volume 02 - 1_part1
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escreveu Nelson Hungria: Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra- fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam aborto, adiante abordado. ciência para definir esse termo.TRANSCRIPT
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HOMICÍDIO
____________________________
1.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO
CRIME
É no art. 121 – “matar alguém: pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos” –
que o Código Penal brasileiro protege a vida humana extra-uterina. Sobre o homicídio
escreveu Nelson Hungria:
“Como diz IMPALLOMENI, todos os direitos partem do direito de viver,
pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O
homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado
contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os
bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à
existência dos indivíduos que compõem o agregado social.”1
Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A
destruição da vida intra-uterina poderá configurar uma das modalidades do crime de
aborto, adiante abordado.
A vida humana tem começo e fim. Só há homicídio após o nascimento com vida
e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam
o período de existência da vida humana, protegida no art. 121 do Código Penal. A lei
não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da
ciência para definir esse termo.
A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra-
uterina começa com o início do parto. Parto é “o conjunto de processos mecânicos,
fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a
termo ou já viável”2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amniótico.
1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26. 2 GOMES, Hélio. Medicina legal. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Deve-se considerar iniciado o parto cirúrgico – cesariana – com a primeira incisão
realizada no corpo da gestante, pelo obstetra.
Iniciado o parto, há vida extra-uterina e sua destruição será homicídio, ou
infanticídio, como se verá adiante. Antes do início do parto, poderá haver aborto.
Não é necessário que o ser seja viável. Haverá homicídio ainda que o ser
humano não tenha viabilidade. Mesmo quando se tratar de ser incapaz de sobreviver,
ainda assim sua vida está protegida. Nasceu, ainda que venha a morrer segundos ou
minutos depois, tem a proteção do Direito. Não é necessário que tenha respirado, pois
há situações em que o ser viveu sem ter respirado.
Seres monstruosos, verdadeiras aberrações, recebem igual proteção atribuída
aos ditos seres humanos normais, daí que basta que tenha nascido de mulher para que
sejam considerados o “alguém” da norma penal incriminadora do art. 121 do Código
Penal.
De se perguntar: se um ser produzido a partir de fecundação in vitro vier a ser
gerado fora do útero de uma mulher – isto é, numa máquina que reproduza as
condições do útero – será considerado o “alguém” do art. 121? Se a resposta for
positiva, destruí-lo será homicídio.
A hipótese não é um absurdo ou apenas tema de ficção científica. Não está
muito distante o tempo em que se poderá presenciar esse progresso da ciência. Será ele
um ser humano?
Penso que seres produzidos a partir de células do que hoje é denominado ser
humano, inclusive os clones humanos, devem, em qualquer hipótese, merecer a
proteção do Direito Penal, ainda quando venham a ter algumas ou muitas
características diferentes das dos atuais humanos.
Nesse futuro, que não está tão distante, bastará à doutrina alterar o conceito
atualmente aceito de humano – ser nascido de mulher – para considerar alguém
qualquer ser originado, de qualquer modo, a partir de células obtidas, direta ou
indiretamente, de mulher. Aquele ser que tiver sido produzido a partir de células de
mulher ou de células que vieram de outro ser que adveio de mulher será humano e,
portanto, terá sua vida protegida pelo Direito Penal.
O termo final da vida é a morte. É o fim da vida. Indispensável determinar seu
momento, quando o Direito deixa de proteger a vida humana, posto que, a partir daí,
não há mais vida, apenas o cadáver, o corpo morto do homem, que também vai merecer
Homicídio - 3
proteção penal, como se verá, mais adiante.
A determinação do momento da morte é cada vez mais importante nos dias
atuais, uma vez que muito se avançou nas técnicas de transplantes de órgãos de
cadáveres para seres vivos, criando a possibilidade concreta de extração criminosa de
partes de corpo ainda vivo, o que, à evidência, constitui conduta criminosa.
O critério aceito pela Doutrina e pela Jurisprudência é o da morte cerebral ou
encefálica: a destruição anatômica do cérebro em sua totalidade. A Lei nº 9.434, de 4
de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento, estabelece, em seu art. 3º, que:
“A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano
destinados a transplantes ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de
morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes
das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de
Medicina.”
Assim dispondo, a lei definiu quando termina a vida: no momento em que
ocorre a chamada morte encefálica, determinando ao Conselho Federal de Medicina
(CFM) que, através de resolução, estabeleça os critérios clínicos e tecnológicos a serem
utilizados para sua constatação.
O CFM cumpriu a ordem legal através da Resolução nº 1.480/97, assim
dispondo:
“Art. 1º A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames
clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para
determinadas faixas etárias.
Art. 2º Os dados clínicos e complementares observados quando da
caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no ‘termo de
declaração de morte encefálica’ anexo a esta Resolução.
Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao
presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de
Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens.
Art. 3º A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de
causa conhecida.
Art. 4º Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte
encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-
espinal e apnéia.
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Art. 5º Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para
a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme
abaixo especificado:
a) de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas
b) de 2 meses a 1 ano incompleto – 24 horas
c) de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas
d) acima de 2 anos – 6 horas
Art. 6º Os exames complementares a serem observados para constatação de
morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:
a) ausência de atividade elétrica cerebral ou,
b) ausência de atividade metabólica cerebral ou,
c) ausência de perfusão sangüínea cerebral.
Art. 7º Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme
abaixo especificado:
a) acima de 2 anos – um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’;
b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e
‘c’. Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com
intervalo de 12 horas entre um e outro;
c) de 2 meses a 1 ano incompleto – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24
horas entre um e outro;
d) de 7 dias a 2 meses incompletos – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48
horas entre um e outro.”
O termo final da vida foi clara e precisamente definido pelo ordenamento
jurídico brasileiro. Com a morte, portanto, não há mais ser humano, apenas o cadáver.
Sua destruição não poderá configurar homicídio, posto que não há mais “alguém”, e
sim o corpo morto do que foi alguém. Poderá caracterizar um dos crimes contra o
cadáver, descritos nos arts. 211 e 212 do Código Penal.
No passado, alguns doutrinadores entendiam que o homicídio era a destruição
violenta e injusta da vida de um homem. Evidente que esses dois componentes não
integram o tipo de homicídio. Não é indispensável que a destruição seja causada com
emprego de violência, posto que é possível cometer o homicídio sem ela. Quanto à
injustiça, é de ver que não integra o tipo de homicídio, mas é a própria ilicitude. Na
esfera da tipicidade do homicídio, não se cogita da injustiça da conduta ou do fato, o
que se resolve no âmbito da ilicitude.
Em síntese: homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, praticada
por outro ser humano. A destruição da própria vida é suicídio, fato atípico, e a da vida
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intra-uterina poderá ser aborto (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal).
Sujeito ativo do homicídio é qualquer pessoa. Haverá infanticídio, se a mãe
matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, sob influência do estado puerperal
(art. 123 do Código Penal).
Sujeito passivo do homicídio é alguém, qualquer pessoa, salvo se o recém-
nascido, morto pela própria mãe durante o parto ou logo após, sob a influência do
estado puerperal (art. 123 do Código Penal).
1.2 HOMICÍDIO DOLOSO
Contém o parágrafo único do art. 18 do Código Penal norma geral segundo a
qual, “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto
como crime, senão quando o pratica dolosamente”. A ordem para o legislador é a de
construir tipos dolosos e só excepcionalmente, ao lado de alguns, criar também tipos
culposos. Assim, os tipos penais são construídos incluindo o dolo como um de seus
elementos, sendo desnecessária a menção expressa a esse elemento subjetivo. Não será
doloso o tipo quando a norma, expressamente, exigir a culpa, em sentido estrito, como
uma de suas elementares. Por isso, o tipo penal do art. 121 do Código Penal deve ser
lido assim: matar alguém dolosamente.
Dolo é a consciência e vontade de realizar o tipo legal de crime. Tratando-se de
crime de resultado, haverá homicídio doloso quando o sujeito ativo realizar uma
conduta com consciência e vontade de produzir o evento morte do sujeito passivo –
dolo direto ou determinado –, ou quando, consciente de que sua conduta é capaz de
produzir a morte, mesmo sem a desejar, o agente não se importar com sua produção,
isto é, aceitá-la, se ela acontecer – dolo eventual.
Homicídio com dolo direto é aquele em que o agente prevê que, com sua
conduta, causará a morte da vítima e a realiza exatamente com a finalidade de que a
morte ocorra. Como o dolo é a previsão do resultado (consciência) e a vontade de
produzi-lo – um elemento subjetivo, portanto, verificável no interior da psique do
agente –, sua demonstração, em algumas situações, não é tarefa das mais fáceis.
Homicídio com dolo eventual é aquele em que o agente, prevendo que sua
conduta poderá causar a morte da vítima, realiza-a sem a finalidade de matar, mas, se a
vítima morrer, esse resultado lhe será absolutamente indiferente. Não quer matar, mas,
se matar, “tudo bem”. A demonstração do dolo eventual é ainda muito mais difícil que a
do dolo direto.
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Deve o aplicador da lei realizar um raciocínio lógico com base nas
circunstâncias que cercaram o fato, para deduzir a presença do dolo. Analisar a ação
material e obter, dela, a certeza de que o agente previra o resultado e o desejara, ou,
pelo menos, nele consentira. Não é tarefa simples e fácil.
Induvidoso que aquele que, ao ver uma pessoa, pensa em disparar contra sua
cabeça ou seu tórax um projétil de arma de fogo tem plena consciência de que, se agir,
vai atingi-la, bem assim de que o ferimento causará, muito provavelmente, sua morte.
Tendo essa consciência, fazendo essa previsão, e mesmo assim agindo, só é lógico
concluir que queria produzir o resultado.
A consideração sobre o instrumento utilizado, a localização da lesão produzida,
as relações entre agente e vítima, os antecedentes do fato, o local em que se deu, e
acerca de outras circunstâncias que envolvem o acontecimento é indispensável para
que se possa concluir pela existência do dolo na conduta do sujeito.
Principalmente quando se tratar de dolo eventual, aquele em que o sujeito,
mesmo prevendo o resultado morte, e não o desejando, age aceitando-o, se ele
eventualmente acontecer. Esse dolo é de mais difícil demonstração, porque,
encontrando-se na esfera do pensamento do agente, sua atitude interna é a de não
querer a morte, mas nela consentir, aceitando-a, se ela ocorrer. É de difícil verificação,
porque muito se aproxima daquela atitude interna de prever a morte, não desejar e
confiar, sincera, mas levianamente, que ela não acontecerá, a qual não configura dolo,
mas culpa consciente.
Veja-se o seguinte exemplo: João, dirigindo seu veículo, vê à sua frente a
pedestre Maria. João pensa: “Vou assustar Maria, passando com meu carro bem
próximo dela.”
É previsível, como é óbvio, que com a conduta que pretende realizar poderá,
sem desejar, atropelar Maria. E João faz essa previsão. A seu lado, está José, que o
adverte do perigo. Provado está, portanto, que João fez a previsão. Todavia, João pode
tomar duas atitudes internas: 1ª Responde para José: “Sei que é possível atingi-la, mas
não se preocupe, José, eu não vou atropelá-la. Sou exímio motorista. Não há perigo.”
Em seguida, João impulsiona seu veículo e, sem desejar, nem aceitar, acaba por
atropelar Maria, causando-lhe a morte. 2ª Responde para José: “Sei que é possível
atingi-la, não quero, mas se acontecer, aconteceu. Não me importo.” Em seguida João
movimenta seu veículo e acaba por atropelar e matar Maria.
Na primeira hipótese, João agiu sem dolo eventual. Na segunda, agiu
dolosamente, pois, tendo previsto o que poderia acontecer, aceitou o resultado que, de
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fato, aconteceu.
No exemplo dado, com os desdobramentos possíveis, ficou fácil demonstrar a
atitude interna do sujeito, graças à presença de uma testemunha do fato, que poderá
relatar exatamente o que se passou na cabeça do agente. Na realidade, todavia, uma
testemunha presencial honesta e sincera nem sempre comparece em juízo para facilitar
a tarefa do julgador.
Analisando o mesmo exemplo, tal qual ocorreu, porém sem a testemunha
presencial, a tarefa do julgador será mais difícil. Como poderá o juiz identificar a
presença ou a ausência do dolo eventual?
Primeira indagação importante: João e Maria eram conhecidos? Eram amigos?
Se eram conhecidos, é possível crer na hipótese de que João pretendia, mesmo, aplicar
um susto em Maria. Se não eram conhecidos, não se pode, com segurança, crer nisso.
Se conhecidos e amigos, não tendo João nenhum motivo para causar algum mal para a
vítima, é possível concluir que ele não tenha aceitado, anuído, consentido na morte. Se,
porém, eram conhecidos e inimigos, ficará difícil acolher a alegação de não-aceitação
do resultado por parte de João.
Em qualquer caso, penso, a atitude de João de promover uma brincadeira –
divertir-se – com algo tão perigoso impõe sua compreensão como hipótese de
desconsideração para com o bem jurídico, afastando, assim, a própria idéia de não-
aceitação do resultado morte.
Analise-se o caso do atirador de facas, do circo, que tem como parceira do
espetáculo sua própria mulher. Há anos, apresentam-se em público, sem que jamais
tenha ocorrido qualquer acidente. Até que um dia, ao atirar uma das facas, ele atinge e
mata sua esposa. Há homicídio doloso ou culposo?
Como descobrir a presença ou ausência de dolo? Tarefa difícil, mas não
impossível.
As investigações podem levar ao conhecimento da informação de que, nos
últimos dias, o marido desconfiava de que ela o traía, tendo-a visto nos braços do
trapezista, na noite anterior ao fato. Uma testemunha vira-o presenciando o encontro
dos amantes, que nada perceberam. Levada essa informação à autoridade policial, esta
pode concluir que na verdade o atirador aproveitou-se da situação para simular um
acidente, a fim de fugir da acusação de homicídio doloso. Novas investigações levarão à
verdade.
Se, porém, nada se descobrir acerca da existência de um motivo para a prática
do homicídio, a conclusão inexorável haverá de ser a de que o atirador nem quis, nem
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consentiu na morte da esposa que tanto amava. Nesse caso, não haverá dolo. Ausente o
dolo, poderá haver homicídio culposo ou um indiferente penal.
Importante discussão, que nos dias atuais ganha cada vez maior importância,
diz respeito aos homicídios praticados no trânsito, especialmente aqueles provocados
por condução perigosa por parte de jovens que se dão à prática dos chamados “rachas”.
O grande problema é saber: quem provoca morte durante os “rachas” age dolosa ou
culposamente?
No passado, doutrina e jurisprudência eram quase sempre unânimes em
concluir pela ausência de dolo, simplesmente por ter sido praticado o homicídio no
trânsito, com o uso de um veículo automotor, o que, à evidência, não correspondia à
própria realidade desses infaustos acontecimentos, nem atendia às necessidades de
proteção do bem jurídico.
É certo que a grande maioria dos homicídios praticados no trânsito é, mesmo,
culposa, por terem seus agentes se conduzido com negligência, imprudência ou
imperícia, não querendo, nem aceitando, portanto, o resultado morte. Em muitas
situações, nem mesmo a previsão é feita pelo condutor do veículo, de modo que aí não
se pode falar em culpa consciente, mas culpa inconsciente.
Na situação em que o agente participa de um “racha”, todavia, a situação é bem
outra. Não se trata de mera inobservância do dever de cuidado objetivo, que ocorre
quando condutores de veículos desrespeitam o limite de velocidade, realizando
manobras imprudentes ou comportando-se com imperícia ou negligência.
No “racha”, as pessoas organizam-se para uma competição sem qualquer outra
motivação como ocorre no tráfego de veículos nas cidades. Querem simplesmente
extravasar certos sentimentos de frustração pessoal. O objetivo é se exibirem, e nada
mais.
Ora, essa atitude interna é, por si só, reveladora da profunda desconsideração
dos praticantes de “rachas” para com os bens jurídicos que se colocam a sua frente:
vidas humanas, integridades corporais e mesmo bens materiais. O simples fato de se
dedicarem a esse pretenso “esporte” em via pública já é suficiente para demonstrar que
não estão preocupados com a possibilidade de agredirem algum bem jurídico. Não o
valorizam, não se preocupam com sua provável lesão. Não se importam com sua
preservação. Move-lhes apenas a busca do prazer individual, ainda que, para alcançá-
lo, outros sejam prejudicados.
Daí que não se pode concluir que aqueles que praticam tais condutas estejam
imbuídos daquela atitude interna de não-aceitação, sincera porém leviana, da
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possibilidade da causação do resultado lesivo indesejado. Deve-se, ao contrário,
concluir no sentido de que, tendo-se conduzido com indiferença para com os bens
jurídicos em sua volta, que podem ser atingidos pelos movimentos que produzem com
seus veículos, estão, com esse comportamento, aceitando a possibilidade concreta de
lesioná-los, daí que sua conduta é dolosa, com dolo eventual.
Nesse sentido, vem posicionando-se o Superior Tribunal de Justiça:
“Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no
trânsito. Na hipótese de ‘racha’, em se tratando de pronúncia, a desclassificação
da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova
por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não
favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro
societate.
O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das
circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria
adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do
possível, provável.
O tráfego é atividade própria de risco permitido. O ‘racha’, no entanto, é – em
princípio – anomalia extrema que escapa dos limites próprios da atividade
regulamentada.”3
Como já se disse, embora o dolo – direto ou eventual – esteja na cabeça do
agente, cabe ao juiz, analisando as circunstâncias que envolvem o fato, emitir seu juízo
valorativo acerca da atitude interna do sujeito ativo do crime.
Não basta que este afirme não ter desejado nem aceitado o resultado, é preciso
que o juiz disso se convença, com base na análise profunda de todas as circunstâncias
fáticas.
Evidente que ao julgador caberá emitir sua conclusão acerca dos fatos, e sua
decisão será passível de reexame pela instância superior, afastando, assim, o perigo de
julgamento injusto. O que não se pode aceitar é que, pelo simples fato de ter sido a
morte causada no trânsito, chegue-se à generalização de que é culposa.
1.2.1 Homicídio simples
3 DJ de 21 out. 2002, p. 381.
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No caput do art. 121 está o tipo fundamental do homicídio, denominado
homicídio simples.
O homicídio é um crime comum, material, simples, de dano, instantâneo de
efeitos permanentes e de forma livre. Diz-se que é um crime comum, porque pode ser
praticado por qualquer pessoa, não se exigindo, ademais, qualquer qualidade
diferenciada do sujeito passivo.
