a neurose profissional

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  • 5/11/2018 A Neurose Profissional

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    COLABORA Ao INTERNACIONAL

    A NEUROSE PRO F ISS IO NA L * N icole A ubertProfessora da Ecole Supertsure de Commerce, Paris,Franya.

    Traducao de Ma rla Ir en e S to cc o Betlo l, revista porEd ith Sellgmann S liv a, Professoras do Departamentode Fundamentos Sociais e Jurfdicos da Adrnlnlstracaoda EAESP/FGV. .

    * R E S U M O : 0 te xto p ro cu ra m o st ra r as d i fe r encas ex is ten -te s e ntr e os c on ce ito s d e stress e neurose em situa~ao detra ba lh o, q ue , seg un do a a uto ra , n ao e apenas i e rm ino log i -c a, m a s p rin cip alm e nte d e r efe re nc ia l te or ic o q ue e m ba sa osdo is c onc e it os . Tree casos c lf ni co s s ao r el at ado s, i lu s tr a ndoos c on ce ito s d e " ne ur os e p rofis sio na l tra um d tic a" , " ps ic o-n eu ro se p ro fis sio n al" , e " ne ur os e d e e xc el en cia ", ju stifi ca n -do 0 u so d a ex pressa o n eu ro se e n ao a pe na s stress, cons ide-ra ve l m en os d ura do ura e p aseio el d e re to rn o a u m esta do d eequil ibrio.84 R e vis ta d e A dm in is tr a~ a o d e E m p re sa s

    * P A L A V R A S - C H A V E : stress, burn-out, n eu ro se p ro fis -sio na l tra um a iica , p sic on eu ro se p ro fissio na l, n eu ro se d eexcelencia.* A B S T R A C T : T he tex t a im s to show the differences be t-w een the con cepts of stress an d neurosis in w orkin g con di-tio n s, a cc or din g to th e a u th o r is n ot o nly ba sed on the term sb ut m ain ly on the th eo re tical basis o f th e co nc ep ts. T hre ec lin ic c as es a re e xp la in ed illu str atin g th e c on ce pts o f " tr au -ma t ic p r of es si ona l n e ur o si s" , " p ro fe s si ona l p s ic h on e ur o si s"a nd " ne uro sis o f e xc elle nc e" , ju stify in g th e u se o f th e w ordn eu ro si s in ste ad o f s tr es s b ec au se th e la te r is c ons id e re d l es se nd ur in g a nd a llo w in g th e r etu rn to e qu ilib riu m .* K E Y W O RD S : stress, b urn -o ut, tra um atic p ro fe ssio -nal neurosis, professiona l psychoneurosis, neurosis o fexcel lence. T ex to p ub lic ad o o rig in alm en ie s ob 0 ti tu lo " La n ec ro se p ro fe ss io -n elle ", n o liv ro L'individu dans l'organiaation: lee dimensionsoubliees, c oo rd en ad o p or [ ea n-F ra nc ois C ha nla t. Q ue be c e O ia io a,C an ad a, L es p re ss es d e l'U nio er si te L av al/E di tio ns E SK A , 1 99 0.

    S a o P a u lo , 3 3 (1 ): 84 -1 0 5 Jan . / Fev . 1993

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    A NEUROSE PROF IS S IONA L

    Em uma obra recente consagrada ao"s tress profissional"t, propusemos 0con-ceito de neurose pro fissional para expli-car certos casos de patologias graves einstaladas, diretamente ligadas as condi-

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    i1m C O L A BO R A C A O I N T E R N A C IO N A L

    7 . S IV AD ON , P . & A MIE L. O p.c i t .8 . A ste nia : te rm o m e dic o u sa dop a ra d e sig na r e s ta d o p sic o- or -g a n ic o d e d e b il id a d e.9 . BUG AR D, P . & C R OC O, L ." Ex is te -t- il d e s n sv ro se s d u tr a-v ail? " In : S ocie te tra nca is e d ep s yc ho lo gi e. S e Q ~ o d e p s yc ho -l og ie d u t ra v a il . E qu ilib re a u fa -t ig u e p a r I e t ra v air ? Pa r is , E n t re -p ri se m o d e rn e d 'E d it io n , 1 9 8 0.1 0. E sfe ra t im o-a fe tiv a: d e a m -b ito da s va r iaQ oes d o hu mor ec o s s e n ti m e n to s .

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    persistente da personalidade, com conse-quente instalacao de uma patologia, vin-culada a uma situacao profissional ou or-ganizacional determinada. Neste sentido,a neurose profissional e uma das conse-quencias possiveis do stress profissional.

    Dito de outro modo, uma situacao destress profissional pode, muito bern, aposuma perturbacao momentanea devido auma ultrapassagem das capacidades deadaptacao, "entrar em ordem", seja emrazao da diminuicao das fontes de stress,seja em razao da adaptacao bern sucedi-da as novas exigencies do trabalho. Elapode, tambem, se as fontes de stress per-sistern de maneira intensa e repetida, e seas capacidades de adaptacao do indivi-duo sao definitivamente "ultrapassadas",desembocar em uma situacao de "neuro-se profissional".Antes de definir mais precisamente 0conceito, salientemos que uma controver-sia se estabeleceu na corrente francesa, aproposito do conceito de "neurose do tra-balho", alguns considerando que nao setrata de uma afeccao de urn tipo clinicoparticular, mas de uma psiconeurose(quer dizer, de uma afeccao psiquica, re-metendo a conflitos infantis) posto as cla-ras no individuo, pelo trabalho. Assim,para Sivadon e AmieF, "a neu ro se do tra-ba lho niio e um a a fec9iio de um tipo c lin icopar tic u lar , m as um a ca tegor ia de pertu rba-90 es n eu r6 tic as ( .. .) a pa re nte me nte lig ad as a scondicoes do traba lho e ao m eio am bien te in -d us tr ia l, g era lm en te d etec tad as p ela ocasinodo irabalho", Ela se caracteriza no sujeitoneurotico pela presenc;a, alem dos ele-mentos especificos de sua neurose (ob-sessoes, fobias, fenomenos de conversaohisterica etc.), de outros elementos, taiscomo perturbacoes nas relacoes com osoutros, dificuldades com autoridade (de-vida a imaturidade afetiva do individuoe a nao resolucao de seus conflitos afeti-vos de base) e sobretudo uma astenia 8 ti-pica que predomina pela martha e quediz respeito a luta que 0sujeito neuroticodeve travar, ao mesmo tempo, no f ron tinterno, contra a angustia a fim de con-servar sua identidade, e no f ron t externo,contra as agressoes violentas do mundodo trabalho.E esta a razao pela qual certos autores- tais como Bugard e Crocq 9 - conside-ram que nao existem neuroses verdadei-

    ras do trabalho, pois as neuroses assimqualificadas por Sivadon nao sao, de fato,senao psiconeuroses, que sao desenca-dead as por ocasiao do trabalho. Eles pro-poem entao, substituir 0conceito de neu-rose do trabalho pelo de astenia reacio-nal ao trabalho que " cf er ec e c o rr el ac o es e s-tre ita s com os s tress do inoen ia r io e x isten -cial" e que se caracteriza por:1. uma sind rome de repeticao marcada

    por "uma impregnacao diurna pelafuncao ou pela situacao traumatizan-te" e por sonhos "repetindo a situacaotraumatizante, sonhos profissionais ourelativos ao elemento estressante daexistencia, ao longo do sono, que e, emgeral, pesado e nao repousante";

    2. urn comprometimento da esfera timo-afetiva 10, marcado por " pro ble ma s e mo -c iona is , reacses d e s ob re ss al to , a ns ie da dep siq ui ca e a ng us tia s om a ii ca ";

    3. desordem na esfera somatica "com fa-diga muscular real ou paradoxal" (istoe , contraturas musculares que ocorremem sujeitos que efetuam tarefas decontrole imovel, com tela de video, porexemplo).Este conceito de astenia reacional do

    trabalho implica, para seus autores, a as-sociacao - como no caso da neurose trau-matica - de urn traumatismo e de urnconflito. Mas ele se diferencia a medid aque 0traumatismo a que faz alusao e"menor, repetitivo, ininterrupto" e sobre-tudo ele e fisico e corresponde a urn oumais fatores de perturbacao do posto detrabalho e do ambiente, tais como nivelde barulho, ritmos do trabalho, posturasou movimento de caracteristicas dificeisou dolorosas para 0trabalhador, superes-timulacao psicossensorial (trabalho comtela de video, por exemplo etc.).

    A astenia reacional do trabalho consti-tuiria, pois, uma entidade clinica em rela-c;aodireta essencialmente com as condi-coes de trabalho e os fatores patogenicosdo trabalho e do resto da existencia(transporte, habitacao, estilo de vida etc.).Se retomarmos 0 exemplo da "neurosedas telefonistas" acima citado, e evidenteque 0 que Le Guillant e Begoin tinhamanalisado sobre 0assunto entraria perfei-tamente no contexto desta descricao,

    Entretanto, se entre todos estes termos

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    A N E U R O S E P R O F IS S IO N A L

    nos finalmente escolhermos manter 0deneurose profissional, e porque ele nosparece abarcar uma acepcao muito maisampla do que aquela proposta pelos pes-quisadores que nos mencionamos. Comefeito, por urn lado, a neurose profissio-nal pode, muito bern, nao remeter a umapsiconeurose anterior e encontrar suaorigem na propria situacao profissional,por outro lado, ela nao coloca em jogo,segundo nosso ponto de vista, as condi-coes (fisicas principalmente) unicamenteligadas ao posto de trabalho do indivi-duo, mas pode, muito bern, decorrer deuma problematica organizacional parti-cular, que solicita psiquicamente 0 indi-viduo, de forma tal que ele nao consegueresponder.

    Resumindo, designamos por neurosepro fissional uma afeccao psicogenicapersistente na qual os sintornas sao a ex-pressao sirnb6lica de urn conlito psi-quico no qual 0 desenvolvirnento estaligado a urna situacao organizacional ouprofissional deterrninada. Este conflitopode encontrar sua origem na propria si-tuacao profissional, sem remeter particu-larmente a urn conflito infantil, e propo-mos, neste caso, 0 conceito de neuroseprofissional atual. Ele pode, igualmente,encontrar suas raizes na historia infantildo individuo, e nao ser, senao, uma rea-tualizacao, pela situacao profissional deurn conflito psiquico infantil. Dito de ou-tra forma, se nos encontramos em pre-senca de urn conflito psfquico, ligado auma situacao profissional ou organiza-cional precisa, esta ultima pode ser a fon-te direta do conflito, do que os sintomasneurotic os sao a expressao, ou ser, ape-nas, uma ocasiao de reatualizacao, de re-vivescencia de urn conflito anterior. Pro-pomos, no segundo caso, 0 conceito depsiconeurose profissional para exprimira ideia de que 0individuo revive, atravesde uma situacao organizacional ou pro-fissional determinada, urn conflito infan-til, e que a situacao em questao e a causadesta revivescencia,

    Relembremos, para justificar essas de-nominacoes, que 0conceito de psiconeu-rose foi cunhado por Freud em 189411pa-ra caracterizar as afeccoespsiquicas ondeos sintomas sao a expressao simbolica deconflitos infantis, em oposicao as neuro-ses atuais - 0 termo nao aparece senao

    em 1898 - cuja origem nao necessita serbuscada nos conflitos infantis, mas nopresente.

