidades de sucesso são mínimas. Em julho de 1970, o jornal clandestino East

Village Other publicava o seguinte manifesto:

Page 73: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

"Seja o primeiro, em seu isolamento, a fazer ir pelos ares a rede de energia elétrica do Nordeste."

"O East Village Other tem o orgulho de anunciar o primeiro black-out anual dos bichos-papões,

marcado para as 15 horas de quarta-feira, 19 de agosto de 1970. Coloquemos, uma vez mais, o

sistema em prova. Liguem todos os eletrodomésticos sobre os quais consigam pôr as mãos. Ajudem

as companhias produtoras e distribuidoras de energia elétrica a recolocar em ordem os seus

balanços, consumindo o máximo que possam de energia e, oxalá, esforcem-se para consumir ainda

um pouco mais. Sirvam-se, particularmente, dos aquecedores elétricos, das torradeiras, dos

condicionadores de ar e qualquer outro aparelho de alta absorção de energia. Os refrigeradores

regulados ao máximo e deixados com a porta aberta podem refrescar um grande apartamento, de

modo divertido (1). Após uma tarde de alegria de consumo nos encontraremos no Central Park,

para uivar à lua.

"Sintonizem-se! Ataquem as tomadas elétricas! Façam tudo ir pelos ares!

"Os hospitais e outros serviços de emergência estão advertidos e convidados a tomar as precauções

devidas."

----------------- (1) Não é verdadeiro: se se deixa uma geladeira ligada e com a porta aberta, a temperatura do ambiente se

eleva, em vez de baixar.

----------------

Na realidade, a 19 de agosto de 1970 nada foi pelos ares e aquele grupo particular de

contestadores somente demonstrou a sua ineficiência e o seu reduzido número de

seguidores. Um black-out de quatro horas verificou-se, por outro lado, em Nova York,

em fevereiro de 1971, sem que ninguém o houvesse planejado ou premeditado.

O efeito do consumo excessivo de energia elétrica, realizado como um ato de rebeldia,

não poderia ser decisivo sequer no futuro, se os sistemas possuíssem a solidez, bem

maior do que a atual, sem a qual não podem ser conservados e muito menos

continuarem a expandir-se. Mas essa solidez não existe e os contestadores poderiam

poupar esforços se se dessem conta de que o odiado sistema está se abalando por si só.

É necessário esforçar-se duramente para entender como funciona um processo muito

complicado, quer natural, quer governado pelo homem, mas a compreensão é facilitada

pela lógica inerente ao próprio fato de que o processo funciona e que nisso são

reconhecíveis as numerosas concatenações entre causas e efeitos. Muito mais difícil é

compreender por que um processo complicado pára de funcionar: para diagnosticar um

fenômeno patológico, precisa-se, de fato, primeiro conhecer bem a fisiologia. Essas

considerações manifestam o erro no qual incorrem certos revolucionários improvisados.

Por isso, nos países desenvolvidos do Ocidente, a sabedoria convencional honra

formalmente a lógica, a racionalização, a economia (seja no sentido de frugalidade, seja

no de otimização dos esforços capazes de atingir fins preestabelecidos) e o senso de

responsabilidade. Percebe-se, porém, que os resultados não são satisfatórios e se atribui

a culpa pelas instabilidades, degradações, ineficiências, esbanjamentos, injustiças,

opressões, desigualdades e decadência, aos aspectos formais da sabedoria convencional.

Conclui-se, portanto, que se poderiam obter melhores resultados, invertendo-se,

simplesmente, aqueles princípios e cultivando a irresponsabilidade, o ilogismo, a

improvisação e não se percebe que, contrariamente, são esses os próprios inimigos a

serem combatidos, que já contêm, na realidade, as ações e omissões dos conservadores.

Em tal erro não incorreram os comunistas chineses: se forem os únicos a ficarem

alienados disto, merecerão bem herdar o primado dos impérios caídos.

Page 74: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

XIII - Uma causa remota da degradação

dos sistemas: a crise da administração

James Burnham era um mau profeta: as suas previsões das vitórias nazistas e das

expansões soviéticas foram desmentidas em pouquíssimos anos, logo depois de ele as

ter formulado.

Mesmo o seu livro The Managerial Revolution, que há trinta anos fez muito barulho,

parece hoje enganado até no título que teria soado melhor: The Managerial Involution.

Que o mismanagement, ou o desgoverno das empresas de todas as dimensões, seja uma

realidade dura e geral, vem negado nas declarações oficiais das organizações de classe

dos dirigentes - mas deveria, no entanto, resultar claro desde quando o expus até o

momento.

Uma confirmação indireta da realidade desta triste situação encontra-se nos numerosos

livros jocosos publicados sobre o assunto nos últimos anos: a lei de Parkinson, o

princípio de Peter sobre o alcance do nível de incompetência e muito mais seriamente,

L'organizzazione, de Robert Townsend. É banal observar que estes livros contêm

imprecisões e exageros, porque se não os contivessem não seriam divertidos. Nem

seriam divertidos se não existissem, de fato, as atitudes e as incompetências expostas ao

ridículo. Townsend, por exemplo, afirma brutalmente que nos Estados Unidos da

América existem 6.001 corporações e que 6.000 destas são dirigidas deficientemente (a

exceção segundo ele seria os Nader's Raiders, a organização de defesa dos

consumidores e do público, cujo fundador, Ralph Nader, tornou-se famoso pelos seus

ataques à General Motors). No entanto, se não fosse verdade que, digamos, ao menos a

metade desta corporação é verdadeiramente mal governada, a afirmação de Townsend

não faria nem mesmo rir e, soaria simplesmente como tirada de um paranóico. Uma das

organizações que passam por ser programadas de um modo férreo, eficientíssimo -

alguns diriam: premeditado - é certamente o Pentágono. É instrutivo ler os resultados de

um relatório redigido em 1970 por um comitê de 14 dirigentes industriais (entre os

quais estavam o presidente da Metropolitan Life Insurance Co., da Thompson-Ramo-

Wooldridge, da Teledyne Rian Aeronautical e da Caterpillar Tractor Co.) que

trabalharam um ano, por encargo do presidente Nixon, para analisar e criticar os

mecanismos do supremo órgão militar americano. O relatório sustenta:

que no Pentágono existem 35.000 empregados a mais, ocupados principalmente

em tarefas secundárias.

que todo ano são despendidos milhares de dólares na tentativa infrutífera de

fazer funcionar armas fundamentalmente estragadas,

que os contratos assinados pelo Departamento de Defesa são muito grandes e

que todo o processo de compras militares deveria ser revisto e modificado

completamente.

que a organização excessivamente centralizada do Pentágono impede

freqüentemente a obtenção de qualquer decisão.

Page 75: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

O presidente do comitê, G. W. Fitzhugh, disse numa entrevista: "Não encontramos

problemas de pessoas, mas problemas de organização. É de se admirar que alguma coisa

funcione! "

E esse estado de coisas poderia, certamente, explicar muitos insucessos americanos no

Vietnã.

Nos últimos decênios a capacidade empresarial média tornou-se provavelmente

constante, mas deixou de adequar- se às acrescidas dimensões dos problemas.

Se tivermos presentes os níveis do produto nacional bruto de várias nações no inicio do

século e hoje, se confrontarmos os esforços, as realizações de há setenta anos (sistemas

ferroviários, metrôs de Paris, Londres, Nova York, etc.) com os atuais, os dirigentes

contemporâneos não farão uma bela figura. Como já disse, é incrível que nos Estados

Unidos da América o Bay Area Rapid Transit System, que deverá servir São Francisco,

Oakland e as cidades adjacentes à baía, seja o primeiro sistema de transporte rápido

urbano cuja realização foi decidida depois de 1908.

Existem exceções notáveis, como algumas realizações IRI na Itália (o sistema de auto-

estradas, as novas usinas de aço, etc.), mas na grande maioria dos casos a insatisfação é

também muito justificada.

Com estas poucas páginas sobre o mau governo das empresas, não pretendo ditar regras

definitivas sobre a teoria da direção, mas apenas justificar o meu pessimismo no que

tange à possibilidade de os processos degenerativos dos sistemas serem interrompidos e

transformados em regeneradores.

Se os dirigentes de hoje não sabem adotar as soluções convencionais - que chamei de

manuais - não se pode esperar que saibam inventar as soluções novas e excepcionais

agora imprescindíveis.

A incompetência do administrador freqüentemente é escondida pelos sucessos a

pequeno prazo das organizações que ele governa e que são devidos a contingências

favoráveis ocasionais. As suas causas principais são: a falta de informações (seja no

sentido de incapacidade de recolher e interpretar dados correntes, ou input, seja no

sentido de ignorância de técnicas e procedimentos profissionais), a falta de imaginação,

a falta de coragem, a firme adesão a um manual de regulamentos por incapacidade de

adaptação às mudanças do mundo real e de reconhecimento de que nenhum conjunto de

regras prevê todo evento possível.

A estas causas juntam-se os vícios de caráter, que muito freqüentemente são justificados

ou racionalizados pelo stress, ou pela alienação, ou sobrecarga ou mesmo - nos

ambientes menos sofisticados - pelo esgotamento nervoso. Este não é um manual de

psicoterapia e assim deixo rapidamente o assunto: mas desejo, em primeiro lugar, lançar

uma sugestão pessoal a todos aqueles que sustentam que o seu caráter é sempre formado

definitivamente e não é mais modificável. Aconselho a estes a leitura do livro de

Bernard Russell A Conquista da Felicidade, escrito em 1930, mas atual ainda hoje, e

dos comentários de Santo Inácio de Loiola - um dos maiores administradores que

existiram até hoje - acerca de seus exercícios espirituais e da constituição da Companhia

Jesus. Há um livro que espera ser escrito sobre a ciência da administração interpretada à

Page 76: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

luz das teorias e dos procedimentos de Santo Inácio. Minha opinião é de que a releitura

de Santo Inácio, feita com a mente nos problemas da organização industrial e do

trabalho, sugeriria princípios e soluções novos mais significativos que aqueles de

Maquiavel (testados de maneira pouco feliz por Burnham e pelo menos de modo

bastante divertido por Antony Jay no seu livro Management and Machiavelli, além de

tantos outros).

Confrontado com os não especialistas Maquiavel, Santo Inácio e Russell, os

testemunhos contemporâneos de ciência da administração não dão boa impressão e os

artigos das revistas especializadas, no máximo, se limitam a exposições genéricas e

óbvias, a classificações de escasso interesse ou à aplicação de processos matemáticos

extremamente simples em casos de problemas decisivos.

Uma exceção merecedora de destaque é o artigo de Robert A. Frosch, Assistente

Secretário da Marinha, intitulado "A new look at systems engineering", aparecido no

número de setembro de 1969 do IEEE Spectrum. Frosch invoca simplesmente a

aplicação da engenharia de sistemas à engenharia de sistemas, das análises de sistemas

às análises dos sistemas e das técnicas de administração à própria administração. Sua

apresentação dos lados negativos da atual engenharia de sistemas sublinha que a maior

parte da responsabilidade deve ser atribuída aos administradores, que os projetam ou os

fazem funcionar. As suas críticas merecem ser referidas uma por uma.

1 . Muitos project manager fazem confusão entre o mundo de papel - constituído pela

documentação relativa a um sistema e pelo prosseguimento de follow-up do seu estado

de adiantamento - e o mundo real - constituído pelas pessoas que executam

efetivamente o trabalho e pelos resultados concretos daquele trabalho. Todo

administrador que passa seu tempo no próprio centro de informações, em vez de nos

lugares onde o trabalho é feito, está sempre destinado ao desastre, os centros de

informações podem somente fornecer informações sobre fatos depois que acontecem - a

pessoas não envolvidas no projeto.

2. As técnicas de controle (tipo PERT ou diagramas de adiantamento) não devem ser

tomadas literalmente (como é feito): elas podem refletir somente uma esquematização

da realidade. Mas aqueles que querem aceitar isso muito estritamente renunciam às

indispensáveis características não seqüenciais dos procedimentos reais de

desenvolvimento e projeção, que permitem modificar e melhorar os primeiros estágios

de um projeto em função de elementos saídos de estágios sucessivos.

3. As técnicas previsíveis impõem uma definição a priori de resultados do sistema,

custos e tempo. É preciso evitar o erro de confrontar os resultados, os custos e os

tempos efetivos somente com as previsões feitas inicialmente e de emitir um juizo

positivo se, sobretudo, os dados efetivos coincidem com os previstos. O critério justo é

o de determinar se os resultados e os custos satisfazem às exigências do sistema, não

aquele de controlar se estão de acordo com as previsões.

4. Os sistemas não devem ser considerados como existentes somente no espaço, isto é,

numa situação fixa e imutável no tempo, mas são concebidos como existentes no

espaço-tempo, ou melhor, aptos a exigir modificações e a ser facilmente modificáveis

de modo que possam continuar a fornecer resultados úteis e significativos até mesmo no

mundo real que se apresenta depois de um tempo suficientemente grande de sua entrada

Page 77: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

em função, diferindo em geral, principalmente, de como era quando os sistemas foram

projetados.