É crime material, porque há no tipo a descrição de uma conduta, com a
exigência, para sua consumação, de que o resultado morte seja produzido pela conduta
do agente.
Simples, porque atinge um único bem jurídico, a vida humana extra-uterina, e
de dano, pois destrói o bem jurídico protegido.
É instantâneo de efeitos permanentes, porque consuma-se no momento da
morte da vítima e suas conseqüências perduram por todo o tempo.
É um crime que pode ser praticado pelas mais diversas formas de execução, por
ação stricto sensu ou por omissão, daí que se diz ser um crime de forma livre.
O homicídio por ação, ou comissivo, é aquele praticado através de uma conduta
positiva do agente, que realiza um movimento corporal final, como disparar uma arma
de fogo, desferir um golpe de faca, arremessar uma pedra ou uma barra de ferro,
empurrar a vítima no precipício, ministrar-lhe veneno, constringir seu pescoço,
impedindo a respiração.
A ação pode ser física, como nos exemplos dados, mas também pode ser moral,
como a de assustar uma pessoa cardíaca ou fragilizada física ou mentalmente, visando
a que ela morra.
O homicídio por omissão, chamado omissivo comissivo ou comissivo por
omissão, é o praticado apenas pelos chamados garantes, aqueles que têm o dever de
agir para impedir o resultado e que, omitindo-se, permitem, com isso, a morte da
vítima (art. 13, § 2º, CP). Assim a mãe que deixa de amamentar o filho para que ele
morra e o salva-vidas que permanece inerte diante do afogamento, desejando que o
afogado venha a óbito.
Conquanto a lei tenha construído outros tipos derivados do homicídio simples –
os privilegiados no § 1º e os qualificados no § 2º do mesmo artigo –, haverá homicídio
simples quando não for nem privilegiado, nem qualificado. Em outras palavras, para
saber se há homicídio simples, deve-se raciocinar por exclusão. Somente será homicídio
simples, se não tiver sido nem privilegiado, nem qualificado, nem qualificado-
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privilegiado. Se o fato não se ajustar a nenhuma das circunstâncias privilegiadoras ou
qualificadoras, será homicídio simples.
1.2.2 Homicídio privilegiado
Se é verdade que a destruição da vida humana por ação dolosa de outra pessoa
constitui um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico, é preciso verificar
que o desvalor da conduta pode ser diferente em cada situação.
Se no homicídio o resultado é sempre o mesmo – a morte da vítima –, a
conduta do agente nem sempre pode ser qualificada igualmente, pois se entremostra,
muitas vezes, diferenciada uma de outras.
Por essa razão, ao lado do homicídio simples, a lei fez derivar, no § 1º do art. 121
do Código Penal, algumas espécies de homicídio que, por circunstâncias especiais em
que é praticado, são merecedores de reprovação menor do que a conferida ao homicídio
simples. “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima”, a pena deverá ser reduzida de um sexto a um terço.
Há decisões jurisprudenciais e opiniões doutrinárias respeitáveis no sentido de
que a redução da pena é mera faculdade do juiz. Sustentam essa tese a forma literal
“poderá” contida no § 1º do art. 121 do Código Penal .
Penso que a diminuição da pena não é uma faculdade do juiz, mas um direito
subjetivo do acusado que tiver a seu favor reconhecida uma circunstância
privilegiadora, pelo Tribunal do Júri – que é o órgão competente para julgar os crimes
dolosos contra a vida.
No inciso XXXVIII do art. 5º da Carta Magna está consagrada a “soberania dos
veredictos do júri”, isto é, de todas as suas decisões, as quais, por essa razão, não são
meras indicações ou recomendações para o juiz, mas determinações que devem ser,
necessariamente, atendidas.
Seria um contra-senso o júri afirmar o privilégio e o juiz não ficar vinculado a essa
decisão, o que, a meu ver, constitui agressão à soberania do tribunal popular,
assegurada constitucionalmente. DAMÁSIO DE JESUS ensina: “Reconhecido o
privilégio pelos jurados, não fica ao arbítrio do julgador diminuir ou não a pena. A
faculdade diz respeito ao quantum da redução.”4
4 Direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 56.
12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A dúvida foi espancada com a nova redação do art. 492, inciso I, alínea “c”, do
Código de Processo Penal, dada pela Lei nº 11.689, de 2008, que obriga o juiz, no caso
de condenação, a prolatar sentença na qual imporá as diminuições da pena admitidas
pelo júri.
Há homicídio privilegiado pelas seguintes circunstâncias: (a) por motivo de
relevante valor social; (b) por motivo de relevante valor moral; e (c) sob o domínio de
violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º do
Código Penal).
As duas primeiras figuras dizem respeito à motivação do agente, a última, a seu
estado psíquico emocional provocado por atitude da vítima.
1.2.2.1 Homicídio por motivo de relevante valor social
Homicídio por motivo de relevante valor social é aquele em que o agente age
impulsionado por uma razão de grande importância social. Por valor social deve-se
entender o que diz respeito aos objetivos da coletividade, a ser aferido segundo critérios
objetivos e de acordo com a consciência ético-social geral. Além disso, o valor social que
motiva a ação deve ser relevante, vale dizer, de grande importância, digno da maior
consideração por parte de todos.
Nos dias de hoje, em que a criminalidade violenta e organizada, especialmente o
tráfico ilícito de entorpecentes, subjuga amplos setores sociais, mormente bairros e
favelas, pode-se reconhecer o privilégio na conduta daquele que, com a exclusiva
intenção de combater a criminalidade, mata o chefe da quadrilha que domina sua
região. Move-o a busca da paz e da tranqüilidade social, que são, a toda evidência, de
enorme relevância social.
1.2.2.2 Homicídio por motivo de relevante valor moral
Já no homicídio por motivo de relevante valor moral, cuida-se de uma
motivação por valor de natureza moral. Tais valores são particulares, individuais, do
próprio agente e devem, igualmente, ser de grande importância. Não contempla,
portanto, qualquer valor individual, mas aquele que é considerado, ética e
objetivamente, de grau elevado pela consciência social. Seria, por exemplo, o caso do
pai que mata o autor do estupro contra sua filha menor. Já se entendeu também que o
marido traído que mata a mulher adúltera comete o crime por motivo de relevante
Homicídio - 13
valor moral; todavia, melhor é compreendê-lo, em algumas situações, como homicídio
privilegiado por violenta emoção, adiante comentado.
A eutanásia é considerada pela doutrina dominante um homicídio privilegiado
por motivo de relevante valor moral. Segundo Nelson Hungria, homicídio eutanásico é
aquele praticado para abreviar piedosamente o irremediável sofrimento da vítima, e a
pedido ou com o assentimento desta. O sofrimento irremediável da vítima, portanto,
constitui o valor moral de relevância que, impelindo o agente, torna-o menos
severamente punível.
O tema é fascinante e mereceu profundas discussões no seio da Comissão de
Reforma do Código Penal de 1997/1999, quando se tratou da eutanásia e da
ortotanásia. A proposta da comissão foi considerar a eutanásia uma espécie de
homicídio privilegiado e a ortotanásia uma causa de exclusão da ilicitude. Ficaram
assim redigidas as duas propostas:
Eutanásia: “Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente,
descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por
compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe
sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal,
devidamente diagnosticados: Pena – reclusão, de dois a cinco anos.”
A proposta estabelece vários requisitos para o reconhecimento desse homicídio
privilegiado, regulamentando-o de modo claro e preciso.
Segundo ela, não será qualquer pessoa que poderá ser beneficiada com o
privilégio. Só o cônjuge ou companheiro, o ascendente ou descendente, o irmão ou
irmã, ou uma pessoa ligada por estreitos laços de afeição com a vítima.
A vítima deve ser, necessariamente, maior de 18 anos e imputável e deve fazer o
pedido de abreviação da vida ao agente. A motivação deste deve ser a compaixão e é
indispensável que tenha a finalidade precípua de abreviar o sofrimento físico, que deve
ser insuportável e causado por uma doença grave, estando a vítima em estado terminal,
o que deverá ser devidamente diagnosticado.
Ortotanásia: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio
artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável,
e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge,
companheiro, ascendente, descendente ou irmão.”
Segundo a proposta, para caracterizar a ortotanásia devem concorrer os
HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 125.
14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
seguintes elementos: a vítima deve estar sendo mantida viva por meio artificial; sua
morte deve ser atestada como iminente e inevitável por dois médicos; é necessário o
consentimento da vítima ou, não podendo dá-lo, de seu cônjuge ou companheiro,
ascendente, descendente ou irmão.
As diferenças entre a eutanásia e a ortotanásia, conforme as duas proposições,
são claras.
Na eutanásia, a vítima deve estar experimentando, vivendo, um sofrimento
físico insuportável, causado por uma doença grave, e em estado terminal. São as dores
horríveis e o desconforto irremediáveis que acompanham certas doenças graves.
Na ortotanásia, a vítima deve estar na iminência de morrer, e mantida viva por
meio artificial, isto é, por aparelhos ou equipamentos médicos. Não é necessário haver
sofrimento físico insuportável. Não há necessidade de algum sofrimento físico, mas
deve a pessoa estar sendo mantida viva artificialmente e a morte deve ser iminente e
inevitável. Na eutanásia, a morte não precisa ser nem iminente, nem inevitável, mas a
doença grave e o estado terminal devem ser diagnosticados, e na ortotanásia a
iminência e inevitabilidade da morte devem ser atestadas por dois médicos.
A vítima, na eutanásia, deve ser maior de 18 anos e imputável, circunstância não
mencionada na ortotanásia, daí que pode ter qualquer idade e ser, inclusive,
inimputável.
Na eutanásia, o agente pratica uma ação para causar a morte da vítima, movido
pela compaixão e a pedido dela. Na ortotanásia, o agente, com o consentimento da
vítima ou de um seu familiar, realiza um comportamento omissivo, deixando de
continuar mantendo a vítima viva por meio artificial. Claro que o desligamento dos
aparelhos é uma ação, stricto sensu, mas o que se exigia antes era a continuidade da
ação de manter a vida artificialmente, e o agente deixa de realizá-la, isto é, deixa de
continuar mantendo a vida por meios artificiais.
Na eutanásia, a vida em estado terminal é destruída. Na ortotanásia, a morte
iminente e inevitável é antecipada. Na primeira, a finalidade é colocar um fim a um
sofrimento insuportável, acabando com uma vida que já se encontrava em estado
terminal, isto é, próxima do fim. Um fim ainda não iminente, nem necessariamente
inevitável, mas próximo. Por isso que a proposta a considera crime, porém privilegiado.
Já na ortotanásia, não se está mais diante de uma vida digna e independente, capaz de
manter-se naturalmente, senão por meio de sofisticados aparelhos e equipamentos
médicos. E mais, a morte é, por isso também, iminente e inevitável. Antecipar sua
chegada é um gesto de amor, daí que não pode ser considerado um crime.
Homicídio - 15
Estão corretas as propostas da comissão, uma vez que definem, com rigor, essas
duas situações concretas, impondo exigências a serem observadas pelo órgão julgador.
Os adversários dessas inovações legislativas ora defendidas são muitos. Seus
argumentos são, quase sempre, de natureza moral ou religiosa do tipo “só Deus pode
decidir quando o homem deve morrer”, ou “ninguém pode tirar a vida de outrem”.
Enquanto, todavia, o Congresso Nacional não aprovar modificações nesse ou
noutro sentido, tanto a eutanásia quanto a ortotanásia serão tratadas apenas como
circunstâncias privilegiadoras de um homicídio. O tema é fascinante e a sociedade
precisa discuti-lo sem preconceitos.
1.2.2.3 Homicídio emocional
Há homicídio sob o domínio de violenta emoção quando o agente, diante de
uma injusta provocação da vítima, se vê dominado por tamanha emoção e reage
imediatamente. São três, pois, os requisitos para sua caracterização: a injusta
provocação da vítima, a emoção violenta que domina o agente e sua reação imediata.
Injusta provocação é o comportamento da vítima capaz de, por sua natureza e,
principalmente, injustiça, desencadear um processo emotivo de grande intensidade no
agente. Pode ser uma ação ou omissão que a vítima realiza em relação ao próprio
agente ou a terceira pessoa. Não se confunde a provocação com a agressão, que, se
existente, pode ensejar uma situação de legítima defesa. A provocação é um
comportamento menos grave que a agressão, e com esta não se confunde. É uma
atitude de desvalor para com um bem jurídico.
“A provocação pode consistir em ofensas à honra, vias de fato, ameaças, riso
de escárnio ou desprezo, apelidos vilipendiosos, expressões ambíguas, indiretas
mordazes, revelação de segredos, exercício abusivo de direito, atos emulativos etc.” 5
A provocação deve ser injusta do ponto de vista objetivo, não do que sobre ela
pensa o agente. Contudo, para se considerar a injustiça da provocação, deve o
intérprete analisar as qualidades e condições pessoais de agente e vítima, de modo a
considerar presente este requisito do homicídio emocional. Há aquele que, pelos
valores que cultua, pode não sentir-se atingido com uma ofensa sobre sua honestidade
no mundo dos negócios e sentir-se afrontado com uma menção depreciativa de seus
atributos físicos ou de suas relações amorosas. Outros reagem de modo exatamente
5 HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 149.
16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
contrário. Ofensas graves que tenham partido de uma pessoa de pouca credibilidade
podem até ser relevadas por determinada pessoa, ao passo que um simples comentário
crítico oriundo de um homem respeitado pode causar-lhe grande indignação.
Não basta, porém, que a vítima tenha realizado a provocação injusta. É
necessário que esta tenha desencadeado a violenta emoção.
Emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o
equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de
conseqüência, a de agir, não retirando, todavia, sua capacidade de entendimento ou de
determinação. A norma exige que a emoção seja violenta, isto é, de tal intensidade que
haja muito mais do que uma simples alteração do equilíbrio psicológico. É a verdadeira
ira ou a cólera que domina o sujeito, transformando-o por completo num ser
descontrolado capaz de realizar comportamentos agressivos que não realizaria no
estado normal.
A reação deve ser pronta e rápida, imediatamente após a provocação, pois do
contrário não se poderia atribuí-la ao estado emocional. Passado algum tempo após a
provocação, o estado psíquico alterado do agente já não será o mesmo, o furor já terá
arrefecido e sua reação só poderá ser atribuída ao desejo de vingança ou ao ódio que em
si se instalara, sentimento esse que o Direito não poderia, mesmo, premiar. Se não
reagiu no instante seguinte à provocação, em que a intensidade da emoção que lhe
arrebatou era maior, é porque ela não lhe alterou sobremaneira a capacidade de
controlar-se, logo, não pode invocar o privilégio, que não se compatibiliza com a reação
tardia.
O chamado homicídio passional – daquele que mata por ciúmes, pela traição ou
por simples suspeita, ou pelo flagrante de adultério ou, ainda, pela perda da pessoa
amada que o abandonou – tem sido objeto de muitas discussões e decisões as mais
diversas.
É preciso distinguir a situação do agente que encontra o cônjuge em flagrante de
adultério, das demais hipóteses. Não há dúvida de que a traição é um comportamento
equivalente a uma provocação injusta. Afinal, a fidelidade e o respeito mútuos são
deveres jurídicos, ainda quando não haja casamento mas só união estável. A visão dos
amantes trocando carícias amorosas é, sem dúvidas, um fator de determinação da
instalação, na mente do traído, de violenta emoção, aquela que pode desencadear a
reação imediata. Tomado de cólera, irado diante da certeza absoluta da traição, a
reação imediata com a morte de um ou de ambos ajusta-se perfeitamente à terceira
figura privilegiadora do § 1º do art. 121.
Homicídio - 17
Já os homicidas passionais que matam por ciúmes, por suspeitas de traição ou
porque foram abandonados, não estão acobertados pela norma. Não tendo havido
qualquer provocação injusta, não há falar-se naquela violenta emoção, que deve ser
causada pela ação da vítima. Ainda quando o agente esteja efetivamente perturbado ou
mesmo sob o domínio de violenta emoção, é de ver que, nesses casos, a causa da
alteração psíquica não pode ser atribuída a qualquer comportamento da vítima, mas
tão-somente a suas próprias conjecturas, a sua própria criação mental.
Dir-se-á que tais atitudes internas são decorrentes do sentimento de amor que o
agente nutre pela outra pessoa e que a sensação de perda, ou o ciúme, ou, ainda, a
suspeita de traição são capazes de produzir as alterações psicológicas que
desencadeiam o processo emotivo violento. Perderiam aí, esses passionais, a plena
capacidade de determinação e, por isso, mereceriam menor reprovação penal.
Não é assim. Se é certo que o ciúme pode até ser considerado produto do
sentimento de amor, não menos certo que ele seja principalmente fruto do sentimento
de posse ou domínio sobre pessoa, o que, se não pode ser considerado fútil, também
não pode ser entendido como motivo nobre. Daí que a perda da pessoa amada ou a
suspeita sobre sua fidelidade não se ajustam à norma que beneficia o homicida. Sem
que exista uma atuação concreta da vítima, que provoque a reação do agente, o
privilégio seria, na prática, um incentivo às construções mentais destrutivas que podem
acometer, momentaneamente, certos indivíduos.
1.2.3 Homicídio qualificado
Assim como há circunstâncias legais que impõem menor reprovação ao
homicídio, outras há que, ao contrário, exigem maior reprimenda penal. Isso vai
acontecer quando o fato é cercado por circunstâncias mais reprováveis, chamadas
qualificadoras.
As que qualificam o homicídio constituem, em relação aos demais crimes,
circunstâncias que sempre agravam a pena, as quais serão consideradas pelo juiz após a
fixação da pena-base. No homicídio, entretanto, já serão consideradas para a imposição
de maior reprimenda no momento da fixação da pena-base. Estão contidas nos incisos I
a V do § 2º do art. 121 do Código Penal.
A Lei nº 8.930, de 6 de setembro de 1994, que deu nova redação ao art. 1º da
Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, incluiu, dentre os crimes hediondos, todos os
homicídios qualificados, consumados ou tentados. Incluiu também o homicídio
simples, “quando cometido em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por
18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
um só executor”.
Ora, no ordenamento penal brasileiro não existe a figura típica de “grupo de
extermínio”, daí que a norma é inaplicável, por força do princípio constitucional da
legalidade, por falta da definição legal utilizada. Por outro lado, é impossível um
homicídio praticado pelos vulgarmente chamados grupos de extermínio não ser,
necessariamente, qualificado por uma das circunstâncias do § 2º do Código Penal, o
que torna essa norma absolutamente desnecessária.
