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Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa Christoph Türcke[1] No dia-a-dia comum, os acidentados e doentes é que precisam de pronto socorro. No dia-a-dia da filosofia, no entanto, pode ocorrer o oposto. Pensamento crítico, sagaz, vivo, que acerta o ponto nevrálgico de sua época, costuma ser um pensamento que irrita, perturba, é perigoso, e, por isso, coloca-se em perigo. Subentende-se, que o mero fato de ter inimigos não qualifica um pensamento como genial. Há, ainda, inimigos da insensatez. Vale também o contrário. Quanto mais acerta, tanto mais um pensamento se torna objeto da má vontade de todos que se escandalizam com ele. Em termos filosóficos, então, realiza-se aquela previsão de Nietzsche, que se refuta em termos sociais: os fortes estão perecendo, enquanto os fracos se impõem. Sendo assim, o pensamento de Adorno precisa de socorro, justamente por ser um dos mais vivos e atuais. Um pronto-socorro limita-se a medidas iniciais e elementares. Em termos filosóficos: trata-se de dar um primeiro acesso para iniciantes, servindo-se da linguagem mais simples possível. Ainda assim, cabe lembrar que pronto socorro não é mumificação. Não se explica Adorno ao expressá-lo em termos adornianos. Ou seja, o mero reiterar e parafrasear do original não adianta. Explicação é vivificação, exigindo, portanto, perspectivas e exemplos divergentes do assunto a ser explicado. O objetivo do que se segue é, então, contribuir com alguns fragmentos, surgidos ao longo de um curso ministrado no

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Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa

Christoph Türcke[1]

No dia-a-dia comum, os acidentados e doentes é que precisam de pronto socorro. No

dia-a-dia da filosofia, no entanto, pode ocorrer o oposto. Pensamento crítico, sagaz, vivo, que

acerta o ponto nevrálgico de sua época, costuma ser um pensamento que irrita, perturba, é

perigoso, e, por isso, coloca-se em perigo. Subentende-se, que o mero fato de ter inimigos não

qualifica um pensamento como genial. Há, ainda, inimigos da insensatez. Vale também o

contrário. Quanto mais acerta, tanto mais um pensamento se torna objeto da má vontade de

todos que se escandalizam com ele. Em termos filosóficos, então, realiza-se aquela previsão de

Nietzsche, que se refuta em termos sociais: os fortes estão perecendo, enquanto os fracos se

impõem. Sendo assim, o pensamento de Adorno precisa de socorro, justamente por ser um

dos mais vivos e atuais.

Um pronto-socorro limita-se a medidas iniciais e elementares. Em termos filosóficos:

trata-se de dar um primeiro acesso para iniciantes, servindo-se da linguagem mais simples

possível. Ainda assim, cabe lembrar que pronto socorro não é mumificação. Não se explica

Adorno ao expressá-lo em termos adornianos. Ou seja, o mero reiterar e parafrasear do

original não adianta. Explicação é vivificação, exigindo, portanto, perspectivas e exemplos

divergentes do assunto a ser explicado. O objetivo do que se segue é, então, contribuir com

alguns fragmentos, surgidos ao longo de um curso ministrado no Departamento de Filosofia da

UNICAMP, para uma explicação introdutória, mas não tautológica da obra mestre filosófica de

Adorno: a Dialética Negativa. Trata-se de partes de um puzzle, que, quando muito, deixarão

vislumbrar uma totalidade, à qual elas não se integram. Talvez, no entanto, consigam instigar à

leitura de um texto, cuja tradução portuguesa continua um desiderato.

O Instante Perdido da Filosofia

Nos departamentos alemães de filosofia há vários colegas, que dizem clandestina ou

abertamente: “No fundo, Adorno não era filósofo”. De certa maneira, eles têm razão. Para

apoiá-los, basta abrir a Dialética Negativa e ler a primeira frase: “A filosofia que outrora

parecia obsoleta, se mantém viva, pois o momento de sua realização foi perdido.” A filosofia

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permanece, mas a permanência dela se deve a uma perda. Mais ainda: A filosofia está

conivente com esta perda. Por quê?

Ora, é uma longa história que vamos tratar de modo breve. A razão, aquela entidade

específica, que distingue os homens de qualquer outra criatura, é algo de bem particular: Não

somente uma disposição, que se encontra, em maior ou menor grau, em todas almas humanas

ou uma realidade intrínseca que se expressa exteriormente na fala e no comportamento de

cada um: ela contém, além disso, uma promessa. Promessa de que tipo? Ora, ao propor os fins

do trabalho humano, ao prestar as categorias do entendimento mútuo, ao formar as

estruturas da sociedade, a razão humana se manifesta como força própria capaz de formar,

por suas próprias leis, tanto os homens quanto o ambiente humano. Ao mesmo tempo,

porém, ela se mostra inesgotável em suas manifestações. Ela poderia conseguir mais do que

consegue, promete, então, mais do que realiza, abrindo, desta maneira, a perspectiva de uma

vida plenamente dirigida por forças racionais, que se sugere melhor e mais adequada às

necessidades humanas do que a existente. A percepção de que as manifestações reais da

razão se expressam num papel secundário, fragmentado e confuso inclui a percepção da

promessa de sua melhoria. Os primeiros filósofos, o que eram senão os descobridores da

autonomia da razão, os elaboradores de suas leis específicas? Na concepção deles a razão

humana se encontrava num estado lamentável, pois ignorava suas próprias leis, seu próprio

potencial humanizador, suas imensas possibilidades de contribuir para uma vida digna e feliz.