5. É necessário que existam as especificações do sistema, mas não é preciso esquecer

que podem somente formar um conjunto abstrato, que, necessariamente, constitui

apenas uma parte de uma descrição total do objetivo prefixado. É possível, ainda,

realizar um sistema, ou em geral um objeto, que responda ao subconjunto das

específicas - mas que esteja muito longe de representar uma solução sensata do

problema.

Quem tem prática de problemas sistêmicos - ou talvez, mais simplesmente, quem é

dotado de certo bom-senso - poderia pensar que estas críticas de Frosch sejam muito

óbvias e se justifiquem somente quando dirigidas à má engenharia de sistemas. Frosch

prevê a objeção e escreve: "As coisas são definidas pelo que é feito, não pelo que é dito,

e se aquilo que eu descrevo é má engenharia de sistemas, posso dizer somente que

raramente vejo outro tipo."

A mesma objeção poderia ser feita às propostas de Frosch com o objetivo de melhorar a

situação futura. Empregamos nossos melhores homens para redigir documentações

dirigidas aos seus superiores, enquanto ninguém se ocupa de dirigir os negócios; para

cada grande problema é necessário procurar-se um homem competente com bons

colaboradores e assegurar-se que compreendam o verdadeiro problema: não somente

uma determinada cena que alguém escreveu, mas verdadeiramente aquilo que está na

mente daqueles que a redigiram.

Um dos sintomas mais claros da gravidade da situação é o de que as críticas e sugestões

são óbvias, mas nem por isso devem deixar de ser feitas o sublinhadas dramaticamente.

Um outro administrador típico é Aurelio Peccei, que no seu recente livro Verso l'abisso

(editado pela Etas Kompass em 1970) escreveu:

" ... a minha opinião de dirigente é que, frente àquele caso-límite de má direção, que é o governo

atual das coisas humanas, precisar-se-á recorrer a um apurado estudo de aceitos e de orientação... e

depois, na fase de decisão e aplicação a uma boa dose de técnicas refinadas e de pragmatismo."

As intervenções concretas, para dar seguimento ao estudo, deveriam ser representadas

segundo Peccei por procedimentos de emergência em escala mundial, decididas com a

concordância de todas as nações avançadas, compreendidos os Estados Unidos e União

Soviética - e são indispensáveis se se quer realizar "uma grande, mudança de direção"

nos anos setenta. Os procedimentos indispensáveis, porém, não garantem um bom

resultado e é necessário também dizer que os encargos do estudo dado a comissões de

técnicos mascaram freqüentemente a escolha de não fazer nada, retardando cada decisão

concreta.

É interessante, notar, além disso, que o livro de Peccei foi escrito em 1968 e que mesmo

permanecendo válida a sua análise de base segundo a qual a sociedade inteira se dirige

para uma era de desordem e de crise, o período de menos de dois anos transcorrido,

desde então, foi suficiente para produzir fatos novos nitidamente mais preocupantes que

aqueles que podiam induzir a lançar um grito de alarma em 1968. De fato, Peccei

preocupava-se particularmente com a diferença tecnológica entre os Estados Unidos da

América e a Europa e das suas conseqüências: evasão de cérebros da Europa para a

Page 78: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

América, dificuldade crescente das empresas européias devido às suas dimensões

insuficientes, gastos e dissipações de recursos europeus em empresas fadadas ao

insucesso e falta de disponibilidade daqueles recursos para a solução de problemas

urgentes; crescente passivo da balança tecnológica da Europa em comparação com os

Estados Unidos, devido às insuficientes atividades européias de pesquisa e

desenvolvimento. Por conseguinte, a previsão era de que a distância entre os Estados

Unidos - onde o progresso seria confirmado em um ritmo uniformemente acelerado - e a

Europa - estagnada ou em vias de regressão teria continuado a crescer. A

inatingibilidade dos sucessos americanos teria terminado por criar um complexo de

inferioridade tecnológico dos europeus em relação aos americanos, que contribuiria para

limitar posteriormente as novas empresas e as novas iniciativas.

Sabemos, contudo, que a maioria dos exemplos de incipiente degradação dos sistemas,

que já citei, vem justamente dos Estados Unidos da América e se manifestaram em 1969

e em 1970. Isto depende do fato de que o nível tecnológico e dirigente americano, ainda

que indiscutivelmente mais alto, é, todavia, inadequado para compensar a maior

gravidade dos problemas dimensionais e de instabilidade, uma vez que são maiores as

dimensões dos sistemas existentes nos Estados Unidos. Quanto à Europa, devemos

certamente atentar para o fato de que fenômenos dissipativos, congestivos e de crises se

verificam em correspondência de densidade e de massas críticas mais baixas do que nos

Estados Unidos.

Sobre estes eventos futuros incidirão notadamente as ações ou omissões dos governos: e

é notório que as organizações governantes e públicas em muitos países foram reduzidas

à impotência, se não à paralisação, justamente pela sua ineficiência organizadora e pela

inadequação dos seus quadros dirigentes. Na verdade, mesmo quando os políticos

tomam decisões, não chegam a obter alguma ação que as coloque em prática.

Sem tentar uma casuística exemplificadora, além da ineficiência do Pentágono, já

citada, recordo a proposta do Presidente Nixon, de abril de 1969, para que a OTAN

dedicasse ao menos uma parte da sua atividade à solução dos problemas civis

(transportes urbanos e extra-urbanos, ecologia, aproveitamento hidrico, etc.) : hoje, a 2

anos de distância, vemos que aquela proposta autorizada não conduziu a nenhuma ação

concreta. Os exemplos de origem italiana poderiam ser numerosissimos: limitar-me-ei,

somente, a citar as intermináveis (e por vezes, obscuras) discussões, acusações e

declarações programáticas concernentes ao imobilismo governante e para sublinhar o

quanto seja sintomático o fato de ter sido criado um termo relativamente novo para

referir-se a este tipo de situação.

Indiquei os problemas de mismanagement como uma causa remota da próxima Idade

Média, mas é preciso não esquecer que esta é uma causa sempre presente no ato que

continua a acompanhar o desenvolvimento dos fenômenos de degradação e para aguçá-

los. O mismanagement está presente em toda parte: no terceiro mundo onde se registram

níveis de vida extremamente baixos na União Soviética - onde provavelmente

representa uma herança (das administrações czaristas) que induziu Andrei Amolrik a

perguntar-se se a União Soviética resistirá até 1984 -, das nações ocidentais

desenvolvidas - onde protege a ineficiência e constitui o germe mortal das futuras crises

congestivas e dissipativas. Quem propõe e quer fazer grandes planos de saneamento e

de melhoramento da sociedade moderna não deve subvalorizar a virulência desta

podridão (para usar as enérgicas expressões com as quais Luigi Einaudi designava o

Page 79: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

instituto da prefeitura) e não pode eximir-se de projetar procedimentos depurativos não

diferentes daqueles que um bom dirigente encarregado de sanear uma sociedade

industrial em situação ruinosa inseriria no seu programa.

XIV - Diferenças nos período iniciais e na

duração da próxima Idade Média em

vários paises

"I am a scientist."

O significado dessa frase em inglês é nitidamente diverso daquele de sua tradução

literal: "Sou um cientista."

Não quero, com isto, apresentar um exemplo das ciladas nas quais pode cair aquele que

traduz literalmente, ao argumento da impossibilidade de se produzir maquinalmente

traduções profissionais de bom nível. Quero demonstrar, em lugar disso, como estão

refletidas nessas expressões verbais algumas diferenças fundamentais na maneira de

considerar a ciência e a técnica, em diversos países: neste caso, a Itália e os países

anglo-saxões.

Um inglês, ou um americano, que diga: "I am a scientist", não faz, em geral, uma

afirmação capaz de ser posta em ridículo, mas fornece a informação de que o seu

trabalho desenvolve-se numa instituição científica - eventualmente universitária - e que

consiste numa atividade de pesquisa teórica ou experimental. A afirmação é,

tendenciosamente, fátua, ainda que possa ser feita com objetivo polêmico, para indicar

que quem a pronuncia tem opiniões do tipo lógico - experimental e não baseadas em

preconceitos, impressões vagas ou informações de segunda mão, descontroladas e

incontrolaveis. Naturalmente, sucede também que o anglo-saxão que afirme ser um

cientista seja, de fato, um impostor, procurando encobrir a sua impostura com um manto

científico - mas, nesse caso, as críticas que lhe venham a ser feitas tendem a negar a sua

qualidade de cientista, já que se aceita a convenção de que os cientistas são honestos e

competentes.

Na Itália, a frase "Sou um cientista" quase não é mais ouvida. É urna frase que soa

enfatuada e vazia e que nenhum cientista sério sente, em geral, vontade de pronunciar.

O italiano que quer acrescentar autoridade gratuita aos seus argumentos antes o faz,

formalmente, citando a sua posição ou os seus títulos acadêmicos, mas nunca invocando

a ciência. É muito provável que isto dependa de uma difundida (e por vezes

injustificada) crença dos italianos na incompetência básica de quem quer que seja, e,

portanto, também dos cientistas. Esta desconfiança na ciência e nos homens se estende,

na Itália, igualmente à tecnologia e aos sistemas de qualquer dimensão.

A desconfiança na tecnologia é uma atitude que deveria ser considerada séria, positiva e

capaz de evitar graves desastres. Verificaram-se, de 1946 a 1967, em todo o mundo, 45

incêndios de vultosas dimensões: exatamente um terço dos mesmos ocorreu nos Estados

Unidos, ao passo que nenhum teve lugar na Itália, nem na Rússia, ou na Polônia. A

explicação desse fato poderia ser encontrada, simplesmente, na circunstância de que nos

Page 80: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Estados Unidos as construções de madeira são mais comuns do que outros lugares,

sendo, por isso, mais fácil que um incêndio lá, uma vez irrompido numa cidade, assuma

grandes proporções. Creio, no entanto, que esta seja uma explicação simplista, não

sendo, por outro lado, mais sólida e convincente. É sabido que as normas para execução

das instalações elétricas internas são, nos Estados Unidos, mais rígidas e prudentes do

que na Itália, e, sobretudo, que, na América, tais normas são efetivamente observadas

com escrúpulo, enquanto que os dispositivos italianos correspondentes são,

freqüentemente, ignorados. Não é raro, por exemplo, que, na Itália, um lustre seja

suspenso por meio dos mesmos fios elétricos que conduzem a corrente às lâmpadas, ou

que uma plaqueta de fiação dupla seja fixada por intermédio de preguinhos que

atravessam o plástico de isolamento, ao passo que, na América, as soluções

improvisadas desse tipo são, praticamente, desconhecidas.

Os usuários americanos confiam, conseqüentemente, na boa execução de suas

instalações elétricas e exigem, aliás, a disponibilidade de uma potência elétrica,

superabundante, que possa fazer frente, também, às necessidades futuras: em vista

disso, os níveis de, intervenção das proteções eletromagnéticas (das ,válvulas") são

dispostos com valores muito altos, freqüências muito altas, de modo que, quando se

verifica um curto-circuito por razões acidentais, as proteções não entram em

funcionamento e o curto-circuito tem excelentes probabilidades de produzir um

incêndio. O eletricista italiano, ao contrário, leva em conta que a instalação elétrica é de

pouca confiança e, conseqüentemente, dispõe as proteções eletromagnéticas de maneira

que entrem em funcionamento não apenas quando a potência excede o estritamente

necessário e, então, quando ocorre um curto-circuito, ao invés de produzir um incêndio,

a corrente é imediatamente interrompida.

O exemplo citado pode ser considerado banal, mas não o é: situações análogas

verificam-se em outros setores. O dirigente italiano que decide implantar um sistema

administrativo através de computadores, em seu íntimo, não crê inteiramente que o

novo sistema funcione e, portanto, o mantém, paralelamente, em coexistência com o

sistema precedente, antiquado e manual, havendo apenas a conseqüência de que se o

novo sistema eletrônico apresentar defeitos, é fácil voltar, naturalmente, ao antigo e

assegurar a continuidade do serviço.

O dirigente americano, que se inclina a depositar maior confiança - às vezes ilimitada -

nos novos sistemas, indubitavelmente avançados, que se decide a empregá-lo, mantém-

no desguarnecido de reservas e pode encontrar-se sem qualquer sistema eficiente numa

situação de grave emergência.

As concentrações das megalópoles das costas do Atlântico e do Pacífico dos Estados

Unidos e da área dos grandes lagos em torno de Chicago devem sua densidade e sua

própria existência à disponibilidade de um nível tecnológico muito evoluído. As

considerações precedentes indicam que esse estado de coisas implica em riscos

acentuados. Isto é, parece provável que quando se verificar a próxima Idade Média, as

suas manifestações iniciais tenham lugar nos Estados Unidos da América.