A pena cominada para os homicídios qualificados é reclusão, de 12 a 30 anos.
A premeditação não é uma circunstância qualificadora do homicídio. Também
não o é a relação de parentesco próximo entre agente e vítima. A premeditação, por si
só, não revela um grau de perversidade ou de torpeza. Tanto é possível o agente
premeditar um crime por motivo de relevante valor moral, quanto fazê-lo impelido por
uma motivação fútil. O mesmo se diga em relação ao homicídio do ascendente pelo
descendente, ou deste por aquele. Nesta última situação, há uma circunstância
agravante da pena (art. 61, II, e, do Código Penal).
A premeditação, se evidenciada, pode ser levada em conta pelo juiz, no
momento da fixação da pena-base como uma circunstância judicial desfavorável ao
agente.
As circunstâncias qualificadoras do homicídio dizem respeito (1) aos motivos
determinantes do crime, (2) aos meios empregados, (3) à forma ou ao modo de
execução ou (4) à conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.
Nos incisos I e II do § 2º do art. 121 do Código Penal estão descritas as
circunstâncias qualificadoras que dizem respeito aos motivos do crime: paga, promessa
de recompensa ou outro motivo torpe e motivo fútil.
O inciso III descreve circunstâncias que se referem aos meios empregados pelo
agente: veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel, ou do
qual possa resultar perigo comum.
Formas ou modos de execução qualificadores do homicídio estão contemplados
no inciso IV, que assim considera a traição, a emboscada, a dissimulação e outro
recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
Finalmente, também qualifica o homicídio a conexão finalística ou
conseqüencial, relacionada no inciso V: homicídio praticado para assegurar a execução,
ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime.
Homicídio - 19
1.2.3.1 Paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe
Motivo é a força psíquica que impele alguém a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa.
Aquele que age impelido pelo recebimento de um pagamento, um valor
pecuniário ou uma promessa de recompensa demonstra sua profunda desconsideração
para com o bem jurídico mais importante. Considera o valor monetário ou o bem
material ou imaterial que receberá mais importante do que a vida humana. Demonstra
frieza e insensibilidade diante do sofrimento da vítima e, mais grave, das conseqüências
da morte de um ser humano. Como se fora um deus, decide, por uma motivação abjeta,
pôr fim a uma vida humana simplesmente para auferir um ganho monetário ou uma
vantagem patrimonial, econômica ou de qualquer natureza. É o cúmulo do egoísmo.
Interromper toda uma vida pela simples razão de obter um ganho pessoal.
Discute-se se qualificadora alcançaria tanto o autor executor do procedimento
típico, quanto o autor intelectual, o que promete a recompensa ou que efetua o
pagamento, dizendo uma parte da doutrina que sim, uma vez que tanto a conduta de
um quanto a do outro merecem a mesma reprovação social.
Noutro sentido é a opinião de FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS:
“Observe-se, ainda, que o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o
concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio
seria ou não qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente,
argumentando que a paga e promessa de recompensa são elementares do delito,
comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outros
respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora é
punir a cobiça, o móvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele que
manda matar. Esta última orientação é mais certeira, pois, como sustenta
Heleno Cláudio Fragoso, ‘não se exclui que mediante a ação de um sicário
pratique alguém um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral. A
qualificação do homicídio mercenário justifica-se pela ausência de razões
pessoais por parte do executor (indício de insensibilidade moral) e pelo motivo
torpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurança,
servindo-se de um terceiro’ (Lições de Direito Penal, Parte Especial, pág. 68,
Forense, 1989). Se, por exemplo, o pai pagar um pistoleiro para matar o
estuprador da filha, a solução, a nosso ver, será a seguinte: o pai (mandante)
responderá por homicídio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro
(executor), por homicídio mercenário (CP, art. 121, § 2º, II). Anote-se que a paga
20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
e a promessa de recompensa não constituem elementares do delito e, sim,
circunstâncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadora
ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstância subjetiva (motivo de paga ou
promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe, nos termos do art.
30 do CP.” 6
Não creio que essa seja a melhor solução, nem tampouco que a busca da
vontade da lei, nesse caso, deva ser feita à luz da norma do art. 30 do Código Penal.
A conduta do mandante, ainda que impelido por motivo de relevante valor
moral, não pode ser considerada apenas como a de quem pretende a impunidade e a
segurança, senão como a de quem não teve a coragem moral para, por suas próprias
mãos e arrostando todas as conseqüências de seu gesto, destruir a vida de quem, a seu
ver, merecia a morte. Longe de merecer tratamento diferenciado, há de receber, do
Direito, a mesma consideração dada ao que agiu impelido pelo fim da obtenção da
vantagem material, monetária.
Quem, pretendendo a morte de outrem, procura esconder-se atrás da ação do
executor, buscando impunidade e segurança, é tão vil quanto o que friamente executa a
morte de alguém sem qualquer outra motivação pessoal, senão a da obtenção do
recebimento do valor ou da vantagem ajustada. Aquele é o covarde que confia na
possibilidade de, não executando o procedimento típico, jamais ser alcançado pelo
aparelho estatal repressor. A busca da impunidade ou da segurança, longe de beneficiá-
lo, é, a meu ver, razão para maior censura penal. Se tivesse um motivo de relevante
valor moral e executasse ele próprio o homicídio, aí sim mereceria a diminuição da
pena, na forma do § 1º do art. 121, não incorrendo na majoração decorrente de
qualificadora. Se, mesmo tendo uma motivação relevante do ponto de vista moral ou
social, prefere pagar a outrem para que mate alguém, não pode merecer censura menor
do que aquele que não teve medo, nem buscou segurança ou impunidade. Pensar o
contrário é homenagear a covardia, e isso não é compatível com o Direito.
Também é possível ver, no que recebe a paga ou a promessa de recompensa,
uma motivação de relevante valor moral, quando o faz para proporcionar alimentos a
seus filhos famintos. Nos dias de hoje, em que a miséria e a fome grassam pelos rincões
deste rico país, não é desarrazoado reconhecer no gesto de um sicário destes um fiapo
de valor moral. Sicário sim, mas, em algum caso, por motivo de relevante valor moral.
A descrição típica do inciso I do § 2º do art. 121 não deve ser lida apenas em
6 Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 28.
Homicídio - 21
relação ao executor, mas também ao mandante, independentemente de se considerá-la,
ou não, circunstância elementar do tipo de homicídio. É que, ao descrevê-la como
“mediante paga ou promessa de recompensa”, a norma buscou alcançar a totalidade
de um contrato bilateral que, por sua própria natureza jurídica, envolve direitos e
obrigações para ambas as partes, e não apenas uma motivação pessoal exclusiva do
contratado.
O escopo da norma não é, simplesmente, o de reprovar mais severamente o fim
de lucro que moveu o executor, mas, também e antes, a conduta de ambos, executor e
mandante: celebrarem um pacto cujo objeto é a destruição de uma vida humana. Ou
seja, um contrato entre duas pessoas que visa à destruição do bem jurídico mais
importante. Um porque encomendou a morte de um homem, o outro porque aceitou a
encomenda. Ambos, igualmente, tiveram motivação torpe, abjeta, repugnante. O
primeiro porque, dispondo de dinheiro, sentiu-se à vontade para buscar alcançar a
destruição de uma vida humana, por mãos alheias. O outro porque, simplesmente por
dinheiro, não teve qualquer condescendência com a existência de um semelhante.
Se a vontade da lei fosse a de considerar qualificada apenas a atitude do
executor, não utilizaria a expressão “mediante paga ou promessa de recompensa”,
mas escolheria outra fórmula específica, exclusiva ou própria do executor, como “para
(ou com o fim de) obter paga ou promessa de recompensa”. A expressão mediante
significa aquilo que medeia. O verbo mediar significa ficar no meio de dois pontos, no
espaço, ou de duas épocas, no tempo. Assim, ao utilizar essa expressão, a lei vinculou
as duas partes, o mandante e o executor. A paga ou a promessa de recompensa é o elo
que liga as duas pessoas, é o que medeia as duas vontades e suas motivações. Logo, o
que medeia duas condutas a ambas se agrega, razão por que ambos praticam homicídio
qualificado.
Esta é uma solução acima de tudo justa, porquanto tanto repugna o gesto de
quem executa a morte, quanto o de quem a encomendou. O pagamento feito macula
tanto o que o fez, quanto o que o recebeu. O primeiro por não ter considerado a vida
humana senão uma coisa, passível de ser destruída por força do poder de quem dispõe
de numerário capaz de seduzir quem dele precisa. Este, por tê-lo considerado mais
importante que a vida humana.
Ambos, portanto, responderão na forma qualificada do homicídio.
Quanto à possibilidade de um dos dois, mandante e executor, ou até mesmo de
ambos terem agido, ao mesmo tempo, por motivo de relevante valor moral, nada obsta
seu reconhecimento também pelo órgão julgador, o Tribunal do Júri.
22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Assim, o pai que manda matar o estuprador da filha poderá ter a seu favor
reconhecido o privilégio, que pode, perfeitamente, harmonizar-se com a qualificadora
em questão. Será, pois, apenado por um homicídio ao mesmo tempo qualificado e
privilegiado, figura perfeitamente compatível com a vontade do Direito. Terá sua pena,
de 12 a 30 anos, diminuída, de um a dois terços, sem qualquer dificuldade.
O mesmo se diga do que executou a morte para obter numerário destinado a
comprar alimentos para saciar a fome de seus filhos menores.
Essa sim a solução mais justa, porque reconhece, a um só tempo, a presença de
uma circunstância que aumenta a reprovação e outra que a diminui. Sua convivência
em nada agride o sistema de leis do Estado.
A mesma norma do § 1º do art. 121 utiliza, aqui, da interpretação analógica,
equiparando à paga ou promessa de recompensa qualquer outro motivo torpe. A
motivação do agente que se assemelhar à daquele que contrata a morte de alguém, ou
do que mata, mediante paga ou promessa de recompensa, será considerada torpe, isto
é, abjeta, repugnante.
Serão torpes todos os motivos que, à semelhança do fim de lucro, ou da
contratação de alguém para destruir uma vida humana, impelirem o sujeito a matar
alguém. São os motivos indignos, que contrastam com os valores morais.
É torpe a força que impele o filho a executar ou a contratar a morte dos pais,
com a finalidade de se livrar de sua presença na sua vida, de suas orientações, dos
corretivos normais, para alcançar a liberdade plena, para viver sem controle ou limites
aceitáveis em sociedade. Mais torpe ainda, quando o fim é a obtenção de valores
materiais, a título de herança.
A torpeza, como disse NELSON HUNGRIA, revela um grau particular de
perversidade7.
A vingança, porém, não é, necessariamente ou por si só, um motivo torpe. Tanto
que a lei a ela não se referiu. A vingança pode dar-se até mesmo por um motivo
razoável, não justificado, é óbvio, mas não abjeto ou repugnante. É preciso analisar os
motivos que levaram o sujeito a promover sua vingança. Estes podem, sim, ser torpes
ou não.
1.2.3.2 Motivo fútil
7 Op. cit. p. 162.
Homicídio - 23
Fútil é o motivo ínfimo, insignificante, mesquinho, vazio, leviano, frívolo,
extremamente desproporcionado ou de somenos importância, que impele o sujeito a
matar, revelando, assim, a intensa insensibilidade que o domina. É o motivo banal.
O agente que mata a vítima porque esta lhe pisou o pé, o que mata o garçom
porque este derramou vinho na roupa de sua acompanhante, bem assim o que atinge o
torcedor que comemorou a vitória de seu clube de futebol agem impelidos por
motivação fútil.
A futilidade nasce da prepotência e da intolerância que caracterizam certos
indivíduos. São os que se consideram seres superiores, pela força do poder econômico,
ou pela superioridade nos planos físico, intelectual ou moral. Contrariados em qualquer
pretensão, enchem-se de ira e voltam-se violentamente contra os mais fracos ou
desavisados. Não aceitam o “não”. Não toleram a crítica, não convivem com nada que
lhes incomode. Não sendo agredidos, nem tampouco provocados, mas, simplesmente,
não recebendo o que querem, não ouvindo o que gostariam, ou não vendo o que
desejavam, reagem e matam.
E porque se consideram verdadeiros deuses, ai de quem, em sua frente, se
postar como, a seu próprio juízo, responsável ou culpado pela não-realização de seus
desejos. Chegam a matar e nessas circunstâncias receberão reprovação penal mais
severa.
Ciúme, já se disse há pouco, é um sentimento que não justifica qualquer
conduta típica, nem tampouco, por si só, é capaz de ensejar uma causa de diminuição
da pena. Ainda assim não é um motivo torpe, posto que derivado de um estado afetivo.
Não é, por isso, abjeto, nem repugnante. Seria fútil?
Também não. Mesmo que se possa considerá-lo fruto de um sentimento
retrógrado, inaceitável, de posse sobre uma pessoa, ainda que querida ou amada, não
pode ser incluído entre os motivos insignificantes. O só fato de nascer, como
efetivamente nasce, também do sentimento do amor, é revelador, senão de sua
nobreza, pelo menos de sua importância. Logo, não pode ser ínfimo, nem desprezível
ou banal.
O ciúme não é causa de justificação da conduta, nem circunstância
privilegiadora, todavia, não pode ser considerado motivo fútil, posto que, ainda que não
se lhe reconheça qualquer nobreza, não se pode tê-lo como mesquinho.
Os humanos, não sei se infelizmente, têm, para com alguns de seus
semelhantes, esse sentimento intenso, de tê-lo como seu, de querê-lo para si, de
exclusividade no relacionamento, mormente o afetivo e sexual e, só por isso, é de se
24 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
compreender o ciúme como um estado relevante, ainda que incompatível com a plena
liberdade individual e o respeito que todos a ela devem dedicar.
A embriaguez seria compatível com a motivação fútil?
Essa é outra questão à qual se dedicam os estudiosos do Direito Penal. Para uns,
o estado de embriaguez do sujeito ativo do crime é absolutamente incompatível com a
futilidade, por não lhe ser possível formular um juízo de proporção entre o motivo e a
conduta. Já outros entendem plenamente harmonizável a alteração psíquica decorrente
da ingestão de substância embriagante com a avaliação do motivo que impele o agente
a praticar o crime.
Não há receituário preciso para o problema. Importa verificar, em primeiro
plano, o grau de embriaguez. Se for completa, é evidente que não está o sujeito com a
capacidade de discernir sobre a proporção entre a provocação e a conduta. Como já se
disse anteriormente, a responsabilidade penal, nos casos de embriaguez voluntária ou
culposa, é objetiva, por força da teoria da actio libera in causa, adotada pelo
ordenamento penal. Rigorosamente, há, nessas hipóteses, ausência de conduta, por
absoluta falta de consciência ou vontade. Fazer incidir, ademais, a circunstância
qualificadora do motivo fútil é, a meu ver, responsabilizar o indivíduo, objetivamente,
duas vezes. É bastante que ele seja apenado, mas aí deve-se contentar com a tipicidade
do homicídio simples.
Dividem-se, doutrina e jurisprudência, acerca da ausência de motivo ser
equiparada, ou não, ao motivo fútil. Penso que correto é o entendimento segundo o
qual, se o agente praticar o fato sem qualquer motivo, deverá responder pela forma
qualificada, uma vez que não poderia merecer menor reprovação do que aquele que
agiu por um motivo banal. Se é certo que o motivo fútil é o pequeno demais, o motivo
nenhum a ele deve equiparar-se, porque, inexistente, é como se fora ainda menor.
1.2.3.3 Veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum
No inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal estão considerados
determinados meios empregados pelo agente, os quais, por sua natureza insidiosa ou
cruel, revelam a extrema perversidade com que o crime é praticado, daí que não
poderia ser considerado um homicídio simples. Se o homicídio já é, por si só, um crime
extremamente grave por destruir o bem jurídico mais importante, a utilização de certos
meios, que infligem maior sofrimento à vítima, constitui circunstância que o torna mais
severamente punido.
Homicídio - 25
A Toxicologia, ciência que estuda os venenos ou substâncias tóxicas, não
apresenta um conceito unânime de veneno, uma vez que determinadas substâncias
perigosas para a vida da maioria das pessoas, em alguns casos, apresentam-se, em
relação a outras vidas, absolutamente inócuas. O açúcar, alimento para quase todos,
para o diabético pode ser letal.
Isso porque, segundo HÉLIO GOMES, “entre alimento, medicamento e veneno
nem sempre se pode fazer distinção rigorosa. SOUZA LIMA, em sua notável
Toxicologia, primeiro livro escrito no Brasil sobre o assunto, diz:
“Por exemplo, o álcool, que em pequena dose é reputado um alimento
respiratório (como se dizia na antiga filosofia); em dose mais elevada é um
medicamento excitante difusivo, e, além de certos limites, torna-se veneno
estupefaciente. A mesma substância é, pois, um alimento enquanto concorre
para a nutrição e para a vida, um medicamento quando cura ou modifica
favoravelmente a marcha e terminação das moléstias, e um veneno quando
produz desordens graves na economia e a morte.”8
É do mesmo SOUZA LIMA a seguinte definição de veneno:
“substância estranha à categoria dos agentes vulnerantes e patogênicos, que,
introduzida ou aplicada de qualquer modo ao corpo humano em certa
quantidade, relativamente grande, produz mais ou menos rapidamente
acidentes graves na economia, que podem terminar pela morte, ou deixar
defeitos permanentes e irremediáveis”.
Para NELSON HUNGRIA, veneno é “a substância que, introduzida no
organismo, é capaz de, mediante ação química ou bioquímica, lesar a saúde ou
destruir a vida”9.
Neste último sentido, também deve ser considerado veneno o vírus, que é um
elemento gerador de doença, por sua característica de contagiosidade, e que pode ser
introduzido no corpo humano causando lesões ou a própria morte.
O veneno pode ser introduzido no organismo pela via gastrointestinal, pelas
vias respiratórias, pela via endérmica ou hipodérmica, pela pele ou pelas mucosas e
diretamente no sistema circulatório. Sua atuação ocorrerá quando atingir o sistema
arterial e capilar, que é seu campo de ação.
A qualificadora incidirá apenas quando o veneno é ministrado de modo
8 Op. cit. p. 434. 9 Op. cit. p. 162
26 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
insidioso, isto é, dissimulado. A vítima é ludibriada pelo agente, e não percebe sua
intenção criminosa.