Chega desta ignorância; vamos transformar a razão num estado esclarecido, autoconsciente,

capaz de desdobrar-se livremente. A princípio, a filosofia é o trabalho desta transformação,

que resulta do fato de que a razão humana é contraditória. Ao manifestar-se, ela aponta para

além de si mesma. Ao expressar-se, ela mostra se inadequada a suas próprias leis, a suas

próprias necessidades. Nos termos de Marx: »A razão sempre existiu, mas não de forma

racional.« O trabalho filosófico, então, é levá-la à desejada forma racional, que ela mesma

sugere e promete, forma esta, na qual a razão deixa de contradizer a si mesma. Em outras

palavras: a razão contém tanto a promessa quanto a exigência de sua forma adequada. A

filosofia nasceu a serviço desta exigência, assumindo o papel de advogado da promessa da

razão.

Sabe-se que a tarefa de um advogado é lograr a vitória de seu cliente no tribunal.

Parece que a filosofia, ao dedicar-se à famosa inscrição do templo de Delfos »Gnothi sauton«

(Conheça-se a si mesmo), não se deu conta da abrangência da tarefa, não percebeu a ousadia

que é defender a promessa da razão no tribunal da história. Ela nasceu sem reconhecer-se a si

mesma. Não obstante, a filosofia não tem outra ocupação que esta defesa da promessa da

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razão. É seu dever, é sua vida. O pensar do pensar, como Aristóteles chamou a atividade

filosófica, não faz sentido senão empenhando-se pela construção da razão humana, i. e., por

sua transformação a um estado adequado. Tal transformação, sabia-se de início, no entanto,

um trabalho de Hércules. Vejam-se os lamentos de Heráclito, Parmênides, Empédocles,

Sócrates etc. a respeito do povo. O povo, o que é em termos de razão? Uma massa perdida,

tomada de cegueira. Cabe-lhe ser dominado posto que resiste às necessidades da razão: o

destino da razão é impor-se. Platão já sabia que tal imposição não vingaria se os encarregados

dela não chegassem ao poder. Eis a razão incontestável no conceito insustentável do rei

filósofo. Uma das particularidades da razão humana, com efeito, consiste em espalhar-se

ilimitadamente, tanto por meio da linguagem, da ciência, da arte, da técnica, como da conduta

cotidiana e da estrutura social. Até a sociedade mundial atual compõe uma objetivação da

razão humana, embora uma objetivação bem irracional. Não adianta, então, restringir o

pensar do pensar às disciplinas limitadas como a lógica, a epistemologia ou a linguagem, pois o

advogado é obrigado a seguir seu cliente para onde ele for, e o cliente ¾ a filosofia ¾ é

penetrante como o fermento na parábola do Novo Testamento. A razão não deixa de

envolver-se em tudo que ela toca. Nas palavras de Nietzsche: »A mente pura é a mentira

pura.« Recompor a razão significa, em última instância, refazê-la em sua totalidade, na qual a

razão humana está envolvida, i. e., a totalidade das relações humanas. Trata-se, então, a

princípio, de uma tarefa desmedida, ou seja, o desmedido é, de antemão, a medida da

filosofia.

Ora, não tardou que o advogado da promessa da razão se encontrasse completamente

sobrecarregado com sua tarefa. Evidenciou-se, ao longo da história, cada vez mais a

desproporção entre a capacidade do advogado e as necessidades da defesa, a ponto de o

processo inteiro acabar fracassando. Eis, pelo menos, a avaliação de Adorno na frase acima

citada. A filosofia perdeu o momento de sua realização. Talvez nunca tivesse tido chances

reais, mas agora certamente não tem mais. Uma humanidade que permitiu duas guerras

mundiais e inclusive o fascismo, vive após o processo da modernidade ou seja na modernidade

que perdeu seu momento decisivo, e, neste sentido, talvez num estado pós-moderno, que,

porém, não é a pós-modernidade de que se fala hoje em dia. Adorno não compartilharia dessa

opinião. Pelo contrário. Ao falar de realização da filosofia, ele se refere tanto ao impulso mais

antigo da filosofia quanto à mais radical colocação moderna a respeito dela, que é a famosa

colocação de Marx: »A filosofia não se pode realizar senão pela “ascensão”[2] do proletariado,

o proletariado não se pode “ascender” senão pela realização da filosofia.« Como sabemos

hoje, esta colocação se iludiu com a disposição do proletariado em promover a revolução

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mundial; não obstante, ela é genial quanto ao papel da filosofia. Abstraindo de todas as

querelas entre os filósofos, ela lembra a tarefa básica da filosofia que é defender a promessa

contida na própria razão. Realizar a filosofia é impor esta promessa, é levá-la à vitória no

tribunal da história. Não há outro destino para o advogado da razão. Filosofia, que não

pretende realizar-se, é inócua, não leva a sério sua própria ocupação, não se lembra, para o

que ela nasceu. Ao assumir sua tarefa, entretanto, ela tem que perceber sua incapacidade de

realizar-se por força própria, pois sua realização seria muito mais do que um processo

espiritual, mental ou cerebral, seria um processo social no campo aberto da história. A

recomposição da razão abrangeria tanto a emenda de pensamentos como de condutas e

estruturas. Não basta pensar e falar conforme as regras lógicas, não basta disputar a essência e

os primeiros princípios do mundo, não basta instalar departamentos de filosofia em todos os

bairros. A filosofia só chegaria a seu fim ou seja a sua forma adequada, se a humanidade

desistisse de seu curso suicida. Vê-se, então, a desproporção entre sua tarefa e os meios para

cumpri-la, vê-se sua necessidade de aliados fieis, vê-se, afinal, a ênfase filosófica no projeto

marxiano de associar a filosofia com o proletariado para eliminar a miséria filosófica junto com

a miséria social. Em busca das forças críticas sociais receptíveis para a força crítica do

pensamento, Marx agiu como advogado da razão à procura de apoio para sua promessa,

sabendo que este não se pode impor senão associado com as forças maiores, i. é, não pode

ganhar o processo a não ser quando aprovado pelo tribunal. Ao abandonar a filosofia em favor

dos estudos econômicos e da causa do movimento dos trabalhadores, ele pretendeu negá-la,

conservá-la, levá-la a cabo ao mesmo tempo. Tudo isso se compreende pela palavra alemã

»aufheben«. Em outras palavras: Ao virar-lhe as costas, ele deu à filosofia, como um presente

de despedida, a formula mais aguda de seu destino. A única atividade, que lhe cabe, é sua

realização[3], atividade que excede suas próprias forças.