    Ilustraremos este conceito de neuroseprofissional com tres casos clinicos. 0primeiro e uma neurose profissionalatual e constitui aquilo que chamamosurn caso de neurose profissional trauma-

    A n eu ro se de exce len cia ,m ostra co mo certa s ei tuacoeso rg an iza cio na is p ro oocam ema lg un s tip os d e p erso na lid ad e,

    q ue bu scam um id ea l p ro fissio nale lev a d o e in oestem n a in stitu ica o,o esta bele cim en to d e p ro cesso s

    neurot icos .------ica. 0 segundo e urn caso de psiconeu-rose profissional e mostra como a "rela-

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    j J ! J I J C O L A B O R A C A o I N T E R N A C IO N A Lu m a e xp erie nc ia o co rr id a q ue 0 surpreendeu ,e q ue u ltr ap as so u suas de fesa s e q ue fo i v iv i-da , segundo a exp re ss iio d e Freud , com o um aausencia d e s o co r ro " . 13o segundo elemento do quadro clini-co da neurose traumatica e a sindromede repeticao, que compoe a semiologiapatognomonica 14e se traduz, principal-mente, por pesadelos que fazem revivera cena traumatizante que deu origem aneurose. Esta sindrome se manifesta,igualmente, por ruminacoes mentais ob-sessivas sobre 0traumatismo e suas con-sequencias, Segundo Freud, esta sindro-me de repeticao traduziria a "fixacao aotraumatismo" e 0esforco reiterado tar-diamente para "liga-Io"1s e "ab-reagir" "a ele. "T ra ta -se de um a ten ta tiva do o rga-n ism o pa ra dom ina r a rep re sen iac iio im ag i-na ria de um acontec im en to que - escrao i-za nd o p ela oiolencia e e fe ito su rp re sa - niiopode se r dom inada quando de sua aparicaona reaudaae:.o terceiro elemento clinico, espedficoda neurose traumatica, e a reorganizacaoda personalidade ap6s 0 traumatismo,caracterizada essencialmente pela "fixa-~ao ao traumatismo". E esta fixacao queFreud considerava como 0mecanismoessencial e permanente da reorganizacaoneurotica da personalidade: tudo se pas-sa, com efeito, como se, atraves de seussintomas e por todo seu comportamento,o doente parecesse polarizar em direcaoao traumatismo e diminuir suas percep-coes, seu campo de consciencia, suas ati-vidades, suas reacoes e seus projetos.Produz-se aquilo que Fenichel chamavaurn "bloqueio das funcoes do ego" - fun-~oes de protecao, de presen~a e libidinais- bloqueio que Crocq assim descreve:"No que concerne a s funcoee de proiecdo, 0o rg an is m o n iio e m ais capa z de f iltra r nem dein te rp re ta r o s e stim ulo s s ig nific ativ os n ec es -sa r io e as suas a tiv idades de poder e de re la -(iio . P or ex em plo , e le 'recu sa ' p erceb er a s es-iim ulad ie s ou , ao con tra r io , se sob ressa lta atoda es tim ula cao - m esm o n iio noc iva - oua in da , fica in se nsiv el a s es tim ula co es fo rtesm as fic a h ip er se ns iv el a os e stim ulo s le ve s ( ... )A s funcoee de p resenca , que a sseguram 0e q u il ib r io e n tr e 0 Ego e 0 m u nd o e xte rio r, s iioin ib idas . 0fecham en to sob re si m e sm o, 0abandono da s [unc iies m en ta is superio res , aperda de in ic ia tiv a , a sono lenc ia ou - no lim i-te - 0 es tupo r, tradu zem es ta rup tu ra com 0

    1 2. P u ls io na l: re fe re nte a p ul-s a o, c on c ei to f re u d ia n o r e la c io -n ad o a os im p uls os c on fig ura -d os e m pressoes o ri gi na d a s p o re sta dos d e te n s a o in te rn a. 0c on ce ito d e outsao p as sa p ors u ce s si vo s d e s en v ol vi m e nt osn a o bra d e F re ud .13. CROCQ , L . "E ve ne m en t e tpersonnal l te d an s le s nsvrosestra u ma tiqu es de gu erre " . In :GUYOTAT , J. & F ED IDA , P .(orgs. ) . E v en em e nt e t p sy ch o-p a th%g ie , V il le u r ba n n e , S im e p ,1 9 85 , p p . 1 1 1- 20 .1 4. P a to g no m 6 nic o : s in al ous in to m a c ar ac te ris tic o e e s se n -c ia l p a ra 0 d ia g n os ti co d e d e te r-m i n ad a c oe n ca .1 5 . N .T .: "L ig a- Io " re fe re -s e a oa te d e r el ac io n ar 0 a fe to a o fa totra u rn a tlco . S e n a o houve r ad es ca rg a e m oc ion al, q ue p od eir d as la grim as a v ln qa nca , 0a fe to c on ti nu a lig a do a re co rd a -~ a o, d a n d o c u rs o a s r e pr es e n ta -~ o e s p a t og e n ic a s .1 6. N .T .: "A b- re a gir ", d e sc ar gae m ocion al p ela q ua l u m in div i-d uo s e lib er ta d o a fe to lig ad o ar ec or da c ao d e um a c on te c im e n -t o t ra u m a ti co , p e rm i ti nd o -I hea s s im , n ao se torn a r ou na oc on tin u ar p a to qe n lc o. A pu d L APLANCHE , J. & PONTAL l S , J. B .Vo c a bu /a r io d e P s ic a n a li se . S aoP a ulo , M a rt in s F on te s E d ito ra ,1 9 8 5 .1 7. C R O CQ ,L . O p . c it. , p . 1 1 7.

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    A N E U R O S E P R O F IS S IO N A L T R A U M A T IC A

    Neurose traumatica e acontecimentotraumatico

    Falar de neurose traumatica profissio-nal implica podermos fazer referenda aurn ou mais acontecimentos ou cenas psi-cotraumatizantes, que desencadeiamuma sintomatologia clinica do mesmo ti-po que aquela habitual mente descrita,para este tipo de neurose.

    Recordemos que 0 conceito geral de"neurose traumatica" havia sido criadoem 1882 por Oppenheimer, para designaras perturbacoes neuroticas consecutivasao pavor sentido durante acidentes na es-trada de ferro. 0 conceito foi posterior-mente retomado a proposito das "neuro-ses de guerra", nas quais 0 traumatismopsicologico esta ligado ao pavor sentidodurante 0 combate e, de uma maneiramais geral, as agressoes de todos os tipossuscitadas pela atmosfera e as circunstan-cias da guerra.

    Este conceito e interessante naquiloque, entre os diferentes tipos de neurosedistinguidos por Freud "neurose atual,mantida por urn conflito pulsional vatual": psiconeurose, remetendo a urnconflito infantil e neurose traumatica), aneurose traumatic a e a unica que depen-de de urn determinismo exterior: trata-se da irrupcao de urn acontecimentovindo de fora perturbando uma per so-nalidade sa.

    Retomando 0quadro clinico da neuro-se traumatica (e das neuroses de guerra,em particular), L. Crocq sublinha bern co-mo a sintomatologia dessas neuroses tra-duz esta patogenia do acontecimento. Osprincipais elementos deste quadro saoem numero de tres: primeiro 0tempo delatencia (ou de ruminacao, de incubacao,de mediacao), que separa a experienciatraumatizante dos primeiros sintomas, ecuja duracao e variavel (de algumas ho-ras a alguns meses nas "neuroses de de-portacao", por exemplo). Esse periodo demeditacao solitaria e 0periodo determi-nante para a instalacao da neurose, e amaioria dos autores insistem, alias, sobrea necessidade de nao deixar 0sujeito so-zinho com suas ruminacoes mas, ao con-trario, faze-lo falar a fim de que ele possadominar, "pe la ob je tiva fiio da linguagem eem face a presenca rea ssegu rado ra do ou tro ,

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    A N E UR O S E P R O FIS S IO N A L

    m undo ex ter ior ( ... ) En fim , a in ib icdo da se-xua lid ade e , de um a m aneira g era l, da s d isp o-n ib ilid ad es d e re la ca o a fe tiv a c om 0 outro e ara ziio d o e sg ota me nto d a r es er va d e e ner gia li-b id ina l, in te iram en te cana lizada para a u r-g enc ia do do min io d o traumatismo"."

    Toda uma controversia desenvolveu-se a proposito do desencadeamento daneurose traumatica em relacao ao fato dese saber se ela tern relacao unicamentecom urn determinismo exterior (aconteci-mento psicotraumatico vindo de fora) ouse, ao contrario, 0acontecimento emquestao nao faz senao revelar uma neu-rose "latente" anterior. Apos Freud, quehavia, desde 1895, denunciado 0 papelfalacioso dos "traumatismos de lembran-cas encobridoras", toda urna corrente depesquisa (Fenichel, Abraham, Hoffer,Masud Kahn) postulou a preexistencia de"traurnatismos silenciosos", tendo ocorri-do na infancia e se revelando, somente,apos 0 acontecimento, quando da ocor-rencia de urn segundo acontecimento.

    Outros autores, ao contrario - comoCrocq - mostraram bern 0 carater deter-minante, na neurose traumatica, do trau-matismo psicologico com suas caracterfs-ticas de violencia, de urgencia e de exce-~ao. De fato, parece hoje ser admitido(Laplanche e Pontalis) que existem, de fa-to, duas formas de neurose traumatica:urna na qual 0 traumatismo agiria comoelemento desencadeador, revelador deuma estrutura neurotic a preexistente, eoutra, em que 0 traumatismo tern partedeterminante no conteudo mesmo dosintoma. E preciso, entao, parece, "conser-va r um luga r a par te , do ponto de v ista no so -g ra fico e e iio log ico , as n euro ses, onde umtrau matism o, em fu ncao de sua p ro pria na tu-re za e d e su a in te ns id ad e, se ria 0fa to r, d e lo n-g e, predo min an te n o desen cad ea mento e o nd eos m ecan ism os em jo go e a sin tom ato lo gia se -riam re la tivam ente espec ificos, em rela c iioa q u el es d a s p s ic o n eu r os e s" . 19o carater determinante que pode, porsi so, ter urn acontecimento ou uma ex-periencia traumatizantes, excepcionaispor sua violencia ou intensidade, parece-nos plenamente [ustificavel para ser su-blinhado, sobretudo, porque ele relativi-sa os acontecimentos e as peripecias dodesenvolvimento afetivo da infiincia.Nao se trata, e claro, de negar a impor-tancia dessas primeiras experiencias,

    mas de nao atribuir, somente a elas, urncarater determinante. Dito de outra for-ma, nem tudo e "desempenhado" na in-fancia e todos os acontecimentos e expe-riencias posteriores da existencia podem,tambem, assumir urn carater "reorgani-zante" e estar na origem de processosneuroticos,----._

    o p er ig o p ara 0 t rabalhadore a qu ele da subui i l i zadio d e su asap ii do e s p s iq u ic a s j an ta sm ti ti ca s

    o u p sico mo to ra s, p ois es taeu bu tiliza ca o o ca sio na , e n t ao ,u m a r eie nd io d e e ne rg ia

    pu l s iona l , a qu ela q ueco nstitu i, p recisa mente , a ca rg ap siq uica d o tra ba lh o.------ste e bern 0caso, por exemplo, daqui-

    10 que nos chamamos de "neurose profis-sional traumatica". Notemos, inicialmen-te, que se transpusermos 0 conceito de"acontecimento traumatico" ao universoprofissional, urn dos primeiros exemplosque nos ocorre - e que, infelizmente, sebanaliza em certas profissoes - e aqueledas agressoes armadas das quais sao viti-mas, por exemplo, certos agentes banca-rios e que, para alguns deles, desembo-cam em uma "neurose traumatica": urnestudo foi consagrado a este assunto porChristine Voge em 1985.