Se o agente utiliza-se de violência ou grave ameaça para que a vítima seja
exposta ao contato com o veneno, ingerindo-o ou inalando-o, e tenha, por isso,
consciência da ação lesiva que a substância vai produzir em seu organismo, o homicídio
será qualificado pela crueldade, uma vez que importará em grande sofrimento.
O uso do fogo sobre o corpo humano provoca enorme sofrimento. O calor
produzido pela combustão e as chamas que dela decorrem importam em dores
horríveis, além da consciência de que os órgãos do corpo estão sob um violento e rápido
processo de destruição, consumindo-se. A exposição do corpo a temperaturas elevadas
produz modificações de sua matéria que vão chegar até a carbonização. É meio
crudelíssimo.
A norma não se referiu à exposição do corpo humano a temperaturas
extremamente baixas, que podem levá-lo ao congelamento. Com certeza porque tal
fenônemo natural não seja próprio de nosso espaço geográfico. Todavia, um homicídio
cometido com a submissão da vítima ao frio intenso, produzido artificialmente, será,
induvidosamente, qualificado pela crueldade.
Explosivo, para os fins da norma em comento, é qualquer corpo, aparelho ou
substância capaz de produzir explosão. Explosão é a expansão violenta de gases, em
forma de calor, acompanhada de estrondo e pressão disruptiva, causada por repentina
liberação de energia decorrente de uma reação química muito rápida, ou de uma reação
nuclear, ou do escape de gases ou vapores sob grande pressão. Com a explosão, as
matérias próximas, inclusive corpos humanos, sofrem a ação da enorme força
expansiva dos gases liberados, recebendo seu impacto, o que pode ser letal.
Asfixia é a supressão da respiração, com a cessação das trocas orgânicas,
reduzindo-se o teor de oxigênio, aumentado o de gás carbônico no sangue arterial. São
várias as modalidades de asfixia.
A chamada sufocação direta é aquela produzida por uma ação que impede a
entrada do ar no aparelho respiratório através das vias aéreas superiores ou de seus
orifícios externos. Com as mãos ou certos objetos moles, como um travesseiro ou
cobertor, o agente fecha os orifícios superiores do aparelho respiratório. É a chamada
oclusão direta das narinas e da boca. Para ser concluída, é necessário que haja
desproporção de força entre os sujeitos do crime. Ocorre muito nos casos de
infanticídio.
Pode a sufocação direta dar-se através da oclusão dos orifícios da faringe e da
Homicídio - 27
laringe, que se realiza com a introdução de panos, papel, rolha ou outros objetos
adequados, na boca da vítima, obstruindo aqueles órgãos, dando início à supressão do
processo respiratório.
Há sufocação indireta quando a vítima é impedida através de uma força externa
de realizar os movimentos de inspiração e de expiração. O peso excessivo do agressor
sobre o tórax da vítima é uma dessas situações. É também chamada de compressão
torácica.
Asfixia por enforcamento decorre da constrição do pescoço exercida por meio
de um laço, fixado num ponto superior ao corpo, cujo peso atua como força constritora.
As vias respiratórias são obstruídas e a morte pode demorar geralmente de cinco a dez
minutos.
O estrangulamento consiste na constrição do pescoço, também por laço;
todavia, a força atuante, diferentemente do enforcamento, não é o próprio peso da
vítima. Se o agente utilizar-se das próprias mãos para efetuar a constrição, a asfixia se
denomina esganadura.
Confinamento é uma forma de asfixia na qual a vítima é mantida presa num
ambiente fechado, sem a necessária e adequada renovação de ar, de tal modo que as
quantidades de oxigênio e de remoção do gás carbônico não sejam adequadas ao
processo respiratório. O sofrimento da vítima é indizível, porque, à medida que o
tempo passa, vai sentindo os efeitos da diminuição do oxigênio e do aumento da
umidade e da temperatura ambiente.
“À medida que o tempo passa, a situação vai se agravando e duas síndromes
vão se instalando simultaneamente: hipóxia e exaustão térmica. Ambas levam a uma
fase de reação com hiperpnéia, taquicardia, elevação da pressão arterial e início de
pânico. Mais adiante, vem o desespero, grande agitação e perda da consciência com
ou sem convulsões. Segue-se estado de coma, que evolui para o estado de choque e a
morte por asfixia.” 10
O soterramento é a asfixia em que a vítima fica coberta completamente por
escombros ou por terra. Dá-se quando, por exemplo, é provocado um desabamento ou
quando a vítima é enterrada viva. A morte poderá se dar pela compressão torácica ou
por sufocação direta.
Também há asfixia no afogamento. Nesse caso, ocorre a penetração de grande
10 GOMES, Hélio. Op. cit. p. 519.
28 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
quantidade de líquido, água ou outro, nos pulmões, através das vias respiratórias.
Qualquer que seja a modalidade, a asfixia é um meio cruel, porque impõe um
sofrimento desnecessário para a vítima, daí a razão de ser uma circunstância
qualificadora do homicídio.
Também qualifica o homicídio o uso de tortura em sua execução. É a utilização
de tormentos, físicos ou mentais, para executar a morte da vítima. A expressão tortura,
do inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal, não corresponde à idêntica expressão
utilizada na construção dos tipos legais de crime de tortura definidos na Lei nº 9.455,
de 7 de abril de 1997. No homicídio, significa um dos meios cruéis, utilizados pelo
agente na execução do homicídio.
A definição dos crimes de tortura é uma exigência mundial, antes mesmo de ser
uma ordem constitucional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art.
V, estabeleceu que “Ninguém será submetido à tortura ou a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante”.
A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas adotou, em 10 de
dezembro de 1984, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Penais
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que foi aprovada pelo Congresso Nacional pelo
Decreto Legislativo nº 4, de 22 de maio de 1989 e promulgada pelo Presidente da
República pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, a qual, na Parte I, art. 1º,
estabelece:
“Para os fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato
através do qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa
tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta
pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de
qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um
funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua
instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará
como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de
sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”11
Em nenhuma hipótese, a tortura é admitida, como se vê do art. 2º da mesma
Convenção, o qual, em seu item 2, dispõe: “Em nenhum caso poderão invocar-se
11 BRASIL. Diário Oficial da União, de 18 fev. 1991, p. 3012-3015.
Homicídio - 29
circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade
política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para
tortura.”
A Lei nº 9.455/97, no art. 1º (caput e §§ 1º e 2º), descreveu seis condutas
típicas de tortura (a tortura-prova, a tortura como crime-meio, a tortura racial ou
discriminatória, a tortura-pena ou castigo, a tortura do encarcerado e a omissão
frente à tortura). Já no § 3º cuidou do crime qualificado pelo resultado, preterdoloso, e
no § 4.º previu causas de aumento de pena.
ALBERTO SILVA FRANCO, acerca do conflito entre a qualificadora do
homicídio e os tipos da Lei de Tortura, assim se expressou:
“Mas qual seria o tipo de relacionamento entre a tortura e o homicídio? Aqui,
a questão apresenta um enfoque diverso. Se o resultado morte não foi querido
pelo torturador, mas advém como conseqüência da ação torturadora, a
solução da matéria já se acha na própria Lei 9.455/97 que prevê a hipótese de
tortura qualificada e lhe comina pena reclusiva de oito a dezesseis anos. Mas,
se o agente está praticando a tortura e, num dado momento, decide eliminar a
vida do torturado, é evidente que, nessa situação concreta, houve duas
violações, representando a segunda um desvio em relação à primeira: o
agente quis torturar e depois, quis matar. Em verdade, são duas ações
completas e bem definidas a configurar dois delitos, em concurso material: a
tortura e o homicídio.”12
Três são as possibilidades. Na primeira, o agente age dolosamente realizando
um dos tipos legais de tortura e sobrevém, por culpa, stricto sensu, o resultado morte.
Aí há crime de tortura seguida de morte. É crime preterdoloso. Há dolo na ação
material de realizar a tortura, com o elemento subjetivo respectivo, e culpa na produção
do resultado morte.
Na segunda, o agente tem o dolo de realizar um crime de tortura e, no decorrer
de sua ação, resolve matar a vítima. Nesse caso, há dois crimes, tortura e homicídio, em
concurso material.
Uma terceira hipótese: o agente quer, desde o início, cometer um crime de
tortura e também matar a vítima. Quer infligir intenso sofrimento físico ou mental, com
o fim de obter uma confissão da vítima e, também, deseja sua morte. Aí haverá
concurso formal entre um crime de tortura e outro de homicídio qualificado, com a
12 Tortura – Breves anotações sobre a Lei nº 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 19, p. 65.
30 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
aplicação cumulativa de pena, porquanto resultantes de desígnios autônomos.
Assim, a tortura que qualifica o homicídio é o suplício violento que o agente
inflige à vítima, como meio para a obtenção do resultado morte, que não se confunde
com qualquer dos crimes de tortura, que, muito embora constituam, igualmente,
intenso sofrimento físico ou mental para a vítima, devem, para perfazer-se, realizar os
outros elementos do respectivo tipo.
Para alcançar outras condutas igualmente reprováveis, a norma do inciso III do
§ 2º do art. 121 utiliza, outra vez, o mecanismo da interpretação analógica, a fim de que
o intérprete, diante do caso concreto, faça a comparação entre o meio efetivamente
utilizado pelo agente e um dos já explicados (veneno, fogo, explosivo, asfixia e
tortura). Se o meio concretamente usado tiver sido, à semelhança desses, insidioso ou
cruel, ou do qual possa resultar perigo comum, a qualificadora incidirá.
Meio insidioso é aquele dissimulado em sua influência maléfica. Através dele, o
agente emprega um ardil ou um artifício qualquer, de modo a ludibriar a boa-fé do
agente. Como no caso da propinação de veneno, a vítima não percebe a intenção
criminosa. Vale-se o agente de determinado estratagema ou de armadilha para realizar
o intento criminoso. O meio insidioso é como a dissimulação, mencionada no inciso IV
do mesmo § 2º, adiante comentada, porém deve guardar maior similitude com a
utilização do veneno, quando a vítima até colabora com a ação do agente. Tanto na
insídia quanto na dissimulação, a vítima fica privada da possibilidade de resistir à ação
criminosa, mas naquela dá alguma contribuição, ainda que passiva, para o evento, ao
passo que na dissimulação não dá qualquer colaboração.
A diferença está, ainda, em que a insídia consiste no meio utilizado, ao passo
que a dissimulação encontra-se no modo como o fato é praticado, o que se vai
demonstrar adiante.
Meio cruel é todo aquele que importa para a vítima um padecimento físico ou
mental além do necessário e suficiente para a consumação do homicídio. É o
sofrimento desnecessário, inútil. Muitos podem imaginar que a reiteração ou o excesso
de golpes perpetrados pelo agente contra a vítima constitui meio cruel de execução do
homicídio. Não necessariamente. Pode ocorrer que já ao primeiro golpe a vítima perca
os sentidos ou mesmo venha a óbito, o que, à evidência, não importa em sofrimento
desnecessário ou excessivo.
Matar a vítima através de reiterados e sucessivos cortes em seu corpo,
produzindo, lentamente, hemorragia e deixando-a sem qualquer socorro até que a
morte ocorra é uma forma extremamente cruel de homicídio. Revela a absoluta falta de
Homicídio - 31
piedade do agente, extrema frieza e insensibilidade, que provocam enorme e desumano
sofrimento para a vítima. Bater num idoso ou num enfermo, minando-lhe,
paulatinamente, as forças até que sobrevenha a morte, é igualmente matar por meio
cruel. Manter alguém em cárcere privado privando-o de água ou de alimento para que
ele, com o tempo, venha perder suas forças e, lenta e dolorosamente, morrer é outra
induvidosa hipótese de homicídio por meio cruel.
A crueldade do meio deve ser interpretada à semelhança da tortura ou da
asfixia, nas quais a vítima é morta depois de algum tempo de enorme sofrimento, físico
ou moral.
Haverá homicídio qualificado por um meio de que possa resultar perigo
comum quando a conduta do agente puder causar, além da morte da vítima, uma
situação de perigo para a vida ou para a saúde de outras pessoas. A verificação deve ser
feita com recurso da interpretação analógica, comparando-se o meio utilizado
efetivamente pelo agente com as hipóteses de utilização de fogo ou de explosivo, já
comentadas. Tanto na utilização do fogo quanto na do explosivo existe a possibilidade
concreta de que outras pessoas venham sofrer as conseqüências da ação delituosa. A
fórmula genérica ora comentada permitirá ao julgador considerar também qualificado
o homicídio utilizado através de incêndio ou de inundação provocados pelo agente com
vistas na morte de determinada pessoa.
Assim, se o agente, sabendo que seu desafeto encontra-se em determinado local,
resolve causar um incêndio ou um desabamento do prédio, com o fim de provocar um
acidente e sua morte, incidirá essa qualificadora.
É certo que se ele souber da presença de outras pessoas, fizer a previsão da
morte de alguma ou de várias delas e, pelo menos, mostrar-se indiferente a um desses
eventos letais, e uma daquelas pessoas vier a ser atingida e morrer, haverá dois
homicídios dolosos, em concurso formal imperfeito. Inaceitável que, tendo feito a
previsão da morte de qualquer dos demais, possa ter agido apenas com culpa
consciente. Haverá dolo eventual.
Desconhecendo o agente a presença, ainda que previsível, de outras pessoas nas
imediações e, portanto, agindo sem dolo em relação à morte ou à lesão corporal de
qualquer delas, a solução é outra. Se não resultar morte ou lesão corporal de qualquer
dos circunstantes, haverá então concurso formal perfeito entre o crime de homicídio
qualificado e o crime de perigo comum. Se resultar morte ou lesão corporal de qualquer
deles, haverá concurso formal perfeito entre o crime de homicídio qualificado realizado
e homicídio culposo ou lesão corporal culposa.
32 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
1.2.3.4 Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que
dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido
O inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal descreve circunstâncias
qualificadoras que dizem respeito às formas ou modos de execução do homicídio, todas
elas insidiosas, traiçoeiras, ardilosas, dissimuladas, nas quais a vítima vê dificultada ou
impossibilitada sua capacidade defensiva. Só por isso impõe-se a reprimenda mais
severa, por isso que há homicídio qualificado.
Traição é o ataque súbito e sorrateiro, que colhe a vítima desavisada, tranqüila.
É a ação inesperada, que estava fora da cogitação da vítima, a qual não tinha qualquer
possibilidade de perceber o gesto homicida. Constitui traição matar a vítima pelas
costas, isto é, quando ela, desatenta, não pode pressentir o ataque letal. Não se deve
confundir a ação pelas costas com o disparo ou golpe efetuado nas costas, que pode
ocorrer apenas porque, no momento de seu desfecho, a vítima vira as costas para o
agente, ainda que para empreender fuga.
Emboscada é o mesmo que tocaia. É a espera da vítima que, despreocupada,
não está preparada para um ataque criminoso. O agente, escondido, aguarda sua
passagem para só então, com plena segurança, desencadear a ação que a fulminará.
Tanto quanto na traição, a vítima não está em condições de esboçar qualquer gesto
defensivo, porque desconhece o intento do agente e, quase sempre, ignora sua própria
presença nas imediações.
Dissimulação é o comportamento anterior do agente consistente em disfarçar,
ocultar ou esconder a intenção de matar. Age de modo a que a vítima não perceba seu
fim homicida. Procura, por várias formas, conquistar a confiança da vítima, inspirando
nela até mesmo o sentimento de amizade para, quando esta mostrar-se absolutamente
confiante e despreocupada, só aí executar o homicídio. Conheci um homicida
profissional que utilizava a dissimulação como modo de executar suas vítimas. Delas se
aproximava, tornava-se amigo, íntimo até, para, depois de dias de relacionamento
amistoso, convidá-las para jantar em sua residência onde, horas depois, com a vítima
totalmente tranqüila, executava-a friamente, tranqüilamente, sem qualquer
possibilidade de reação.
Também incidirá essa qualificadora quando o agente utilizar outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Outra vez o Código Penal determina
ao intérprete que realize uma interpretação analógica. Deve analisar o modo como o
homicídio foi praticado e, se concluir que esse modo é análogo à traição, à emboscada
Homicídio - 33
ou à dissimulação, deverá impor a qualificadora. Em outras palavras, a traição, a
emboscada e a dissimulação são recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do
ofendido. Assim, qualquer outro recurso que, à semelhança desses, tornar impossível
ou difícil a defesa da vítima, será uma circunstância qualificadora do homicídio. É o
caso do homicídio cometido mediante surpresa, que se assemelha a traição, emboscada
e dissimulação. Haverá surpresa quando a vítima não tiver razão para suspeitar ou
esperar a intenção do agente.
O homicídio cometido quando a vítima encontrava-se dormindo ou embriagada
ajusta-se a essa fórmula genérica, porquanto ela, nessas condições, não tinha qualquer
possibilidade de defender-se.
1.2.3.5 Execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro
crime
Finalmente, no inciso V do § 2º do art. 121, encontram-se as circunstâncias que
qualificam o homicídio por sua conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.
O agente mata alguém para assegurar a execução de outro crime. Há conexão
teleológica.
Quando mata para garantir a ocultação, a impunidade, ou para assegurar a
vantagem obtida com o outro delito, há conexão conseqüencial.
Essas qualificadoras, segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, são espécies de
motivo torpe e sua relevância está no elemento subjetivo, bastando que se apure a
conexão em sentido meramente psicológico. Isto é, basta que o sujeito tenha praticado
o homicídio com uma daquelas finalidades para que sua reprovabilidade seja maior. A
torpeza é evidente em qualquer das hipóteses.
A primeira figura é a do que mata com o fim de tornar possível ou mais fácil a
realização de outro crime, não sendo indispensável que este venha a ser executado.
Basta que o agente tenha matado com a finalidade de assegurar a execução do outro
crime. Esse crime pode, inclusive, ser outro homicídio, já que a lei não restringiu essa
possibilidade.
Se o agente mata alguém para assegurar a execução de um furto, isto é, de uma
subtração de coisa alheia móvel, não incidirá a qualificadora, mas sim a norma do art.
157, §§ 1º e 3º do Código Penal, chamado latrocínio, solução, aliás, mais gravosa.
E se o crime-fim for um crime impossível ou um delito putativo, imaginário, a
qualificadora incidirá?
34 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A norma fala em execução, daí que é de se perguntar se a qualificadora incidirá
na hipótese em que o agente tenha praticado o homicídio para assegurar não a
execução, mas a consumação de outro crime.