Adorno, por sua vez, não discorda de Marx quanto à tarefa e ao destino da filosofia,

somente quanto à avaliação do tribunal. O instante da realização da filosofia está perdido, i. é,

o advogado perdeu o processo. A causa por ele representada não foi aprovada pelo tribunal da

história. O proletariado não se evidenciou como juiz da sociedade capitalista, mas, ao invés,

esta sociedade é que se evidenciou como juiz do proletariado. O advogado, respondendo pela

causa por ele defendida, encontra-se condenado em sua própria pessoa. As duas guerras

mundiais, o fascismo, os campos de concentração incluem um juízo fatal sobre a própria

filosofia. Ela mesma falhou, não pode lavar as mãos com inocência frente a tais

acontecimentos. Ela é conivente. E qual é o castigo a ela imposto? É a obrigação de continuar,

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continuar enquanto advogado da promessa da razão, porém, na plena consciência de

empenhar-se por uma causa perdida.

Eis, para Adorno, o impasse histórico em que a filosofia se encontra na segunda

metade do século XX. Ignorá-lo não adianta, pois ignorância não é profissão da filosofia.

Rejeitá-lo também não adianta; significaria eximir-se da responsabilidade. Orgulhar-se de ser

filósofo, pretender enfiar-se na fila dos grandes pensadores para forjar um novo sistema digno

de ser batizado pelo nome de seu autor, não passa de uma postura ridícula frente à

desproporção entre filosofia e conjuntura mundial. Limitar a filosofia a tarefas de antemão

restritas como a limpeza da linguagem ou da lógica, acaba restringindo o próprio pensamento.

Contentar-se com a administração da tradição filosófica em vez de aplicá-la, seria dispensar-se

do peso da tarefa da filosofia. Nada disso oferece saída. Resta reconhecer a culpa, aceitar o

castigo, prestar penitência. Filosofia que não tem má consciência, não tem consciência

adequada de si mesma. Falta lhe a marca decisiva de qualquer filosofia: a auto-reflexão.

Todavia, na função da má consciência ― aliás, da má consciência de si mesma e de seu

ambiente social ― a penitência da filosofia pode redimir-se um pouco de seu aparente

fracasso e tornar-se aquele fermento crítico indispensável que justifica ¾ para não dizer exige

¾ sua permanência. Esta permanência, todavia, apresenta-se de forma alterada, pois tudo,

que a filosofia oferecer à recomposição da razão, não passará de um sucedâneo do que ela

deveria oferecer. Tal permanência, então, não é motivo de orgulho e, sim, de vergonha.

Vergonha, no entanto, é o sentimento mais intelectual na alma humana. É a

coincidência de autoconhecimento e autocrítica. Adão e Eva envergonharam-se ao perceber

sua nudez, pondo em marcha assim o processo do conhecimento humano. Envergonhar-se é

querer desistir de si mesmo e não poder, é querer negar-se a si mesmo e não

conseguir.Vergonha é o elemento da não-identidade, o germe de qualquer crítica séria, e o

catastrófico fracasso histórico da filosofia voltou a desnudá-lo. Só é percebê-lo e dar-lhe

espaço para se desenvolver. Eis a chance na falha. Filosofia, que não se envergonha de si

mesma, ainda não tomou a sério a inscrição no templo de Delfos, ainda não chegou a um

autoconhecimento radical. Tal vergonha de si mesma é a única postura que lhe cabe. Só pela

vontade de desistir de si mesma ela pode continuar dignamente. Só ao desconfiar de sua

tradição, de seus próprios métodos, sua terminologia, suas formas literárias, ela pode tornar-

se confiável. Devido a isso, entende-se melhor o desconforto daqueles colegas que suspeitam

que Adorno propriamente não fosse filósofo. O que pensam faltar em Adorno é a identificação

decidida com os métodos e procedimentos e fins comprovados da filosofia. Eles ainda não

alcançaram o estágio daquela vergonha que se tornou condição vital da filosofia, i. e, é

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condição da possibilidade de sua continuação. O conceito de filosofia permanece pré-crítico.

Aliás, no estado da vergonha, se o pensamento reflexivo mantém ou rejeita o nome da

filosofia é simplesmente questão terminológica,.

Tudo isso soa, como se Adorno fosse um flagelante intelectual, andando descalço com

cinza sobre a cabeça. Não era assim. Pelo contrário. Quem conhece as observações de

Nietzsche sobre os ideais ascéticos sabe bem que a ascese, embora oposto a devassidão, não

carece de seus próprios prazeres, prazeres finos, sublimes, secretos. Sendo assim, a filosofia

penitente tem suas próprias recompensas. Não é à toa que Adorno foi chamado de pensador

opulento, não apenas por causa da riqueza de seus pensamentos e das questões por ele

tratados, como também por causa de seu estilo de pensar. Trata-se de um estilo ensaístico,

que nem se encaixa no procedimento científico, nem no procedimento artístico, embora

nutrido por ambos. O ensaio é uma forma literária fragmentária, que não se preocupa com

totalidades e não tolera prescrições sobre disciplina, tanto no sentido subjetivo de

comportamento como no sentido objetivo de matéria ou de assunto. O ensaio rejeita ser

fixado a um certo campo (filosofia, sociologia, literatura, arte, música), dispensa-se do aparato

científico de anotações, de enumeração da literatura secundária, de fundamentação completa

de todas observações alegadas etc. Ele trabalha um pensamento de maneira que é conduzido,

