visões da liberdadae

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SIDNEY CHALHOUB VISÕES DA LIBERDADE Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte

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  • sidney Chalhoub

    Vises da liberdadeUma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte

  • Copyright 1990 by sidney Chalhoub

    CapaJeff Fisher

    PreparaoMrcia Copola

    RevisoJuliane Kaorilarissa lino barbosa

    Atualizao ortogrficaVerba editorial

    2011

    Todos os direitos desta edio reservados ediTora sChwarCz lTda.rua bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 so Paulo sPTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    dados internacionais de Catalogao na Publicao (CiP)(Cmara brasileira do livro, sP, brasil)

    Chalhoub, sidneyVises da liberdade : uma histria das ltimas dcadas da

    escravido na Corte / sidney Chalhoub. so Paulo : Companhia das letras, 2011.

    isbn 978-85-359-1922-6

    1.escravido brasil histria 2. escravido brasil rio de Janeiro (rJ) i. Ttulo. Cdd-326.098111-06788 -326.0981531

    ndices para catlogo sistemtico:1. brasil : escravido : histria : Cincia poltica 326.09812. brasil : escravido e emancipao : Cincia poltica 326.09813. rio de Janeiro : Cidade : escravido : histria : Cincia

    poltica 326.0981531

  • Para meus pais, Nabih e Ermelinda: por tudo.Para meus avs, Norival e Ilka: porque suas histrias sempre embalaram meu interesse pela histria.

  • suMrio

    agradecimentos 9 introduo: zadig e a histria 12

    negcios da escravido 32inqurito sobre uma sublevao de escravos 32Fices do direito e da histria 39 Veludo e os negcios da escravido 50 negcios pelo avesso 56Castigos e aventuras: as vidas de brulio e serafim 63os irmos Carlos e Ciraco: mais confuso na loja de

    Veludo 82eplogo 96anexo: bonifcio e outros escravos 99

    Vises da liberdade 116bons dias! 116Vida de peteca: entre a propriedade e a liberdade 125sedutores e avarentos 133Charadas escravistas 151atos solenes 162Cenas do cotidiano 1781871: as prostitutas e o significado da lei 189o retorno inglrio de Jos Moreira Veludo 201

    Cenas da cidade negra 218de bonifcio a Pancrcio: a concluso do captulo

    anterior 218 um objeto gravssimo: a segurana a segurana 232 Profundo abalo na nossa sociedade 248

    1.

    2.

    3.

  • a cidade-esconderijo 265o esconderijo na cidade: os cortios e a liberdade 292

    eplogo: a despedida de zadig, e breves consideraes sobre o centenrio da abolio 314

    notas 320Fontes e bibliografia 346sobre o autor 359

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    1. neGCios da esCraVido

    inQuriTo sobre uMa subleVao de esCraVos

    era o ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de 1872, aos 17 de maro do dito ano, nesta Corte. os escra-vos que se encontravam na casa de comisses de propriedade de Jos Moreira Veludo haviam acabado de jantar. o nego-ciante descera ao dormitrio dos negros com o intuito de fa-zer curativos num seu escravo de nome Tom, que estava em tratamento havia vrios dias. liderados por um mulato baia-no de nome bonifcio, mais de vinte dos cerca de cinquenta escravos que aguardavam compradores na loja de Veludo avanaram sobre o negociante e lhe meteram a lenha. o preto Marcos arrancou a palmatria das mos de Tom para esbordoar Veludo; o crioulo Constncio usou um pau curto que trazia; vrios outros se serviram de achas de lenha que haviam escondido debaixo de suas tarimbas especialmente para a ocasio.1

    o comerciante estava cercado de negros e apanhava para valer quando um caixeiro da casa de comisses de nome Justo armou-se de um pau comprido, convocou o auxlio do guarda--livros e partiu em socorro do patro. os dois rapazes conse-guiram arrombar a cancela e, com a ajuda de Tom, arrasta-ram Veludo para fora. o comerciante ficou bastante ferido e os negros permaneceram agitados, mas aparentemente no ocorreu uma tentativa coletiva de fuga. de qualquer forma, uma pequena operao de guerra foi montada para a priso dos escravos. o subdelegado de santa rita pediu a presena de uma tropa de fuzileiros navais e organizou o cerco loja da rua dos ourives, tendo comparecido ainda ao local o primeiro delegado, o comandante dos guardas urbanos, um capito e