Vejam-se os exemplos:
a) Carlos, desejando matar Maria, casada com Joaquim, ingressa no quarto do casal,
imaginando que estariam dormindo, quando é surpreendido com o marido acordado;
mata-o, então, para, em seguida, disparar vários tiros de revólver contra Maria que,
nada obstante Carlos imaginá-la dormindo, já estava morta em virtude de um ataque
cardíaco ocorrido duas horas antes;
b) Eduardo, crendo que o incesto é crime e desejoso de manter relações sexuais
consentidas com sua filha, Cláudia, maior de 18 anos, mas sabendo que sua mulher,
Célia, poderia descobri-los, resolve matá-la, a fim de obter seu intento libidinoso;
c) João, com dolo de matar, dispara arma de fogo contra Manoel, que não morre
imediatamente. Pedro socorre Manoel e vai levá-lo ao hospital quando João o mata,
para assegurar a consumação do homicídio contra Manoel.
Qual solução se deve dar para essas três situações? Na primeira, o homicídio é
cometido com a finalidade de cometer um crime impossível, porque o objeto é
absolutamente impróprio. Maria não era mais alguém. Não havia Maria. Havia o corpo
de Maria. E o agente cometeu o homicídio contra Joaquim, para assegurar a prática de
um crime cuja consumação era impossível.
No segundo exemplo, Eduardo comete o homicídio contra Célia, para assegurar
a execução de um não-crime, mas que, em sua mente, constituía um delito. Um crime
putativo por erro de proibição.
No último exemplo, o agente mata alguém para assegurar não a execução, mas a
consumação de outro crime.
Se é certo que as normas penais incriminadoras, especialmente as que
impõem maior censura penal, não podem ser interpretadas extensivamente, não
incidirá essa qualificadora. O crime impossível não é crime, mas uma tentativa
inadequada, inidônea, de crime, e conquanto a norma em comento faça menção
expressa a um “crime”, tornar-se-ia necessário ampliar seu significado para alcançar
também o crime impossível. O mesmo em relação ao delito putativo. Dever-se-ia,
igualmente, ampliar o significado de execução para alcançar também a consumação?
Penso que a melhor solução é não aceitar a interpretação extensiva da norma
incriminadora, para não fazer qualquer concessão a esse expediente, ainda que por um
Homicídio - 35
motivo de busca da solução mais justa. Mesmo porque não há necessidade, nas três
situações, de utilizá-la, uma vez que os três homicídios serão igualmente qualificados,
já que, nas três situações, dúvidas não podem restar de que a motivação dos agentes, ao
matarem as vítimas, é, nas três hipóteses, induvidosamente torpe, abjeta, repugnante,
aplicando-se-lhes, por isso, a qualificadora do inciso I, e não a do inciso V, do § 2º, do
art. 121.
Também são qualificados os homicídios cometidos para assegurar a ocultação
ou a impunidade de outro crime. Ocultação e impunidade se distinguem. DAMÁSIO
explica:
“Na ocultação, o sujeito visa a impedir a descoberta do crime. Ex.: o incendiário
mata a testemunha do crime. Na impunidade, o crime é conhecido, enquanto a
autoria é desconhecida. Ex.: o sujeito mata a testemunha de um desastre
ferroviário criminoso. Como vimos, existe diferença entre ocultação e
impunidade. Na ocultação, o outro delito não é conhecido; na impunidade, o
crime é conhecido, a autoria, entretanto, não é conhecida.” 13
Impõe-se maior reprovação porque, nas duas situações, o sujeito busca um fim
abjeto, repugnante, desvalorizando uma vida humana por puro egoísmo, para livrar-se
da aplicação da lei penal.
A última figura dessa qualificadora é a prática do homicídio com a finalidade de
assegurar vantagem de outro crime. Essa vantagem pode ser de qualquer natureza,
patrimonial ou moral. Assim, nela incide o que mata o parceiro do furto, para ficar com
a res furtiva.
Não é necessário que o outro crime tenha sido praticado pelo mesmo sujeito do
homicídio. Ele pode matar alguém para assegurar a execução de um crime a ser
perpetrado por outro, ou para assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem de
crime praticado por terceira pessoa.
O homicídio e o outro crime são dois crimes conexos, e não um crime complexo
– como é a hipótese de latrocínio –, daí que o agente, na hipótese de ter sido também o
autor ou partícipe do outro crime, responderá por ambos os delitos, em concurso
material.
Se o crime conexo com o homicídio, teleológica ou conseqüencialmente, tiver
sua punibilidade extinta, a qualificadora, ainda assim, prevalecerá, consoante dispõe a
13 Op. cit. p. 60-61.
36 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
norma do art. 108 do Código Penal.
1.2.3.6 Anteprojeto de Código Penal
No já mencionado anteprojeto de Código Penal, dois novos incisos estão
incluídos no § 2º do art. 121, que contém novas circunstâncias qualificadoras.
A primeira delas: “por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação
sexual, condição física ou social, religião ou origem” – diz respeito aos motivos que
impelem o agente, os quais, poderiam dizer os críticos, são todos torpes, sendo
desnecessária sua explicitação na norma. Não creio que seja assim. Fala-se que o
brasileiro não é um povo racista, mas a realidade mostra, muitas vezes, o contrário.
Quase ninguém tem a coragem de assumir, em público, uma postura racista, mas no
dia-a-dia são ainda muitos os que se comportam com atitudes que levam à exclusão de
muitos indivíduos, exatamente por sua raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual,
condição física ou social, religião e também por sua origem.
A intolerância de muitos, inclusive de pessoas que se organizam em grupos
formados para a prática de crimes inspirados por esses motivos, vem crescendo e é
dever do legislador procurar, sempre que necessário e possível, ampliar o alcance da
norma incriminadora, de modo claro e preciso, em respeito ao princípio da legalidade.
Sempre que possível, melhor não deixar para o julgador a tarefa interpretativa,
mormente quando se tratar de temas dessa natureza.
A explicitação dessas novas figuras qualificadas, longe de ser desnecessária, por
já estarem, implicitamente, contempladas na categoria de “motivo torpe”, é uma
exigência imposta pela necessidade de conferir melhor e maior proteção às minorias
dentro da sociedade, contra os ataques homicidas de pessoas intolerantes.
A outra inovação é a qualificação do homicídio quando cometido “por grupo de
extermínio”. Nos últimos tempos, tem sido cada vez mais comum a prática de
homicídios perpetrados por grupos de pessoas que se organizam exatamente com a
finalidade de matar, pelas mais diversas motivações, seja mediante paga ou por outro
motivo torpe. A nova qualificadora é de natureza objetiva. O grupo de extermínio é uma
espécie de quadrilha, portanto deve ter o mínimo de quatro integrantes, e ser
constituído para cometer homicídios.
1.2.4 Homicídio qualificado-privilegiado
Doutrina e jurisprudência divergem quanto à possibilidade de um homicídio ser
Homicídio - 37
ao mesmo tempo qualificado e privilegiado.
Uma corrente entende ser impossível a convivência de privilégio com
qualificadora, porquanto o primeiro é uma mera causa de diminuição da pena e que,
situado topograficamente, no § 1º do art. 121, diz respeito, exclusivamente, ao
homicídio simples, descrito no caput do artigo. Logo, se o homicídio é qualificado,
ainda que cometido por relevante valor moral, não poderá ser aplicada, em hipótese
alguma, a diminuição da pena.
Outra corrente, que admite a possibilidade do concurso de qualificadora
objetiva e circunstância privilegiadora, considera, entretanto, que esta é preponderante,
isto é, afasta a incidência daquela, por força do que dispõe o art. 67 do Código Penal.
Para essa corrente, ainda que cometido à traição, o homicídio cometido por relevante
valor social será tão-somente privilegiado, diminuída a pena de seis a vinte anos à razão
de um a dois terços.
As duas correntes não são aceitáveis. A ordem de colocação topográfica das
circunstâncias, privilegiadoras e qualificadoras, no interior do art. 121 não significa que
as primeiras destinam-se a regular apenas o preceito incriminador do caput. Ambos os
parágrafos dizem respeito ao tipo básico, fundamental. As qualificadoras não
constituem tipos autônomos, nem circunstâncias elementares de um novo tipo de
homicídio. Se o legislador entendeu de, para as primeiras, determinar a redução da
pena, e, quanto às segundas, de cominar pena abstrata autônoma, nem por isso se pode
concluir que teve a lei a vontade de impedir sua harmonia. Esta deve ser buscada com
base na razão de ser do art. 121 em sua totalidade, em seus fins. Direito é, acima de
tudo, bom-senso e coerência.
A individualização da pena, garantia constitucional inarredável, busca o
encontro da pena justa, e esta deve ser conhecida com base na consideração de todas as
circunstâncias que envolvem o fato. Todas elas: as elementares do tipo, as judiciais, as
privilegiadoras e as qualificadoras, as agravantes e as atenuantes.
Assim, toda e qualquer circunstância que estiver presente num fato, que nele se
intrincar, seja ela própria do agente, seja do crime em si, deve ser considerada pelo
julgador. E só não o será por força de um mandamento legal expresso, como é o caso da
preponderância das atenuantes de caráter pessoal sobre as agravantes. Existe aí norma
nesse sentido, a do art. 67 do Código Penal.
A segunda corrente, muito embora invoque a mesma norma do art. 67 para
ditar que as circunstâncias subjetivas devem preponderar sobre as objetivas, esquece-se
de que referida norma diz respeito apenas às circunstâncias atenuantes e agravantes,
38 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
não aos casos de aumento de pena e circunstâncias qualificadoras.
É certo que se pode admitir interpretação extensiva de norma penal explicativa
ou da que, de qualquer modo, beneficiar o réu; todavia, isso só deve ser possível
quando a interpretação chegar a um resultado harmônico no seio do sistema. Penso
que o resultado concreto de uma interpretação nesse sentido não realiza os fins da lei,
que é o do encontro da pena mais justa para o caso real. O que se busca, sempre, é a
solução mais justa, e ela não está em nenhuma das duas correntes.
O que não se admite, porém, é a convivência de circunstâncias que se excluem,
por absoluta incompatibilidade lógico-jurídica.
Assim, não é possível um homicídio por motivo fútil ser cometido por motivo de
relevante valor moral ou social. Não é possível ser ao mesmo tempo insignificante e
relevante. Mas, viu-se, é possível um homicídio mediante paga ser cometido por motivo
de relevante valor moral, em situação excepcionalíssima. Normalmente, entretanto, o
que repugna não pode ser importante do ponto de vista dos valores sociais.
Por isso a razão está com os adeptos da terceira corrente, ao admitirem a
possibilidade de um homicídio ser privilegiado e qualificado a um só tempo. Não é,
todavia, possível em qualquer situação. É incomportável, em regra, a convivência das
qualificadoras de natureza subjetiva com as privilegiadoras, todas de natureza pessoal.
Todavia, é possível um homicídio qualificado por uma circunstância objetiva ser, a um
só tempo, também privilegiado.
Assim, é possível matar alguém à traição, de emboscada, mediante
dissimulação, com a utilização de veneno, fogo, asfixia, tortura, meio insidioso ou cruel,
por motivo de relevante valor moral ou social.
Claro que não é possível matar alguém, de emboscada, à traição ou mediante
dissimulação, estando o sujeito ativo sob o domínio de violenta emoção, logo após
injusta provocação da vítima, porque a reação do agente deve ser imediata à
provocação, e essas qualificadoras exigem que o sujeito encontre a vítima desavisada ou
despreocupada. No entanto, esse privilégio pode conviver harmonicamente com a
utilização de meio cruel, ou da asfixia.
Em síntese, quando for possível a convivência coerente, lógica e harmônica
entre circunstâncias privilegiadoras e as qualificadoras – o que se dá com quase todas
qualificadoras objetivas –, o homicídio será qualificado-privilegiado.
O homicídio qualificado é considerado hediondo. O homicídio privilegiado não
o é, porquanto o art. 1º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 8.930/94,
a ele não se referiu. Nem podia porque, apesar de não existir um conceito legal de
Homicídio - 39
hediondez, não se pode imaginar que um homicídio cometido por motivo de relevante
valor moral seja equiparado aos crimes de maior gravidade, como o são todos os
rotulados de hediondos. A relevância moral ou social e o estado emocional decorrente
de uma provocação injusta da vítima não se compatibilizam com a hediondez.
E o homicídio qualificado-privilegiado? Pelas mesmas razões que um homicídio
privilegiado não pode ser tido como hediondo, também não o pode o homicídio
qualificado-privilegiado. Primeiro porque a lei expressamente não o incluiu no rol dos
hediondos. Segundo porque a circunstância privilegiadora afasta a qualificação de
hediondez, que só pode ser vista nos crimes repugnantes, abjetos, que exigem grande
reprovabilidade penal.
1.2.5 Causa especial de aumento de pena
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) deu
nova redação ao § 4º do art. 121, para acrescentar uma causa de aumento de pena:
“Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado
contra pessoa menor de 14 (quatorze anos).” A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de
2003, deu nova redação: “Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um
terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60
(sessenta) anos.”
O aumento incidirá em todos os casos de homicídio doloso, simples, privilegiado,
qualificado ou qualificado-privilegiado, afastando, é lógico, a agravante genérica do art.
61, II, h, do Código Penal, aplicável a todos os demais crimes cometidos contra criança
e idosos. Claro, pois a mesma circunstância não poderia ser considerada duas vezes,
num bis in idem inaceitável.
A razão de ser dessa circunstância majorante da pena é a maior reprovabilidade da
conduta praticada contra o menor de 14 anos e o maior de 60 anos, os quais, por suas
características pessoais, têm menor capacidade de defender-se. Protege-se, assim, de
modo mais severo, a vida humana ainda distante do pleno estágio de desenvolvimento
físico e mental e aquela mais próxima do seu fim.
É unânime o pensamento da doutrina mais consistente de que a idade da vítima
deve entrar na esfera da consciência do agente, isto é, deve ser abrangida pelo dolo. Se
o agente não sabia, nem podia saber, que a vítima tinha menos de 14 ou mais de 60
anos, o aumento não incidirá, por erro de tipo inevitável.
40 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
1.2.6 Homicídio e nexo de causalidade
Não basta a existência de uma conduta dolosa e um resultado morte. Entre ambos
deve haver nexo de causalidade. É a relação de causa e efeito indispensável para atribuir, ao
agente da conduta, a responsabilidade pela causação da morte da vítima.
O Código Penal brasileiro adotou, no art. 13, a teoria da equivalência das condições –
conditio sine qua non – para resolver o problema do nexo causal, restringindo-a com a
norma do § 1º, que manda excluir a imputação do resultado quando uma causa
superveniente relativamente independente tiver, por si só, produzido o resultado.
Causa é aquilo de que uma coisa depende para existir, é o que determina a
existência da coisa. Todos os antecedentes causais – a condição: que permite a uma
causa produzir seu efeito, seja como instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à
produção do resultado; a ocasião: uma circunstância acidental que cria condições que
favorecem a produção do resultado; a concausa: a confluência ou concorrência de mais
de uma causa na produção do mesmo resultado – são equivalentes, todavia, o julgador
deve partir da conduta do agente, desconsiderando todos os antecedentes desta, que
não guardam qualquer relação com o resultado. O marco inicial é a conduta
examinada. Tudo que a antecede, não importa. Não fora assim, a imputação do
resultado alcançaria até mesmo o vendedor e o fabricante da arma utilizada no
homicídio.
São considerados, portanto, apenas os antecedentes causais contemporâneos e
subseqüentes à conduta objeto da averiguação feita pelo intérprete.
Na determinação da relação de causalidade entre conduta e resultado, devem-se
utilizar dois raciocínios. O primeiro é o procedimento hipotético de eliminação, de
Thyrén, segundo o qual se deve examinar a série causal excluindo, mentalmente, a
conduta do agente e verificar o que acontece. Se o resultado, apesar da supressão da
conduta, ainda assim acontecer, da forma como ocorreu, a conclusão é a de que a
conduta não é a causa do resultado.
Em outras palavras, se, diante de um fato concreto, o intérprete excluir a ação do
agente disparando os tiros em direção à vítima e, mesmo assim, concluir que a morte
desta ainda assim ocorreria, como ocorreu, deve concluir que a ação do sujeito ativo
não foi a causa da morte, porque ela, mesmo com a consideração de que o agente não
tivesse disparado seu revólver, ainda assim teria acontecido.
Se, pelo mesmo exercício de abstração mental realizado, o intérprete, excluindo a
ação do agente, verificar que a morte da vítima não teria ocorrido, concluirá que a
morte só ocorreu em razão dos disparos efetuados. Logo, a conduta terá sido,
Homicídio - 41
necessariamente, a causa da morte, que, portanto, será imputada ao agente.
Imagine-se um fato com a seguinte série causal: Álvaro dispara um tiro de revólver
contra a pessoa de Alfredo, atingindo seu tórax. Seguem-se: socorro a Alfredo numa
ambulância, onde desmaia; instalação de um processo hemorrágico; perda de sangue;
chegada ao hospital; internação; submissão à cirurgia para retirada do projétil instalado no
pulmão e combate ao processo infeccioso decorrente dos vários ferimentos produzidos pela
trajetória do projétil; morte da vítima, atestada como pneumonia bilateral, de estase
severa, secundária a ferimento por projétil de arma de fogo.
Pelo procedimento hipotético de eliminação, excluído, mentalmente, da série
causal, o disparo da arma de fogo, concluirá o intérprete que a morte da vítima não
ocorreria. A conclusão a que deve chegar é a de que a conduta do agente, disparando
sua arma, foi a causa da morte da vítima.
Outra série causal: Marcos dispara uma arma de fogo contra Antonio, que
sobrevive. Paulo, seu desafeto, sem saber da conduta de Marcos, entra no local onde o
ferido se encontrava e efetua um disparo contra sua cabeça, vindo Antonio a morrer,
imediatamente. Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Marcos, chegará o
intérprete à conclusão de que, mesmo assim, o resultado morte teria ocorrido, daí que
não pode ser imputado à conduta de Marcos, mas sim à de Paulo.
A limitação imposta pelo legislador à teoria da equivalência das condições – a
superveniência de causa relativamente independente, que por si só produz o resultado
– vai resolver outras situações em que, por imposição de absoluta justiça, o agente da
conduta não responderá pelo resultado.