As situações involutivas do tipo medieval difundir-se-ão, sucessivamente, nos países

europeus antes que nas outras nações do continente americano não somente por causa

das concentrações européias serem maiores em relação às canadenses e latino-

americanas, mas também pelo efeito do brain drain - ou êxodo dos cientistas, às avessas.

Page 81: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Este é um fenômeno que começou, já, a manifestar-se por volta do fim da década de 60,

em virtude da retração econômica americana e dos conseqüentes e significativos cortes

nas verbas destinadas à pesquisa avançada - tanto por parte das empresas privadas,

quanto das organizações governamentais e, particularmente, da NASA. os tecnólogos,

cientistas, engenheiros, pesquisadores e empresários de origem européia, emigrados

para os Estados Unidos, tornando aos seus próprios países, na Europa, tentaram

desfrutar novamente de sua capacidade realizadora, dedicando-se a atividades similares

às que desenvolviam na América. Ainda que em condições econômicas difíceis,

encontrariam grandes organizações dispostas a lhes dar crédito, ao menos porque se

deduziria que certas atividades tecnológicas produtivas - e destinadas a tornar mais

complexos os sistemas existentes e a criar novos - poderiam constituir uma solução

adequada às difíceis condições de mercado de trabalho e de economia. Essas atividades

contribuíram, pois, para o aumento das concentrações sistêmicas e para o incremento da

probabilidade de que os grandes sistemas atinjam as condições de instabilidade

presentemente responsáveis pelo surgimento da Idade Média americana.

Na fase seguinte, que poderia ocorrer poucos anos talvez um lustro - após o início da

primeira fase americana, a Idade Média começará nesta ordem: Alemanha, Holanda,

Bélgica, Franca, Áustria, Itália, Inglaterra, Espanha, União Soviética, Portugal,

Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romjnia, Iugoslávia, Grécia e Turquia.

A inserção da Inglaterra no sétimo lugar entre as nações européias se deve à paralisação

no desenvolvimento inglês: de 1960 a 1970, o produto nacional bruto britânico cresceu

muito lentamente, aumentando em apenas 28% no decênio. Isto é considerado um

indício perigoso, mas, ao mesmo tempo, esta sustação do desenvolvimento afasta o

alcance da instabilidade. Em comparação, na mesma década 1960-1970, o produto

nacional bruto da Alemanha, que, em 1960 era quase igual ao da Grã-Bretanha, sofreu

um aumente de aproximadamente 70%.

A relação não compreende a Suécia, porque, como observei a propósito dos sistemas

postais, nesse país a ciência, a tecnologia e a indústria são muito desenvolvidas, ao

passo que as concentrações são limitadas e a densidade demográfica é de 18 habitantes

por quilômetro quadrado (cerca de 10% menor do que a dos Estados Unidos e 11 vezes

menor do que a da Itália). A Suécia, com 8 milhões de habitantes (menos do que

Londres) está na vanguarda, por exemplo, da geração e da transmissão de energia

elétrica (com linhas de altíssima tensão mesmo em corrente contínua). A Suécia, em

virtude disso, não estará sujeita a graves crises sistêmicas e se constituirá numa ilha de

eficiência e, talvez, de progresso contínuo, dentro do contexto geral que, apresenta um

mar mundial de retrocesso e morte. O clima ajuda-la-á a não ser invadida pelos povos

em fuga das ruínas de suas civilizações. Um irreversivel progresso da nação

escandinava, simultâneo à degradação e à paralisação das nações mais desenvolvidas,

reconduzirá a Suécia à condição que já desfrutou no século X, quando a sua influência

alcançava o Mar Negro e no século XVII, quando era a maior potência protestante do

continente europeu. No ano 2000, funcionários suecos governarão Nova York, Moscou,

Berlim e Paris.

No outro hemisfério, a Idade Média começará no Japão, talvez mesmo antes que nos

Estados Unidos. No Japão, de fato, a produção, a exportação e a concentração

cresceram, no último qüinqüênio, à razão de 10% ao ano, ao passo que a inflação foi da

ordem de 17% ao ano. Essa nação dirige-se, célere, para a instabilidade.

Page 82: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Outra questão interessante é a duração da próxima Idade Média. Já defini (no capítulo I)

a Idade Média: "o período de tempo decorrido entre o momento em que for atingido o

máximo do overshoot e o momento em que ultrapassado o mínimo - se iniciará um novo

período de expansão". Claro está, porém, que desses fenômenos de involução e

sucessiva expansão, em larga escala, não se pode, sensatamente, fazer muitas previsões

a respeito do desenvolvimento qualitativo mais provável.

Poder-se-ia deduzir que as eventuais migrações dos povos serão mais rápidas do que o

foram há dezesseis séculos; que as informações históricas, científicas e técnicas

permanecerão acessíveis a um número bastante grande de pessoas e que,

conseqüentemente, qualquer abalo dos níveis culturais prevalecentes será um fenômeno

facilmente, ou, pelo menos, rapidamente, reversível. Com base nessas considerações, a

próxima Idade Média deveria durar cerca de um século A duração deveria ser

ligeiramente maior nos Estados Unidos, onde a nova era se iniciará antes do que outros

lugares, O renascimento seguinte poder-se-ia iniciar quase que em qualquer lugar - no

Brasil, no México, na Argentina, na China, no Japão, na Suécia - mas parece mais

provável que se verifique uma convergência de fenômenos similares em lugares muito

distantes uns dos outros, já que, verossimilmente, um dos frutos da presente civilização

que não se desperdiçará será o das comunicações rápidas, pelo menos, por via do rádio

(ainda que não por meio do satélite, porque riso mais existirá uma organização capaz de

assegurar a periódica substituição dos satélites "estáveis" para telecomunicações). E se

as idéias poderão ser comunicadas rapidamente, a nova civilização poderá surgir com

aspectos uniformes em países diversos e longínquos, visto que o único renascimento

que poderemos imaginar deve implicar necessariamente na existência de um movimento

de idéias novas.

Nos primeiros meses de 1971, algum indício econômico sugeriu que a retração

experimentada em grande parte do Ocidente poderia encaminhar-se para o seu final: se,

em lugar disso, o slump continuar, a crise final poderá ser retardada por alguns anos.

Após a retração, ver-se-á um novo boom e isto (o que se verificará a seguir) poderá

levar à instabilidade e ao abalo,

Entre 1985 e 1995, a Idade Média já estará se iniciando.

XV - Benefícios a curto prazo e danos secundários a

longo prazo das situações involutivas do tipo medieval

Em 1870, o marechal Karl Bernhardt von Moltke obteve uma estrepitosa e definitiva

vitória sobre o exército francês. Da parte francesa, aquela vitória não correspondeu a

uma simples derrota militar, mas a uma seqüência de abalos e transtornos muito mais

profundos. Aquele colapso geral deu-se o nome de débâcle, retomado setenta anos

depois para indicar acontecimentos muito semelhantes.

A derrota militar italiana de setembro de 1943 - acompanhada igualmente de

instantâneo aniquilamento de toda forma de organização pública e de vida associada

independente - foi coloquialmente indicada, durante muitos anos, por uma expressão

onomatopaica; o patatràc.

Page 83: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Na terminologia inglesa, na falta de eventos calamitosos atinentes aos povos anglo-

saxões, os abalos dos impérios são indicados, tradicionalmente, por "decadência e

queda" (decline and fall) tanto referindo-se ao Império Romano (Gibbon), quanto ao

Terceiro Reich (Shirer).

Na hipótese, já sugerida como bastante provável, de a próxima Idade Média ter início

nos Estados Unidos da América, e Ser acompanhada da morte de dezenas de milhões de

pessoas, o termo adotado para indicar essa grave degradação instantânea se difundirá,

verossimilmente, nos outros países, nos quais fenômenos análogos se verificariam em

curto intervalo de tempo. É extremamente improvável que se venha a adotar um termo

clássico como hecatombe, porque raríssimos anglo-saxões, embora cultos, conhecem

sua existência. Parece mais razoável que se venha a adotar uma expressão já usada em

outro sentido, como, por exemplo, knock-out - abreviado para K.O. - termo pugilístico,

o qual recorda black-out, que é a palavra usada para indicar a grande falta de energia

elétrica de novembro de 1965 e que, por seu turno, coincide com a palavra usada na

época da guerra para a escuridão. A escuridão bélica, porém, decorria da proibição de

existir, na cidade, luzes visíveis, quer nas vias públicas quer nas residências ou

estabelecimentos diversos, e, mesmo, nos veículos. O black-out de 1965, pelo contrário,

era conseqüência da total falta de energia elétrica e, semelhantemente, o K.O. futuro

será uma eventualidade muito mais trágica do que aquela em que o pugilista que cai por

terra, desmaiado, por ter recebido um golpe no queixo. Adotarei, na seqüência deste

livro, a abreviatura K.O. e, neste capítulo, enumerarei os benefícios que deverão

materializar-se logo após o K.O. e os danos, cada vez em maior número, que afligirão

os sobreviventes à notável distância do tempo do K.O.

É claro que não faz sentido falar-se das vantagens e desvantagens de qualquer situação

futura, como se, a esse respeito, as opiniões fossem, constantemente, unânimes. O

professor Mishan, por exemplo, considera, provavelmente, uma vantagem, para si

próprio e para os outros, uma eventual paralisação na produção em série do avião

supersônico anglo-francês Concorde, unicamente porque sem os aeroplanos

supersônicos se ouvirão menos "bang-bang", e se ficará, portanto, mais tranqüilo.

Por outro lado, os administradores da Rolls-Royce, que produzem os reatores para o

Concorde, considerariam a mesma decisão como urna definitiva ratificação da recente

falência de sua sociedade e, igualmente, danosa ao progresso e · mais longo prazo - ao

bem-estar do povo inglês e de toda espécie humana. Entretanto, se os dirigentes da

Rolls-Royce se convencessem da impossibilidade de vender mais de vinte Concorde (ao

invés de duzentos necessários, para assegurar o lucro), também eles, em conformidade

com o Professor Mishan, julgariam que sem o Concorde estariam mais tranqüilos -

apesar de que sua tranqüilidade não decorreria do baixo nível de ruído, mas da

resignação a impossibilidade de recuperar e fazer ressurgir a RollsRoyce.

Quando me referir, adiante, às vantagens do K.O., não quererei com isto dizer que estas

serão, igualmente, acessíveis e desejáveis a todas as pessoas que sobrevivam ao K.O.,

mas somente que uma apreciável porcentagem dos sobreviventes delas se beneficiará.

Muitos dentre os sobreviventes experimentarão logo um extraordinário alívio pelo

simples fato de que os graves problemas com os quais se defrontarão serão, ao menos,

completamente diversos daqueles que os atormentaram por decênios. Os problemas da

civilização avançada serão substituídos por aqueles próprios da civilização primitiva e é

Page 84: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

provável que a maioria dos sobreviventes seja mesmo constituida por pessoas

particularmente aptas a passar, rapidamente, duma vida de civilização avançada para

outra de condições primitivas. Os sobreviventes, portanto, não terão muita saudade

daquilo que será destruido (de início, a destruição atingirá, principalmente, as estruturas,

as funções e as organizações, e não os edifícios ou lugares), nem portarão um luto muito

rigoroso por seus próprios amigos e parentes falecidos durante o K.O. É uma

experiência normal que os infortúnios isolados sejam considerados como uma tragédia

muito maior do que as catástrofes que golpeiam um número elevadíssimo de pessoas. E

isto é válido não apenas para as catástrofes que atingem lugares longínquos. Não são

somente os 500 mil mortos no Paquistão, ou os 200 mil em Biafra, a deixar-nos um

tanto indiferentes; também a morte de um familiar em um acidente ocorrido em avião de

carreira é considerada menos trágica do que aquela do mesmo parente num avião de

turismo.

O primeiro benefício desfrutado pelos sobreviventes será o do fim do

congestionamento: não existirão aqui, pessoas suficientes para congestionar alguma

coisa. Neste ponto, muitos daqueles que agora lamentam a opressão, a angústia e a

intrínseca brutalidade da vida numa sociedade tecnicamente evoluída e congestionada,

concluirão que se estava melhor quando se estava pior e dar-se-ão conta de que deixar

de utilizar as funções admitidas pelos grandes sistemas - nada de telefone, nada de luz

elétrica, nada de automóvel, nada de cartas, nada de telegramas - pode ser muito

interessante numas férias de uma ou duas semanas, mas não é absolutamente divertido

como um estado permanente de vida.

Alguns desses sobreviventes poderão considerar benéfica a disponibilidade de muitos

bens duráveis, verificando-se, a esse respeito um nítido excesso, por falta de demanda.

A morte da maior parte da população de uma grande cidade - uma vez eliminados os

cadáveres - torna disponíveis habitações, de todos os tipos, em superabundância em

relação à sua procura.