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    um major.2 os autos do inqurito policial aberto pelo subdele-gado trazem os depoimentos de 24 escravos.

    o crioulo Constncio, escravo de Guilherme Teles ribeiro, natural da provncia do rio de Janeiro, de 22 anos presumveis, solteiro, analfabeto, carroceiro, filho de silvestre e de isabel, oferece uma verso bastante detalhada dos acontecimentos na subdelegacia:

    [...] que h cinco meses est em casa de Jos Moreira Veludo para ser vendido e que logo que a chegou os outros escra-vos comearam a falar que era preciso darem pancadas em Veludo porque era muito mau e que s assim sairiam do poder dele; que ontem bonifcio crioulo convidou ao inter-rogado para unir-se a ele e aos outros companheiros para matarem a Veludo e o interrogado concordou isso devia ter lugar na hora em que Veludo descesse para curar o preto Tom; que hoje tarde estando Veludo curando tal preto, seguiu para o lugar em que ele estava o preto bonifcio e estando o interrogado no quintal ouviu barulho de bordoa-das e gritos de Veludo ento para l correu e viu Veludo cado no cho e muitos dos acusados dando-lhe bordoadas, entre os quais o preto Marcos que dava com uma palmat-ria dando-lhe pela cabea e pelo corpo; ento servindo-se o interrogado de um pau curto que consigo levava deu em Veludo duas cacetadas no pescoo e nessa ocasio intervin-do o caixeiro a favor de Veludo, deu-lhe o interrogado duas cacetadas e depois fugiu para o quintal onde foi preso [a 102; grifo no original].

    o relato de Constncio impressiona primeiramente pela mincia com que o plano de ataque a Veludo foi concebido e executado. Tudo foi pensado com bastante antecedncia e en-volvia um grande nmero de escravos, porm o sigilo pde ser mantido e o comerciante foi surpreendido com a agresso. h ainda sutilezas no plano que no aparecem no depoimento de Constncio. estava combinado que alguns escravos que fica-

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    riam no quintal iriam derrubar um muro para provocar a re-preenso de Veludo e justificar o incio da pancadaria. este muro derrubado iria servir tambm para a fuga em direo subdelegacia aps o episdio, sendo que pelo menos o crioulo Gonalo tinha a surpreendente esperana de alcanar a liberda-de assentando praa (a 104). no fica bem claro nos depoimen-tos se o muro afinal foi ou no para o cho, mas sabemos que os negros fizeram sangue ou meteram a lenha na vtima na oca sio prevista e com os instrumentos guardados especialmen-te para o evento: tudo aconteceu quando Veludo foi tratar da perna de Tom, e a maioria dos escravos usou as achas de lenha que traziam escondidas. segundo vrios depoimentos, o crioulo bonifcio se encarregou de dar o sinal do ataque e a primeira pancada.3 houve ainda o cuidado de evitar que escravos suspei-tos de fidelidade a Veludo, como o prprio Tom e o crioulo Jacinto, percebessem o que estava por acontecer (a 107, a 105).

    Tanta preciso e competncia na concepo e execuo do plano acompanhada de justificativas igualmente consistentes. Como vimos, para Constncio o negociante era muito mau e era preciso sair do poder dele, enquanto Filomeno queria participar da combinao porque j havia apanhado. h ou-tros escravos que atribuem o remdio radical que resolveram aplicar contra Veludo ao rigor do tratamento que o negociante dispensava s peas que estavam venda no seu estabeleci-mento. Mas no essa a nica justificativa que os cativos apre-sentam para os seus atos, nem parece ser esse o mvel essencial da deciso de surrar aquele homem de negcios da Corte. Po-demos dar a palavra ao mulato bonifcio, baiano de santo ama-ro, 35 anos presumveis, analfabeto, ganhador, filho de benta e Manoel, e identificado em vrios depoimentos como um dos cabeas do movimento:

    [...] que estando em casa de Jos Moreira Veludo para ser vendido foi infludo por todos os outros acusados acima mencionados para entrar com eles na combinao que fi-zeram para esbordoar Veludo e fazer sangue nele, o que,

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    queriam os outros fazer para no seguirem para uma fazen-da para onde tinham de ir a mandado de um negociante de escravos por nome bastos que j os tinha escolhidos [sic]; tendo o interrogado raiva de seu senhor por dar-lhe palma-toadas entrou na combinao que j estava acertada a mais [sic] de oito dias [a 99].

    apesar de afirmar em seu depoimento que foi infludo pelos outros negros na sua deciso de participar da agresso a Veludo, bonifcio prossegue descrevendo com detalhes as aes e confessa que partiu na linha de frente ao lado do pardo Fran-cisco, tambm baiano, sendo que fora ele bonifcio quem dera as primeiras cacetadas. ele justifica sua atuao no movimento pela raiva que tinha do comerciante, mas explica que os ou-tros foram movidos pela recusa em serem vendidos para uma fazenda de caf. o crioulo cearense Gonalo, por exemplo, disse que

    tendo ido anteontem para a casa de Veludo para ser vendido foi convidado por Filomeno, e outros para se associar com eles para matarem Veludo para no irem para a Fazenda de Caf para onde tinham sido vendidos [a 102];

    explicao semelhante oferecida por Francisco, Filomeno, Joaquim, benedito e Juvncio. h escravos que manifestam ainda a inteno de irem para a polcia aps darem as bordoa-das.4 nas declaraes dos escravos, portanto, o que parece estar em jogo no uma fuga coletiva, uma tentativa desses negros de escapar de sua condio de cativos, e sim a afirmao de que se negavam radicalmente a serem vendidos para o interior. Para esses homens, a priso parecia um mal menor do que a escravi-do nas fazendas de caf.

    Todo o episdio sugere, na verdade, que o atentado contra Veludo havia sido o ltimo recurso disponvel a esses negros para influenciarem o rumo que tomariam suas vidas dali por diante. um exame da lista dos vinte escravos que acabam sendo

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    incriminados pelo relatrio do delegado revela que treze deles eram baianos e tinham chegado do norte havia poucas semanas para serem vendidos (a 113-5). nota-se tambm que entre esses baianos trs eram propriedade de Francisco Cames entre eles o crioulo bonifcio , outros trs eram escravos de Jos leone, mais trs eram escravos de emiliano Moreira, e havia ainda dois que pertenciam a Vicente Faria. ou seja, o mnimo que lcito imaginar que esse lote de negros continha peque-nos grupos de cativos que j se conheciam h tempos por terem sido propriedade do mesmo senhor. essa circunstncia talvez ajude a explicar o entrosamento e o sigilo conseguidos no mo-vimento, sendo possvel que existissem laos de solidariedade ou parentesco entre esses negros que os motivassem ao. seja qual for o sentimento de solidariedade que esses escravos te-nham experimentado entre si, o fato que reagiram a uma si-tua o na qual no lhes fora deixado qualquer espao de mano-bra. Como veremos detalhadamente mais adiante, era comum que os escravos exercessem alguma forma de presso sobre seus senhores no momento crucial de sua venda. essas presses ou negociaes poderiam ter formas e intensidades diferentes de-pendendo de cada situao especfica. provvel, contudo, que tal espao de manobra fosse reduzido quase nulidade quando o senhor encarregava um comerciante de escravos de realizar a venda. bonifcio e seus companheiros vieram da bahia e de outras provncias do norte para serem vendidos por um nego-ciante prspero da Corte. estava criada uma situao sobre a qual os negros pareciam no ter qualquer controle, e isto expli-ca de certa forma a atitude drstica tomada contra Veludo.

    no h no episdio, no entanto, um alinhamento ou uma solidariedade automtica dos escravos contra o comerciante. os depoimentos mostram que o movimento foi tecido paciente-mente entre os negros, com bonifcio, Filomeno e outros con-versando e procurando o engajamento de todos: o crioulo Joo contou que foi convidado por Filomeno, bartolomeu e Marcos (a 105); Constncio foi convencido por bonifcio (a 102); Gon-alo tambm foi atrado por Filomeno (a 104). enfim, houve