Veja-se o exemplo: Fausto dispara um tiro de revólver contra Augusto,
produzindo-lhe lesões abdominais graves, com comprometimento dos intestinos,
estômago e pulmões e infecção que começa a generalizar-se. Mesmo assim, a vítima
não morre imediatamente. É socorrida e transportada para um hospital onde,
internada, é vítima de queimaduras e envenenamento, provocados por um incêndio,
criminoso ou acidental, falecendo em decorrência de intoxicação causada pela inalação
de gases produzidos pela queima de materiais utilizados na construção do prédio do
hospital.
Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Fausto, o resultado morte não
ocorreria, uma vez que não fosse o ferimento provocado, Augusto não teria sido
transportado ao hospital, nem internado. Logo, não estaria no nosocômio quando da
irrupção do incêndio. Não haveria a morte pela intoxicação. A conclusão, portanto,
seria a de que Fausto deve responder pela morte.
42 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Se é certo que Fausto desejava, pretendia, queria matar, tanto que disparou a arma
contra Augusto, não menos certo é que, efetivamente, realmente, não conseguiu matá-
lo. Não foi, realmente, o ferimento causado por Fausto que produziu a morte da vítima.
Dir-se-á que, de qualquer modo, a vítima morreria, uma vez que os ferimentos e as
lesões deles decorrentes eram, mesmo, de molde a produzir a morte. Ainda que se
concordasse com essa afirmação, é de ver que, todavia, antes que tal ocorresse, outra
causa interveio no processo causal e produziu a morte.
Augusto morreria de qualquer modo?
Não se sabe, com absoluta certeza, e nunca se saberia. Nenhuma ciência, nenhum
equipamento, nenhuma máquina, nem tampouco um humano podem afirmar, com
total e absoluta certeza, que a morte ocorreria de qualquer modo. Só Deus poderia
afirmá-la, mas ele não é operador do Direito dos homens.
Impossível tal certeza por uma razão muito simples: antes do processo causal
inaugurado pela conduta de Fausto ter sua continuidade e conclusão, culminando com
a morte de Augusto, outra causa, autônoma, com potencialidade própria, com eficiência
independente, determinou a produção da morte, modificando o primeiro processo
causal inaugurado pela conduta delituosa. A nova causa alterou o primeiro processo
causal que, tudo indica, levaria ao evento letal, e instalou um novo processo causal que
levou à morte, impedindo o primeiro processo de concluir-se. De modo que ficou
impossível afirmar que o primeiro processo chegaria a seu termo com resultado
idêntico.
Houve uma alteração no curso do processo causal originalmente desencadeado,
por outro processo causal que foi o produzido a partir do incêndio: chamas, labaredas,
energia térmica excessiva, produção de gases tóxicos, asfixia e queimaduras, o qual, por
si só, deu causa ao evento morte.
Esta aconteceu de modo e com características completamente diferentes das que
existiriam se não fosse a causa superveniente, o incêndio. Não fosse este, a vítima
jamais morreria intoxicada ou asfixiada, ou em razão de queimaduras, mas sim em
decorrência do processo infeccioso instalado mediante as lesões nos intestinos,
estômago e pulmões, ou de uma das suas possíveis conseqüências. Em outras palavras,
a vítima acabou morrendo diferentemente do que teria morrido, se não fosse essa nova
causa.
Em hipóteses como essa, incide a norma do § 1º do art. 13 do Código Penal:
“A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação
quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto,
Homicídio - 43
imputam-se a quem os praticou.”
Assim, realizada uma conduta, inaugurada e desencadeada uma série causal,
pode ocorrer de uma causa superveniente interpor-se no curso daquela série,
conformando um novo caminho causal, um novo percurso, com outras características,
decorrentes de sua própria eficiência e determinando o resultado morte. Nessa
hipótese, ao agente da conduta não poderá ser atribuída a morte da vítima. É que não
foi ela sua causa, posto que outra, mais eficaz ou eficaz de modo mais rápido, ou eficaz
simplesmente, produziu a morte antes da outra. Antecipou-se a ela. E, por isso, a essa
causa superveniente e a seu produtor é que a morte deve ser atribuída. Não ao agente da
conduta, ainda quando seu dolo tenha sido o de matar, pois o crime não é só o dolo, não
é só a intenção, mas esta, exteriorizada e acompanhada, necessariamente, do nexo de
causa e efeito com o resultado produzido.
Dúvidas não há, portanto, de que a causa superveniente relativamente
independente que por si só tiver produzido o resultado excluirá a imputação deste ao
agente da conduta.
Debatem doutrinadores acerca das causas concomitantes e preexistentes, que
também sejam relativamente independentes da conduta do sujeito ativo do crime e que
tiverem, por si sós, produzido o resultado. Nessas situações, a quem deverá ser
atribuído o resultado? Ao agente ou ao responsável, se houver, pela causa concomitante
ou preexistente? Exemplos de causas chamadas preexistentes: a condição de hemofílico
ou de fragilizado fisicamente da vítima, que, após a conduta do agente, com esta
interage dando causa, por si só, ao resultado morte. Exemplo de causa concomitante: o
infarto sofrido pela vítima no momento dos disparos praticados pelo agente, levando à
morte, por si só.
Ao ver da Doutrina, são causas que já tinham existência, anterior ou
simultaneamente, à conduta, e, mesmo que tenham, por si sós, produzido o resultado,
não afastam sua imputação ao agente, porque a norma assim não o quis.
O Código foi expresso e claro. Apenas as causas supervenientes, relativamente
independentes da conduta do agente, podem excluir a imputação do resultado ao
sujeito ativo do crime. Silenciou quanto às que a Doutrina denomina causas
preexistentes e concomitantes. Se a elas não se referiu, dizem, é porque não quis excluir a
imputação do resultado ao agente. Ou a omissão legal não teria essa significação? Seria
possível interpretação extensiva ou uso da analogia, para abarcar também essas
hipóteses?
O problema, penso, deve ser resolvido tendo em conta os fins da norma.
44 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A razão de ser do § 1º do art. 13 do Código Penal é limitar a aplicação da teoria
da equivalência das condições. É buscar a solução mais precisa possível para a
problemática da imputação do resultado. O objetivo é atribuí-lo exclusivamente a quem
lhe deu causa.
Se a morte decorreu de outra causa, preponderante, mais forte, decisiva, o
agente por ela não deve responder. Por isso, a expressão clara contida no preceito: por
si só. Não é, portanto, qualquer causa superveniente que exclui a imputação do
resultado ao agente da conduta, mas apenas aquela que por si só tenha produzido-o.
Por si só, quer dizer aquela que, por suas próprias potencialidades, por sua própria
capacidade destrutiva, por sua própria natureza, por seu próprio poder, físico, químico,
biológico, seja determinante do resultado morte.
Tanto que, analisando-se o preceito do § 1º desse art. 13, verifica-se que seu
âmago, sua essência, sua substância está não somente na superveniência da causa, mas
também em sua potencialidade lesiva, o que revela que a intenção da lei é a de
considerar excludente da imputação do resultado aquela causa que, por sua essência,
seja capaz de, sozinha, produzir o resultado morte. E assim o quis porque, diante de
duas causas concorrentes, que se interligam, interagem, ou concausas, uma delas a
conduta do agente, a outra de outra origem, sendo uma delas preponderante, a esta
será atribuído o resultado morte.
Quando a causa superveniente não for capaz de por si só produzir o resultado,
este será atribuído ao agente da conduta. E isso ocorrerá porque a conduta foi,
efetivamente, a causa determinante, a preponderante, a mais eficaz, a mais eficiente,
para a produção do resultado.
Por ter-se referido a essa outra causa preponderante, autônoma e capaz, de per
si, de produzir o resultado, a norma utilizou a expressão superveniente não com o fito
de exigir que, necessariamente, ela se originasse, no tempo, na posição de
posterioridade. A superveniência diz respeito a sua materialização ou concretização,
mas não quer dizer que sua origem tenha que ser, necessariamente, posterior à
conduta.
Volte-se ao exemplo da irrupção do incêndio no hospital para onde foi levada a
vítima dos disparos. Imagine-se que ela, ferida às 11:50 horas, ingresse no hospital às
12:00 horas, e que o incêndio tenha principiado, sem que ninguém o percebesse, às
11:49 horas. Ninguém discorda de que a morte da vítima pela intoxicação pelos gases
expelidos ou por queimaduras é uma causa superveniente relativamente independente
que, por si só, produziu o resultado. Pois bem, mas essa causa ocorreu antes da conduta
Homicídio - 45
do agente. Ela, a causa, não é superveniente; sua atuação, contudo, o é. Ela não é
originariamente superveniente, mas atuou supervenientemente. Não nasceu depois, mas
atuou a posteriori.
Assim, é de todo claro que a vontade da norma é abarcar toda causa que, por si
só, seja capaz de produzir o resultado, e que tenha atuado ou interagido após a conduta
do agente. Sua manifestação, sua concretização, sua ação lesiva devem,
necessariamente, interferir no processo causal inaugurado pela conduta do agente. Por
isso que deve ser superveniente. Não deve, necessariamente, ter surgido, sido criada,
produzida depois da conduta, mas sim produzido seus efeitos após a conduta do agente.
Assim, a anterior particular condição física da vítima, sua debilidade, a hemofilia,
embora preexistentes, só interferem após o ferimento causado pelo agente. Estão, antes
da conduta, adormecidas, sem produzir qualquer efeito, mas atuam depois. Logo, são
supervenientes enquanto causa do resultado, ainda que sejam preexistentes enquanto
condição ou estado particular. No entanto, condição e estado são, por si sós, incapazes
de produzir qualquer efeito danoso.
Assim, a meu ver, não importa o momento em que se originou a causa
superveniente relativamente independente. Importa quando ela começou a produzir
efeitos. Mesmo quando as condições que ela possui para atuar no mundo físico sejam
preexistentes ou concomitantes, o que interessa é o momento em que ela passa a
interagir com a conduta do agente. Se essa interação tiver início após a conduta do
agente, ela será superveniente enquanto causa da morte. Ainda que sua potencialidade
letal preexista, ou seja contemporânea à conduta do agente, o que interessa é o
momento em que ela atua, vive no mundo físico enquanto ente concreto causador de
uma lesão.
Daí que não se trata de interpretar extensiva ou analogicamente a expressão
superveniência. É preciso apenas compreender, exatamente, o significado dessa
expressão. Causa superveniente não é a que nasce após a conduta, mas a que atua após
a conduta, independentemente do momento em que tenha surgido no mundo. A norma
assim é clara e precisa, e sua interpretação há de ser meramente declaratória, não
exigindo qualquer fórmula ampliativa.
Se o agente, todavia, tinha conhecimento da condição de hemofílico da vítima,
de seu estado débil, ou da cardiopatia que portava, a solução há de ser outra, porque aí
estava ele em condições de prever a interação entre essas concausas e sua conduta,
abrangida, portanto, pelo dolo. Nessa hipótese, o resultado morte a ele será imputado.
Em conclusão, toda e qualquer causa que, independentemente do momento de
46 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
sua criação, atuar, todavia, após a conduta do agente e, mais importante, tiver por si só
produzido o resultado, excluirá a imputação deste ao agente da conduta.
Nesse caso, o agente responderá apenas pelos atos praticados. Se queria matar,
responderá por tentativa de homicídio. Se seu desejo era apenas o de ferir, responderá
pelo crime de lesão corporal.
1.2.7 Tentativa de homicídio
1.2.7.1 Conceito e elementos
Há crime consumado se nele se reúnem todos os elementos do tipo. Há crime
tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade
do agente. É a norma do art. 14 do Código Penal: “Diz-se o crime: I – consumado, quando
nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; II – tentado, quando, iniciada a
execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”
No homicídio consumado, os elementos são: a execução do procedimento típico,
o dolo de matar, o resultado morte e o nexo de causalidade. Iniciada, todavia, sua
execução, não vindo ele consumar-se, com a morte da vítima, por circunstâncias alheias à
vontade do agente, há tentativa de homicídio.
Sem dolo de matar, não se pode falar em tentativa de homicídio. O agente deve
ter a vontade de causar a morte, ou pelo menos aceitá-la como resultado provável
previsto.
Somente a vontade de matar também não é suficiente para configurar a
tentativa de homicídio. É indispensável que o sujeito tenha dado início ao processo de
execução. Deve iniciar o ataque ao bem jurídico: vida.
Os atos preparatórios para o homicídio, como a aquisição da arma, do veneno,
ou da corda com que pretende enforcar a vítima, a procura pelo desafeto, a emboscada,
esperando a sua passagem, não constituem, ainda, o início da execução, por isso que só
serão puníveis se, por si sós, constituírem outro crime, como é o caso do porte ilegal de
arma.
Para haver tentativa, é indispensável que o agente realize algum ato executório.
Haverá início de execução quando o comportamento do agente começa a realizar o tipo.
Apontar a arma de fogo na direção da vítima pode já constituir o primeiro ato de
execução. Assim também quando aponta e dispara a arma, inicia o desferimento do
golpe de faca, dissolve o veneno no copo que contém água, e o entrega à vítima, quando
Homicídio - 47
a empurra no precipício ou no rio onde quer que ela se afogue, enlaça seu pescoço
visando estrangulá-la ou a conduz para o ambiente fechado onde pretende que ela
morra confinada.
Há, portanto, tentativa de homicídio quando, atuando o sujeito com dolo de
matar, direto ou eventual, e iniciada a execução, não sobrevém a morte da vítima por
uma circunstância alheia à vontade do agente.
A não-consumação do homicídio pode decorrer da interrupção do processo
executório ou, ainda quando este se conclui, de outra causa.
Tentativa de homicídio por interrupção do processo de execução: Flávio aponta
sua arma contra Artur e, no momento exato em que vai atirar, tem seu braço desviado
por um empurrão dado por Carlos, indo o projétil desviar-se e atingir o tronco da árvore
sob a qual a vítima dormia. O processo de execução foi interrompido.
Outro exemplo: o agente dispara o primeiro tiro contra a vítima atingindo-lhe o
braço e, como seu intento era matá-la, vai disparar o segundo tiro, postando-se mais
próximo dela, quando chega a Polícia e o prende. Novamente, vê-se que o processo de
execução, iniciado, foi interrompido por força externa, uma circunstância que se situa
fora da vontade do agente. Essa é a chamada tentativa imperfeita.
Tentativa de homicídio com a conclusão do processo de execução: Mário
dispara cinco tiros de revólver contra Germano, causando-lhe diversos ferimentos, e
foge. Germano é socorrido com vida, levado ao hospital, onde, submetido a diversas
intervenções médicas, restabelece-se completamente. Aqui a execução se concluiu, mas
o resultado não ocorreu graças à atuação pronta de outra pessoa e o socorro médico
preciso. Essa é uma circunstância alheia à vontade do agente impeditiva da
consumação do homicídio. É a chamada tentativa perfeita ou crime-falho.
Questão interessante: seria possível uma tentativa de homicídio comissivo por
omissão?
O homicídio doloso comissivo por omissão ocorre quando um garante – o que
tem o dever de agir para impedir o resultado, conforme o § 1º do art. 13 do Código
Penal –, podendo agir, omite-se, dolosamente, com vistas na produção do resultado ou,
se não o desejar, aceitando-o se ele eventualmente acontecer.
A tentativa é possível, sim, embora muito raramente se possa verificá-la na vida
real. Veja-se o exemplo. Antonio, pai de José, de onze anos de idade, à beira da piscina
de sua residência, vê seu filho, que não sabe nadar, afogando-se. Ao perceber a
situação, decide omitir-se porque, se seu filho morrer, será seu único e legítimo
herdeiro, acrescendo ao próprio patrimônio, com a sucessão causa mortis, todos os
48 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
bens que o infante adquirira por sucessão de sua mãe, recentemente também falecida.
Omite-se, portanto, inequivocamente com dolo de matar. Está, assim, na iminência de
consumação um homicídio doloso, comissivo por omissão, pois, exímio nadador, em
seu perfeito juízo, com plena consciência e vontade, decide ficar inerte. No exato
momento em que José está quase se afogando, chegando a engolir água, Edson chega
no local e atira-se, incontinenti, na piscina e retira-o da piscina, impedindo seu
afogamento e sua morte. Inequivocamente, houve tentativa de homicídio comissivo por
omissão.
Houve dolo, início de execução – no caso, por omissão, na medida em que,
vendo o início do afogamento, inexistiu qualquer conduta positiva visando impedir o
resultado e, por último, não-consumação por circunstância alheia à vontade do
omitente.
A tentativa, por tudo que se viu, é possível em relação a quaisquer crimes
dolosos, comissivos ou omissivos impróprios.
1.2.7.2 Punibilidade da tentativa
A tentativa, em regra, não é um crime autônomo. Logo, não existe o crime de
tentativa de homicídio, mas a tentativa de crime de homicídio. A pena cominada é
dependente da pena para o crime consumado, conforme estabelece o parágrafo único
do art. 14 do Código Penal, diminuída de um a dois terços.
A redução da pena é obrigatória, não mera faculdade do juiz presidente do
Tribunal do Júri. O quantum da redução deve ser obtido com base na consideração
objetiva do fato ocorrido como um todo. O iter criminis percorrido e a maior ou menor
gravidade das lesões devem ser apreciados pelo juiz, a fim de definir a quantidade de
diminuição que aplicará.
Tratando-se de tentativa perfeita, em que o iter criminis é percorrido quase
integralmente, aproximando-se muito de sua consumação, a redução deve aproximar-
se do mínimo. Na tentativa branca, em que a vítima é sequer lesionada – quando, por
exemplo, por falha de pontaria, não é atingida pelo disparo –, é razoável que a
diminuição seja na quantidade máxima.
1.2.7.3 Desistência voluntária e arrependimento eficaz
Podem acontecer duas situações em que, agindo dolosamente, e iniciado o
processo executório, o próprio agente atua no sentido de obter a não-consumação do
Homicídio - 49
homicídio. No curso do processo de execução, o próprio agente pode desistir de
continuá-lo, interrompendo-o, ele mesmo, voluntariamente.
Ou então, após ter concluído a execução, o próprio agente, também
voluntariamente, age com vistas a impedir que o resultado aconteça.
Na primeira hipótese, haverá desistência voluntária; na segunda,
arrependimento eficaz.
Há desistência voluntária quando o agente, após disparar o primeiro tiro que
acerta a perna da vítima, estando com a arma municiada e em plenas condições de
continuar disparando contra ela, que se encontra caída, desiste de dar o segundo tiro e
resolve deixá-la ali, tomando outro rumo.