    Mas certas profissoes, mesmo naocomportando riscos de agressoes fisicascaracterizadas sao, por outro iado, muitocarregadas de agressoes psfquicas. Estaagressao psiquica pode, entao, tomar urncarater de acontecimento ou de experien-cia traumatizante e desembocar em urnprocesso de neurose traumatica. Este e 0caso que ocorre, as vezes, em enferma-rias, onde 0 pessoal deve enfrentar a"agressao psiquica" da morte",

    Este e urn processo de "neurose trau-matica profissional" que queremos agoradescrever atraves da historia de Simone,enfermeira em urn grande hospital nosarredores de Paris.

    1 8. Id em , ib id em , id em , p . 1 13 .19. LAPLANCHE , J. & t'O N T A-LIS, J. B. Voca lu la ire de laPsychana l yse . P a ri s, P U F , 1 9 67 ,1 9 7 3 , p. 2 88 . (E m p or tu qu ss ,v er n ota 1 5 ).2 0. L O GE A Y, P . & GADBO IS , C ."L 'a gre ss ion p sych iqu e de lam o rt d a ns Ie tr av a il in firm i er ".In : D E JOUR S, G ; V IE L , G ; &W IS N ER , A . (o rg s.) O p. c it . p p.8 1 - 6 .

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    ilmC O L AB O R A C Ao IN T E RN A C IO N A L

    21 . D EJ OU RS , C . O p . ci t .

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    A hist6ria de SimoneSimone, filha de pai operario e de mae

    auxiliar de enfermagem, decide, aos 18anos, tomar-se enfermeira. Titular de urnunico certificado de estudos obtido aos14 anos e tendo passado quatro anos fa-zendo "bicos", ela retoma os estudos du-rante urn ana e e admitida na escola deenfermagem aos 19 anos. Apos a diplo-macae, ela trabalha durante quatro anosem urn hospital do interior e retoma aParis, onde assume urn cargo de enfer-meira em urn grande hospital. Ela e rapi-damente indicada para 0 service de ur-gencias, inicialmente como enfermeira eposteriormente como supervisora.

    Dos quinze anos ali trabalhados, Simo-ne guard a excelente lembranca, Tipo detrabalho, relacoes profissionais, interessepelo service, camaradagem, tudo lheagradava nas urgencies durante os quin-ze anos ali passados, e suas ex-colegasenfermeiras se recordavam com emocaodesta epoca, de seu papel como coorde-nadora de equipe, do ambiente que elasabia criar e da simpatia que reinava noservice: Simone tinha mesmo organizadocom suas "meninas" enfermeiras urn pe-queno coral e todo service comecava,dessa forma, pela manha atraves de can-tos. Trabalhar com urgencies parece serfonte de muito stress , em funcao daagressividade dos doentes que deve serenfrentada, as vezes de golpes que se re-cebe, da necessidade de agir permanente-mente com presteza, das mortes que ternque ser anunciadas as familias, da irregu-laridade e carater imprevisivel dos aeon-tecimentos do dia, mas que para Simonese constituiam em situacoes atrativas epelas quais ela pagava 0preco:

    "Ou inze anos no sero ico de urgencia s m ede ixaram em plena fo rm a ... Eu gosto m uito -de acao, eu gosto das co isa s que se su cedemcom veloc idade , p ortan to , a s urgenc ia s m econ vinham bem . Tudo acon tece na s u rgen -cia s; h d situa coes ex trem am en te d ra ma tic as,penosas, que nos d eixam m uito tr is te , m asque n iio nos endurece nunca , m as por ou trola do , ha tam bem co isas com icas. Nada duram uito tem po no sero ico de urgen ciae . Quan-do se e en ferm eira ou superviso ra em um a sa -la , qu e voce tem pessoas lti que v iio m orrerm as que pode levar m eses para isso acon tecer,a gen te se apega a eles , cria -se vfncu lo s e issose to rna m uito d ific il. Na s urgen cia s, voce vi-

    ve siiuaco es bru ta is , in tensas, m as e la s n iiodura m m uito ... E depo is , ex is te sem pre a lgo ase r f eito a c ad a m om en to , a lg o r dp id o e in te n-so a ser fe ito , e isso a juda , tam bem , a elim ina ro stress e a tr is teza ou a bru ta lidade daqu iloque se ve ou 0 horror das co isa s que se pod ever. 0[ato d e se te r g esto s p re ciso s, rdpidos as e rem f ei to s e m uito estim ulan te e isso a judamuiio,"

    Se nos citamos longamente este teste-munho e para sublinhar 0papel determi-nante para 0 individuo, de poder se si-tuar em posicao ativa em face as imime-ras fontes de stress da vida profissional.Em urn service e em urn tipo de trabalhoque sao fonte permanente de "estimulosestressantes", com todas as caracteristicasde intempestividade, de incontrolabilida-de, de imprevisibilidade que caracteri-zam estes estimulos, mas tambem com aintensidade, a gravidade e a dificuldadeque poderiam torna-los insuportaveis, 0stress e vivido por Simone - e parece quepor urn mimero razoavel de suas colegas- em sua versao "positiva", estimulante,"funcional". E isto porque, como 0 dizmuito bern Simone, 0 stress , ou melhor, atensao devida as fontes de stress , e conti-nuamente absorvida na a~ao.Stress e carga psiquica

    Se quisermos retomar 0 interessanteconceito de "carga psiquica" propostopor C. Dejours podemos dizer que a car-ga psiquica do trabalho de Simone noservice de urgencies se "libera" conti-nuamente nos gestos a serem executadose na possibilidade dada ao individuo de"enfrentamento", gra

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    A N E U RO S E P R O F IS S IO N A L

    dores, como todo ser humano, estao con-tinuamente submetidos. Ele mostra bernque 0perigo para 0 trabalhador e aqueleda subutilizacao de suas aptidoes psiqui-cas fantasmaticas ou psicomotoras, poisesta subutilizacao ocasiona, entao, umaretencao de energia pulsional, aquelaque constitui, precisamente, a carga psi-quica do trabalho.

    Dito de outro modo, a tensao psiquicasurge se 0sujeito nao pode descarregar aexcitacao acumulada por uma das viashabituais de descarga de energia, tais co-mo sao descritas na clinica:a primeira e avia psiquica, que consiste, por exemplo,quando urn sujeito e tornado por urn im-pulso agressivo, em criar fantasmasagressivos, quer dizer, representacoesmenta is que sao, por vezes, suficientespara descarregar 0essencial da tensao in-terior, "pois a producao de fahtasmas e,por si s6, consumidora de energia pulsio-nal". A segunda e a via motora, na qual 0sujeito, nao conseguindo relaxar pela viaprecedente, utiliza sua musculatura: as-sim, a fuga ou uma crise de raiva motriz,ou a acao agressiva ela mesma, ou a vio-lencia que oferece toda uma gama de"descargas psicomotoras" possiveis. En-fim, se a via mental ou a via motora naoconvem ou nao sao suficientes, a energiapulsional se descarrega, entao, pela viado sistema nervoso autonomo e atravesda desregulacao das funcoes somaticas: ea via visceral aquela que atua nos proces-sos de somatizacao,

    Como bern relembra C. Dejours", dis-tingue-se em clinica, " se g u nd o a f le x ib il id a -de do s m ecanism os de deJesa e 0 g rau de evo-lUf ii o d a p e rs o na li da d e" , aqueles que se ser-vern das vias psicomotoras e viscerais(neuroses de carater e de comportamen-to) daqueles que se servem, principal-mente, da via mental: psicoses e neurosesclassicas que podem se instalar quando aproducao de fantasmas> agressivos naoe mais suficiente.E esta energia acumulada no cursodotrabalho - quando a tarefa a ser executa-da nao se apresenta mais como uma dre-nagem suficiente - que se constitui, se-gundo Dejours, na carga psiquica dotrabalho e que mostra a relacao com afadiga:

    "Se um traba lho perm ite a diminu icao daca rga psiqu ica , ele e equ ilibran te, se e le se

    opoe a es ta diminuicno, e le e J ati ga n te . Notr ab a lh o p o r p e(: as , n iio h a , abso lu tamente , lu-ga r pa ra a a tiv idade [an iasm atica; em todo ca-so , a s o ptid oe e [a nta sm dtica s n ao siio u iiliza -das co m 0obje tivo de con tribu irem pa ra ta l, ea v ia de descarg a psiqu ica e Jechada . A ener -g ia p siq uica se acum ula , se tra nsJorm and o emJon te de iensao e de desprazer, a ca rga psiqu i------_

    e jours , ele m esm o, Jaz aligacao en tre carga psiqu ica eo rg an iza ciio d o tra ba lh o,m osirando que em regra gera l a

    c arg a p siq uica d o tra ba lh oaum en ia quando a liberdade deo rg an iza cd o d o tra ba lh o d im in ui.------a cresce a te aparecerem a Jadiga e depo is aasten ia , e na sequenc ia a pato log ia: e 0 iraba-

    lho Ja t igan te" . 24Por outro lado, sempre em termos de

    economia psiquica, Dejours mostra que 0prazer de trabalhar resulta da descargade energia psfquica que facilita a tarefa, 0que corresponde a uma diminuicao dacarga psiquica do trabalho - 0 trabalha-dor pode, entao, se sentir melhor do queantes de ter comecado - e ele cita 0 casodo artista, do pesquisador ou do cirur-giao quando eles estao satisfeitos comseus trabalhos. 0 trabalho fatigante seopoe, entao, ao trabalho equilibrante,proveitoso a homeostasia.