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    muito papo antes da ao, e foi preciso ter uma percepo mais ou menos clara de que no era possvel atingir a todos. alguns negros tentam diminuir sua culpa no inqurito afirmando que, apesar de saberem do plano, no participaram no espancamento da vtima.5 Mas o preto Tom, escravo fiel de Veludo, e o mara-nhense odorico, que se achava na loja para ser vendido, no pareciam suspeitar de nada, e ainda declararam que lutaram contra seus parceiros para livrarem o abastado comerciante portugus dos apuros nos quais se encontrava. e h ainda o crioulo Jacinto: ele disse

    que no soube de combinao alguma feita entre os pretos da casa de Veludo para matarem a este, porque se soubesse teria contado ao preto Tom para este contar ao senhor [a 105].

    no possvel saber quem est narrando aquilo que acha que realmente viu acontecer e quem est conscientemente tor-cendo os fatos no sentido de atingir determinados resultados. de qualquer forma, a histria vai se complicando, e de repente podemos nos deparar com armaes algumas absurdamen-te cmicas, outras dramticas que nos lanam no bojo mes-mo das tramas e experincias de personagens de um outro tempo. Veludo ficou com vrias contuses na cabea e pelo corpo, sendo seus ferimentos considerados graves pelos mdicos (a 99); no entanto, a prpria vtima quem contrata um advo-gado para defender seus agressores (a 109). na denncia, em 2 de abril de 1872, o promotor pblico havia enquadrado os escra-vos na lei de 10 de junho de 1835, o que os tornava sujeitos pena de morte caso fossem condenados no jri popular (a 109). isto , havia um risco de perda total para o dono da casa de comisses. Muitos contos de ris estavam em jogo, e Veludo age rpido: no dia 15 de abril, portanto quase um ms aps a agres-so, ele entra com uma petio na qual explica que dois ou trs escravos lhe haviam ferido levemente, e solicita um exame de sanidade para comprovar sua afirmao. os mdicos fizeram um novo exame, porm concluram que os ferimentos haviam

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    sido graves mesmo, sendo que o paciente ainda necessitava de uns dez dias para ficar recuperado (a 111).

    o juiz de direito encarregado da pronncia achou que a lei de 10 de junho de 1835 no era aplicvel, classificou o crime como ofensas fsicas graves e no como tentativa de morte, e julgou procedente a denncia apenas contra sete dos vinte acu-sados. Veludo deve ter ficado aliviado, e dias depois entrou com uma petio solicitando alvar de soltura para os rus que no haviam sido pronunciados. Pelo menos a maior parte do capital j no corria mais perigo. a estratgia da defesa para conseguir esse resultado foi simples: por um lado, houve uma certa or-questrao dos depoimentos do sumrio, em que negociantes vizinhos de Veludo e mais o caixeiro e o guarda-livros deste declararam unanimemente que no podiam dizer quais foram os pretos entre os acusados que tomaram parte no conflito (a 110); por outro lado, h a tentativa previsvel de destituir esses negros escravos de quaisquer resqucios de conscincia ou ra-cionalidade. o advogado de defesa argumenta que

    milita em seu favor mais de uma circunstncia, e especial-mente o embrutecimento de seus espritos e falta absoluta de educao; males que so provenientes de sua forada condio de escravos, e que, embotando-lhes a conscincia do mrito e do demrito, lhes diminui consideravelmente a responsabilidade moral e a imputabilidade [a 111].

    curioso notar que os escudeiros de Veludo no conse-guem tampouco uma articulao perfeita. apesar de ter perma-necido fiel a seu senhor durante todo o tempo declarando tanto no inqurito quanto no sumrio que havia lutado contra os seus companheiros de cativeiro , Tom acabou sendo uma pedra no sapato do advogado de defesa. o negro permaneceu fiel a seu senhor, mas dentro de sua prpria racionalidade. ao contrrio do que gostaria de ouvir o advogado contratado por Veludo, Tom afirma sempre que haviam sido muitos os agres-sores de seu senhor, que ficara cado no cho aps as pancadas