Há arrependimento eficaz quando, após disparar os tiros contra a vítima, o
agente, voluntariamente, adota medidas com vistas na prestação de socorro,
conduzindo-a para um hospital, onde ela se recupera. Se o agente se arrepende, mas,
por azar ou qualquer outra razão, não conseguir impedir a ocorrência da morte, seu
arrependimento será ineficaz, subsistindo, por isso, a tentativa de homicídio. Claro que
sua atitude positiva, louvável, generosa, em relação ao bem jurídico que, inicialmente,
queria destruir, será levada em conta pelo juiz, no momento da aplicação da pena,
como uma circunstância judicial favorável.
Importante dizer que tanto numa quanto na outra situação o agente deve atuar
voluntariamente, movido exclusivamente por sua vontade. Se a desistência de efetuar o
segundo tiro se der pela chegada da polícia, ou se o agente conduzir a vítima ao hospital
sob ameaça de outras pessoas, haverá tentativa de homicídio, pois a não-consumação,
nesses casos, terá decorrido de circunstâncias alheias à vontade do agente.
Havendo desistência voluntária ou arrependimento eficaz, diz o art. 15 do
Código Penal, o agente não responderá pela tentativa de homicídio, mas apenas pelos
atos que tiver praticado. Nos dois exemplos dados, responderá pela lesão corporal que
tiver causado na vítima.
Acerca da natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento
eficaz, discordam nossos dois maiores penalistas modernos. Para ALBERTO SILVA
FRANCO, são causas de exclusão da punibilidade, ditadas por razões de política
criminal. Um prêmio ao agente que desistiu do homicídio ou que impediu a morte14.
DAMÁSIO E. DE JESUS pensa, de acordo com JOSÉ FREDERICO MARQUES, que são
14 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.
50 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
causas de exclusão da tipicidade15, posição com a qual concordo.
Nos crimes de resultado, os fatos tornam-se típicos pela conduta e pelo
resultado, e pelo nexo causal. Se o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do
agente, a conotação típica se altera, deixando de ser homicídio para configurar uma
tentativa de homicídio.
Ora, se quando o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do agente, a
tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não
acontecer porque o próprio agente alterou sua conduta, com a mudança de sua
intenção, de sua vontade.
Num primeiro momento, ele queria alcançar o resultado, mas, depois, ele
mesmo quer, e consegue impedir que ele aconteça. O dolo de matar, inicialmente vivo
na cabeça do agente, dá lugar, por sua própria decisão, a outro dolo, o de salvar o bem
jurídico, deixando de prosseguir na execução, ou impedindo a produção do resultado.
Houve, inicialmente, uma conduta dolosa de matar, portanto típica de homicídio.
Depois, por decisão do próprio agente, o dolo cedeu lugar para outra finalidade,
positiva, louvável, lícita, protetora do bem jurídico.
É evidente que a tipicidade alterou-se substancialmente. Pode remanescer,
portanto, outra tipicidade – a dos atos praticados –, não a da tentativa.
1.2.7.4 Homicídio impossível
O chamado crime impossível, ou tentativa inidônea, ou ainda tentativa
inadequada, está assim definido no art. 17 do Código Penal: “Não se pune a tentativa
quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é
impossível consumar-se o crime.”
Mesmo agindo com dolo de matar, o agente utiliza meio executório
absolutamente ineficaz. Um meio sem qualquer idoneidade para resultar na morte da
vítima. Quer matar alguém, mas utiliza uma arma descarregada. Pretende envenenar a
vítima, mas, em vez de ministrar-lhe algum veneno, dá-lhe uma substância inócua. Nos
dois casos, morte alguma haverá. Impossível.
Noutras situações, mesmo utilizando meios eficazes, o agente atua sobre um
objeto impróprio. Atira na vítima que imaginava dormindo, quando já estava morta.
Não há alguém. Impossível matar um não-alguém.
15 Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 342.
Homicídio - 51
O meio deve ser absolutamente ineficaz. Se for apenas relativamente ineficiente,
como a utilização de arma que vem a falhar, subsiste a tentativa. Nesse caso, assim
como a arma falhou, poderia não ter falhado. A ineficiência não é absoluta.
É que, em qualquer situação, o Direito somente se importa com condutas que
tenham pelo menos o potencial de lesionar ou expor a perigo um bem jurídico. Ao
utilizar-se de meio sem qualquer eficácia, ou atuar sobre um objeto totalmente
impróprio, a conduta, ainda que dolosa, mesmo que intensamente cruel, não era idônea
para sequer expor a perigo o bem jurídico. Segundo o princípio da lesividade, o Direito
Penal somente se ocupa de condutas que tenham idoneidade para lesionar ou expor a
perigo um bem jurídico.
1.2.7.5 Resumo
Em síntese: iniciada a execução dolosa do homicídio, pode suceder que:
a) a execução não se completa por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Há tentativa de homicídio. É a chamada tentativa imperfeita;
b) a execução se completa, mas, ainda assim, o resultado morte não ocorre por
circunstâncias alheias à vontade do agente. Há tentativa de homicídio.
Tentativa perfeita ou crime falho;
c) a execução não se completa por vontade do próprio agente, que interrompe,
voluntariamente, o processo executório. Não há tentativa de homicídio, mas
desistência voluntária;
d) a execução se completa, mas o resultado não acontece por ação do próprio
agente. Não há tentativa de homicídio, mas arrependimento eficaz;
e) a consumação é impossível por ter o agente utilizado um meio absolutamente
ineficaz ou atuado sobre um objeto absolutamente impróprio. Há crime
impossível ou tentativa inidônea, impunível.
1.2.8 Concurso de pessoas
Quando duas ou mais pessoas realizam, simultaneamente, um mesmo
procedimento típico de homicídio, isto é, quando elas executam, diretamente, a morte
da vítima, a tipicidade do fato é verificável por ajustamento direto ao tipo. Dois
homens, ao mesmo tempo, ou um logo após o outro, disparam cada qual sua arma
contra outrem. Ambos, dolosamente, atuaram no sentido da obtenção da morte da
52 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
vítima. Ambos realizaram a conduta típica do art. 121 do Código Penal.
Nem sempre a concorrência de vontades e condutas para a realização de um
homicídio se dá dessa forma direta, clara, precisa, com mais de um sujeito realizando as
formas de execução da morte de outra pessoa. Muitas vezes, a vontade de determinada
pessoa dirige-se para a determinação, a outrem, da execução do crime; noutras, apenas
para contribuir para sua execução. Todas as pessoas que contribuírem, concorrerem,
enfim, para a prática do homicídio, por ele devem responder.
O Código Penal adotou, em seu art. 29, a seguinte norma geral, para alcançar as
condutas daqueles que tiverem concorrido para a realização de um crime: “Quem, de
qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.” Como visto, não definiu, com precisão, o conceito de autor ou
co-autor do crime, deixando para a doutrina a tarefa de esclarecê-lo.
1.2.8.1 Autoria no homicídio
Várias teorias foram formuladas a respeito da matéria, mas a lei brasileira não
se comprometeu, expressamente, com nenhuma delas. Segundo ALBERTO SILVA
FRANCO,
“no entanto, na medida em que introduziu o dolo na ação típica final, como se
pode depreender da conceituação de erro sobre o tipo, na medida em que
aceitou o erro de proibição e, finalmente, na medida em que abandonou o
rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas,
reconhecendo que o agente responde pelo concurso na medida de sua
culpabilidade, deixou entrever sua acolhida às mais relevantes teses finalistas,
o que leva à conclusão de que abraçou também a teoria do domínio do fato”16.
E o que diz a teoria do domínio do fato? Autor de um crime é quem possui o
domínio final da ação, podendo decidir sobre a consumação do procedimento típico. A
determinação da autoria está vinculada ao tipo legal de crime, mas depende da
presença do elemento subjetivo, que é a vontade comandando o rumo do fato.
Aquele que tiver o poder de decidir sobre continuar ou interromper o
procedimento típico, que puder decidir sobre consumá-lo, arrepender-se ou desistir de
prosseguir na execução, ou continuar, este é autor do crime. Ainda que não venha
16 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 483.
Homicídio - 53
realizar qualquer parte do procedimento típico, poderá ser o autor, desde que tiver
previamente determinado a outros que o realizassem. Mesmo não executando, nem
parcialmente, qualquer ação típica, mas se a tiver planejado, organizado, dela será
autor. Sim, porque assim agindo, terá dado início à realização intelectual do
procedimento típico e, por essa razão, insere sua conduta na realização da conduta
ajustada ao tipo. Esse é o autor intelectual.
Todo aquele que realiza o tipo de homicídio diretamente, disparando o revólver,
golpeando com a faca, ministrando o veneno, empurrando a vítima no rio para que
morra afogada, enfim, todo o que executar, diretamente, qualquer ação material com
vistas na produção do resultado morte é autor do homicídio. Porque tem poder,
domínio, sobre a ação final. Porque pode interromper o processo executório, decidindo
sobre a consumação. É o que pode desistir. Esse é chamado autor executor. É,
portanto, aquele que executa, ainda que parcialmente, o procedimento típico.
Pode haver mais de um autor executor. Vladimir e Alfredo seguram a vítima
corpulenta, para que Leônidas nela desfira os golpes de facão. Os dois primeiros
imobilizaram a vítima, impedindo sua possibilidade de defesa para que o terceiro nela
produzisse as lesões letais. Os três são autores executores porque qualquer deles tinha o
poder de decidir, dominavam a ação final.
Se Américo constrange moral e violentamente Maurício – impondo gravíssima
ameaça ao filho deste, seqüestrado e sob a mira de arma de fogo –, exigindo-lhe a
morte de Custódio, é autor mediato do homicídio que Maurício executa contra a pessoa
de Custódio. Américo é autor porque, com a coação moral irresistível imprimida contra
Maurício, obteve e manteve o domínio da ação deste. Teve o poder de decisão. Maurício
é autor executor, porque, caso quisesse, poderia ter desistido da execução, deixando,
entretanto, a vida de seu filho em grave perigo. Será desculpado, é verdade, por
inexigibilidade de conduta diversa, mas é igualmente autor de homicídio ilícito.
O autor mediato é, pois, aquele que, para obter a realização do procedimento
típico, abusa de uma terceira pessoa, imprimindo-lhe uma força, física ou moral, para
alcançar a consumação do homicídio, servindo-se de outrem como instrumento para o
alcance de sua pretensão.
Havendo, no mesmo fato, mais de um autor – executores, intelectuais ou
mediato –, diz-se que houve co-autoria. Todos serão co-autores.
1.2.8.2 Participação em homicídio
54 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A pessoa que tiver concorrido para um homicídio sem poder decidir sobre sua
consumação não é autor. Não tendo domínio sobre a ação final, não é autor, porque,
nesse caso, a ação final está sob o domínio de outrem. É tão-somente partícipe do
homicídio. Partícipe é quem contribui, sem realizar diretamente qualquer ato do
processo de execução, para o fato típico que está sob o domínio final de outra pessoa.
A participação é, portanto, acessória. Inexiste sem que haja autoria.
Para haver participação, é essencial que o partícipe tenha atuado com dolo. Com
vontade de colaborar para o homicídio, ou, pelo menos, com a previsão e aceitação da
própria colaboração para com o resultado morte de outrem. Deve, por isso,
necessariamente, ter consciência de que seu comportamento é contributivo para com o
procedimento típico que está sob o domínio do autor, intelectual ou executor.
Imagine-se que Frederico é a única pessoa que sabe do paradeiro de Edgar, um
traficante procurado pela polícia. Se, a pedido de Jorge, que afirma desejar enviar ao
“chefão” um pacote com cocaína, presta a informação do local onde ele está escondido e
Jorge, com a notícia, procura, encontra e mata o traficante, terá Frederico contribuído
para a execução do homicídio?
Claro que não. Ele não tinha consciência de que estava colaborando para um
homicídio logo, dele não teve vontade de participar, por isso que não será partícipe.
São várias as formas de participação em homicídio.
A contribuição pode ser simplesmente moral, sem qualquer ação material
concreta, como, por exemplo, quando alguém induz ou instiga outrem a cometer o
crime. Induzir é fazer nascer, na mente do outro, a idéia criminosa. Instigar é estimular
a idéia já existente.
Certo é, todavia, que o partícipe somente será responsabilizado se o crime
chegar a ser, pelo menos, tentado. Logo, não será punido o que instigou, auxiliou, ou
determinou, se o concorrente nem mesmo iniciou a execução do procedimento típico,
uma vez que o Direito Penal só intervém sobre fatos típicos consumados – realizados
na integridade dos tipos – e também sobre a tentativa de sua realização, que tem como
elemento indispensável o início da execução. É a regra do art. 31 do Código Penal: “O
ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em
contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”
A colaboração material ocorre quando a conduta do partícipe integra, de modo
secundário, sem qualquer poder de decisão, o processo causal. Entregar ou emprestar a
arma para o autor, prestar a informação sobre seu paradeiro desconhecido, conduzir o
executor até o local do crime, acompanhá-lo e permanecer a seu lado no momento da
Homicídio - 55
execução, seja encorajando-o, seja colaborando para a intimidação da vítima, são
formas de participação material. Sempre é bom lembrar que se o concorrente tiver
algum poder de decisão, mínimo que seja, já não será partícipe, mas co-autor, como já
explicitado.
A participação admite gradação em sua importância causal. Ela pode ter maior ou
menor importância no processo causal. Pode ser mais eficiente ou menos eficiente.
Cumpre, portanto, no caso concreto, analisar o grau da atuação de cada partícipe para
considerá-la de maior ou de menor importância. É o que determina o § 1º do art. 29 do
Código Penal: “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser
diminuída de um sexto a um terço.”
Não há receita milagrosa para o intérprete, como, aliás, não há fórmulas
mágicas no Direito. É preciso considerar o fato em sua totalidade e destacar, nele, o
comportamento do partícipe. Pode-se utilizar aqui o procedimento hipotético de
eliminação de Thyrén, abstraindo, da série causal, a conduta do partícipe e verificando
ao depois como teria decorrido o processo causal dominado pelo autor.
Se com esse raciocínio hipotético a série causal puder prosseguir sem grandes
dificuldades, a participação é de menor importância. Do contrário, se o processo causal
encontrar barreiras mais dificilmente contornáveis, a participação terá sido de maior
importância.
A simples conivência não é participação. Ter conhecimento de que o crime será
praticado ou mesmo presenciá-lo permanecendo inerte, sem nenhuma vontade
exteriorizada de aderir a sua execução ou consumação, não é dele participar. Ainda
quando a pessoa espere que o autor seja bem-sucedido, nem por isso está contribuindo
para o crime. Se, entretanto, o que assiste é um garante, aquele que tem o dever de agir
para impedir o resultado, sua omissão é típica.
A colaboração posterior ao crime não é participação. Encerrado o iter criminis
do homicídio, com a consumação, não há mais falar em participação. Porque, a partir
desse momento, não mais é possível contribuir para o que já se concluiu. A participação
posterior, entretanto, pode constituir crime autônomo, de favorecimento real ou
pessoal, definidos nos arts. 348 e 349 do Código Penal.
Uma questão interessantíssima é a seguinte. Certa pessoa determina, ao
pistoleiro, a morte de um desafeto. Dias depois e antes que o futuro executor cumpra
sua pactuada obrigação de matar, aquele que seria mandante do crime se arrepende e
comunica a suspensão do homicídio contratado, mas o executor resolve desobedecer à
ordem e cumprir a sua parte. Mata a vítima. Aquele é co-autor do homicídio executado?
56 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Será partícipe?
Penso que não é autor, porque na realidade não teve domínio do fato, na
medida em que não conseguiu decidir sobre sua interrupção, tendo o evento criminoso
decorrido da própria vontade do executor, que o terá tomado para si, por motivação
própria. É, entretanto, partícipe do crime, porque fez nascer, na mente do executor, a
idéia homicida.
1.2.8.3 Cooperação dolosamente diversa
Duas ou mais pessoas podem concorrer para o mesmo crime, com dolos
diversos. Pode haver um homicídio em que um concorrente, o autor intelectual ou um
partícipe, tenha agido com outro dolo, não o de matar, mas o de lesionar. Veja-se o
exemplo.
Marcelo determina a Sílvio que vá até o Bar de Alfredo e dê-lhe uma boa surra,
um espancamento para não deixar saudades. Sílvio, entretanto, excede-se e acaba
matando Alfredo. Marcelo desejava apenas produzir lesões corporais, mas Sílvio
acabou por matar, dolosamente, a vítima. Seus dolos foram, portanto, distintos,
diversos.
Outro exemplo. Raul contribui com Felizardo para a morte de Flávio. Ao
executar o homicídio, Felizardo age com extrema crueldade, circunstância não desejada
nem aceita pelo partícipe.
Qual a solução?
Marcelo deve responder em concurso de homicídio que não desejava? Ou deve
responder por lesões corporais que não aconteceram?
Raul responderá como partícipe de um homicídio simples, que estava em seu
dolo, ou pelo homicídio qualificado pelo meio cruel, utilizado pelo autor do crime sem
seu conhecimento ou consentimento?
O § 2º do art. 29 assim determina: “Se algum dos concorrentes quis participar
de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até
metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”
Com base nesse preceito, é preciso situar os vários desdobramentos possíveis.
Tome-se o exemplo de alguém que contrata os serviços de outro para espancar
uma terceira pessoa.
A primeira hipótese é de não ser previsível o resultado mais grave. O primeiro
Homicídio - 57
concorrente não pode fazer a previsão do resultado morte. Nesse caso, vai responder
pelo crime de lesão corporal, e o executor responderá por homicídio. O meio cruel
empregado pelo autor do homicídio não pode ser atribuído ao partícipe que não podia
prever sua utilização.
A segunda hipótese: o resultado mais grave pode ser previsto. Em algumas
situações, ao partícipe ou co-autor pode ser possível fazer a previsão de que o executor
poderá realizar o delito mais grave. Acontece quando alguém manda bater numa pessoa
idosa ou enferma, ou deficiente físico, que, por uma dessas condições, poderá – é
previsível –, com as lesões sofridas, ser morta. Ou quando se participa de um homicídio
que se quer simples, mas sabe-se que o concorrente, o executor, um brutamontes,
violento, sanguinário, maldoso, é capaz de matar de forma cruel.
Sendo previsível o resultado mais gravoso, o concorrente poderá ter duas
atitudes internas. Uma a de, mesmo diante da previsibilidade, não prever, ou,
prevendo, não aceitar o resultado mais grave. Isto é, não prevê, apesar de previsível. Ou
prevê, mas não aceita que ele ocorra. Nesses casos, o concorrente responderá pelo
crime menos grave, mas com pena aumentada até metade. Esse aumento é uma
imposição de maior reprovação por sua conduta negligente.