    Vemos aqui todo 0 interesse desta no-

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    jJ~tJ C O L A B O R A C A O I N T E R N A C IO N A La morte ... 0 que nao era 0 caso nas ur-gencias, onde, como ela bern 0 lembra," is io ndo du rava . Voce tem , a s ve ze s, umchoq ue b ru ta l, m a s isso nao dura muiio",De mais a mais, no combate da vida con-tra a morte, que constitui 0objetivo pro-fundo da instituicao hospitalar, 0 servi-co de reanimacao aparece como comple-tamente dominado pel a morte, ao con-trario das urgencies onde, frequente-mente, a vida ganha da morte (tantomais que a morte, quando ela ocorre,nao sobrevem, via de regra, "de imedia-to", mas no service onde 0 doente foiencaminhado apos admissao).A morte acresce-se 0 sofrimento dosdoentes, tanto mais acentuado por ser areanimacao 0 service, por excelencia, on-de se exerce a "furia terapeutica", E, nes-te contexto onde a morte esta semprepresente - a morte efetiva mas tambem adolorosa presence do que "vern antes" -nenhuma escapatoria e possivel:"Nos seroicos n orm a is , o s pacientes agoni-zan tes e s t d o em seu s qua r to s , e e x is te um a ex-tensao de seroico que fa z co m que po ssam os(sair um pouco de perio), p oss am o s n os m o vi-m en ta r, enquan to que em reanimaciio em u ito fechado , vo ce e sta la, constante-m en te com a situa r;iio sob seu s o lho s .N iio tem escapa tO ria po ss ive l enquan tovoce esta p resen te . Voce n iio pode e spe ra rpo r soco rro ... n em por lo ca is , n em nada . ..n em dos ou tro s po rque o s ou tro s v ivem , fre -quen tem en ie , a m esm a angu s iia que voce v i-v e . E a m orte e sta sem pre p re sen te ,"

    Em seu estudo sobre a agressao psi-quica da morte no trabalho de enferma-gem, P. Logeay e G. Gadbois27 mostra-ram claramente como a presence da mor-te (no caso do service de reanimacao, tra-ta-se mesmo de uma onipresencal) e aimpotencia de nao poder domina-la re-metem 0 sujeito para 0 fantasma de suapropria morte. Esta luta incessante e in-certa contra a morte (trata-se aqui, fre-quenternente, de uma luta perdida de an-temao) gera, frequentemente, fortes senti-mentos de culpa. Price e Bergen 28 mostra-ram que a enfermeira e constantementeobrigada a lutar contra a ideia de que elanao e capaz de fazer mais do que faz paraimpedir que 0doente morra."E sia an s iedade da in su fic isn c ia do s cu i-dado s pode se r m ais in ten sa e se tradu zir , na su nid ad es d e rea nim ad io , p eIo se ntim en to q ue

    26 . D EJO UR S, C . A loucu ra d ot raba l ho . O p. ci t .2 7. L OG EAY , P . & GADBO IS , C .O p. ci t .28 . P RIC E, F . R . & B ER G EN , B ."T he re la tion sh ip to d ea th a s as ou rc e of s tre ss for n urs es on ac oro na ry c are u nit" . Omega ,8 (3 ): 22 9 -3 7 , 1 9 77 .

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    encontra mais drenagem no exercicio dotrabalho, acumula-se no aparelho psiqui-co ocasionando urn sentimento de des-prazer e de tensao." 26

    Se retornarmos, agora, a situacao dasenfermeiras do service de urgencias, ve-remos que, nao obstante fortes "excita-coes" (fontes de s tress) tanto externas (ur-genera, agressividade dos doentes) quan-to internas (agressao psiquica da morte,por exemplo), a energia pulsional das en-fermeiras se descarrega sem cessar e quea amplitude de a~ao que lhes da 0 con-tetido e a organizacao de seu trabalho e 0fator que perrnite esta descarga regular, 0que torna seu trabalho equilibrante enao fatigante ("15 ano s no seroico d e u rg en -c ia s m e d ei xa ra m p er fe ita m en te em forma") .A sequencia da historia de Simone vainos mostrar como a nao descarga daenergia pulsional e, portanto, 0 acumuloda carga psiquica, somados a impossibili-dade ou a insuficiencia das descargas pe-las vias motora ou visceral, vao conduzi-la a enveredar na via mental, por urn pro-cesso criador de neurose.Da agressividade exterior a agressao in-terior

    Apos "15 anos no service de urgen-cias", propoe-se a Simone que ela assu-rna 0cargo de supervisora em urn servi-co que acabara de ser criado no hospital:o service de reanimacao, que ela fica en-carregada de organizar inteiramente, as-sessorando, de perto, 0medico respon-savel pelo service e dirigindo a equipedas enfermeiras. E, neste cargo, numprazo de quatro anos, Simone, a quemos 15 anos do service de urgencies nao'tinham conseguido abater 0entusiasmo,entra num processo patologico que seacentua gradativamente e do qual ela soiria sair definitivamente alguns mesesdepois de a term os encontrado, isto,quatro anos depois de ter deixado 0ser-vico de reanimacao.A primeira coisa que Simone mencio-na a proposito do service de reanimacaoe que era urn service " fe ch ad o s ob re s i m es -m o, v iv ido em iso lam en to qua se to ta l" , emoposicao as urgencies, " a b er to p e rm an en t e-m e nt e a o e xt er io r" .o segundo elemento que estrutura co-tidianamente seu trabalho e urn estarcontinuamente a "portas fechadas" com

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    A N E UR O S E P R O FIS S IO N A L

    No caso de Sim one - que[a la a lias do sero ico com o umlu ga r d e "a gre ssiv id ad e in te rio r" ,c on tra ria me nte a s urgencias queera um luga r de 1/agress iv idadeverba l" - a angustia e aculpabil idade en o a gra va da s p oru ma d up la so lid iio .------h om em , g ra ca s a o a pe rfe ic oa m en to d a te cn o-

    lo gia , te m m eio s ilim ita do s d e elim in ar a m or-teo A ocorren cia de um ac iden te agu do seria ,en t a o, im pu ta do a en fe rm eira . A pa ssag em dosen tim en to de nao te r pod ido im ped ir a m ortepara 0 sen tim en to de ser respon sdu el pe loa co nte cim en to , es ta a u m p asso . Ap os 0faleci-m en to , a s v ezes m uito te mp o a po e, a lem bra n-~a , ev en tu alm en te erra da , d e ce rto s g esto s d ecu id ad os, p od e rea tiv ar este s sen tim en to s d ec ulp ab ilid a de . P ara d ox alm e nte , e m v ista d estetem or d e in su fic ien cia d e cu id ad os, a s e nfe r-m e i ra s v iv e n c iam 0 se ntim en to d e 'tere m ex a-gerado '; e la s tem a im pressd o de qu e 0 doentese to rna um a mdqu in a e que a aparelh agemtecno lo g ica a ten ta con tra a hum an idade dod o en te m o r ib u n do . 29

    Esta "carga psiquica" de confrontocorn a morte nao consegue assim ser eli-minada jamais, pois a agressao pstquicarecomeca sem cessar. Nao podendo sedescarregar - como era 0caso nas urgen-cias, onde 0principio mesmo do serviceimpedia permanecer a "portas fechadas"corn a morte e onde cada gesto efetuadose constituia, mais freqiientemente, ernuma vit6ria sobre a mesma - a "cargapsiquica" se volta, pois, contra 0 indivi-duo produzindo angustia e culpa.

    No caso de Simone - que fala alias doservice como urn lugar de "agressividadeinterior", contrariamente as urgenciesque era urn lugar de "agressividade ver-bal" - a angustia e a culpabilidade saoagravadas por uma dupla solidao. Soli-dao hierarquica, inicialmente: ela e a uni-ca enfermeira naquela posicao hierarqui-ca, servindo de amortecedor entre as en-fermeiras e os medicos, e nao pode sepermitir descarregar a agressao interiorern "agressividade externa", como faz amaioria das pessoas do service. Ela naopode, igualmente, "mostrar seus senti-

    mentos", pois, ela diz: " esp era -se d e m im 0con stan te en fren tam en to d a situaca o, que eunu o ch ore , q ue e u seja u ma ro ch al"

    Mas essa solidao hierarquica se dupli-ca, para Simone, ern uma solidao pes-soal, pois ela e celibataria e sem filhos, 0que nao havia, ate entao, incidido sobresua vida profissional a qual ela se entre-gava inteira, no bela entusiasmo de sua"vocacao", mas que contribui, provavel-mente, no contexto traumatizante aoqual ela esta cotidianamente submetida,para acelerar a instalacao de urn proces-so neur6tico.Agressao psiquica e neurose traumatica

    Corn efeito, diante dos traumatism osrepetidos que constituem essas cenasm6rbidas suportadas na impotencia dasolidao, e bern urn processo neur6ticoque se instala pouco a pouco ern Simone,corn todos os sintomas clinicos da neuro-se traumatica. Ela comeca por "ruminar"solitariamente, repassando todas as noi-tes cada acontecimento do dia, cortandotodo contacto corn seus amigos e se fe-chanda ern urn monologo desesperado,corn seu gravador como confidente, paratentar, sem sucesso, "ab-reagir" ao trau-matismo da jornada de trabalho:"Eu nao suportava m ais e sse am bien te darean imacno Eu nao dorm ia ... Eu nao dor-m ia m a is ba stava m e deita r , por a cabecano travesse iro para qu e tud o vo lta sse num re-p en te , q ue a jo rn ad a d esfila sse n a m in ha ca be-~ a m e d ize nd o 'ia lu ez, fa ce a ta l c ircu nstttn -c ia , e u d eve sse fa ze r is to , fa ze r a qu ilo , e u n aodev ia ter d ito is to ou eu n iio devia te r fe itoaqu ilo '. E dep ois eu nao via . .. eu n ao via m aisn inguem , eu m e fechava com ple tam en te , euv iv ia p io r que um a fre ira enc lau su rada , euera um pouco com o um au ibm a io ! Eu nao ti-nh a m ais dese jo de na da ... eu tinha gasto u mata l energ ia ... eu nu nca tinha sen tido isso nasurgencia s , de te r gasto tod a m inh a energ ia ...t odo 0 te mp o q ue eu tra ba lh ei n as u rg en cia s,a in da m e restava energ ia a no ite , m as la ,q ua nd o eu sa ia d a re an im ad io , eu e sta va co m-p le ta me nte ... e sg ota da , se m v on ta de d e [a la rcom quem qu er que fo sse , eu estava m ovida ...por essa so lid iio que eu viv ia no trab alho , so ,face a um a equ ipe param ed ica , face a um aeq uip e m ed ica , fa ce a g ra nd e eq uip e a dm in is-tra tiv a, fa ce a to do 0 m und o! Q uan do voce es-ta com ple tam en te so , em um sero ico onde to -do m und o te con sidera respon sao el po r tudo , 29 . L O G E A Y . P . & G A D B O I S , C .O p. ci t . , p . 8 2.