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    de bonifcio, Francisco e Marcos, sendo que j nessa ocasio havia um grande grupo de pretos todos armados de paus em redor de seu senhor. alm dos trs parceiros mencionados, o preto cita ainda os nomes de lcio e Constncio. o advogado procura contestar as declaraes de Tom utilizando-se da pr-pria hostilidade que os outros escravos pareciam demonstrar contra ele:

    e pelo curador foi contestado dizendo que no exata a informao, porque o informante declara que no tinha convivncia com seus parceiros que no gostavam dele.

    o preto sustentou suas declaraes (a 110). a ltima cena dessa histria ocorreu em 16 de julho de 1872.

    o jri popular entendeu que Francisco e Filomeno eram inocen-tes, e Veludo conseguiu assim salvar mais alguns de seus mil--ris. bonifcio, luiz, Marcos, Constncio e Joo de deus foram condenados a cem aoites, trazendo depois de os sofrer um ferro ao pescoo por seis meses. o crioulo bonifcio, um desses escravos de esprito embrutecido, como julgava o prprio ba-charel encarregado de sua defesa, admitiu abertamente no jri que dera as pancadas na vtima, utilizando para isso uma acha de lenha. ele explicou mais uma vez que havia surrado Veludo por-que este estava para lhe pegar. numa ltima tentativa de livrar seus companheiros dos ferros e aoites que estavam fatalmente por vir, bonifcio declarou ainda que as bordoadas haviam sido dadas por ele s, e que no viu mais ningum dar. dias depois, o negociante pediu a soltura dos dois escravos absolvidos, ane-xando os documentos que comprovavam que os ditos negros lhe haviam sido entregues para serem vendidos (a 112).

    FiCes do direiTo e da hisTria

    Meu primeiro encontro com a histria de Veludo e bonif-cio ocorreu no arquivo abafado e poeirento do Primeiro Tribu-

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    nal do Jri da cidade do rio de Janeiro. Posteriormente, pude ler a notcia sobre a sublevao liderada por bonifcio no Jornal do Commercio do dia 18 de maro de 1872. encontrei Veludo aci-dentalmente outras vezes, e acabei decidindo perseguir suas pe-gadas em fontes e momentos diversos. Como o leitor ver, o negociante nos acompanhar em todo o trajeto deste primeiro captulo. a opo em perseguir Veludo foi na verdade uma estra-tgia para ir ao encontro de outros bonifcios, pois fiquei in-teressado em entender melhor as atitudes e os sentimentos de escravos que estavam na iminncia de serem negociados.

    Para o leitor de hoje em dia, a possibilidade de homens e mulheres serem comprados e vendidos como uma outra merca-doria qualquer deve ser algo, no mnimo, difcil de conceber. a primeira sensao pode ser de simples repugnncia, passando em seguida para a denncia de um passado marcado por arbi-trariedades desse tipo. Com efeito, um pouco de intimidade com os arquivos da escravido revela de chofre ao pesquisador que ele est lidando com uma realidade social extremamente violenta: so encontros cotidianos com negros espancados e supliciados, com mes que tm seus filhos vendidos a outros senhores, com cativos que so ludibriados em seus constantes esforos para a obteno da liberdade, com escravos que tentam a fuga na esperana de conseguirem retornar sua terra natal. as histrias so muitas e seria preciso uma dose inacreditvel de insensibilidade e anestesia mental para no perceber a muito sofrimento. o mito do carter benevolente ou no violento da escravido no brasil j foi sobejamente demolido pela produo acadmica das dcadas de 1960 e 1970 e, no momento em que escrevo, no vejo no horizonte ningum minimamente compe-tente no assunto que queira argumentar o contrrio.

    a constatao da violncia na escravido um ponto de partida importante, mas a crena de que essa constatao tudo o que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou geran-do seus prprios mitos e imobilismos na produo historiogr-fica. Podemos, por exemplo, fazer uma breve histria de um dos mitos mais clebres da historiografia: a coisificao do escravo.