ou seja, seduzido pelo próprio impulso deste pensamento. Pensamentos têm sua própria

dinâmica, seu próprio ambiente, que estimula certas curiosidades, certas associações, certos

pulos. Ceder-lhes é um comportamento nem meramente científico nem arbitrário, e, sim, um

comportamento dançante, que faz lembrar as observações de Nietzsche sobre pensar e

dançar. O elemento deste dançar pensante é, conforme Nietzsche, o aforismo que não é senão

uma subcategoria do ensaio. Todos os aforismos procedem de modo ensaístico, mas nem

todos os ensaios são aforismos. No entanto, o que o aforismo e o ensaio têm em comum, é

aquela maneira dançante, que dá um toque artístico ao pensamento sem dilui-lo em arte. O

referido toque artístico, entretanto, não invade o pensamento como algo de alheio, mas dá

ressonância à própria vivacidade dele. Com efeito, dar espaço às associações e aos pulos, que

um pensamento concreto inspira, é mantê-lo vivo em vez de aprisioná-lo. O sistema é a prisão

do espírito. Para aprender a andar, precisa-se de instrumentos de apoio como muletas, coletes

etc., mas para movimentar-se livremente, certamente não. Sendo assim, o pensamento

ensaístico é contra qualquer sistema, não, porém, contra qualquer procedimento sistemático.

Pelo contrário. Não é à toa que Adorno se refere, na Dialética Negativa, à distinção famosa de

d’Alembert entre “esprit de système” e “esprit systematique”. A alusão a esta distinção

contém um dos pontos cruciais de sua conduta teórica. O verdadeiro procedimento

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sistemático persegue a própria dinámica da causa em questão. Por isso, ele não chega a um

sistema encerrado em si, enquanto qualquer sistema é forçado, num certo ponto, a desistir

desta dedicação sistemática à causa para ter condições de aprisiona-la nas suas gavetas

conceituais. O sistema tem que interromper o curso sistemático para encaixar a causa,

enquanto a causa, perseguida conforme suas próprias necessidades, nunca se encaixa no

sistema. Tal paradoxo é que domina a Dialética Negativa inteira. No gesto ensaístico, então, de

Adorno, pegamos o nó, no qual se atam e penetram o lado ascético e o lado sensual de seu

pensamento, ou seja, seu lado marxista e seu lado nietzscheano. Recomenda-se ilustrar este

aspecto com alguns dados biográficos.

Adorno nasceu em 1903 em Frankfurt, onde cresceu no ambiente judeu-alemão, que

trouxe estímulos decisivos à cultura européia. O pai, um rico comerciante, e a mãe, uma

cantora erudita, deram ao único filho todas as possibilidades de desenvolver seus talentos

teóricos e artísticos. Doutorou-se, com 21 anos, em Frankfurt, em filosofia com o kantiano

Hans Cornelius, e depois tornou-se pianista, compositor e musicista, tendo estudado em Viena

com Alban Berg e Eduard Steuermann. Adorno, como Thomas Mann observaria mais tarde,

rejeitava a opção entre artísta e teórico, como a coleção de suas obras bem confirma[4]. Numa

avaliação quantitativa das publicações, Adorno é muito mais músico do que filósofo. Entrou,

aliás, no Instituto de Pesquisa Social dirigido por Horkheimer, não enquanto especialista de

filosofia, e, sim, de música. Claro que nenhum de seus colegas no Instituto deixou de exceder

os limites de suas disciplinas tradicionais, pois, em geral naquela época, a formação nas

camadas privilegiadas tinha um fundo muito mais amplo do que hoje. Faltaram, sobretudo, os

atuais meios de distração. Adorno, no entanto, representou o caso extremo entre seus

colegas, não apenas por viva inteligência, mas também por ligar os campos culturais distantes.

Não era apenas amante da música como somos diletantes em literatura, arte e música: era

músico mesmo, compositor. A música, entretanto, é um campo muito mais distante do

pensamento conceitual do que a literatura, talvez até das próprias artes plásticas. O ouvido

parece um pouco mais distante do intelecto do que o olho; está mais exposto a influências

exteriores, com menos condições de defender-se contra elas. Precisa de um tipo de

inteligência e de fantasia bem peculiar. São raros os músicos filósofos. Não é à toa que Adorno,

enquanto insider tanto da música como da filosofia contemporâneas, também fez o papel do

outsider em ambas disciplinas. Esta experiência simultaneamente interna e externa, esta troca

da perspectiva, que o fez considerar a filosofia com os olhos do artísta, e a arte, sobretudo a

música, com os olhos do filósofo, é a experiência chave do jovem Adorno, que o habilitou, mais

tarde, a considerar a cultura inteira com os olhos do sociólogo e a sociedade com olhos

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filosóficos. Tal troca de perspectiva, que não carece de um aspecto artístico, bailarino, respira

todos os privilégios da formação burguesa desta época, mas se mostra plenamente disposta

para captar criticamente a conjuntura social na época do fascismo nascente. Para saber

dançar, pensar etc, todo mundo tem que primeiro aprender . Tem que se submeter às regras

indispensáveis para entrar no assunto. Assim, também Adorno estudou filosofia. Para poder

lidar de modo artístico e ensaístico com a filosofia teve que estuda-la. Muito antes de

compreender a importância do termo marxiano da realização da filosofia, i. é, o peso e alcance

deste termo, Adorno, por suas pretensões artísticas, já vivia a insuficiência do pensamento

conceitual-filosófico. Sua reserva em relação à filosofia tem um lado moral e outro estético,

um lado penitente e outro sensual, que se reúnem num grande nó chamado Dialética

Negativa. Vamos tentar, a seguir, desatar alguns de seus pontos.