Se os habitantes duma cidade que sofreu um K.O., possuíam, anteriormente, um

automóvel para cada duas pessoas, após o K.O., esta relação pode estar invertida e, por

um certo tempo, as pessoas poderão satisfazer sua própria necessidade de meios de

transporte servindo-se simplesmente de um dos numerosos veículos abandonados: a

indústria automobilística desaparecerá. Mais tarde, pela falta de veículos novos e com o

desgaste dos antigos, os veículos abandonados serão utilizados como fontes de

abastecimento em relação à troca até quando não for necessário recorrer-se a uma nova

produção industrial, que funcionará, principalmente, sob a ordem de simples operários,

ou artesanalmente, produzindo peças isoladas.

Verificar-se-á para os fabricantes uma situação semelhante à degradação progressiva,

em relação a uma superabundância inicial e ao conseqüente desaparecimento da grande

indústria da construção.

Um reduzido número (forçado à autarquia) de pessoas não poderá manter

adequadamente nem mesmo as construções de que se utiliza e não se ocupará em fazê-

lo quanto àquelas de que não se serve. Os móveis desocupados serão cercados por

armações de madeira e qualquer elemento estrutural, o que - aliado aos danos causados

pelas intempéries - causará abalos que atingirão também qualquer construção habitada.

Daí, a longo prazo, as casas serão muito mais raras do que o eram anteriormente ao

Page 85: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

K.O., e novos escombros tornar-se-ão um típico componente da paisagem urbana. As

ruínas antigas e nobres serão cobertas e obstruidas pelas recentes, segundo um processo

semelhante ao que teve, lugar no período medieval precedente. Uma forte contribuição a

abalos e destruições posteriores será devida ao vandalismo gratuito, o qual não será

punido quando não for diretamente prejudicial e constituirá um dos poucos

divertimentos disponíveis que restarão aos jovens.

Após o K.O., como durante a antiga Idade Midia, a distinção entre os objetos novos e

usados perderá a grande importância que tem atualmente, distinguindo-se, únicamente,

os objetos utilizáveis e eficientes dos que estiverem em más condições, não reparáveis.

Inicialmente, isto acontecerá, como foi dito acima, pela disponibilidade gratuita de

numerosíssimos objetos de segunda mão, mas em boas condições. ocorrerá,

posteriormente, que os objetos novos serão extremamente raros - o que afastará toda

conotação derrogatória do conceito de: "usado" - e, por outro lado, serão, em muitos

casos, de qualidade bem mais baixa que, aqueles objetos usados produzidos com

materiais de melhor qualidade e segundo a técnica mais refinada de produção. Antes do

K.O., o nível de riqueza de um grande número de pessoas, nas nações desenvolvidas,

levava a considerar respeitável quase que exclusivamente a aquisição de livros usados

(desprezados somente por uns poucos novos-ricos, semicultos) e os objetos dos

antiquários: a compra de um vestido usado não estava, praticamente, em cogitações. Os

vestidos usados, posteriormente ao K.O., tornar-se-ão hereditários, além de adquiríveis

e comutáveis. É de se esperar que ao menos este novo estado de coisas satisfaça aos

atuais detratores da sociedade do consumo e a todos aqueles que se irritam, talvez com

razão, com a existência da moda no campo dos bens duráveis, pela qual, por exemplo,

muitos compram um carro novo somente para possuir um modelo mais elegante e

recente e não porque o carro antigo funcionasse mal.

Uma limitação muito severa à inconstância e ao emprego dos veículos dever-se-á à

escassa e irregular disponibilidade dos produtos petrolíferos e, mais tarde, dos

combustíveis. Conseqüentemente, as viagens turísticas se tornarão muito raras e serão

reservadas aos potentados ou, também, aos vagabundos, que serão forçados a fazer

longos trajetos a pé. Aumentará muito a porcentagem das pessoas que jamais se

deslocaram de seu lugar de nascimento, nem por trabalho, nem por prazer, ou por

qualquer outra razão. A escassa freqüência de viajantes ocasionará o ressurgimento do

banditismo endêmico. Viagens relativamente longas serão empreendidas em

peregrinação. É de se esperar, de fato, que a nova e obscura época favorecerá o

ressurgimento de uma religiosidade grosseira e difundida, expressa de forma que, hoje,

não se poderia prever. Isto, incidentalmente, poderia ser classificado como uma das

vantagens do K.O., por quem crê que a religião - como quer que seja, em qualquer lugar

e não importando o nível - seja uma coisa benéfica.

Aquele que, contrariamente, julga ser a religião falsa e prejudicial, incluirá toda a

ressurreição do espírito religioso e, paralelamente, das tendências mágicas e

supersticiosas no cômputo, já bastante extenso, das desvantagens. Para algum etnólogo

sobrevivente, uma nova florescência da cultura primitiva, diretamente observável em

sua própria cidade, seria um milagre. Para os historiadores e sociólogos, igualmente, um

retrocesso, em grande escala, da civilização moderna seria um fenômeno único e

interessantíssimo, que, apesar dos riscos e incômodos, poderia ser classificado com a

anotação "vaut le voyage".

Page 86: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

No próximo capítulo, tratarei mais pormenorizadamente das novas formas de vida em

sociedade, que se verificarão após o K.O. e das que constituirão uma evolução

degenerativa das novas formas de rebeldia, em antecipação ao K.O., com o intento de

corrigir a degradação dos grandes sistemas, já visivelmente iniciada.

No tocante aos aspectos econômicos, um importante componente da estrutura moderna

de consumo deixará subitamente de existir: o crédito. Com efeito, em condições

extremamente instáveis, ninguém poderia fornecer a um credor garantias efetivas do

reembolso futuro.

Inicialmente, é verossímil que toda espécie de moeda perca o valor e as permutas sejam

feitas unicamente por mercadorias in natura.

A intrínseca raridade poderá manter em uso as moedas de ouro e as de prata:

convencionar-se-ia considerar-se o peso das moedas ou dos lingotes como a única

determinante do valor e todo comerciante teria entre a sua aparelhagem profissional

uma balança para pesar ouro e prata. Seria, por certo, interessante, sobretudo para os

especialistas, tentar prever a evolução das estruturas bancárias após o K.O., como

também a política monetária (se esta existir) e as características dos ciclos econômicos.

Uma tentativa de previsão deste tipo, no entanto, não poderia ser encarada como algo

além de um exercício sem muita seriedade - se refletirmos quanto é, atualmente, difícil

(ou impossível?) fazer previsões, a prazo muito mais curto e sem levar em conta

acontecimentos excepcionais como o K.O. As exatas estrutura e situação econômicas

serão, por outro lado, gravemente influenciadas pelas novas estruturas legais e jurídicas,

sobre as quais também, como veremos, não há muito a dizer, que não esteja num nível

de imaginosa antecipação.

Outras vantagens a curto prazo poderão ser as relativas aos países denominados em

processo de desenvolvimento que estão, atualmente, subjugados, colonizados,

sujeitados pelos países mais adiantados, em via de retrocesso. Quando o retrocesso das

nações mais evoluídas for, efetivamente, sensível, então essas opressões terminarão e

isto será um alívio para as nações subdesenvolvidas.

O alívio, no entanto, será, provavelmente, breve, porque, a longo prazo, problemas

muito mais graves surgirão em decorrência não apenas da falta de produtos extintos dos

países em via de retrocesso, mas, igualmente, pela situação generalizada de conflito

armado, tanto entre as nações involuídas, quanto naquelas que jamais haviam

progredido, ou, ainda - a nível mais microscópico - entre cidades, vilas, famílias ou

clientelas e entre indivíduos.

XVI - Evolução das formas de vida

associativa anteriormente ao knock-out e

na próxima Idade Média

Quando a Organization for Economic Cooperation and Development; (OECD)

recomenda a todos, ou a alguns, dos governos-membros a adoção de medidas enérgicas

e concretas para remediar a situação insatisfatória, no campo da economia, da

Page 87: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

tecnologia ou da educação, raramente as sugestões são muito prontamente acolhidas: em

alguns casos, em que se teme que as medidas sugeridas possam ser particularmente

impopulares, a OECD vê-se quase forçada a usar de muita diplomacia e a expurgar os

seus documentos, censurando as palavras perigosas ou ofensivas, ou melhor, reduzindo

as principais idéias a uma forma muito genérica. Verificou-se uma situação dessas em

1970, quando a OECD sugeria aos governos europeus - com prudentíssimos

circunlóquios - que a única solução para as tristes condições econômicas de seus países

era o aumento do desemprego.

A eficácia da solução da OECD) ficou por demonstrar e, talvez, não possa ser

demonstrada como autorizadamente o afirmara Lord Beveridge - mas a circunstância

que me interessa destacar é a de que o relatório da CECI) não foi Publicado antes de que

os trechos relativos ao desemprego fossem censurados com muito tato, sem que sequer

uma discussão a respeito fosse tentada.

A UNESCO patrocina muitas iniciativas anódinas, numerosas delas definidas de modo

bastante vago, em textos que nos trazem à mente o palavrório do Reader's Digest.

A Organização das Nações Unidas, em caso de dificuldades graves, retira as suas tropas

- como sucedeu pouco antes da guerra dos seis dias - e deixa que os conflitos armados,

prestes a começar ou já começados, prossigam sem impedimentos.

Os homens têm necessidade de ajudar-se mutuamente e de cooperar: não parece que

possam ser essas organizações internacionais - definidas por meio de uma sequência,

mais ou menos longa, de letras minúsculas - que venham a satisfazer tal necessidade.

Os poderes públicos - os governos, as administrações locais, as entidades - há tempo

que, só excepcionalmente, não mais cumprem suas próprias finalidades institucionais.

Obviamente, não posso negar que ainda existem, presentemente, muitas organizações e

sistemas funcionando bastante bem, mas é sempre maior a lista de graves problemas,

cuja solução ao invés de avizinhar-se, parece cada dia mais longínqua.

A situação financeira e econômica da maior parte dos países ocidentais - balanço dos

pagamentos, inflação, desemprego, produtividade - piora, sem que os organismos

responsáveis pelo seu controle possam fazer algo para inverter a tendência. Na América,

os graves problemas da violência individual e de grupo não encontram solução e há a

constante ameaça dos problemas de poluição e eliminação dos refugos urbanos. Em

quase todos os países europeus, a carência de serviços municipais é muito mais

acentuada do que na América (falta de médicos, de hotéis, de escolas, de estradas, de

equipamento eletrônico, de manutenção).

As tendências de desenvolvimento da situação parecem indicar que, dentro em breve,

existirá uma clara e indiscutível conveniência econômica de a iniciativa privada

empreender, às suas expensas, as obras públicas. os recursos que os particulares pagam,

através de taxas e impostos, não são suficientes, ou bem empregados, para fornecer as

obras e os serviços desejáveis pelos que pagam tais tributos. Isto é o que sucede na

Europa, onde não foi ainda introduzido o sistema norte-americano de votar bonds - ou

destinação de recursos municipais, baseados na aprovação de futuros impostos

municipais autorizados pelo resultado positivo da mesma votação pública. Será, pois,

inevitável o surgimento de novas organizações comunitárias que substituam os poderes

Page 88: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

públicos deficientes e proporcionem os serviços dos quais ninguém se ocupa em

assegurar.

Os vigilantes são grupos de cidadãos armados que mantém a ordem pública nas cidades

do interior dos Estados Unidos, especialmente com o patrulhamento noturno e um

serviço de emergência para os casos de tumultos e agitações e que têm, por vezes,

tendências extremistas de direita. Não interessa, aqui, um juizo político ou moral sobre

os vigilantes; merece, antes, ser assinalado que as pessoas pertencentes a esses grupos

não estarão, por certo, dispostas a pagar elevadas taxas ou impostos, destinados a

financiar corporações de policia ineficientes, ou supostamente tidas como tal - cujos

serviços eles próprios substituem com esforço e ônus pessoais.

Analogamente, os grupos de cidadãos europeus que restauram, às suas próprias

expensas, a pavimentação da rua em que habitam, que se organizam para despejar o lixo

no rio mais próximo, com uma camioneta, que tornam a si os encargos de executar uma

obra pública qualquer, encontrando um proveito compensador na utilidade que

oferecem aos membros do grupo e ofertando seu uso a pessoas - muito mais numerosas

- não pertencentes ao grupo, recusarão, cedo ou tarde, pagar taxas teoricamente

destinadas a comprar quaisquer desses mesmos serviços. A recusa à tributação é o

primeiro passo em direção a independência política dos governos centrais e das antigas

autoridades locais para não falar da independência das organizações internacionais, que

não parecem destinadas a ter uma autoridade sensível. Inicialmente, essas novas

entidades comunitárias terão, somente, balanças especiais destinadas à execução de

determinadas obras una tantum: posteriormente, sua constituição se tornará estável e,

por certo tempo, sua eficiência se manterá em nível elevado, por causa de suas origens,

muito realisticamente orientadas em direção à conquista, a curto prazo, de objetivos

concretos.

Pode-se presumir que, nos próximos anos as "novas comunidades" - ou como quer que

venham a ser chamados as novos esforços cooperativos privadas - começarão a surgir,

com características semelhantes, em diversos países. A semelhança dessas formas de

vida associativa será devida, principalmente, à convergência, mais do que à difusão. As

novas cooperativas surgirão espontaneamente - provocada a sua existência pela situação

uniformemente insatisfatória dos poderes deficientes, decadentes e degradados.