A outra atitude é, prevendo, aceitar o resultado mais gravoso. Aí responderá
igualmente pelo resultado mais grave, porque agiu dolosamente. Nessa situação, o
concorrente, embora quisesse, inicialmente, participar de um crime menos grave,
consentiu na realização do mais grave; por isso, é inaplicável o preceito do § 2º do art.
29.
A solução do § 2º do art. 29 é justa, pois se se aplicasse sempre, ao concorrente
que queria um crime menos grave, a mesma pena daquele realizado, a
responsabilização do primeiro seria puramente objetiva, o que não atende aos ditames
de um direito penal justo e fincado no princípio da culpabilidade.
Quando ele tenha, porém, consentido na realização do crime mais grave, por ele
responderá, considerando a eventualidade de seu dolo, também na medida de sua
culpabilidade.
Quando o resultado mais grave era previsível, mesmo respondendo pelo delito
mais leve, terá a pena aumentada consideravelmente, de metade, porque maior a
reprovabilidade de sua conduta.
1.2.8.4 Comunicabilidade de circunstâncias
58 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Circunstâncias, para os fins do Direito Penal, são dados que ora integram, ora
se ligam aos tipos, com a finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena cominada.
Umas têm natureza objetiva; outras, subjetiva.
Circunstâncias objetivas ou reais são as que dizem respeito à materialidade do
fato – modo de execução, meios utilizados, tempo, lugar, qualidades do sujeito passivo
etc.
Circunstâncias subjetivas ou pessoais referem-se ao agente do fato, à motivação
que o impele a realizar a conduta, as suas relações com o sujeito passivo, ou com seus
concorrentes, ou a seus atributos pessoais.
Quando as circunstâncias integram a estrutura do tipo, são chamadas essenciais
ou elementares, porque são indispensáveis à verificação da tipicidade. São elementos
do tipo.
Quando se situam fora do tipo, são chamadas circunstâncias acidentais.
Para resolver o problema da comunicabilidade das circunstâncias entre os diversos
concorrentes, deve o intérprete atentar para o preceito inserto no art. 30 do Código Penal:
“Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando
elementares do crime”, e dele extrair as regras aplicáveis a todas as hipóteses.
A primeira regra é a de que: todas as circunstâncias de caráter objetivo, reais,
comunicam-se aos concorrentes. Não há norma escrita a respeito, mas a interpretação
deve ser feita a contrario sensu. Se a norma impede a comunicação de circunstâncias
pessoais, exceto as elementares do crime, é porque, a contrario sensu, quer que todas
as demais sejam transmitidas aos concorrentes. Assim, o uso de meio cruel, tortura,
asfixia ou a insídia, a dissimulação, que são circunstâncias objetivas qualificadoras do
homicídio, comunicam-se aos co-autores e partícipes. Todavia, como já dito
anteriormente, se o concorrente – co-autor intelectual ou partícipe – não teve
conhecimento de que o executor utilizaria de meio cruel ou agiria de emboscada, é de
ver que a qualificadora objetiva não entrou na esfera de seu conhecimento, logo não
pode a ele ser aplicada.
A segunda regra é: as circunstâncias pessoais não elementares do tipo não se
comunicam. Assim as qualificadoras do motivo fútil, torpe, ou a finalidade de assegurar
a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Nem tampouco as
circunstâncias privilegiadoras – motivo de relevante valor moral ou social – serão
comunicadas ao partícipe e co-autor.
Terceira: as circunstâncias pessoais ou subjetivas que sejam elementares do
crime comunicam-se sempre. No tipo de homicídio, não há qualquer circunstância
Homicídio - 59
pessoal elementar, exceto o dolo, que, por isso, comunica-se sempre aos que para ele
concorrem. Outras circunstâncias pessoais existem apenas nas formas privilegiadas e
qualificadas do homicídio, mas são elas circunstâncias acidentais, e não integrantes do
tipo fundamental. Logo, nenhuma delas se comunica ao concorrente, partícipe ou co-
autor.
A não ser, é óbvio, se o concorrente tiver conhecimento da circunstância
subjetiva e incorporá-la a seu dolo, isto é, se, ao aderir a conduta do executor ou co-
autor, também agir motivado pela futilidade ou torpeza com que atuar o executor, bem
assim se abraçar a nobreza do motivo.
Não apenas as circunstâncias subjetivas são incomunicáveis, também as
condições pessoais do agente. Menoridade de 21 anos e reincidência, por exemplo,
sendo condições subjetivas, são incomunicáveis aos concorrentes do crime.
1.2.9 Concurso de crimes
O agente pode realizar, contemporaneamente ao homicídio, pouco tempo antes
ou depois, outra conduta delituosa, ou, mediante uma só ação, cometer mais de um
crime, de mesma espécie ou não. Dar-se-á, então, o chamado concurso de crimes, que
pode ser material, formal ou crime continuado.
1.2.9.1 Concurso material
O art. 69 do Código Penal define o concurso material de crimes, determinando,
nessa hipótese, a aplicação cumulativa das penas privativas de liberdade
correspondentes. Ocorre quando o agente, mediante mais de uma conduta, pratica dois
ou mais crimes, idênticos ou não.
O agente mata a vítima, e depois oculta ou destrói o cadáver. Haverá homicídio
e um crime de ocultação ou destruição de cadáver, aplicando-se as penas
cumulativamente.
Faustino mata Aristizábal, depois comete lesões corporais contra Joaquim e,
por último, calunia a irmã de ambos, que se encontrava próxima. Um homicídio, uma
lesão corporal e uma calúnia.
As regras para a aplicação da pena são:
1. Tratando-se de duas penas privativas de liberdade, serão aplicadas
cumulativamente, devendo o juiz, é óbvio, individualizar cada pena, somando-
60 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
se ao final as penas definitivas.
2. Sendo possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos, deve o juiz atentar para o seguinte. Se a pena privativa de liberdade
aplicada para um dos crimes não tiver sido suspensa, como dispõe o art. 77 do
Código Penal (sursis), a pena para o outro crime concorrente não poderá ser
substituída por restritiva de direitos. Ou seja, só é possível a substituição de
uma das penas privativas de liberdade aplicadas, se a pena aplicada para o
crime concorrente tiver sido suspensa. Caso seja possível a substituição das
várias penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos, se forem
compatíveis, o condenado poderá cumpri-las simultaneamente. Se não,
cumprirá sucessivamente.
Outro exemplo: após estuprar a vítima, o sujeito mata-a. São duas ações
distintas, dois crimes distintos. Responderá por ambos, e se a tiver matado para
assegurar a impunidade ou a ocultação do crime de estupro, será apenado por um
estupro e um homicídio qualificado. Se a matar por mero prazer, será qualificado pela
torpeza do motivo. Não é a mesma hipótese quando o agente tiver usado violência na
realização do estupro e dela resultar a morte da vítima, caso em que responderá por
estupro seguido de morte, cuja pena será de 12 a 25 anos. Essa hipótese ocorre quando
a morte decorreu de negligência do agente. É crime preterdoloso. Agiu com dolo de
estuprar, e teve culpa na morte.
O concurso material, ou real, resulta da existência de duas ou mais condutas
distintas, isoladas, separadas, autônomas. São fatos diferentes, crimes diferentes, ainda
que realizados em momentos próximos.
1.2.9.2 Concurso formal
Há concurso formal, ou ideal, quando o agente, mediante uma só conduta,
pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Aplica-se apenas uma das penas, a mais
grave, se distintas, aumentada de um sexto até metade. Uma só ação ou uma única
omissão realizando mais de um crime. Exemplo: o agente sabota uma pequena
aeronave, matando seus três ocupantes.
Há concurso formal quando há unidade de conduta e pluralidade de crimes.
Há concurso formal homogêneo quando os crimes praticados são definidos na
mesma norma legal, contra vários sujeitos passivos.
O concurso formal será heterogêneo se os crimes praticados estiverem definidos
Homicídio - 61
em normas penais distintas. No mesmo exemplo da sabotagem da aeronave, pode
acontecer que, com a única conduta do agente, sejam causados dois homicídios e
também lesões corporais em um passageiro, que se salvou.
O concurso formal pode ser perfeito ou imperfeito.
O concurso formal perfeito está definido na primeira parte do art. 70 do Código
Penal: “Quando, mediante uma só conduta, o agente pratica dois ou mais crimes,
idênticos ou não.”
Na segunda parte do mesmo artigo, a definição de concurso formal imperfeito:
“Quando, mediante uma só conduta dolosa, o agente pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, resultantes de desígnios autônomos.”
As diferenças são evidentes. O concurso formal perfeito pode ocorrer em relação
a crimes dolosos e culposos, ao passo que o concurso formal imperfeito trata apenas de
crimes dolosos. Neste, os crimes praticados devem decorrer de desígnios autônomos do
agente. Desígnio é desejo, pretensão, vontade, fim, objetivo. Haverá concurso formal
imperfeito quando os dois ou mais crimes cometidos através de uma só conduta
estiveram previamente ideados ou idealizados pelo agente. Eram crimes desejados,
pretendidos pelo sujeito que os realizou com uma única conduta.
Há autonomia de desígnios, no exemplo da sabotagem da aeronave, se o agente,
quando realizou a conduta, tinha a vontade de, com o desastre aéreo, matar seus três
ocupantes.
Para o concurso formal perfeito, aplica-se apenas uma das penas, a mais grave,
se distintas, aumentada de um sexto até metade. Se, porém, ao realizar a operação de
aumento da pena do crime mais grave, o juiz chegar a um quantum superior ao que
chegaria caso utilizasse a regra do concurso material, cumulando-as, deverá então
aplicá-las cumulativamente. Por exemplo, num concurso formal perfeito entre um
homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se aplicar pena mínima para o
homicídio qualificado, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, chegará a
uma pena definitiva de 14 anos, ao passo que, se forem simplesmente somadas as penas
para os dois crimes, a pena definitiva seria de apenas 13 anos de reclusão. Nesse caso,
mesmo tendo havido concurso formal, o juiz aplicará a regra do concurso material, daí
que a doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico.
Para o concurso formal imperfeito, as penas serão aplicadas cumulativamente,
como no concurso material.
62 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
1.2.9.3 Homicídio continuado
O crime continuado é uma criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal,
resulta em punição menos severa ao agente que comete mais de um crime. No concurso
formal, como se viu, aplica-se apenas uma das penas, aumentada até metade. No crime
continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a
pena de um dos crimes, a mais grave se diversas, aumentada, porém, de 1/6 a 2/3. É
um critério mais severo do que o do concurso formal.
Haverá crime continuado quando o agente realizar mais de uma conduta e com
elas praticar mais de um crime, porém da mesma espécie, e que guardem, entre si, um
nexo de continuidade materializado por meio de certa homogeneidade ou uniformidade
de suas circunstâncias de natureza objetiva. É a regra do art. 71 do Código Penal.
Antes da reforma penal de 1984, não se admitia a aplicabilidade do instituto do
crime continuado quando se tratasse de crimes que se voltavam contra bens
personalíssimos, especialmente quando praticados contra vítimas diferentes. Quanto ao
homicídio, então, era absolutamente impossível pensar na hipótese, eis que as vítimas
sempre seriam diferentes.
Com a reforma, entretanto, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo
texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive
contra vítimas diferentes. É o que se encontra no parágrafo único do art. 71:
“Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou
grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os
antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas,
ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo
único do art. 70 e do art. 75 deste Código.”
Assim, admite-se a continuidade delitiva também nos crimes de homicídio.
Para tanto, é preciso que estejam presentes todos os requisitos do crime
continuado, mais a consideração sobre as circunstâncias judiciais mencionadas no
parágrafo único do art. 71.
Para haver crime continuado, é preciso que os crimes sejam da mesma espécie,
e que haja nexo de continuação.
Parte da doutrina entende que são da mesma espécie apenas os crimes previstos
no mesmo tipo penal, porque possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo
Homicídio - 63
as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas e consumadas17. Assim poderá
haver continuidade entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de
homicídio ou um homicídio qualificado.
Crimes da mesma espécie, a meu ver, são aqueles que violarem o mesmo bem
jurídico. São os crimes cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie
pressupõe a de gênero. Assim, homicídio e aborto e infanticídio são espécies do gênero
de crimes contra a vida. Será possível, assim, haver continuação entre um homicídio e
um aborto, e um infanticídio.
A continuidade exige nexo de continuação, cuja constatação se fará pela análise
das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições
assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade.
Os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. A análise
não é aritmética, estabelecendo tempo máximo entre um crime e outro, um, dois ou
três meses. Os lugares onde tiverem sido cometidos também deverão ser próximos.
Deve o modus operandi, que inclui os meios utilizados e o modo de atacar as vítimas,
ser homogêneo nos vários crimes.
A homogeneidade deve abranger o conjunto das circunstâncias, que são todas
objetivas, não bastando haver harmonia de tempo e lugar, se, por exemplo, a maneira
de execução é absolutamente diferente em cada crime.
Veja-se esse Acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
“PENAL – HOMICÍDIO QUALIFICADO – RECONHECIMENTO DE CONCURSO
MATERIAL – INOCORRÊNCIA – CONTINUIDADE DELITIVA –
CONFIGURAÇÃO.
Crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas
semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, podem ser tidos como
continuação dos outros (art. 71 do CP). O modus operandi, em tais delitos, deve
ser o mesmo, sendo necessária a homogeneidade das condutas.
No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a ocorrência
de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de cometimento de outro
homicídio, pelas mesmas autoras e em circunstâncias objetivas homogêneas.
Destarte, configura-se a continuidade delitiva, e não o concurso material.
17 DAMÁSIO E. DE JESUS, Direito penal. v. 1, p. 526.
64 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Ordem concedida para reconhecer a ocorrência de continuidade delitiva,
afastando-se, assim, o concurso material (HC 21.770-RJ, rel. Min. Jorge
Scartezzini, j. 24-9-2002, DJ de 18.11.2002).”
Superadas estão, portanto, duas antigas discussões. Uma a de que, para a
continuidade delitiva, deveriam ser consideradas circunstâncias de natureza subjetiva.
Não há necessidade de os crimes resultarem de um único desígnio do agente. Bastam as
circunstâncias objetivas serem harmônicas. A outra discussão é sua aplicabilidade
quanto ao homicídio, pacificada sua admissibilidade pela jurisprudência das cortes
superiores.
A diferença é que, tanto no homicídio quanto nos crimes cometidos contra
vítimas diferentes, com violência ou grave ameaça, a pena será aumentada até o triplo,
desde que as circunstâncias judiciais mencionadas no parágrafo único do art. 71 sejam
favoráveis ao agente.
Em qualquer hipótese, entretanto, a pena não pode ser superior à que caberia
caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem ser superior a 30 anos.
1.2.10 Conflito aparente de normas
Dá-se o conflito aparente de normas, também chamado simplesmente de
concurso de normas, quando, para um mesmo fato – conduta, nexo e resultado –
concreto, parecem ajustar-se-lhe duas ou mais normas distintas, isto é, dois tipos legais
de crime.
Na verdade, não há nenhum conflito, nem tampouco um concurso de normas,
uma vez que segundo o princípio do ne bis in idem ninguém será punido duas vezes
pelo mesmo fato. O conflito, portanto, é só aparente. O concurso é inexistente. Apenas
uma das normas incriminadoras se ajustará ao fato natural.
Para a resolução dos possíveis conflitos aparentes de normas, deve o intérprete
aplicar o princípio da especialidade e o princípio da absorção. Segundo o primeiro, se
entre as duas normas aparentemente em conflito existir uma relação de gênero e
espécie, a norma especial afastará a incidência da norma genérica. Uma norma é
especial em relação à outra, genérica ou geral, quando contiver, em sua descrição, todos
os mesmos elementos, objetivos, normativos e subjetivos, contidos na norma genérica,
e mais alguns, ou só um, objetivos, normativos ou subjetivos. Esses elementos a mais
que a norma especial têm são os elementos especializantes.
O tipo de homicídio simples – matar alguém – contém uma norma geral, da
Homicídio - 65
qual são tipos especiais as normas dos §§ 1º e 2º do mesmo art. 121. Os homicídios
privilegiados são tipos especiais em relação ao tipo do homicídio simples. Os
homicídios qualificados são, igualmente, especiais em relação ao homicídio simples.
Entre eles, portanto, há relação de gênero para espécie. É só olhar os elementos:
• homicídio simples: matar alguém dolosamente;
• homicídio qualificado: matar alguém dolosamente, por motivo fútil.
O “por motivo fútil” é o elemento especializante, que torna o homicídio
qualificado especial em relação ao homicídio simples.
Segundo o princípio da especialização, a norma especial derroga a norma geral.
Lex specialis derrogat lex generalis. Ou seja, quando João mata Maria por motivo fútil,
será punido uma única vez, segundo a norma incriminadora do art. 121, § 2º, II, do
Código Penal.
O infanticídio – adiante comentado – é também um tipo especial em relação ao
homicídio simples, de modo que se a mãe, durante ou logo após o parto, matar o
próprio filho, estando sob a influência do estado puerperal, será punida apenas uma
vez, com a pena prevista no art. 123, que afastará a incidência da norma do art. 121.
O mais conhecido conflito aparente de normas que envolve o homicídio é o que
se dá entre a norma do art. 121, § 2º, V, e as contidas no art. 157, §§ 1º e 3º. Veja-se o
exemplo: Salviano subtraiu, para si, um objeto de propriedade de José Carlos, e quando
se retirava do local do crime, na posse do bem furtado, é surpreendido pela vítima que
tentou reaver a res furtiva, momento em que Salviano, para assegurar a posse do bem,
desferiu um tiro de revólver, matando José Carlos.
Aparentemente, e só aparentemente, esse fato ajusta-se a dois tipos legais de
crime: homicídio qualificado para assegurar a vantagem de outro crime, e roubo
impróprio seguido de morte, também chamado latrocínio.
Só uma das normas é aplicável, pois o conflito é só aparente. No primeiro tipo,
de homicídio qualificado, os elementos são:
• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem de outro crime.
No segundo tipo, de roubo impróprio seguido de morte, os elementos são:
• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem do crime de furto.
A segunda norma, pois, é especial em relação à primeira, pois naquela a morte
da vítima visava assegurar a vantagem de outro crime, isto é, de qualquer crime, ao
passo que, na segunda, a morte da vítima busca assegurar a vantagem de determinado