Dialética Negativa

Dialética negativa ou positiva não é questão de livre escolha. No fundo, Adorno

pretende evidenciar a dialética negativa como tautológica. A dialética é sempre negativa. Ao

tornar-se positiva, ela deixa de ser dialética.

Como provar isso? Definições não adiantam. Identidade da identidade e da não-

identidade (Hegel) ― não explica nada. Recomenda-se lembrar a gênese da palavra

“dialegesthai”: dialogar, discutir, debater. As coisas têm que ser discutidas para serem

esclarecidas, pois não se subentendem, não são óbvias. O intelecto humano não pode

expressa-las de maneira a torná-las unívocas, fixas e identificadas de uma vez para sempre. Ele

não se liberta da perspectivas que as coisas lhe impõem, só pode expressá-las da maneira

como elas lhe aparecem. Ao mudar a perspectiva, a aparência muda também, e os conceitos

não chegam à plena congruência com a realidade que pretendem expressar. Eis a fraqueza

original do intelecto, ou seja o lado epistemológico do pecado original. Em outras palavras: a

princípio, o intelecto está condenado ao equívoco. É seu elemento. Não tem condições de

abandoná-lo até ao juízo final. É esse seu movimento. Eis a ocupação da dialética. Ela não é

senão a auto-reflexão do equívoco. O equívoco, por sua vez, tem vários significados. Há

equívocos meramente subjetivos, que resultam da falta de precisão conceitual. É fácil corrigi-

los. Há, no entanto, também equívocos que não se eliminam nem com o máximo de argúcia:

equívocos objetivos, que se devem à incongruência principal entre intelecto e causas. A

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dialética consiste em desdobrá-los de modo racional evitando cair em suas armadilhas. Os

pioneiros idealistas da dialética, no entanto, sobrecarregavam-se pretendendo diluir os

equívocos por meios conceituais. O genial em Hegel, mestre deles, foi mostrar a insuficiência

do conceito, o que o transforma num método auto-suficiente, ou seja, toma-se uma carência

humana como motor do processo inteiro. Sempre que isto ocorre, a dialética pára em vez de

aperfeiçoar-se. Dialética negativa não é senão lembrar e enfrentar a insuficiência do conceito.

Procedimento musical

A Dialética Negativa é um tema com inumeras variações. Só que, sendo música

intelectual do século XX, ela não expõe seu tema antes de entrar no cíclo das variações. O

tema não existe sem as variações. São elas que revelam, por suas voltas e viradas grandiosas,

cada vez mais o tema. O tema não se manifesta senão nas variações; quanto mais variações,

tanto mais nítido ele se torna. Mas a sequência das variações não obedece a uma lógica

estrita; não está conduzida pelos conceitos de fundamento e de consequência, pois o próprio

tema questiona a validade incondicional dos termos. Assim, as variações não resultam uma da

outra com necessidade lógica, , não formam elos de uma cadeia lógica, que ou chega a um fim

ou volta ao início. Formam, antes, o que Adorno, em outro contexto, chamou de

»constelação«. A passagem de uma a outra nunca é coercitiva, não carece de momentos

saltitantes, tampouco é meramente arbitrária. Enquanto a sequência das variações poderia ter

sido, até um certo grau, diferente, o conteúdo de cada uma está firmemente conjugado ao

conteúdo das outras. Cada uma aponta para as outras, fazendo com que o conjunto de todas

forme uma estrutura de explicação mútua. Só quando uma for capaz de explicar as outras será

capaz de explicar o tema. A explicação mútua das variações e a do tema são a mesma coisa.

Nenhuma deve exceder as outras. No caso ideal, todas se encontrariam na mesma

proximidade do centro. Só que o centro ou seja o tema não se abre senão mediante as

variações que apontam para ele. Não há acesso imediato.

Sendo assim, o método da Dialética Negativa obedece ao próprio conteúdo desta. O

procedimento lúdico-saltitante evidencia-se como altamente consequente: imanente ao

conteúdo. As assim chamadas variações praticam, em escala macrológica, o que cada uma

pretende realizar micrologicamente: aproximar-se do objeto considerado, que excede sua

identificação. Adorno, com efeito, depara-se, em qualquer conceito simples, com uma

ambigüidade abismal. A função óbvia de cada um é identificar, classificar alguma coisa:

apreendê-la em categorias lógicas. Ao mesmo tempo, cada um quer expressar

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conceitualmente algo de não-conceitual, apontando, destarte, para além de si mesmo.

Qualquer conceito, então, não apenas pratica a predicação de algo, mas também a dedicação a

algo. Devido a esta, que cada um deles »sente« sua própria insuficiência em relação ao objeto,

inserindo-se, portanto, no contexto de outros conceitos, que cerca a coisa em questão ao

explicarem-se mutuamente.

O fluxo concreto da linguagem não é senão este processo de explicação mútua. Não

constrói uma hierarquia entre sujeito, predicado e objeto, mas cria reciprocidade entre todos

os elementos linguísticos, que se integram a juízos, conclusões, tratados, de forma narrativa ou

argumentativa. Só enquanto os elementos conceituais conseguem explicar-se mutuamente, a

coisa em questão, i. é a coisa cercada por eles, se explica. Sendo assim, a explicação excede o

ato da identificação. Não se trata de explicar alguma coisa colocando-a numa gaveta

conceitual, e, sim, de fazer com que alguma coisa se explique a si mesma. Explicação assume,

destarte, as conotações de abertura, até de revelação da coisa em questão. Só que tal

revelação não acontece imediatamente, mas somente mediante conceitos, em que cada um se

apoia no outro e todos apontam para a coisa cercada. Assim, em vez de encaixá-la, o objetivo é

fazê-la sair da caixa de identidade, retirá-la do processo usual de identificação.