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    i J ! J l J C O L A B O R A C AO I N T E R N A C I O N A L

    3 0. C R OC a, L. Op. cit.

    voce n iio tern sen iio as paredes ou a tua in ti-m idade a no ite para fa lar aos teus m uro s e di-zer que isso niio esid bern , eu niio agiientomats , e dem ais f ... En tao , a n oite , eu n ao tinham ais von tade de ver n inguem , de fa lar comninguem, eu perd i m uito s am igo s nesta oca-e iao! E a ca ba -se p or se fe ch ar e fe tiva men te e muma quantidade de prob lem as e quando nsose p od e co nta -lo e a n inguem , q ue tu do o corren a tua ca beca , a caba -se po r ver a s co isas a rre -vesa da s ... en tdo , as uezes, eu p eg ava m eu g ra-va do r e eu fa lava isso tu do ao g rao ad or."A contradicao expressa por Simone en-tre a solidao profissional que ela deplorae 0 fato de ela se dedicar, a noite, a pro-longar esta solidao, cortando todo conta-to com seus amigos, nao e senao aparen-te, e 0 processo de fechamento no qualela se instala e bern a consequencia diretado traumatismo que ela sofreu. A inibi-\ao da sexualidade ("enelausurada comouma freira") e as disposicoes para a rela-\ao afetiva com 0 outro, 0 fechamento so-bre si mesma e 0 corte com 0mundo ex-terior, sao a expressao desse "bloqueiodas funcoes do ego" do qual falava Feni-chel e resultam, de fato, no esgotamentoda reserva de energia libidinal, inteira-mente canalizada para a premencia docontrole do traumatismo, que caracterizaa "personalidade traumato-neur6tica".Quando Simone fala, ela mesma, de suaenergia que era "impelida pela solidao"do dia de trabalho, e precisamente estemecanismo que ela descreve: solidao pro-fissional e violencia dos traumatismos so-fridos cada dia se conjugam para impe-dir, durante 0dia, de "ab-reagir" ao trau-ma e de dominar, pela objetivacao da lin-guagem e diante da presen\a reassegura-dora do outro, as agressoes rruiltiplas erepetidas. Estas ultimas lhe "consomem",entao, efetivamente todas as reservas deenergia para finalizar ao longo do dia, nofaz-de-conta do dorrunio necessario paracontinuar seu trabalho; depois, terminampor transbordar suas defesas e por inva-dir sua vida, deixando-a, entao, "comourn automate", incapaz de sair deste es-gotante monologo consigo mesma, onde,a ruminacao repetida do traumatismo in-cita a angustia e a culpabilidade.o processo de autofechamento no qualSimone se instalou tende a crescer: 0 iso-lacionismo do service, cortado do mundoexterior, corresponde agora ao isolacio-

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    nismo pessoal de Simone, que se torna"totalmente insone" e cortada, ela tam-bern, de toda relacao com 0 outre, a naoser com seu service e com a morte:"Eu m edei con ta d isso , m as ap6s ter reprodu zido ,v olta nd o p ar a c as a, e xa ta m en te 0 m odo de au -to fe ch am en to d o se ro ic o, p io r a in da , p orq ue Iiie u e sta va v erd ad eira me nte s6; a co niec ia -m e,frequ en tem en te, d e tirar 0 fo ne do gancho ano ite , porque a id eia de que pudessem m e cha -m ar pa recia in supor tdoe l d e ... de ter a indaa mig os q ue m e c ha ma sse m".Estamos, mais uma vez, diante do qua-dro clinico da neurose traumatica, onde 0organismo, no que concerne as funcoesde protecao.t''nao e mais capaz de filtrar,nem de integrar os estimulos significati-vos necessaries ao exercicio de suas ativi-dades de poder e de relacao", Por exem-plo, ele "recusa" perceber os estimulosou, ao contrario, "se sobressalta a qual-quer estimulacao, mesmo nao nociva" 30.Ruminacao solitaria, sind rome de re-peticao, bloqueio das funcoes do ego: 0quadro clinico da neurose traurnatica es-ta completo. Ve-se bern, no caso de Simo-ne - que nenhuma perturbacao caracte-rial nem qualquer dificuldade de adapta-\ao a realidade ou ao outro, nem qual-quer sintoma neur6tico jamais haviamacometido - como urn tal processo podeser gerado por urn contexto profissional.o carater particular do service (isolamen-to) se associou aquele do contexto e dotrabalho (geradores de agressao e detraumatismo psiquico) e, enfim, aqueledo cargo ocupado (solidao hierarquica),para transformar, em quatro anos, umaenfermeira confirmada, transbordante deentusiasmo e que tinha resistido durante15 anos ao stress continuo de urn servicede urgencies hospital ares, em uma pes-soa desamparada, solitaria e insone, do-minada, continuamente, por pens amen-tos os mais m6rbidos. E , alias, possivelque, submetida sem tregua a repeticaodos mesmos traurnatismos, Simone pu-desse urn dia atingir, de uma maneira oude outra, uma "situacao sem retorno".E e, paradoxalmente, aquilo que pode-ria ter se constituido em urn outro trau-matismo, a saber urn acidente, que elaparece dever sua saude. Urn dia, quando'ela sai do hospital esgotada, pega seucarro, em estado quase sonambiilico -"eu n iu : es tava Iii no m eu carro , ao uo lan ie" -

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    A N E UR O S E P R O FIS S IO N A L

    e sofre urn grave acidente do qual sai mi-raculosamente ilesa, se bern que seu car-ro tenha sido completamente destruido.Alguns dias depois, sente "m uiio , m uitomedo", percebendo que poderia ter morri-do. Ela marca consulta com urn medicoque ouvindo-a falar de seus sintomas("com ple tam en te in sane , eu niio co mia q ua sema is") e de seus dias de trabalho, pegaurn elastica em sua gaveta e 0estica. "En-tiio e le m e d iz: 'a senhora esta desse ie ito '. E ledis tende 0 ma is p os si ve l 0 ela stica e m e d iz: Asen ho ra e stti n este p on to . E ntiio , e xis tem d ua sso iucte: estique um pouco m ais e ele va i sero mp er; o u a fro ux e, a fro uxe 0 e la stica e tu doo olia ra a o n or ma l. E eu sa i a ssim , sem m ed i-ca men to n em nada" ,Simone encontra, entao, energia, aposter refletido muito, para decidir "afrou-xar 0 elastico", Ela solicita urn cargo desupervisora chefe em urn outro service egra

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    J J ~ I J C O L A B O R A C A O I N T E R N A C IO N A Le m s us pe ns o" , explica a responsavel peloservice social. Ora, precisamente, a insta-bilidade das relacoes afetivas e urn ele-mento importante dessa instabilidade dasituacao profissional, pois urn mimero ra-zoavel de dispensas acontece com 0uni-co argumento que se "deixou de agra-dar": "tem -se um pouco a im press iio de es ta randando sob re um a co rda bam ba, explica 0chefe do pessoal, quer d izer que se pode , umdia ou ou tro , ser d esbancado , po r m elho r quese se ja ... e stam os todo s em um a s i tuacao pre-cd ria , n iio se sabe nunca se se va i ag rada r oude ixa r de agrada r de um dia pa ra ou tro . "

    Quaisquer que sejam as razoes, as dis-pensas ocorrem muito rapidamente, "emduas horas geralmente", com urn acordofinanceiro, "com a ajuda de indeniza-coes" que permitem evitar os processos edeixam os dirigentes de maos livres paramudar 0 pessoal a seu born grado. "Napubl ic idade , explica 0 responsavel do ser-vico social, u m a d is pe ns a e s em p re j u st if ic a -ve l, m ud an ca d e o rca men to , m ud an ca d e cria -(;i io ,m u da nc a d e p ub lic id ad e, id eia s n ov as ... "

    3 1. N .T .: K leenex e u ma m arcad e le nco d e p ap el qu e, e m fun -C ao de se u am plo consum o,p as sou a s ub stitu ir 0 propr iou so d a p ala vra t e n c o : K leenexo u t e n c o descartave l s a o pratt-c a m e nte p a la v ra s s in on im a s e mPar i s .

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    b ien te espan to so , sem p iedade , sem le i, semami zade" .Os fatores de stress

    Quando comecamos nossa intervencaona agencia B,varies elementos - alem da-queles inerentes a profissao de publicita-rio que acabamos de citar - pareciam di-retamente ligados a origem do estado destress coletivo na qual estava mergulhadaa agencia.o primeiro consistia em uma discor-dancia entre as demandas exteriores e ascapacidades atuais da agenda. Esta ulti-ma, tendo firmado importantes contratosimplicando urn aporte financeiro consi-deravel e necessitando de urn aumentode trabalho, repercutia sobre seus empre-gados sob a forma de forte tensao, agra-vada pelo fato da pequenez do local quemantinha suas dimensoes anteriores eque nao tinha podido absorver correta-mente os recentes aumentos de pessoal.Amontoados em uma sala que eles deno-minaram "favela" e separados por semi-divisorias, os publicitarios se encontramassim "uns sob re os ou tro s, com um baru lhodo in fern o, d e te le fo nes, d e d is cu se o es .. . e umfa tor de irritacno cons tan te" .o segundo elemento consistia em per-turbacoes das relacoes interpessoais devi-das, ai tambem, a mudanca do tamanhoda agencia que passa, subrepticiamente,de urn estilo "de companheirismo" mis-turando alegremente vida privada e vidaprofissional, a urn estilo muito mais hie-rarquizado, exigido por seu crescimento.A hierarquia, inexistente oficiosamente,opera de fato urn retorno atraves da for-ca, face as exigencies crescentes do con-texto. Logica hierarquica e logica afetivase chocam sem cessar, criando continuosminidramas e gerando em cada urn umadiluicao dos parametres habituais. "Esta-m os sem c essar em equ ilib ria i ns ta t e! en tre 0c he fe e 0 empregado , explica uma responsa-vel pelo pessoal, e xis te u ma c am ar ad ag emsem nom e en tre 0 p atr iio e 0 empregado , e 'e ute cham a pelo p renom e, eu du rm o com voce 'm as no d ia em que se esid sa tu rado da pessoa ,e 'e u so u 0 che fe e eu te ponho na rua '" ,

    A ameaca de dispensa e, com efeito, 0terceiro elemento que estrutura comple-tamente 0contexte de trabalho da agen-cia. "Um grave prob lem a de stress n esta e m-presa e a disp en sa que eeta sem pre um pouco

    A gestae kleenexA dispensa e , de fato, nesta agencia,

    instaurada como urn verdadeiro sistemade gestae do pessoal. Eo reflexo da insta-bilidade da profissao e da agencia, aindaem periodo de adaptacao face as exigen-cias novas mal dominadas. Ela (a dispen-sa) testemunha tambem a vontade da di-recao de manter uma agenda "nova",pois a media de idade - por volta de trin-ta anos - e a mesma desde a fundacao daagenda, vinte anos atras,o "consume humano" implicado poresse sistema que transforma os indivi-duos, tais como os "Kleenex" usados, emelementos descartaveis a partir do mo-mento em que utilizou-se deles, envelhe-ceram ou deixaram de agradar, e a pro-pria imagem da sociedade de consumoda qual a publicidade constitui urn deseus sustentaculos, 0 individuo nao tern,neste sistema, nenhum valor "humane",ele e medido, julgado, avaliado e tratadona justa medida de seu rendimento ime-diato ou de sua seducao,

    A instabilidade humana do sistema eacentuada pelas saidas voluntarias que,de urn ana para ca, se aceleraram face aoclima desagradavel que reina na agendae a rotatividade anual do pessoal, que ja

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    A N EUROSE PRO FI SS IO N AL

    era enorme - urn terce -, atinge a metadedo pessoal. Essa rotatividade atinge, en-tretanto, mais os publicitarios "puros" -comerciais ou criadores - que os "admi-nistrativos", menos submissos a essa 1 0 -gica de seducao e .de consumo imediato eque assegura uma certa permanencia naestrutura.

    Necessidade de adaptacao permanen-te, confusao entre 0pessoal e 0profissio-nal, diluicao dos parametres. ameacas dedispensa e instabilidade erigida em siste-ma, todos esses elementos estao na ori-gem direta do s tress coletivo da agencia emarcam fortemente as relacoes interpes-soais: a tensao sobe, 0nervosismo cresce,as agressoes pessoais se intensificam ...