As novas comunidades poderiam conseguir restaurar, de muitas maneiras, a eficiência

funcional, administrativa e de planejamento. Poderiam pressionar psicologicamente ou,

também, usar de violência para induzir os organismos existentes a um melhor

funcionamento. Poderiam organizar, em grande escala, um movimento de time-sharing -

ou utilização dos recursos disponíveis, de forma mínima, pelos diversos usuários,

sucessiva e racionalmente.

Voltemos a examinar, ligeiramente, alguns significados da atual explosão demográfica e

considerando algumas cifras relativas aos Estados Unidos. De acordo com os dados

fornecidos pelo Departamento de Censo, tendo em vista uma corrente migratória anual,

para os Estados Unidos, de 400 mil pessoas, a população norte-americana, no ano 2000,

poderá, no máximo, ser de 320 milhões de habitantes - o que, em média, implicaria 3,1

filhos para cada mulher e, no minimo, de 240 milhões, o que implicaria a abolição da

imigração em 2,11 crianças para cada mulher, ou seja, um número de nascimentos

apenas suficiente para compensar as mortes. Suponhamos que se verifique algo, nesse

Page 89: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

ínterim, e que em 30 anos a população dos USA cresça dos 200 milhões atuais para 300

milhões: nesse caso, analogamente ao modo de vida, todas as estruturas civis

americanas (habitação, transportes, sistemas de produção de energia, infra-estruturas,

comunicações, administração, assistência médica, sistemas de distribuição, escolas, etc.)

deverão, igualmente, aumentar em 50%.

Isto significa construir, a cada 30 dias, nos próximos 30 anos, o equivalente a nova e

completa cidade de 280 mil habitantes. Essa atribuição parece titânica. Resolver-se-ia

boa parte do problema se se recorresse ao time-sharing, como por exemplo,

estabelecendo-se os horários de trabalhos no decorrer do dia, os dias de repouso no

decorrer da semana e os períodos de férias no decorrer do ano. Com tais providências

racionais, o congestionamento poderia diminuir nos transportes, nas comunicações, no

uso da energia - drasticamente: de 20 ou 30%. Outros sistemas de time-sharing foram

sugeridos e - apesar de poderem parecer ainda menos atraentes e mais impopulares do

que os já citados teriam, também, possibilidade de proporcionar notáveis vantagens. A

mesma habitação poderia ser usada, em diferentes períodos, por pessoas diversas, umas

ocupadas no trabalho diurno e as outras nos turnos da noite.

Não se faz necessário continuar a descrever este elenco de medidas para se convencer

de que o incômodo acarretado por tais providências racionais e coletivas é tão

acentuado que os poderes públicos não se disporão, por muito tempo, a tentar a sua

adoção obrigatória e que mesmo os esforços comunitários a esse respeito poderão obter

sucessos apenas marginais. (A única forma de time-sharing que parece popular é o

adultério, o qual, no entanto, não é apto para resolver os grandes problemas sistêmicos.)

O eventual surgimento das novas comunidades poderá, pois, apenas retardar o alcance

das graves condições de instabilidade generalizada e a verificação do K.O., mas não

alterará muito a tendência geral. Se as novas comunidades começarem a existir

anteriormente ao K.O., terão suficiente vitalidade para continuar existindo no futuro

medieval próximo, e é de se pensar que poderão, também, conservar informações,

tradições e motivações, sobre as quais, decorrido um tempo mais ou menos longo, se

articularia o renascimento seguinte.

Certamente, numa época medieval futura, as livres associações não terão vida fácil. O

rápido retorno a uma penúria generalizada será acompanhado de violência e crueldade

de formas no momento esquecidas. A força das leis será restrita ou nula, quer pela

degradação, quer pelas dificuldades dos meios de comunicações e transportes. A

autoridade somente poderá ser delegada aos poderes locais, que a manterão

exclusivamente pela força - e que, através dessa mesma força, poderão opor resistência

às opiniões daqueles que lhes deleguem a autoridade. Nessa situação o arbítrio se

tornará a regra.

O direito de propriedade sofrerá modificações profundas e rápidas. Os cadastros - já,

agora, cronicamente errôneos e desatualizados - perderão todo significado, inicialmente

em virtude do fato de que a maioria dos proprietários morrerá sem herdeiros e, portanto,

por causa de um acentuado desequilíbrio entre o escassíssimo valor dos bens

cadastrados e o elevado custo em que implicaria a continuação de um sistema de

registro trabalhoso e antiquado. O usucapião virá a ser o modo mais freqüente de

aquisição da propriedade, que não mais requererá dez ou vinte anos para se tornar

operante, mas, somente, poucos meses ou semanas.

Page 90: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

A predominância da posse, sobre todas as outras considerações nas questões relativas à

propriedade dos imóveis, tornará mais desejáveis aqueles que se prestam facilmente a

serem defendidos contra os que tentem conquistá-los à força. Serão particularmente

aptos os edifícios ou os terrenos cercados com muros de imensa espessura, uma vez que

as armas empregadas serão convencionais, e, provavelmente, leves. As moradias

tomarão o aspecto de castelos ou fortalezas, habitadas por cortes armadas e hóspedes

dependentes (agregados), clientes e associados. O assédio poderá voltar a ser uma tática

significativa.

A disponibilidade das modernas armas de fogo não tornará inútil a força física,

necessária nos combates corpo a corpo, quer para resolver as freqüentes situações de

banal emergência, causadas pela falta dos meios mecânicos e pela necessidade de

remover obstáculos naturais ou colocados por antagonistas e inimigos.

Pode-se imaginar que permaneçam por longo tempo as unidades militares que, ao

momento do K.O., funcionavam disciplinadamente e eram bem munidas e defendidas -

mas a probabilidade dessa permanência é mínima. Se, de fato, a tropa se encontrar

próxima de lugares habitados e civilizados, o surgimento do KO. induzirá todos os

militares a abandonar os quartéis e retornar a casa. Se, ao contrário, a unidade se

encontrar em locais inacessíveis e remotos, dos quais não se volta facilmente,

permanecerá compacta e talvez mesmo disciplinada, mas, certamente, assim

descentralizada não poderá ter contato algum com a maioria dos sobreviventes e sua

própria permanência será um fenômeno pouco importante.

Mais importantes do que a forma da arquitetura imposta às estruturas precedentes serão

as novas soluções que responderão às necessidades de alojamento, defesa e comércio

das cortes armadas ou das raras comunidades livres enclausuradas na férrea realidade

duma época violenta como no século XVI foi projetado e difusamente empregado o

bastão de ângulo agudo, bem defendido dos tiros da artilharia e capaz de colocar em

posição favorável as próprias bocas de fogo. Não serão particularmente significativos os

uniformes e as roupas escolhidas pelos homens que assumirão o comando: é sabido que

a familiaridade com as armas favorece a ostentação dos sinais característicos -

distintivos, penachos, peles, cinturões, túnicas, objetos de ouro e capas. Emergirão

estruturas feudais - isto é, do tipo em que a autoridade deriva de delegação superior e

pouco após a afirmação do poder delegado por força própria e independente do ato

formal com que a sua autoridade fora, inicialmente, estabelecida.

O equilíbrio da autoridade entre os centros afastados e os potentados locais basear-se-á

em intrincados e fugazes compromissos. Essas estruturas, só aparentemente novas,

reconhecerão abertamente estados de coisas já existentes antes do K.O. e disfarçados

superficialmente por vãos formalismos. Exemplos disso não se encontram unicamente

nos países orientais, onde os poderes tribais são ocultos por parlamentos formalmente

idênticos ao britânico: igualmente, nas melhores democracias o poder real não é sempre

detido por aqueles que podem impô-lo com armas, mas, após o K.O., muitas simulações

não mais serão necessárias.

Seria fácil tentar um confronto, ou talvez uma identificação, entre as estruturas

oligárquicas e feudais que descrevi e as brutais organizações do tipo da Cosa Nostra, da

Máfia, da Fibbia calabresa e da Camorra. Essas organizações secretas despertam, hoje,

anteriormente ao K.O., a atenção, pela violência que empregam em época não muito

Page 91: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

violenta, pelo poder indevido que administram segundo particularíssimas regras, não

escritas, e não faladas, e pelas relações ocultas e vergonhosas que parecem manter com

homens que representam o poder legal e, talvez, façam parte do governo.

Posteriormente ao K.O., tudo será uma máfia: o poder dos governos raramente derivará

de eleições livres - fraudulentas ou não - e quase todo centro de poder se originará de

compromissos e contatos pessoais.

As relações individuais, as amizades e os conhecimentos, tornar-se-ão ainda mais

importantes do que o eram antes do K.O. É uma experiência comum que, durante a

carestia, as catástrofes, as desordens, as simples dificuldades de transporte e as guerras,

muitos homens se comportam como lobos contra outros seres humanos, prejudicando-os

para tirar vantagem, mas têm o hábito de oferecer a prestação de serviços gratuitamente,

mesmo a desconhecidos. Algo semelhante sucede, nos dias de hoje, em certos países

orientais, nos quais os serviços públicos não existem ou não oferecem a mínima

segurança: ninguém confia nos Correios e, por isso, cartas e encomendas são trazidas

pelas mãos de conhecidos e viajantes; os hotéis são insuficientes e, deste modo, os

viajantes encontram hospitalidade em casas de pessoas de seu conhecimento ou,

mesmo, completamente estranhas. De modo similar, durante a blitz, os londrinos

cediam suas próprias casas àqueles que haviam ficado sem teto e, pelo menos há poucos

anos, na Sardenha, quem se encontrava em um lugar sem casas de pasto e restaurantes

não tinha outra escolha além de se fazer convidar para jantar - bem entendido, sem

pagar - por uma família importante.

Costumes indiscutíveis de solidariedade e hospitalidade eram muito difundidos na Idade

Média de mil anos atrás e foram transmitidos em muitas canções populares que têm por

protagonista um peregrino - e são, hoje, difundidos nas comunidades hippies - que

vivem permanentemente, por sua própria escolha, em condições muito rudimentares.

É de se prever que as dificuldades materiais, a inesperada dureza das condições de vida

e as contrariedades práticas ocuparão tão intensamente o tempo da maioria dos homens

que os níveis culturais prevalentes serão necessariamente baixos, e de tal forma que

seriam considerados depreciáveis pelos exemplares mais evoluídos da humanidade, que

se desenvolveram na época precedente ao K.O. Surge, por isso, espontaneamente, o

desejo de se, procurarem eventuais possibilidades de evitar que o futuro medieval

próximo venha, efetivamente, a se verificar.

Os índices inadequados da capacidade dirigencial e organizacional disponíveis fazem

julgar-se impossível que as atuais tendências de desenvolvimento mudem de modo que

condições estáveis venham a, gradualmente, ser alcançadas, sem agitações e.

catástrofes. Malgrado esta consideração, e tão grande o desejo de se evitar o retrocesso a

uma época férrea, que se impõe a indagação de quais poderiam ser as providências e as

iniciativas necessárias à consecução de uma situação final mais aceitável - mesmo que

descubramos, depois, não haver ninguém que possa tomar essas iniciativas e

procedimentos.

XVII - Fundamentos de uma nova

tradição

Page 92: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Este não é um capitulo de um livro futurológico. Este é um manifesto, um apelo, uma

prédica - uma triste, prédica, ao estilo de Luigi Eínaudi que classificava como inúteis os

seus últimos escritos, antes mesmo de haver registrado sua inevitável ineficácia sobre o

público. E é bem de se esperar que seja nulo o efeito de uma exortação que se funde em

uma nova tradição de competência, indo contra o aborrecimento da antiga tradição e

sempre mais vigorosa, que inspira a maioria dos homens a buscar o caminho da

resistência mínima, a aceitar compromissos, a substituir os procedimentos demorados e

necessários pela improvisação, a não criticar os erros cometidos pelas pessoas famosas e

a não combater a autoridade.

Esta tradição é considerada na Itália como típica do nosso país, mas não se faz menos

presente e viva nos demais países: do mesmo modo, os membros de todas as profissões

julgam que a qualidade de incompetentes seja máxima em seu próprio grupo de

atividade, o que depende, claramente, da disponibilidade de maiores informações sobre

as imperfeições do grupo ao qual se pertence.

A propósito da dificuldade de criar novas tradições, pode-se citar o caso daquele norte-

americano que indagava a um don de Oxford o que deveria fazer para fundar nos

Estados Unidos uma universidade a nível oxfordiano e recebeu a seguinte resposta: "O

que se requer são recursos, um corpo docente de alto nível, uma boa constituição e cerca

de oitocentos anos."

Mas é duvidoso que, mesmo com alguns séculos à disposição, se venha a conseguir

inverter os hábitos atualmente correntes e a bloquear aquilo que, parafraseando J. K.