Este processo de abertura recíproca, entre os conceito, a constelação e a coisa

cercada, é visado pelo termo adorniano da »afinidade«.Nunca a afinidade chega à identidade;

consiste, antes, em elementos diferentes (irredutíveis), em que um carece do outro e se deve

ao outro. A explicação que eles se prestam é comunicação mútua de socorro e carência, e a

constelação conceitual, que é comunicativa neste sentido, incita, por assim dizer, o objeto

cercado para ele se manifestar em sua carência.

A comunicação que, assim, se põe em causa, excede a mera mensagem lingüística a

favor de uma comunicação entre conceito e coisa tendente à comunhão. A Dialética Negativa

pode ser lida como tentativa de desencadear a inclinação de todo espiritual e material a tal

comunhão, e o próprio texto da Dialética Negativa tenta participar neste processo por seu

procedimento em variações, das quais cada uma explica as outras e se socorre nas outras, para

que o tema se revele através de todas.

O Algo

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A segunda parte da Dialética Negativa, seu núcleo conceitual, começa expondo uma

noção que parece um mero fantasma: »algo«. Nada é mais vago. A realidade concreta consiste

em coisas determinadas. »Algo« é seu extrato conceitual mais abstrato. Mantém-se, nele, no

entanto, a lembrança do não-conceitual enquanto pressuposição de todos os conceitos, ou

enquanto solo alimentício e alvo de qualquer pensamento. Ou seja, pertence ao pensamento,

inextinguivelmente, o impulso que aponta para além de si mesmo. Assim, o »algo«,

atentamente percebido, evidencia-se enquanto fator elementar que perturba e impede vingar

tanto a autofundamentação do pensamento humano quanto a fundamentação do mundo pelo

pensamento. O »algo« ensina que todas as tentativas a esse respeito vão ser castigadas por

abstração demasiada, ou seja, o pensamento que pretende tal fundamentação, acaba

esvaziado em vez de confirmado.

Em outras palavras: os conceitos “finais”, que pretendem apoderar-se da plenitude do

ente, como o absoluto, o ser, o em si, a quintessência, sofrem o castigo de ser os mais

abstratos e ocos, maldição que persegue também conceitos finais “de preço reduzido”,

apresentados da seguinte maneira: tudo que os homens expressam, já se encontra nas formas

lógicas ou nas linguísticas. Então, vamos limitar nossa ocupação filosófica à reelaboração, isto

é, à limpeza ou da lógica ou da linguagem. Tal modéstia não desiste de tomar a lógica ou a

linguagem pelo primeiro e último ¾ não do mundo, é verdade, mas, sim, da própria ocupação,

ignorando o incurável envolvimento metalógico da lógica, metalingüístico da linguagem, que

impede, de saída, a subsistência da lógica e linguagem em si mesmas. Todas as pretensões de

sustentar tal subsistência desembocarão em conceitos vazios ou falsos.

Resta a pergunta: De onde tais pretensões? Por que não acabam? Porque a razão

humana tem uma inclinação natural para elas. É por seus próprios meios lógicos, i. é através de

conceitos, juízos e conclusões, que a razão chega aos conceitos finais. Não há nada de

insensato nisso. É o próprio curso da lógica que leva o pensamento a eles. Só que, ao longo

deste curso, o pensamento humano tende a sucumbir às próprias sugestões que sua atividade

acarreta. Pensar não é senão transformar realidade em conceitos. Mas é justamente este

processo de transformação que tende a iludir o pensamento a respeito de seu próprio alcance,

sugerindo-lhe uma capacidade de se encaixar sem resíduo a realidade em suas gavetas

conceituais, ou seja, sugerindo-lhe a congruência de seus conceitos e da realidade por eles

captada.

Tal sugestão ou até auto-sugestão do pensamento representa o germe de uma

tentação diabólica, que a razão contrai por sua autodinâmica, pela »lei de seu movimento«,

Page 12: file · Web viewNo dia-a-dia comum, os acidentados e doentes é que precisam de pronto socorro. No dia-a-dia da filosofia, no entanto, pode ocorrer o oposto

como diz Adorno, aludindo a uma colocação marxiana, tentação que pode ser chamada de

inclinação ideológica da própria razão. Ela se manifesta, micrologicamente, em qualquer ato

simples de identificação, que não se pode eximir da equivalência do não igual, e,

macrologicamente, na recondução, quer dizer redução do realidade inteira a princípios

conceituais, que é, em última instância, redução do universo ao espírito.

Sendo assim, a razão vive sob a sugestão permanente da onipotência dos

pensamentos, tendo, para se defender deles, apenas suas armas. Ou seja, a razão humana,

sempre tentada a iludir-se com seu próprio alcance, contém, não obstante, a força de

desiludir-se dele. Eis a força metalógica da lógica, a força auto-reflexiva e autocrítica da razão,

à qual Adorno apela, força que habilita a razão a pensar contra sua própria »lei de

movimento« sem desistir de si mesma. O desencadeamento desta força e o desdobramento

livre da razão são a mesma coisa: o empreendimento da Dialética Negativa.

Contradição

A auto-significação mais famosa da Dialética Negativa é »ontologia do estado falso«.

Tal falsidade, o que é? Num outro lugar, Adorno a chama de »coisa não reconciliada«. Eis sua

fórmula negativa para contradição. O mundo continua »falso« enquanto envolvido em

contradições, e a contradição não é senão falta de reconciliação. Sendo assim, a contradição

entre mundo e pensamento revela-se assunto bem abismal, que se reflete reciprocamente

sem se diluir um no outro, e mostra aspectos lógicos, sociais, ontológicos, até teológicos.

A rigor, a realidade inteira fica num estado contraditório, conforme a famosa

colocação da Minima Morália: »O todo é o falso.« Coisas inorgânicas não sentem a

contradição, mas fazem parte dela. Seres orgânicos, no entanto, sentem-na. Qualquer carência

e dor representam uma forma elementar de contradição. »A dor diz: esqueça!« reza a fórmula

nietzschiana correspondente, altamente apreciada por Adorno. Em outras palavras: A dor

consiste em contradizer a sua própria existência, sendo, portanto, contradição por excelência.