    Neste contexto, urn service se encontraparticularmente implicado e recebe, semcessar, e como se fosse urn alvo, todo 0s tress da agencia: e 0service responsavelpelo pessoal e pelas relacoes sociais, com-posto de urn chefe de pessoal, de umaresponsavel pelo service social, assim co-mo de varias auxiliares, que se ocupamdo pagamento, da contabilidade, da se-cretaria etc.

    "N6s es tam os con s tan tem en te n a lu ta ,explica 0chefe do pessoal, p or qu e q ua nd oe les d ec id em por a lguem p r a fo ra , e sem preem 4 8 h or as , is so n iio p od e e sp er ar , eniiio derepen te za s , e p rec iso fa zer os ca lcu lo s d e-p ressa , aque le fu lano trab a lha h ti quan totem po , qua n ta is to da ... q uan to s d ia s de fe -ria s , e com o inden iza cdo ... em segu ida an un -c ia que tem ou tro e tudo recom eca .: n iio sepa ra nunca."o setor de pessoal e, pois, 0ponto depassagem obrigatorio desta gestae k lee -n e x , que atua com a ajuda de afastamen-tos, de demissoes e de recrutamentos, eentao, 0ponto de encontro de todos oss tress individuais e dos dramas humanosda agencia.

    o "superinvestimento" profissionalEsta situacao suscita, em todas as pes-soas do service, urna tensao e urn mal-es-tar evidentes. Uma delas, entre tanto, aresponsavel pelo service social, parecemuito mais "estressada" que as outras,vivendo muito intensamente os proble-mas da agencia e mesmo "invadida", po-deriamos dizer, por eles.

    Encarregada da gestae das licencaspor motivo de doenca, da medicina do

    trabalho, do regime de aposentadorias eda previdencia social e da acao "social"da agenda (hospitalizacao, maternidadeetc.), a esta responsavel - que chamare-mos Denise - nao falta trabalho. Ora, naosomente ela 0 executa com muito ardor,competencia e devotamento, mas ultra-passa amplamente suas atribuicoes: sua-----_

    m sum a, os p ro ble ma s d aa ge nc ia sa o se us p ro ble ma s, 0s ofrim en to d os e m pre ga do s e 0seu so fr im en to ... e la os o io en cia eos con ta com um ardor , um ap aix iio , u m a in dig na aiocrescen ies cada vez que a

    encon iramos .

    casa se transformou quase que num ane-xo do seu escritorio, ela ai recebe a noitechamados telef6nicos de uma pessoa daagencia, desamparada em funcao de urnproblema pessoal ou de uma dispensaproxima, de uma outra que ameaca co-meter suicidio ... ela se coloca, pessoal-mente, como garantia de reembolso deurn emprestimo dado a alguem que aca-ba de ser dispensado e que nao se encon-tra em condicoes de 0 fazer de imediato,ela visita alguem hospitalizado, vai ate 0Instituto de Previdencia Social resolverurn caso complicado, ampara moralmen-te uma familia de uma jovem assistenteque fugiu etc. Em suma, os problemas daagenda sao seus problemas, 0sofrimentodos empregados e 0 seu sofrimento ... elaos vivencia e os conta com urn ardor,uma paixao, uma indignacao crescentescada vez que a encontramos.

    Simultaneamente, ela vive muito maloclima cada vez mais "deteriorado" dasrelacoes humanas da agenda, 0egoismoe a dureza dos dirigentes, mas tambem aatitude de "nao tenho nada com isso"dos jovens publicitarios, "mal educados","criancas mimadas" que postergam con-tinuamente seus compromissos com amedicina do trabalho, obrigando-a, en-tao, a uma longa e dificil gestae desteproblema.

    Em urna palavra, sua compaixao e seu9 7

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    JJm C O LA B O R A C A O I N T ER N A C IO N A Lesta ven do , esta e m inh a filh in ha (tod a o rgu -lho sa) ... m in ha verdad eira filh inh a ... ', Eu ti-nha 16 anos . "

    A descricao que Denise faz de sua in-fancia. notadamente no momenta daguerra, com multiplas mudancas, e dignadas aventuras da Gata Borralheira:"Q uand o a guerra fo i d ec la rada em 39, no sv iviam os em um grande apartam en to ... a no i-te eu tinha m edo ... eu tinha pesade los horri-ve is; m eu s pa is tinham posto m eus do is ir-m iios no qua rto ao lado do deles, aquecido(tom ind ignado ) e eu es tava na outra pon ia ,em um quartinho , ndo aquec ido , jun to da en -trada , onde eu tem ia que assa ltan tes a rrom -ba ssem e en trassem , po is era perto da por ta deen trada ... Eu es tava separada do s ou tro s po rum grande sa liio , um a sa la de jan tar, um es-critor io ; eu podia berrar duran te a no ite, m a-m ae niio m e escu tava . "Todos os incidentes que Denise contaa proposito de sua infancia sao do mes-mo tom e relatam a rejeicao da qual ela eobjeto da parte de sua mae e a evidentepreferencia por seus irmaos. Ela se lem-bra das ferias escolares, onde sua mae a"seqiiestrava", obrigando-a a passar aferro: "eu es tudaua tan to quan ta m eu s ir-m aos ... e eu escu ta va m inha m ae dizer para ae m pr eg ad a: 'H oje e dia de passa r roupa , estatudo aqu i, m as bem en tend ido , n iio toque emnada do que e de D enise , e la as passard e lamesma'",Para se vingar, provavelmente, da ati-tude materna, Denise acumula, como eladiz, "b esie ira a po s b es teir a" durante seuperiodo escolar, cultivando assim 0 con-lito: "Eu fazia m inha m ae espumar de todasas co res, eu respo ndia a tod os os prcfessores",Tece-se, assim, entre Denise e sua mae,uma relacao infernal que vai se amplian-do com a adolescencia: a hostilidade esta,entao, declarada e a mae de Denise naoperde, ao que parece, nenhuma ocasiaode responsabiliza-la por tudo 0 que lheacontece. Aqui surge uma lembrancaparticularmente dolorosa que ela contachorando copiosamente:"Quando eu era m ocinha , eu tive umapendic ite m uito g rave , com sep ticem ia . Eues tava m orren do , eu tinha 5 d e p re ssd o q ua n-do m e opera r am ... eu esta va ' d e itada . .. eu so-fria . M inha m ae ve io m e ver do is ou tree d ia sapos a operacdo , quando ela sab ia que n iio ti-nha con segu id o p erder sua filha . E la transpoeo um bra l da po rta e por ndo enxerga r bem , e la

    devotamento pelos dramas humanos daagencia so sao comparaveis a indignacaoe furor face ao comportamento da maio-ria do pessoal e a obstinacao de seu en-frentamento dos dirigentes para tentarobter deles urn gesto de consideracao pa-ra tal ou qual problema. Assim fazendo,ela os incomoda, os irrita e, se bern queapreciando a amplitude de seu trabalho edevotamento, eles retorquem mandando-a "passear" e nao the demonstram, se-nao, desprezo e ingratidao, recusando-lhe, principalmente, aumento de salariosob pretexto de que ela nao e "rentavel"(em termos publicitarios ...).A hist6ria de Denise

    Para compreender a razao desse enga-jamento passional que a poe em urn esta-do de stress pessoal muito intenso (ela vi-ve sob 0 efeito de tranqiiilizantes) queculmina com 0 aumento do stress naagencia, e preciso mergulhar nos mean-dros da sua historia pessoal. Foi 0que fi-zemos ao longo de muitas entrevistas eque nos permitiu descobrir que sua rela-c;aocom a agencia se desenvolvia exata-mente nos mesmos moldes que toda suarelacao anterior com sua mae. Para com-preende-la, tomemos a historia de Denisedesde seu inicio.A rejeicao maternaDenise nasce em uma familia de mili-tares, a segunda de quatro filhos. Todasua infancia, adolescencia e inicio de vidaadulta, ate seu casamento - tal como nosconta - parecem marcadas por aquilo queela denomina "dramas espantosos", do-minados pela figura de sua mae que, por.uma razao que ela ignora, sempre foi (eainda e) "terrivelmente malvada" comela: "m in ha m ae , verda de ira mente , jam ais m eace itou , desde m eu n asc im en to . Sera , ta lvez,porque e la ten ha tid o essa cr ianca m uito ced o,s em d es ei a- la ?" Qualquer que seja a razaodessa animosidade, tudo 0que conta De-nise e impregnado de sofrimento vividodiante da preferencia manifesta de suamae por seus irmaos e por sua irma, co-mo testemunha urn caso que ela contachorando: "No m om enta do na sc im ento dem inha irm a, tinham m e mandado para a casade m inha ava , e quando eu vo lte i, m am iie es-ta va em sua cam a, am am entando m inha irm ae n inando-a , e d ian te d e m im ela d isse 'vo ce

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    ca iu ; m achucou um jo e lho e ra sgou a m e ia .E la chegou ag ress iva a m in ha cabece ira e m ed isse : 'vo ce o iu , filh in ha , a q ue m e a co ntec eup ar tu a ca usa ? '"

    Em contraste com a dureza materna,Denise descreve a ternura que the dedi-cava seu pai: "M eu pa i e ra m arau ilho so ,m uito in te lig en te ... e u tinha um a adm irad iose m lim ite s p ar e le . E le m e d iz ia : 'm in ha filh i-n ha ' e m e punha em seu co lo ; eu rec eb ia ca r i-n ho s de m eu pa i, jam ais d e m inha m iie . IIAs crises histericas

    De qualquer modo, e sem tentar con-cluir sobre as razoes desta atitude mater-na, a relacao conflituosa de Denise comsua mae desemboca, a partir dos 18 anos,em uma serie de crises de tipo histerica:"E u tin ha cr ise s n erv osa s te rrive is en tre 18 e26 ano s , po rqu e cada vez qu e m eu s pa is . .. euq ue ria m a nife sta r a lg um a c oisa , f aze r a lg um ac o is a . .. m e r ec u sa v am " .

    Atraves das inumeras crises pelasquais Denise tenta expressar os conflitosmais violentos que ela vive, um sintomadomina os outros durante todo esse pe-rfodo: ela perde, gradativamente, a visaode seu olho direito, ja em mau estado, so-frendo daquilo que sera diagnostic adomais tarde como uma "paralisia locomo-tora com bloqueio do nervo otico". Estaparalisia, que nao e total e que se desblo-queia de tempos em tempos, evoca, semduvida, os fenomenos de cegueira histe-rica, muito frequentes neste tipo de afec-

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    i1~ tJC O L A B O RA C A o IN T E RN A C IO N A Lde uma estrutura louca que aspira e rejei-ta as pessoas ao ritmo de seu capricho. 0reconhecimento nao e mais possivel, a 16-gica do sistema mudou, as relacoes hu-manas se tornaram cinicas, materialistas,indiferentes ao devotamento pessoal.