Gaibraith, poderemos chamar de ignorância convencional. Todavia, esta é uma das

poucas esperanças que se poderiam tomar por base para evitar a degradação dos grandes

sistemas, e vale, pois, a pena explicitar a relação das medidas que permitam restabelecer

esse meritório objetivo. São elas:

1 - Os casos de incompetência flagrante devem ser denunciados pelos que tomem

conhecimento dos mesmos, com julgamentos que comprometam aos que os emitiram e

que são muito mais incompletos do que o estritamente necessário. As reformas (ou as

contra-reformas) somente podem ser bem sucedidas se visam mais intensamente ao que

querem alcançar, somente se são violentas, somente se inspiram terror aos reformistas.

2 - Deve ser proclamada uma trégua nas maneiras brandas e tolerantes com as quais

cientistas e profissionais avaliam, apreciam e apóiam os trabalhos de seus próprios

colegas. Deve ser superada a objeção de que este comportamento - ora pouco congenial

nos ambientes acadêmicos e profissionais, espécies congregadas nos famigerados

álbuns profissionais - conduziria a polêmicas estéreis. Melhor é que algumas polêmicas

sejam estéreis, mas que existam polêmicas. os cães devem comer alimentos para cães. A

situação que daí se derivaria seria, por certo, antipática e desagradável, mas fora disso

não há salvação.

3 - Deve ser instaurada uma religião (por mais odiosa que essa palavra possa ser) com

um elevado padrão de julgamento e inflexivelmente ministrada nas escolas, nas

universidades, na camada dos dirigentes. Os padrões elevados devem ser preferidos por

si próprios e, não por suas boas conseqüências sociais; de outra maneira, sempre se

encontrará nos fins uma justificativa para qualquer alteração e diminuição dos padrões

para pressupostos casos especiais. O reconhecimento de erros de julgamento, cometidos

Page 93: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

por excessivo otimismo, deverá, pois, ser considerado como um mérito e deverá,

igualmente, levar à inversão do julgamento e à degradação daqueles que foram

superestimados.

4 - O objetivo que indico é, claramente, o de produzir consciências profissionais de

mais alto nível e exigente (ou um fortalecimento do superego, como se diria na

terminologia da psicologia dinâmica). Como o demonstrou, muito plausivelmente, H. J.

Eysenck, a consciência que define o mal e nos impede de praticá-lo não deriva de um

processo de aprendizagem, mas de um processo de condicionamento. Parece,

conseqüentemente, necessário começar a condicionar os homens, desde a mais tenra

idade, a padrões de consciência mais estreitos, tanto nas escolas primárias quanto nas

secundárias.

Parece-me indiscutível a necessidade desse procedimento: se, nos primeiros anos de

vida, a educação é dispensada de modo casual e não preordenado, os resultados dessa

educação serão, igualmente, casuais e, em sua maior parte, deteriorados.

É necessário aumentar, mais genericamente, o número e o valor das instituições

educacionais, escolares e universitárias, porque não só o nível de civilização, como

também o sucesso industrial e econômico e, a longo prazo, a sobrevivência das nações,

estão intimamente ligados à qualidade e à quantidade da instrução que consigam

inculcar. Os Estados Unidos, com relação ao primeiro e ao segundo desses critérios,

estão na vanguarda. Existem nos Estados Unidos da América mais de 1.200

universidades que concedem diplomas após cursos de duração mínima de quatro anos:

há, no país, uma universidade para cada 170 mil habitantes. O mais importante, porém,

é a elevadíssima porcentagem dos que freqüentam as universidades norte-americanas:

cerca de 43% dos jovens entre 20 e 24 anos cursam a universidade na América, ao passo

que o percentual correspondente, para a mesma faixa de idade, é de apenas 24% na

União Soviética, 13,5% no Japão, 16% na França, 7,5% na Alemanha e 6,9 % na Itália.

É verdade que as universidades americanas têm sido agitadas, nos últimos anos, por

severas criticas, mesmo por parte dos que estão dentro delas: estudantes e professores.

É, igualmente, verdade, que se difundiu na Europa hábito autoconsolador de se destacar

o baixíssimo nível de algumas delas. A esse respeito, não convém, porém, esquecer, que

se podem aplicar às universidades americanas as considerações válidas nos casos dos

grandes números e, em particular, as relativas à distribuição estatística, o que não é

possível com referência aos outros países. Isto significa que, se é realmente verídico que

existem numerosas universidades americanas muito decadentes, existem, em número

quase idêntico, excelentes e extraordinárias - enquanto que, entre nós há uma multidão

de nível intermediário e discreto.

A importância das universidades americanas não é expressa apenas em cifras, em

estatísticas. O fato de que são as melhores do mundo pode ser demonstrado

enumerando-se, simplesmente, vinte entre as mais famosas: Harvard, Yale,

Massachusetts Institute of Technology, California Institute of Technology, Carnegie

Institute of Technology, Illinois, Columbia, Michigan, California ern Berkeley,

California, de Los Angeles, Stanford, Cornell, Princeton, Chicago, Texas de Austin,

Duke, Ohio State, Northwestern, New York, John Hopkins.

Page 94: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

Não obstante os números, sintomas que já citamos e discutimos, afirmo que o próximo

período medieval começará, de fato, nos Estados Unidos, e sou forçado, por isso

mesmo, a concluir que o sistema educacional mais adiantado, ambicioso e intensamente

utilizado no mundo não é suficiente para lançar uma advertência a essa fatalidade

regressiva e fundar a nova tradição que indiquei como necessária. Os melhoramentos no

campo da educação - capazes de elevar, no mais alto grau, os serviços humanos e

profissionais das populações dos países desenvolvidos e de inverter a tendência atual

dos grandes sistemas em direção à degradação - deveriam, pois, ser o fruto de um

esforço tão intenso que nem pode ser concebível. Esse esforço educacional deveria

superar, em muitas ordens de grandeza, os planos mais ambiciosos atualmente

concebidos. Mas não temos qualquer indicação de que algo semelhante esteja por

acontecer; é por causa disso que, a situação parece, irreversivelmente desesperada.

As organizações internacionais e as comissões dos chamados peritos não vêem, sequer,

o verdadeiro problema, que está na crise dos recursos humanos nos países

desenvolvidos e em via de retrocesso, e concentram seus esforços sobre falsos

problemas dos níveis deficientes de instrução nos países subdesenvolvidos ou em

processo de desenvolvimento, A impossibilidade de a maioria atrasada da população

mundial acompanhar a minoria desenvolvida e o ulterior aumento da diferença, tanto

tecnológica quanto educacional e de alimentação, são, contrariamente, aspectos

secundários da atual crise que se está agravando continuamente, o drama se coloca em

termos contrários àqueles comumente aceitos: a disparidade diminui e as nações mais

desenvolvidas, nos dias de hoje, poderão, cada vez menos, cumprir as funções de líder e

poderão fornecer ajuda econômica, produtos industrializados e know-how, em medida

decrescente.

Os projetos sérios, e relativamente modestos, de reformas e inovações educacionais -

que deveriam ser exeqüíveis - já encontram tantas dificuldades que parece ser uma

realização árdua e improvável. Como havíamos visto, em outra parte, todo projeto que

poderia, realmente, criar uma nova tradição e opor-se à regressão contemporânea

deveria ser, por definição, um projeto maximalístico e, em razão dessa sua mesma

característica, seria impossível torná-lo aceitável e colocá-lo em prática. Por outro lado,

reconhecer, brutamente, a insolubilidade do dilema, não responde à simples pergunta:

que fazer? De fato, por mais que seja deteriorada a situação, não podemos simplesmente

abandonar toda a tentativa de prever o futuro e de, influenciá-lo de modo a que se

juntem soluções mais razoáveis. Nossas tentativas, pelo contrário, têm, talvez, tanto

maior esperança de sucesso quanto mais é realisticamente pessimista o ponto de partida.

Mas, procuraremos inutilmente ouvir entre os administradores melhor orientados ou

entre os tecnocratas, que têm os maiores recursos à sua disposição, e aos quais são

propostos problemas semelhantes aos que estamos analisando, uma voz suficientemente

pessimista, e autorizada, que faça sugestões merecedoras de atenção ou capazes de

despertar esperanças plausíveis. Os administradores e os tecnocratas estão, talvez,

viciados pelos próprios sucessos setoriais e habituados a um otimismo inexplicável, que

os torna superficiais.

O esforço mundial de cooperação, por exemplo, indicado como essencial por Aurelio

Peccei, requereria não apenas o acordo dos governos, mas, também, suas iniciativas

determinantes. E quem haja experimentado a lentidão burocrática dos poderes públicos

e haja examinado os insucessos dos planejamentos governamentais (planos qüinqüenais

Page 95: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

na Rússia, saneamento das áreas menos favorecidas na Itália, planejamento das new

cities e projetos de integração nos Estados Unidos, a barreira dos dez milhões em Cuba)

tem razão de duvidar seriamente da viabilidade de algum empreendimento com

implicações, em grande escala, não de um único, mas de muitos governos. receei

destaca oportunamente o caráter sistêmico dos problemas mais críticos que atualmente a

sociedade deve enfrentar e escreve que "a humanidade e seu ambiente constituem um

macrossistema integrado, ou seja, o sistema mundial". Havíamos visto, porém, que

muitos sistemas parciais, e mais modestos, se desenvolveram de forma a não mais

serem governáveis. Devemos concluir, pois, que faltam não somente os meios

econômicos e a vontade, mas, também, os instrumentos e os esquemas mentais capazes

de gerir o sistema mundial.

Alvin M. Weinberg, diretor dos laboratórios nucleares de Oak Ridge, nos Estados

Unidos, denominou de "primeiro dilema malthusiano" o crescimento populacional mais

rápido do que o dos meios de subsistência e indicou como o "segundo dilema

malthusiano" a proliferação da complexidade que acompanha a expansão demografica

nos países tecnologicamente adiantados. Malthus havia sugerido a hipótese de que os

meios de subsistência crescem somente em progressão aritmética, ao passo que a

população, se não for controlada, aumenta em progressão geométrica. Escreve

Weinsberg que, em primeira aproximação, o número dos contatos semânticos (meios de

comunicação, transportes, transmissões de energia, conflitos) cresce ao quadrado do

número dos homens. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo dilema malthusiano,

Weinberg aconselha soluções tecnológicas simples e pouco dispendiosas, para as quais

criou a expressão "fix tecnológico". (Um fix é um auxílio, um antídoto, uma adaptação,

uma solução rápida, pragmática, pré-fabricado.)

A doutrina de Weinberg, exposta em seu livro Reflections on Big Science, publicado

em 1967, propõe desígnios mais amplos do que simples soluções de manuais e pode

parecer convincente aos técnicos ou, genericamente, àqueles que tendem a confiar nas

soluções puramente técnicas.

Afirma Weinberg que a superpopulação pode ser contida com a distribuição em grande

quantidade do anel anticoncepcional intra-uterino de Gräffenberg; mas uma versão

rudimentar deste simplíssimo fix era empregada pelas cortesãs ao fim do século XV, e

não surtiu, até agora, resultados apreciáveis.

A disponibilidade de energia nuclear, a preço muito baixo, poderia, segundo Weinberg,

permitir a dessalinização da água do mar e, portanto, a irrigação de vastíssimas terras

incultas, que poderiam produzir alimentos em quantidades muito superiores a qualquer

necessidade.

O fix tecnológico da guerra já foi encontrado; trata-se da bomba-H, o último explosivo

que dissuade os governos a tentarem aventuras militares - mas que não serviu para

evitar a guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos perderam mais aviões do que na

Segunda Guerra Mundial.

Weinberg sustenta, finalmente, que a explosão das informações pode ser contida pelo

fix de um emprego oportuno dos possantes computadores, que as acaloradas agitações

dos negros, nas cidades norte-americanas, podem ser evitadas, acalmando-se os ânimos

por meio de temperaturas mais baixas, obtidas com o emprego maciço dos aparelhos de

Page 96: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

ar condicionado. Esta última idéia, em particular, é ridiculamente ingênua. No entanto,

o mais grave é que Weinberg não tenha sequer procurado propor fix tecnológicos para o

congestionamento e instabilidade. A disponibilidade, a baixíssimo preço, de energia

produzida pelas grandes centrais nucleares não resolve o problema da estabilidade das

redes elétricas.

O congestionamento do trânsito poderia ser sensivelmente aliviado proibindo-se a

fabricação de carros com mais de dois metros de comprimento, mas ninguém perde

sequer tempo avaliando as vantagens obtidas com um procedimento tão impopular e

controvertido.

Não parecem encaminhadas a melhor destino as tentativas de resolver os problemas

sociais mediante a aplicação de técnicas empresariais e de análise de sistemas "próprias

da era espacial".