Conflito pulsional, sofrimento e luta representam formas básicas da contradição muito antes

de penetrar a forma mais abstrata e sublime, que é a contradição conceitual.

Todavia, contradição conceitual tem, por sua vez, ao menos três significados: 1. erro,

isto é, não saber aplicar devidamente as exigências lógicas; 2. contradição de pensamentos

imposta pelas próprias exigências lógicas; 3. contradição entre pensamento e realidade

pensada. Adicionalmente, o terceiro significado se distingue em dois:

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a. O pensamento humano, oriundo de raízes não espirituais, condenado a perseguir

suas regras lógicas sob condições não lógicas, está em equívoco insuperável. Ao expressar a

realidade material por conceitos, expressa também a ruptura entre matéria e pensamento, o

que impede sua congruência, ruptura que funda o intelecto humano e que, em termos

teológicos, se chama pecado original; em termos epistemológicos, entretanto, chama-se

metabasis eis allo genos (mudança para um gênero diferente). Tal ruptura, que significa a

ferida da natureza no intelecto, se reproduz em todos os atos pensantes. Por mais logicamente

que procedam permanece sua contradição intrínseca,.

b. Perceber, ou seja refletir esse envolvimento natural contraditório do intelecto, no

entanto, é querer livrar-se dele, é contradizê-lo: contradição à ruptura, à qual o pensamento

humano se deve. Sendo assim, até a auto-reflexão crítica do intelecto contém um impulso

contraditório, que coincide, no entanto, com seu impulso reconciliador, o que contradiz a

contradição do »estado falso«. A auto-reflexão, no sentido adorniano, é a irmã privilegiada da

dor, expressando por conceito e linguagem, o que a dor exprime por gritos.

Todos estes significados são matizes da »coisa não-reconciliada«, matizes a serem

atentamente diferenciados, mas não separados. Os aspectos ontologicos, teológicos, lógicos e

sociais se penetram mutuamente. A cada um deles aderem os rastros dos outros, nem fica

decidido, qual aspecto precede aos outros. Claro que a contradição, na qual todos os seres

orgânicos se encontram, existia milhares de anos antes da consciência humana acordar. Assim,

a consciência é bem posterior à realidade contraditória. Por outro lado, aquela contradição

pré-lógica não se dá a entender senão em termos lógicos. Assim, sendo a força reveladora de

qualquer tipo de contradição, o intelecto, embora posterior em termos de espaço e tempo,

mantém o aspecto do anterior. A contradição o precede, sim, mas só ele é que lhe dá à luz a

expressão consciente.

Um trabalho sobre contradição em termos de Dialética Negativa continua um

desiderato.

Lógica do desmoronamento

De saída, a Dialética Negativa é lógica do desmoronamento: sustenta que nenhum

conceito é capaz de pousar em si mesmo, de se manter homogêneo e unívoco, pois todos já se

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encontram em conjuntos não-conceituais, não-lógicos, pelos quais estão castigados com mil

equívocos. É aquele »algo«, o último bastião do não-conceitual, que não os deixa em paz

consigo mesmos. O »algo« é o fator perturbador, que põe em marcha o desmoronamento da

suposta pureza e autarquia dos conceitos, da mente, do espírito. Ainda assim, a lógica do

desmoronamento não é o desmoronamento da lógica; é, ao contrário, sua auto-reflexão, que

significa ampliação da lógica para além de si mesma: sua Aufhebung, quer dizer, seu fim

enquanto disciplina própria, mas, em compensação, a agudização de sua pretensão.

É difícil dizer se a Dialética Negativa constrói ou deixa desmoronar os conceitos (outra

interpretação: “faz ou deixa desmoronar conceitos”- nota da revisão). Com certeza, ela não

está limitada à destruição. O que ela destrói, sim, é aquela interpretação do mundo concreto

por meio de pares conceituais como sujeito-objeto, conceito-coisa, fundamento-conseqüência,

causa-efeito, essência-aparência, pares imprescindíveis, mas prestes a serem endurecidos, por

sua »lei de movimento«, em gavetas, isto é, em categorias unívocas, opostas, independentes,

em lutas por primazia. Qual é a gaveta superior? Tal pergunta que, em termos físicos tem

sentido, não o tem em termos filosóficos. Quem é o primordial: sujeito ou objeto, conceito ou

coisa etc.? Eis as alternativas falsas, que levam, inevitavelmente, ao impasse antinômico entre

monismo e dualismo. Neste impasse, como diz Kant, quem tem razão, é o agressor. É

impossível que sujeito e objeto, conceito e coisa, causa e efeito sejam igualmente originais; um

se deve ao outro, alega o monismo. Supondo um incondicionado primeiro, ninguém tem

condições de explicar a gênese do segundo, a não ser recorrendo ao mistério da creatio ex

nihilo, responde o dualismo. Ambos refutam-se mutuamente, têm razão ao se refutarem, não

têm ao serem refutados. Tal impasse, no entanto, é o castigo contraído pelo esquecimento do

simples fato do entrelaçamento conceitual não retratar, 1 a 1, o entrelaçamento das coisas,

amnésia que faz endurecer os conceitos em gavetas classificatórias.

Lógica do desmoronamento, portanto, significa fazer desmoronar o sistema de

gavetas, isentar os conceitos da gaveta de sua univocidade mentirosa, recuperando sua

vivacidade para fazer transparecer sua interpenetração, ou, falando em termos teológicos, sua

communicatio idiomatum. Sujeito e objeto, conceito e coisa, essência e aparência etc.:

penetram-se mutuamente, comunicam-se um ao outro, a ponto do sujeito, por sua vez, ter o

aspecto do objeto e vice versa, e assim por adiante, e a regra para lidar racionalmente com tais

equívocos ¾ equívocos inevitáveis, pois devidos a uma realidade não-unívoca ¾ reza: Não

confundir e não separar. Eis a regra negativa e reflexiva, que a Dialética Negativa observa da

primeira à última frase.