    Na oferta extremada dela mesma, queela nao cessa de prodigalizar a partir domomenta que escolheu sua carreira deassistente social, Denise procura, acimade tudo, 0 reconhecimento e a gratidao ...o amor, que ela, enquanto crianca, jamaisobteve de sua mae. Na descricao que elafaz de sua vida na agencia e de sua vidapessoal, sua relacao com sua mae e suarelacao com a agencia se entrelacam, cal-cadas uma sobre a outra. A segunda, defato, substituiu a primeira, ela e vivida damesma maneira neur6tica, intensa, dolo-rosa, indignada.o "aumento do s tress" na agencia, comcrises de histeria individuais ou coletivasas quais se assiste, e descrita por Denisedo mesmo modo que 0aumento da crisehisterica que precedeu seu casamento. Avida nesta agencia ingrata se transfer-mou para ela na vida junto aquela maerna que nunca a soube amar.

    Ardentemente ligada a agenda na qualela tenta, com desespero, ajudar os quedela tern necessidade e que ela tenta pre-servar da loucura rna da organizacao, elae , tambem, profundamente atingida portudo aquilo que acontece e e incapaz deromper os vinculos que a ligam a agen-da. Denise se identifica, na verda de, aspessoas da agenda que ela desejava pro-teger dessa mae rna.

    De uma certa maneira, e ao mesmotempo sofrendo profundamente, ela senutre dessa neurose organizacional, con-tinuando, desesperadamente, a esperarda agencia urn impossivel retorno deamor, reativando, assim, a relacao neuro-tica anterior, nao resolvida.

    Esta relacao com a agencia, que ela de-plora e que a faz sofrer e de uma certamaneira urn ajuste de contas. Da mesmaforma que sua vida profissional, comoela mesma diz, havia sido uma maneirade sair de seus problemas - "a s ca sa s q ueeu encon tre i m e levara m, m e a jud aram a sa irde m eus p rob lem as, eu tive um a carenc ia , ep re ciso q ue as ou tro s n iio a tenham " -, suavida organizacional a faz mergulhar, no-vamente, em urn confronto com a mae

    sua familia, conquistando uma certa in-dependencia gra~as ao seu trabalho, de-pois conhecendo seu marido, as coisascomecam a se organizar. Ela descreveseu casamento como urn "casamentopor amor", nao obstante urn "noivadodramatico", por causa, claro, de suamae. A situacao, nao obstante, se estabi-Iiza com seu afastamento da familia."Felizm en te eu tenho um m arido ex ira ord i-ndrio ; co mo eu ja d isse , m in ha vida com ecoucom m eu casam en to . "

    Algum tempo depois, ela inicia seusestudos de assistente social que sua maejamais a havia autorizado a fazer; depois,apos ter criado seus filhos, exerce suaprofissao, inicialmente como autonoma,para muitas agencies de publicidade. Aagencia B , que ela acompanhava "de fo-ra" durante alguns anos, a contrata comofuncionaria permanente.Relacoes com a agenda, relacoes com amae

    Quando encontramos Denise, ela esta-va na agenda B, como funcionaria, ha 12anos. Ela viu, entao, crescer a agencia,apegou-se a ela por influencia, principal-mente, de urn de seus diretores queapredava a qualidade de seu trabalho ede seu devotamento. As coisas comeca-ram, de fato, a se degradarem para elaapos alguns anos, apos a "explosao" daagencia e a mudanca interna das relacoeshumanas.

    A dureza, 0cinismo, 0desrespeito hu-mana por parte dos dirigentes, totalmen-te orientados pelo sucesso profissional efinanceiro que "lhes sobe a cabeca", a in-gratidao, inclusive, que eles the demons-tram a tocam particularmente porquereativa para ela 0 ciclo infernal, solicita-~ao de amor - rejeicao de amor, que elaconheceu muito bern.

    A esta agencia ela se devotou de corpoe alma, procurando nela, possivelmente(e nela encontrando, provavelmente poruns tempos) 0 reconhecimento e 0 amordo qual ela foi longamente privada. Emurn dado momento, a "mecanica" organi-zacional se descontrolou, 0dirigente me-diador do inicio, reassegurador e conci-liativo, afasta-se da gestae das pessoas,muito ocupado pela extensao internacio-nal de seu negocio e por seu proprio su-cesso: Denise se encontra, entao, em face

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    rna, com a qual ela tenta, por bern ou pormal, ajustar contas. Desse combate, alias,como daquele de outrora, ela tern poucaschances de se sair vitoriosa ...

    Se retomarmos a hist6ria pessoal deDenise, percebemos que se opera nelauma clivagem33: clivagem entre uma re-lacao com urn pai born (salvo em urn mo-mento, mas ela pensa que ele tenha sidopressionado por sua mae) e uma relacaocom uma mae rna.

    Ap6s seu casamento e ap6s a morte deseu pai, algum tempo mais tarde, esta eli-vagem se atualiza em sua vida adulta,em uma relacao equilibrada com seu ma-rido (relacao que se instaura nos mesmosmoldes - admirativo e confiante - que arelacao com 0 pai que ela substitui) euma relacao mais distante e sempre rna,comsua mae.Quando comeca sua vida profissional,ela conhecera, durante alguns anos, urncerto equilfbrio, em razao, principalmen-te, da presen

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    ilm C O L A BO R A C A o IN T ER N A C IO N A Lmeio ambiente da vida ou do trabalhonao propiciam mais 0 reasseguramentoindispensavel ao Ego Ideal, este submer-ge no Ego, e isto com tanto rna is violen-cia quanta maior tiver sido a distanciaentre as duas instancias e tanto mais pro-fundamente quanto 0 Ego-Realidade ti-ver sido recalcado.Na verda de, pode-se comparar esteprocesso aquele da perda do objeto, oupara ser mais preciso, da perda do Egodo qual fala Freud em L uto e M e la n co lia : 0objeto perdido e aqui 0 Ego-Ideal e, as-sim como na melancolia, 0 sujeito deve,apos a fase brutal da prostracao, enfren-tar uma fase melancolica que correspon-de a identificacao com 0objeto perdidoque constituia 0Ego-Ideal. 0Ego do in-dividuo, amputado de uma parte de simesmo - seu Ego Ideal - nao conseguemais, durante algum tempo, funcionar,assim como na melancolia, a perda doobjeto amado consome 0Ego.Privado da "locomotiva" em que seconstituia 0 Ego-Ideal (nao importa asacrobacias que este the fazia realizar), 0Ego nao consegue mais avancar, ate 0momenta em que eIe possa reconquistaro lugar que 0Ego-Ideal the havia, poucoa pouco, confiscado.Assim, e esta clivagem que consome,pouco a pouco, toda a energia do Egoque se esgota em guindar-se as alturasexigidas pelo Ego-Ideal. Mas quando esteultimo, sob 0 imp acto da realidade que,por qualquer razao, nao 0 conforta mais,submerge e recai sobre 0 Ego, e entao, areducao deste ultimo e sua incapacidadeternporaria de funcionar sem 0motor doEgo- Ideal, que conferem ao processoneurotico seu carater devastador.Examinemos agora, a luz de urn casoconcreto, as apostas e os efeitos dessa"doenca da idealizacao".

    sucesso, estao na origem desse fenome-no. 0 individuo se encontra, de certa for-ma, preso em uma espiral infernal, obri-gado a correr cada vez mais depressa emurn contexto onde tudo muda tao rapida-mente que nao resta nada mais de estavela que se agarrar para retomar 0folego,Esse fenomeno e particularmente acen-tuado nas empresas que praticam aquiloque denominamos "administracao porexcelencia" e que incitam seus emprega-dos a buscar desempenhos cada vez maiselevados, tanto na realizacao de seus ob-jetivos quanta na maneira de realiza-los(IBM, Hewlett Packard, American Ex-press, Procter e Gamble etc.). Em urn talcontexto, 0 individuo e conduzido a de-senvolver e buscar uma imagem de simesmo em conformidade com os pa-droes exteriores de excelencia e de suces-so, as vezes, em detrimento de sua perso-nalidade real. 0 processo neurotico seinstala quando a vida ou 0 trabalho naotrazem mais aos individuos a recompen-sa que eles esperam, seja porque eles naopermitem mais realizar os ideais que setern, seja porque os esforcos demonstra-dos pelo individuo nao sao mais reconhe-cidos. A energia que mantinha, ate entao,esta corrida ao sucesso, nao sendo maisrecompensada, degrada-se e a pessoa seprostra.o processo toma a forma de uma eli-vagem do Ego: tudo se passa, com efeito,como se, na corrida ao sucesso, uma dasinstancias do aparelho psiquico - 0 Idealdo Ego - houvesse assumido 0 controledo conjunto do psiquismo e tivesse sidolevado ao superdesenvolvimento de urnEgo-Ideal, isto e, de urn Ego elevado asua maxima potencia, de urn Ego identi-ficado aos ideais elevados de sucesso eonipotencia, em detrimento do resto doEgo, nao idealizado, nao confundidocom sua imagem, mas confrontado com

    a realidade. Este Ego se esforca para, dealgum modo, seguir 0 Ego Ideal la nasalturas, onde este ultimo tenta arrasta-lo,gerando, tanto quanta possivel, suasproprias exigencias, fazendo calar aspulsoes, recalcando a angustia suscitadapel os desafios incessantes aos quais 0Ego Ideal procura permanentemente res-ponder para assegurar e confortar suaexistencia. Quando os objetivos visadosse revel am irrealizaveis ou quando 01 02

    A hist6ria de NoemiaAp6s seus estudos superiores, Noemiaentra, atraves de anuncios, na filial fran-cesa de uma multinacional, adepta dosprincipios de excelencia, Ela exerce du-rante nove anos, plenamente satisfeita, afuncao de administradora contabil e fi-nanceira. Durante todo esse periodo, elatrabalha sob a direcao de urn chefe -aquele que a recrutou - que ela estima eque a estima: "m e estim avam m uito , r eco -

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    nheciam m eu valor e isto era f undam en ta l pa -ra m im ... e p re ciso a dm itir q ue e u tra ba lh av aexcess ivam ente; eu chegava a traba lhar seted ias em se te e m esmo aos dom ingos, de com e-far as 7 horas da m anhii pa ra parar a um a dam ad ruga da , era , p ortan to , u m investim en toprofissiona l m uito forte ... m eu objetivo pes-soa l era fazer su cesso ... fazer sucesso nestacarreira",

    Quando perguntada de onde vinha es-ta vontade de fazer sucesso, ela a situafrancamente na sua origem familiar e emuma vontade de afirmacao e mesmo de"vinganca" feminista contra a opressaoprofissional da qual tinha sido vitima,por muito tempo, a parte feminina de suafamilia.