Em 1965, o Governador democrata da Califórnia investiu centenas de milhares de

dólares em contratos de estudos destinados às sociedades industriais, que haviam

alcançado um grande sucesso no campo aeroespacial. A Lockheed projetou um sistema,

cujo custo foi de 100 milhões de dólares, para a coleta e elaboração centralizada de

todas as informações (econômicas, organizacionais, burocráticas, técnicas, legais e

ambientais) geradas no Estado da Califórnia. A North American Rockwell Corporation

estudou os sistemas de transporte do Estado e sugeriu que fossem desenvolvidos certos

modelos matemáticos de simulação. A Aerojet-General Corporation ocupou-se da

eliminação dos refugos e da prevenção dos delitos, vindo a definir uma programação

trienal para o planejamento executivo dos sistemas necessários.

Todos esses estudos não conduziram a qualquer ação concreta e foram ignorados pelo

sucessor republicano do Governador democrata que os havia encomendado.

Em 1969, após dois anos infrutíferos, fracassou o plano concebido pelas Litton

Industries, por encargo do governo dos coronéis gregos, que deveria atrair

investimentos estrangeiros no valor de 420 milhões de dólares e desenvolver

economicamente as regiões mais atrasadas da Grécia.

As propostas e tentativas de Peccei, de Weinberg, das indústrias aeroespaciais não

devem ser desprezadas: é necessário, antes, esperar que sejam rivalizadas e superadas,

porque não há alternativa - a menos que não se decida seriamente planejar comunidades

de monges, que, durante toda a duração supostamente limitada do próximo período

medieval, conservem os elementos considerados essenciais da nossa atual civilização.

XVIII - Projeto de comunidades

monásticas capazes de conservar a

cultura e favorecer um renascimento

Júlio César, Cícero, Deodoro Sículo, Pappo e Marziano Capella não se preocuparam em

redigir projetos para a instituição das universidades de Oxford e de Cambridge, nem das

de Bolonha e Roma - que deveriam ser fundadas muitos séculos após a sua morte. Essas

Page 97: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

universidades exerceram uma notável influência sobre o desenvolvimento da história

cultural do século XII ao XX - ou seja, com períodos alternados - e sua fundação deve,

seguramente, ser considerada um fato positivo. Seria absurdo censurar os artistas, os

acadêmicos e os homens cultos da antiguidade por não haverem previsto e preparado a

fundação das universidades.

Para usar uma metáfora escatológica, poderíamos dizer que Júlio César, Cícero e os

outros salvaram a alma porque não podiam prever que "a Idade Média viria" e não

podiam, sequer, imaginar as condições em que a instituição das universidades seria

espontânea e significativa.

Se, em nossos tempos, prevemos, pelo contrário, que uma nova época medieval se está

avizinhando, não poderíamos salvar a alma sem prever, empregando o máximo de nossa

capacidade, quais procedimentos poderiam ser adotados e quais estruturas poderiam ser

criadas para salvar aquilo que reputamos de maior importância em nossa civilização e

para tornar mais fácil o reflorescimento de uma cultura certamente diversa da atual, mas

que preserve, ao menos, alguns traços característicos desta - possivelmente, os

melhores. Deveríamos sentir tanto mais esta responsabilidade quanto mais firmemente

acreditamos na fatalidade do processo que parece conduzir as congestionadas condições

atuais dos grupos humanos mais adiantados a condições instáveis e, portanto, a um

abalo, a um knock-out. Alias, as nossas previsões - e as demais que vêm sendo feitas,

sem exceção - são, sempre, inclinadas à incerteza e se deve, pois, levar também em

consideração a hipótese de que os países mais adiantados não se desenvolveram

inteiramente, até aqui, em virtude das condições instáveis e não sofrem, por isto,

qualquer crise grave que leve a um próximo período medieval. Essa hipótese otimista é

pouco provável, porque requereria uma nítida inversão de muitas tendências já comuns

e imperantes no modo como são administrados o comércio, as indústrias, as escolas, as

cidades, as nações e todo e qualquer grupo de homens, como quer que seja definido.

Parece, portanto, pouco provável que as coisas caminhem bem. Se, porém, malgrado

essa probabilidade mínima, as condições que havíamos chamado de medievais não se

verificarem, toda a organização projetada para entrar em funcionamento durante a futura

Idade Média assumiria, por muito tempo, um aspecto ridículo. O ridículo não deveria

ser maior do que aquele de que se revestem muitas forças armadas em tempos de paz

prolongada e, lamentavelmente, às vezes também em tempo de guerra. Parece,

entretanto, que os militares são treinados para não se preocuparem se aparentam ser

ridículos ou são selecionados entre os indivíduos privados do senso do ridículo.

Seria oportuno, contudo, planejar grupos encarregados de conservar certos dados e

certas formas de cultura e de favorecer, no justo momento, um novo renascimento, de

modo que possam cumprir funções úteis, mesmo afastada a crise apocaliptica.

Poder-se-ia sustentar que as organizações que satisfazem esses requisitos - ou seja, que

desenvolvem uma útil função cultural e estão preparadas para resistir a qualquer

catástrofe e conservar o melhor da cultura contemporânea - já existem: tratar-se-ia das

atuais universidades, dos centros acadêmicos, dos institutos de pesquisas. E aquele que

sustentasse isso, encontraria justificativas tranqüilizadoras para tudo: se as diretrizes, as

tendências e as organizações culturais atuais são as melhores possíveis - e é claro que o

são, apesar de já as havermos modificado -, é bom que todos continuem fazendo o que

fazem agora e obterão resultados positivos, quer prossiga uma situação geral,

Page 98: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

considerada de modo superficial como normal, quer surjam situações involutivas do

tipo medieval. Deveria ser claro quão ilusório é esse ponto de vista a todo aquele que,

nota a generalidade da crise da academia e da escola e a quem reflita que mesmo as

impropriedades dessas são uma das causas remotas da crise futura do sistema que

podemos, desde agora, antecipar.

Os grupos em projeto - conservadores da cultura e catalisadores de um renascimento

futuro - deveriam ter algumas características em comum com as fraternidades

monásticas, pela única razão de que deveriam diferenciar-se profundamente em sua

constituição, em seu funcionamento e nas suas finalidades, dos modos, das tarefas e da

desordem uniforme da sociedade que os cerca; e essa diferenciação seria, naturalmente,

melhor garantida por um isolamento monástico. Não vale a pena, porém, estabelecer um

paralelo mais preciso entre esses novos grupos e as comunidades monásticas da passada

Idade Média. É comum a noção de que eram conservados nos monastérios medievais os

clássicos, a cultura greco-romana e a língua latina não vulgarizada. De certa forma, isto

é, seguramente, real; pode-se, no entanto, objetar que muitos textos clássicos

interessantes estiveram perdidos por terem sido raspados dos pergaminhos e

substituídos por salmos e hinos sacros de interesse muito menor. Poder-se-ia, ainda,

sustentar que Tomás d'Aquino não prestou um bom serviço a Aristóteles: mas isto é o

ponto essencial. Do monacato medieval tomarei por empréstimo, pois, apenas o nome,

mas não sustentarei que os nomes são conseqüência das coisas.

Os novos monges deveriam conservar informações e recordar a maneira como se fazem

certas coisas, se aceitamos - como uma crença justa - que o conceito de cultura implica

tanto no conhecimento quanto no saber fazer.

O objetivo primordial da conservação dos dados pode ser o de transmitir informações

sobre certas situações e certos eventos aos historiadores futuros. Parece que estão sendo

preparadas, nos Estados Unidos, cápsulas de tempo (time capsules) totalmente

impermeáveis à ação do calor e dos agentes externos, contendo textos, ilustrações e

amostras de artefatos e manufaturados, destinados a serem descobertos daqui a alguns

milhares de anos.

A preparação dessas cápsulas de tempo é, no entanto, supérflua e redundante, uma vez

que a conservação de dados destinados aos historiadores futuros já está preparada, com

um alto coeficiente de segurança nas crônicas e nas enciclopédias que estão sendo

elaboradas em todas as nações adiantadas, imprimindo-se um número muito elevado de

cópias. Somente o fato de as tiragens dessas obras superarem a dezenas de milhares de

cópias, atingindo, por vezes, a centenas de milhares, assegura que ao menos algumas

permanecerão íntegras. Seria, pois, injustificada a preocupação de selecionar as

melhores obras e conservá-las em local mais seguro e protegido. Poderia, unicamente,

valer a pena redigir, ad hoc, relatórios especiais, contendo informações que caíram, de

tal forma, no domínio comum que a ninguém ocorreria registrá-las na enciclopédia

normal, tendo em vista que, dentro de algumas dezenas de anos, tais dados poderão ser

perdidos, sendo impossível reconstituí-los numa situação ambiental totalmente mudada.

Não é fácil, porém, imaginar que dados seriam efetivamente negligenciados pelos

periódicos e livros contemporâneos, que, certamente, não excluem fatos irrelevantes.

Seria nitidamente mais interessante o outro objetivo da conservação de informações,

qual seja o de manter disponíveis noções, teorias e processos de modo que possam ser

Page 99: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

utilizados para reconstituir formas de civilização e de vida gregária, destruídas ou

deterioradas, para iniciar o renascimento. É oportuno, neste ponto, que eu dê uma

definição explícita de renascimento - como já dei, anteriormente, de Idade Média.

Defino, então, renascimento como uma situação de bem-estar renascido, ou novo

aumento de produtividade, a tal nível que permita a muitas pessoas dedicar seu tempo,

inteiramente ou em grande parte, a estudar, a aprender, a procurar a verdade, não mais

sendo forçadas a uma contínua atividade utilitária visando a assegurar-lhes sustento,

refúgio e sobrevivência.

O renascimento poderá ser constituído, simplesmente, por urna elevada porcentagem de

pessoas cultas de um determinado tipo e teria sentido procurar definir suas

características: a antecipação do futuro medieval próximo é, - já, impregnada de

incertezas e imprecisões, como o é, com maior razão, qualquer outra antecipação de fato

que se verifique após o período medieval. Não se pode, sequer, demonstrar formalmente

que o renascimento seja preferível ao período medieval, nem que esse seja em absoluto

desejável. A situação de renascimento é um fim que deve ser perseguido por quem o

julga desejável e isto é quase tudo o que se pode dizer a propósito, como, de resto, com

referência a qualquer fim ao qual se possa um homem propor. Não há defesa, por

exemplo, contra o argumento banal daqueles que sustentam não nos devermos

preocupar em tornar o futuro melhor para os posteriores, já que estes, certamente, nada

farão por nós.

Na futura Idade Média, os homens viverão duramente e trabalharão a maior parte de seu

tempo, para executar as tarefas primordiais. Alguns - pouquíssimos, talvez um entre dez

mil - ocuparão posições privilegiadas e seu trabalho não consistirá em combater

pessoalmente os adversários, ou em cultivar a terra, nem em construir abrigos com as

próprias mãos, mas consistirá em intrigas e tramas ainda mais violentas e duras do que

aquelas que hoje conhecemos para manter os próprios privilégios e aumentar o próprio

poder sobre os demais. Quase ninguém estará livre de encargos imediatos e poderá

pensar melhor em problemas abstratos e genéricos.

Os grupos conservadores da cultura e preparadores; do renascimento deverão gozar de

uma notável liberdade em relação às tarefas imediatas, que, contrariamente, não

exaurirão a atividade, e isso somente se pode obter com uma dotação inicial feita em

tempo hábil - ou seja, antes do começo da futura Idade Média - aos projetistas dos

grupos de sobrevivência. A dotação inicial não poderá ser em dinheiro, uma vez que,

dentre os vários abalos, o da moeda será, presumivelmente, um dos primeiros. Dever-

se-á tratar, pelo contrário, duma dotação de meios de trabalho, utensilios, aparelhagem,

conjuntos eletrogêneos, bens materiais não perecíveis e, sobretudo, desenvolvidos pela

comunidade monástica, e mercadorias, passíveis de serem trocadas para adquirir

gêneros alimentícios e outros objetos de primeira necessidade tais como sal, açúcar,

álcool, brocas, chapas, parafusos de aço inoxidável, cabos de cobre, munições para

armas ligeiras.

Os grupos de sobrevivência encontrar-se-ão competindo duramente com toda espécie de

outras pessoas sobreviventes, casualmente agrupadas, e, por serem nitidamente

favorecidos, deverão dispor de uma dotação inicial muito grande: talvez de tão

significativa importância que somente certos governos poderão levá-la a cabo. A

intervenção governamental poderia resolver, pelo menos, o problema da disponibilidade

Page 100: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

financeira, mas, poderia originar numerosos tipos de problemas, em virtude de sua

lentidão, de seu baixo rendimento da influência por parte dos interesses preestabelecidos

das instituições atuais e da inevitável - e presentemente também auspiciosa -

publicidade, à qual estaria sujeito. Um exemplo significativo disto foi fornecido, há

alguns anos, pela tentativa dos círculos governamentais britânicos de projetar uma rede

de refúgios antiatômicos e uma completa organização apta a garantir a sobrevivência do

mecanismo estatal e, pois, a incolumidade, a segurança e o sustento de algumas

pessoas-chave, em caso de ataque às Ilhas Britânicas, com explosivos nucleares, por

parte de algum inimigo. O plano previa que poderiam ser colocados rapidamente, a

salvo, a Família Real, o Governo, alguns altos funcionários e tecnocratas, certos oficiais

de alta patente das forças armadas e uma corte de arquivistas, técnicos, executivos e

guarda-costas. Parece, ainda, que para assegurar a eficiência de muitas dessas pessoas

durante o estado de emergência tivesse, também, sido previsto colocar-se a salvo seus

familiares, de modo que o chefe da família pudesse dedicar-se ao seu trabalho sem

sofrer tensões e preocupações adicionais. A preparação desse procedimento de

emergência teve, no entanto, de ser interrompida - ou, talvez, conduzida com maior

discrição - em virtude, do fato de que o movimento em prol do desarmamento nuclear

tomou conhecimento do plano e começou a debater publicamente a moralidade, da

seleção daqueles que seriam destinados a sobreviver e os critérios pelos quais a seleção

seria efetuada.