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Síntese

Aos estereótipos mais comuns sobre a Dialética Negativa pertence a suposição de que

ela »não tenha síntese«. Adorno diz a respeito: »Ela está posta à crítica não enquanto ato

mental singular, que reune momentos separados em sua relação, mas enquanto idéia

condutora e suprema.« (DN, 158) Quer dizer, a síntese é um dos fatos mais comuns e

cotidianos. Não há identificação conceitual senão por síntese de inúmeras miudezas sensoriais

a um só conceito. e não há sociedade senão por síntese de seres humanos e seus trabalhos,

funções, poderes, instituções etc. A síntese é condição da possibilidade tanto de qualquer

conhecimento quanto de qualquer estrutura social.

Por outro lado, nunca deixa de ser um ato violento. Não há síntese senão subsumindo,

abreviando, desfigurando alguma coisa, e subsunção, em termos sociais, é subjugação,

abstração e desrespeito, enquanto desfiguração é mutilação. A síntese, então, sendo um fato

tanto gnoseológico quanto moral e social, revela-se altamente ambígua: tanto inevitável

quanto inadequada. Ela capta as coisas, mas não lhes faz justiça, encaixando-as em vez de

pronunciar sua índole, detendo-as em vez de abrir-lhes o sentido. O espartilho da síntese não é

a voz da coisa espartilhada nem seu porta-voz. É seu sucedâneo. O mais espantoso, porém, é o

fato de a consciência humana ter condições de perceber isso. A insuficiência da síntese não

fica impermeável a uma virada mental, que pode ser chamada de o milagre da reflexão,

milagre este, que fez Nietzsche exclamar: »Somos seres de antemão injustos e incompletos e

capazes de conhecer isso. Eis uma das maiores desproporções da existência.« A desproporção

não some por ser conhecida; seu conhecimento, antes, a perfaz. Ainda assim, a tomada de tal

conhecimento é um ato iluminador e, por assim dizer, milagroso, pois consegue dirigir-se

contra a síntese com os meios dela. Abster-se da síntese funciona tão pouco quanto abster-se

da alimentação. O que funciona, contudo, é expressar, por conceitos identificadores e juízos

sintetizantes, os defeitos da identificação e da síntese. Assim se perfaz um duplo movimento

autocontraditório [hipótese 2: Assim se perfaz uma dupla Aufhebung] : negação e conservação

ao mesmo tempo. Ao serem voltadas contra si mesmas, identificação e síntese são tanto

conservadas quanto negadas. Identificação e síntese formam a condição da possibilidade de tal

virada e, ao mesmo tempo, seu objeto. Claro, que a própria transformação não escapa do

equívoco, mas lhe dá a luz da autoconsciência: a única possibilidade de movimentar-se nele de

modo racional.

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Esta transformação implica a voltar a dialética contra o mestre da dialética: Hegel. Em

seu sistema, síntese significa, em última instância, apoteose. Qualquer síntese é considerada

como algo de superior aos elementos sintetizados, algo que os eleva a um patamar mais alto,

digno e verdadeiro. Contraindo-os a uma unidade superior, a um novo unívoco, a reflexão dá

um pulo. Este pulo representa o ponto crucial e cego no procedimento hegeliano, velando o

fato de a ascensão dialética ― passo a passo, da certeza sensorial até ao conhecimento

absoluto, a um patamar mais alto ― não ter nenhuma necessidade lógica. Sempre que o ser e

o nada, o algo e seu outro, o fundamento e o fundado parecem se sintetizar,

automaticamente, a um estado mais elevado; nada de automático acontece e, sim, algo de

bem arbitrário: um salto para fora da derivação e mediação dialética. A mediação suspensa

recomeça logo que o novo patamar é alcançado, mas o próprio pulo para lá carece de

qualquer necessidade lógica. Não passa de uma decisão, de um dogma do autor, tendo

necessidade somente de fazer vingar seu sistema filosófico.

Não se trata aqui, todavia, do milagre dentro da reflexão, quer dizer, daquela

capacidade espantosa e não-derivável, que habilita a consciência humana à virada contra si

mesma, senão, pelo contrário, de um milagre fingido, se bem que por um dos maiores

feiticeiros intelectuais. Pela sua virtuosidade, a síntese acaba sacralizada, justificada, enquanto

motor divino da dialética, ao passo que Adorno não fez senão adiantar sua desmistificação.

Hegel, ao considerar a síntese o ponto de fuga do processo dialético, finge a possibilidade de

sair dialeticamente do envolvimento dialético. Tal saída, porém, é fictícia, é feitiçaria, tornando

Aufhebung um ato unilateral, unívoco, não-dialético de elevação misteriosa, bem

correspondente, aliás, ao ato de elevação dos elementos na eucaristia depois de tanto

envolvimento preparatório entre sacerdote, coroinhas e comunidade. Em vez de divinizar a

síntese a uma Aufhebung não-dialética, Adorno se ocupa com a Aufhebung dialética da

síntese, desvelando-a enquanto fato humano demasiado humano, que pode e deve ser

excedido pela virada crítica da consciência humana contra si mesma.

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[1] Professor da Universidade de Leipzig, Alemanha.

[2] O autor emprega a palavra alemã “Aufhebung”, difícil de traduzir em outras línguas, mas

que podemos indicar como abrangendo o seguinte campo semântico: eliminação, negação,

elevação etc. Neste parágrafo vamos entende-la por vezes como ascensão e por vezes como

realização.

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[3] Novamente o jogo com o termo “Aufhebung”: acima “ascensão”, aqui “realização”.

[4] Cf. volumes de 12 a 19 e de 21 a 23.