    "Eu pen so que eu tenho , em algum a partede m im mesm a, dese jo de vingar todas essasm ulh ere s q ue e stiio a trd s, q ue fo ra m co lo ca da sdepo is do s hom ens, e que nao tinham nuncanada a dizer e que ndo tinham nada a fa zersen iio criancas e traba lhos su jos, sem seremapreciadas. Eu v i d em ais m ulheres a m inhavo lta esm agadas pelo sistem a. Era um a m a-neira de v inga r m inha m ae , m inha avo , e param im era a m elho r estru tura , po is e um a em -presa qu e reconhece m uito as m ulheres. Eu fi-que i nesta em presa po rque ne la hav ia este re -conhec imento . II

    As premissas da idealizacao estao pos-tas. Noemia tern urn ideal, vingar as mu-lheres oprimidas e para isto e preciso fa-zer sucesso. Ela encontrou uma empresaque the oferece a ocasiao e que, durantemuitos anos, permite-lhe satisfazer esteideal, outorgando-lhe regularmente, si-nais de reconhecimento indispensaveis,que suas coirmas nao puderam conhecer.Ela, por seu lado, dedica-lhes urn traba-lho assiduo que ela mesma define - ja naocasiao - como sendo quase excessivopor seu perfeccionismo: "E u ex ig ia d em aisde m im mesm a, po rque n inguem me obrigavaa ser p er feccio nista , a ter tan ta exigencia co -m igo m esm a e com os ouiros" ,Ap6s alguns anos, produz-se uma im-portante mudanca na estrategia da filialonde trabalha Noemia: a empresa cresceconsideravelmente e passa, em poucotempo, de 400 a 2000pessoas. Esta mu-danca acarreta reformas importantes, asestruturas enrijecem e perdem seu cara-ter IIartesanal", 0 que provoca, entre ou-tras coisas, uma mudanca no status deNoemia que perde, neste momento, mui-

    to de sua autonomia: liM e to m ar am 0 po-der, eu ja nao tinha m ais m eu orcam enio , eunn o tin ha m ais au tonom ia , eu n iio pod ia m aisda r aum ento s de 50 francos que fosse, en-q uanta que , dura nte ano s eu hav ia gerencia doa s pessoa s no estilo de cenou ra na ponta davara e com aum ento s, e isso eu n iio pod iam ais fazer, eu ndo pod ia m ais ag ir , eu estavac omp le tam e n te e n cu r ra la d a ".-----_

    Quando os o bje tiv os v isa do s s ere ve la m irre aliza oe is o u q ua nd o 0m eio am bien te da vida ou dotra ba lh o n iio p ro pic ia m m ais 0re as se gu ra me nto in disp en sd oe l a oEgo Idea l, este subm erge no Ego .------ste primeiro golpe nas prerrogativas

    de Noemia e reforcado por urn conflitomuito serio com urn de seus colegas que- em funcao da reorganizacao da empre-sa - encontra-se, hierarquicamente, emposicao superior a Noemia:"Nos tinhamos duas mane iras de ver asc oisa s; c om fre qu en cia e le h av ia m e re pro va dop or se r perfeccionis ia , por ser dura , d e ir m ui-to fund o nas co isas, m as en quan to estaoa mo sem posicdo de igua ldade , isto func ion ou m ui-to b em . D ep ois d isso , e le pre ten deu m e dobra re eu nao suporte i ... M as 0 que m ais m e fezm a l fo i 0reconh ec im ento dado a este tipo , q uenada hav ia feito de no torio . Quando hav iag rand es prob lem as a reso lver o u m uita n eces-sid ade de le , ele na o estava lao Q u an do fo i pre -c iso en fren tar um a situ afiio ca iasiro fica , e lenao esta va la , e le chega ju s to no mom enta emque tu do estava tranq uilo ; e u ma organiza ca oc om o e ss a r ec on he ce -lo , is to m e p er tu rb ou !"

    Noemia se encontra, entao, em uma si-tuacao onde, por urn lado, ela e privadadas possibilidades de a

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    jJ~lJ C O L A BO R A C A o IN T E RN A C IO N A Lse rom pido ... e com o se eu tive sse agarradoa lgu em que estti em pe d ian te de m im e 0 ti -v e ss e q u eb ra d o ",

    A clivagem do Ego e total: a queda doEgo-Ideal e vivida quase que fisicamente,como a morte de urn ser muito querido,mas urn ser que era uma parte de nosmesmos e que perdemos ou que se que-bra. 0 Ego-Ideal de Noemia, que ela de-nomina sua "imagem de marca" e queera, de fato, aquilo que poderiamos deno-minar urn "Ego organizacional", arrasta,na sua queda, 0Ego de Noemia ("e c om ose eu tiv e sse a lgu em eo tivesse q uebrad o") eela acaba em uma clinica psiquiatrica. Elasai quatro meses mais tarde com urn mi-nimo de lucidez para perceber que elanao tern forcas para enfrentar de novo asituacao e pede demissao, com 0senti-mento que e a unica coisa a fazer se elaquer "salvar sua pele": "Era isso ou eu sen -tia q ue ir ia m orre r , ou eu ir ia pouco a poucom e su ic id ar e en tiio , p or in s tin to de con ser-v ar;iio , e u d isse 'eu n iio v olto mais', Eu n iioqueria m ais traba lhar para e le s e eu sen tiaq ue era eu ou e le s , se eu re to rna sse , eu m orre -r ia d e f a to " .

    As apostas de vida e de morte ai estao,muito fortes, e quando Noemia diz quese ela retornasse "morreria de fato" ouque isto corresponderia a cometer suici-dio em pequenas doses, e que ela sabeque em urn tal contexto, onde a solicita-c;aodo Ego-Ideal e forte e sua contribui-c;aoindispensavel, ela nao tern mais ne-nhuma chance de enfrentar a situacao.Deixar a estrutura e, entao, efetivamentea unica chance que the resta de vir a sal-var a pele do "Ego" que the resta e de vira restaura-lo sem a sombra sufocante deurn Ego-Ideal rompido para sempre.

    Dissemos, anteriormente, que 0Ego-Ideal de Noemia havia, de fato, se trans-formado em urn Ego organizacional: e es-ta identificacao e este processo de capta-c;aoque gostariamos de analisar agora.Noemia descreve longamente 0 podermuito forte exercido pela organizacaocom a exigencia de excelencia que ela es-pera de seus empregados: "Q ua ndo voceen tra la den iro , voce se d ed ica a isso , voce sed evo ta a essa organ izad io , de toda m aneiran iio se p od e fu nc io na r, e nq ua nto a dm in is tra -dor , a n iio ser dessa m an eira , e to dos aq ue le sq ue n iio a de re m a is to s iio ra pid am e nte a fa sta -do s. E le s e s tiio a cam inho da ga ragem e to dos

    " re co nh ec er u m tip o c om o e sse !" esta a altu-ra do investimento que ela havia feito namesma, bern como de sua ligacao com aorganizacao que the havia permitido rea-lizar aquilo que era seu ideal: fazer suces-so profissional e vingar-se enquanto mu-lher. "A irao es de le , eu tin ha um a relac iiop assio na l co m tod a a orga nizacao e a criticaqu e eu th e fa zia era , na verd ade , en derecad aa qu ela o rg an iza cso q ue te p ro mete c oisa s ... en iio te d a n ad a . .. "

    Noemia experimenta, entao, urn senti-mento de frustracao em relacao a essa or-ganizacao, tao amada que, de repente, dapreferencia a alguem que ela julga me-diocre e sobretudo nao the da mais - co-mo antes - 0que ela esperava. 0 proces-so de desilusao, ou antes, de "desideali-zacao", esta iniciado. A queimadura in-tema comeca,Ela se manifesta por uma das formasmais classicas desse fenomeno e.que en-contramos na maioria dos casos de perdado objeto: a depressao, devido a decep-cao, a queda do Ideal investido na orga-nizacao, que recai sobre 0Ego e 0desva-loriza: "Eu qu e a dora va esta estru tu ra , es tec la , eu v iv ia m uito m ais a em presa , e eu ch e-gue i a um pon to de , pe la m anh ii o u m esm o ano itin ha , d eixa r a s co isa s se arrasta rem aom ax im o, d e m ane ira a ter que acorda r ta rd e eir m esm o ao s tran co s . C hegou m esm o a umpon to d is to se tran sfo rm ar em a lg o fis ico ; asim ples id eia d e ir ao tra ba lho e ... sob rev i-nham a s crise s de ld grim as, eu m e punha achorar" ,

    Os problemas foram crescendo e Noe-mia acabou por "se romper" completa-mente. A descricao que ela faz de sua"queda" e verdadeiramente surpreen-dente pela vivencia fisica que ela descre-ve e que evoca, a perfeicao, tanto a cliva-gem entre 0Ego e 0Ego-Ideal quanta aextensao da queda do Ego-Ideal.

    "0 d ia em que is to rea lm en te ba la ncou fo im uito dram dtico , po is m e conh eceram sem -p re m uito che ia de v ida , m uito firm e, m uitoem pe , e n esse d ia eu a fun de i fis icam en te . Eum e lem b ro m u ito bem , eu estava no m eu es-c r it6r io e eu a fund ei, vo lte i p ara casa , la r-gu ei m inha bo lsa , m e sen te i e com eca ram a scrise s d e Iag rim as; fo i p io r do qu e se eu esti-v esse d ia nte de a lg uem m orto , a lguem m uitoquerido e m orto na m inha fren te ... eu e ra in -cap az d e p arar de cho rar . E d ep ois , tin ha si-d o toda a m inha im agem de m arca que ha via

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  • 5/11/2018 A Neurose Profissional

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    A N E UR O S E P R O FIS S IO N A L

    a qu eles q ue d eixa m d e es ta r in te ira men te de n-t ro , c a em " , Mais adiante, ela acrescenta:"F , v er da de ira m en te u m a organizacno que

    te tr itu ra , que te d evo ra ... Is to se tradu z po rum a espec ie d e et ica, de cu ltu ra de em presaque fa z com que voces se jam os melhores ,c om 0 slogan 'v oc es s iio os m a is b on ito s, osmaiores , os m ais fo rte s'. Voce tem que ser ex -c e len te em tudo , estd escr ito no con tra to , e ae xc ele nc ia p ela e xc ele nc ia ... C ad a d ois m es ese prec iso tom ar um banho de exce len c ia ; hdum p lane jam en to de tre inam en to , sem ina -r io s, te env iam em um luga r m u ito bon ito edu ran te um a sem ana te re lem bram os obje t i -v os e po rque voce a i esta e 0 q ue vo ce de ve fa -zer e q ue ca da p eq uen a a (iio e ne cessa ria p araa organ izacao" .

    Noemia lembra assim a nocao de per-feicao destilada pela organizacao: "F , pre-c is o s er 0ma is f or te , 0m ais p erfe ito ; to da s a sno ta s fa lam de per fe icao e a D irecao G era l e aD irecao de Recu rso s H um anos em item regu -la rm en te - a cada do is d ia s em m ed ia - um an ota so bre a n oca o de p erfe i(iio , de ex ig enc iaem re la cao a nos m esm os e em re ia c iio aoclienie",

    Pode-se, com efeito, avaliar bern a for-ca de tais sistemas e a maneira pela qualeles captam 0 Ideal do Ego de cada urnpara produzir urn "ego conforme", querdizer, homens e mulheres conformes aoideal de excelencia e de perfeicao, Maspercebe-se, igualmente bern, que essessistemas so funcionam, de fato, com acumplicidade do Ideal do Ego de cadauma das pessoas. As pessoas que inves-tern nessas organizacoes tiram proveitodesse ideal proposto porque elas veemnessa exigencia extrema uma maneirade realizar seu Ego-Ideal, de se comple-tar, se realizar, de progredir e por issoelas aderem fortemente a estas organiza-