Não sei se os critérios utilizados pelos planejadores da sobrevivência do Governo

seriam particularmente criticáveis. Não resta dúvida, no entanto, de que seria impossível

encontrar critérios contra os quais não se pudessem levantar objeções. Pondo de parte o

julgamento do mérito sobre a composição e a estrutura dos grupos de sobrevivência que

deveria ser emitido por um especialista -, e pondo de parte o fato de que não existem

especialistas nesse campo, é evidente que o imediato vested interest de todo indivíduo

em sobreviver e, conseqüentemente, de vir a participar de um dos grupos, é tão intenso

que qualquer decisão sobre as pessoas seria, automaticamente, encarada com legitima

suspeita.

O problema do tipo de cultura a ser conservada, dos meios como conservá-la e das

pessoas incumbidas de mantê-la é, por certo, irresolvível em base democrática e

representativa. Poder-se-ia adotar, nesse caso, a solução de se confiar na livre

competição, esperando que essa produza a conservação de tipos de informações e a

sobrevivência dos grupos conservadores com características diversas e, eventualmente,

opostas.

As comunidades monásticas de sobrevivência ficarão aquarteladas em lugares altos, já

que, numa época insegura, são mais facilmente defendidos, permitindo ver-se, de longe,

antecipadamente, a aproximação de forças hostis e possibilitando tradicionais contra-

ataques efetuados com a ajuda da força da gravidade, fazendo, simplesmente, rolar, do

alto, pedras e rochas contra os agressores. Por outro lado, os cumes das colinas estão,

automaticamente, protegidos contra as inundações e, muito provavelmente, deixarão

para trás as grandes massas de homens em deslocamento ou em migração, que se

dirigem, espontaneamente, rumo a presas mais fáceis, em lugar de tentar uma conquista

penosa e de êxito duvidoso.

A dotação inicial e a predisposição de enfrentar as rápidas revoluções do ambiente

constituirão uma grande vantagem, que poderia ser desfrutada pelas comunidades de

Page 101: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

sobrevivência com objetivos diversos dos institucionais. Os chefes das comunidades,

com efeito, serão submetidos a uma tentação contínua de mergulhar ativamente na luta e

de atingir unia posição de primazia, ainda que, eventualmente, numa área geográfica

restrita e isolada do resto do mundo. Semelhante atividade deveria, por certo, ser

evitada, visto que seria muito diferente da institucional - de, primeiramente, conservar e

depois, atuar como catalisador ou fator desencadeador de um muito vasto movimento de

renascimento. Todavia, nenhum projetista saberia predeterminar todas as possíveis

mutações e variações que sofrerão as comunidades de sobrevivência no decurso de sua

vida, provavelmente longa. Será oportuno, conseqüentemente, confiar na estatística - ou

melhor, nas leis que governam os grandes números - e começar a fundar o maior

número possível de comunidades de sobrevivência, aceitando que algumas se

desagreguem e desapareçam, que outras esqueçam a finalidade para a qual foram

fundadas e se transformem em baronatos ou centros de banditismo e que, enfim, ao

menos, poucos, correspondam efetivamente às expectativas - ou seja, conservem as

estruturas e informações merecedoras de serem preservadas e ajam positivamente para o

renascimento futuro.

As comunidades pertencentes a essa última categoria poderiam ser forçadas a viver, por

um tempo bastante longo, na clandestinidade, sem deixar vir à superfície manifestação

alguma de sua verdadeira essência. Isto poderia verificar-se, por exemplo, de modo

particularmente dramático se afluíssem em torno da comunidade populações nômades

ou invasores provenientes de terras longínquas. As informações e a cultura conservadas

correriam, então, o risco de cristalizar-se e de perder toda a vitalidade, transformando-

se, gradativamente, em fórmulas vazias, de significado continuamente desacreditado.

Muito mais tarde, poderiam surgir homens mais enérgicos e mais bem dotados do que

seus antecessores, os quais procurariam reconstruir os verdadeiros significados e as

funções reais das informações registradas nos textos e dos processos transmitidos oral e

operacionalmente.

Quanto a este ponto, existirá o risco de que a reconstrução seja, com efeito, uma

adulteração da cultura originaria e sirva somente para fazer nascer uma cópia infiel e

artificial da civilização evoluída de nossos dias. As reconstruções, fiéis ou não, parecem

destinadas a ter vida breve: assim o foi a restauração da religião romana feita pelo

Imperador Juliano, assim o foi com a do Segundo Império francês. Seria, portanto, de

escasso interesse fazer elucubrações a respeito da maneira pela qual os homens do

futuro poderiam inventar um modelo mental ou construir um modelo operacional de um

mundo antigo em tudo diverso daquele real.

O verdadeiro problema dos homens do futuro será o de extrair de um acúmulo de dados

irrelevantes as informações úteis a cada um de seus objetivos. A descoberta de

informações acumuladas no passado não apresenta dificuldades muito menos graves do

que a descoberta das informações que vêm sendo continuamente geradas e impressas

em publicações por demais numerosas para serem seguidas. Após o knock-out, muitas

verdades e muitas descobertas serão inventadas pela segunda vez, por causa da

impossibilidade de encontrar, no justo momento, a documentação das invenções

precedentes. Este fenômeno, de resto, está se verificando hodiernamente, antes do

knock-out, de modo mais maciço do que se possa imaginar. Numerosos jovens

cientistas e técnicos limitam a própria documentação aos livros e às revistas publicadas

nos últimos dez anos, por julgarem ultrapassadas as obras anteriores. O início de uma

atividade de crivo de textos antigos e antiquados poderia ser um tirocínio útil, que certos

Page 102: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

grupos de sobrevivência poderiam escolher como uma de suas finalidades a curto prazo

a ser executada antes do knock-out.

Os novos monastérios não poderiam funcionar do modo projetado, caso se limitassem a

conservar fórmulas fixas ou a assegurar a integridade física dos textos registrados. Um

sacerdócio que considerasse puramente como utensílios sacros os livros, os microfilmes

ou as fitas magnéticas que têm em consignação poderia cumprir função útil apenas aos

arqueólogos futuros. Uma eficiente continuidade cultural poderá ser assegurada somente

se - numa seqüência ininterrupta de indivíduos - se reproduzirem costumes, capacidade,

domínio de noções, interesses e tradições construtivas, dificilmente definíveis, por outro

lado, de modo formal.

A vitalidade e eficiência dos grupos de sobrevivência poderão ser confiadas,

simplesmente, aos seus próprios estatutos, ou seja, a uma série de regras estabelecidas,

inicialmente, para definir as atribuições e as metas da organização, os meios de seleção

de novos adeptos e o processo para a delegação e a transmissão da autoridade, a

estrutura do grupo, os deveres e os direitos de seus membros.

Poder-se-á, alternativamente, incluir uma seqüência de controles automáticos na

estrutura dos grupos, confiando-se aos monastérios não o encargo explícito de preservar

a cultura e o know-how, mas outros fins, que sejam impossíveis de atingir se não se

dispõe de cultura e know-how. O modo mais severo e mais paternalista de implantar

uma estrutura desse tipo seria o de dividir a dotação de meios, destinada a cada um dos

grupos, em diversas porções ocultas e inacessíveis a quem não disponha de certos

instrumentos técnicos em bom estado de conservação ou a quem não saiba decifrar

certas chaves criptográficas baseadas em teorias matemáticas, físicas e químicas.

O escalonamento, no tempo, das porções de dotação a serem descobertas poderia ser

obtido liberando-se, por meios automáticos, em determinados intervalos de tempos

sucessivas informações em código, que forneçam o ponto de partida para a

determinação de cada esconderijo. Este modo de incentivar os grupos de sobrevivência

com prêmios in natura - semelhantemente a uma caça ao tesouro - seria, entretanto,

muito artificial e dependeria de um preparo de confiança não absoluta; tal preparação,

além disso, deveria ser notoriamente velada, de forma a dissuadir os pesquisadores

futuros de qualquer tentativa de violação com o intuito de se apossar, antecipadamente,

das dotações programadas para épocas mais distantes, apressando o andamento do

sistema e tornando inútil as providências previstas no projeto para prolongar a duração

do tempo em que certos conhecimentos venham a ser transmitidos, para assegurarem a

obtenção de benefícios futuros.

Seria preciso concluir, então, que é preferível motivar de modo mais desinteressado os

grupos de sobrevivência e deixar livre o arbítrio de como utilizar as dotações iniciais

espontâneas. O surgimento de fatos novos e imprevisíveis deveria ser enfrentado por

cada um dos grupos com liberdade de escolha, permitindo-lhes combater ou favorecer

qualquer nova tendência e qualquer nova força que se apresente em cena.

A antecipação de, eventos futuros que expus pode ser considerada simplesmente um

esforço cognoscitivo, com intenção de mostrar aquilo que podemos esperar para as

próximas décadas. Claro está, entretanto, que tendo tentado indicar, também, quais

ações poderiam ser empreendidas para evitar o knock-out ou para facilitar um novo

Page 103: A Próxima Idade Média - Roberto Vacca

renascimento após a futura Idade Média, meu intento não é apenas especulativo, mas,

igualmente, construtivo.

Qualquer tentativa de realização se deve mais à individualidade dos homens que dela

participam do que aos trechos de documentos que especificam objetivos e metas. E

deverão ser selecionadas, através da utilização de critérios novos e irreverentes, as

pessoas às quais se confiará a responsabilidade de imaginar as providências

antimedievais de planejar monastérios underground, grupos clandestinos e maquis,

incumbidos de continuar a existir e de influir sobre o renascimento seguinte, caso se

decida que qualquer providência seja ineficaz. Serão excluídos, por exemplo, os donos

da verdade absoluta, os falsos inovadores, os políticos progressistas e ineficientes, os

profetas falsos e vagos, os cibernéticos. Serão incluídos certos desenvoltos

administradores da pesquisa científica, certos empresários industriais, alguns raros

economistas e, psicólogos, críticos profissionais da ciência e da sociedade, agricultores,

pecuaristas, mineiros, químicos.

A previsão do período medieval iminente pode ter profundas implicações no futuro de

cada um de nós. É natural indagar-se, daqui em diante, como as nossas atividades, os

nossos princípios e os nossos projetos pessoais deveriam ser modificados, levando-se

em conta essa antecipação. Quando deveremos começar a preocupar-nos com a

construção de um bunker unifamiliar, em lugar de com o lugar onde passar as férias?

As páginas precedentes não pretenderam dar a esta pergunta, ou a outras semelhantes,

uma melhor resposta do que aquela que os livros sobre a economia contemporânea e

suas presumíveis tendências possam oferecer a quem deseja especular na bolsa.

Ninguém pode dizer ao especulador calouro quanto poderá lucrar. Contudo, muitos são

os que discorrem a respeito dos fins e pretendem demonstrar a existência de objetivos

supremos que deverão ser almejados por todos. São, também, muitos os que se

desiludem e perdem a fé que antes depositavam na eficácia de certos fins genéricos,

quer quando os buscam e os vêem distantes, quer após tê-los atingido. E para essas

pessoas não há solução.

Somente quem houver seguido, com êxito, um tirocínio de higiene mental conseguirá

definir um objetivo estavelmente desejável e poderá atingi-lo unicamente quem souber

governar os meios necessários e adaptar suas próprias ações às mutações imprevisíveis

da realidade. Apesar de ser insensato descuidar da preponderância do acaso na decisão

da sorte dos homens e dos destinos dos impérios; para chegar à sobrevivência senão à

superioridade, não saberíamos indicar outro caminho que não seja o da preparação:

observar o funcionamento do mundo físico e da sociedade, melhorar e diferenciar os

próprios serviços.

Os agregados humanos degradam-se, as decisões dos potentados impelem-nos em

direção à instabilidade e não faria sentido a tentativa de inverter esta tendência com uma

simples notificação de revolta à sociedade e aos governos. Somente as exortações dos

indivíduos podem acarretar conseqüências diretas e definidas. A inegável existência dos

processos de aprendizagem dos indivíduos é suficiente para demonstrar que o aumento

da quantidade de informações disponíveis pode - pelo menos em certos casos - garantir

a salvação.

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