virtudes do bom profissional do texto

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Page 1: Virtudes Do Bom Profissional Do Texto

As virtudes do profissional do texto

Desde que ingressei na carreira de revisor de textos, fiz uma série de cursos, li diversos

livros direta ou indiretamente relacionados à área e acumulei alguma experiência. Ainda

assim, só muito recentemente encontrei, com grata surpresa, um livro que abordava,

mesmo que de passagem, um assunto esquecido, quase antiquado. Valery Larbaud, em

seu Sob a Invocação de São Jerônimo,1 fala a respeito das virtudes do tradutor (muitas

das quais se aplicam igualmente a preparadores e revisores de textos). Em parte baseado

em Larbaud, em parte inspirado em minha própria experiência, passo a elencar as

virtudes do bom profissional do texto. Antes, porém, cito o filósofo Mortimer Adler,

expondo a noção aristotélica de virtude:

Segundo Aristóteles, a virtude moral é o hábito de fazer as escolhas certas. Fazer uma ou duas escolhas certas dentre muitas escolhas erradas não basta. Se as escolhas erradas são em número muito maior do que as escolhas certas, você persistirá na direção errada – irá para longe da felicidade não para perto dela. É por isso que Aristóteles enfatiza a ideia de hábito.Você sabe como os hábitos se criam. Para criar o hábito de ser pontual nos seus compromissos, você tem de tentar ser pontual repetidas vezes. Gradualmente se cria o hábito da pontualidade. Uma vez criado, você tem uma disposição firme e forte de ser pontual ao chegar onde prometeu chegar. Quanto mais forte o hábito, mais fácil agir daquele jeito, e mais difícil perdê-lo ou agir de maneira oposta.Quando você cria um hábito e ele está bem desenvolvido, sente prazer em fazer aquilo que tem o hábito de fazer porque o faz com facilidade – quase sem esforço. Você sente que é doloroso agir de modo contrário aos seus hábitos.Aquilo que acabo de dizer vale para os bons e para os maus hábitos. Se você criou o hábito de dormir demais, é fácil e agradável desligar o despertador e continuar dormindo. É difícil e doloroso acordar na hora. Por isso, se você criou o hábito de se permitir entregar-se a certos prazeres ou de evitar certas dores, é difícil abandoná-lo.2

Tendo em mente essa compreensão, elenco, a seguir, as principais virtudes, e seus

vícios correspondentes, exemplificando de que maneira se mostram ao longo do

trabalho.

1. Humildade x Orgulho

Já vi, inúmeras vezes, o revisor ser comparado a um goleiro – execrado quando falha,

esquecido quando brilha. Por diversas razões, não considero a metáfora válida. Para

mim, o revisor de textos se aproxima mais da figura de um contrarregra – alguém cujo

trabalho é garantir, com a máxima discrição possível, que tudo funcionará bem para que

o outro brilhe.

1 Valery Larbaud, Sob a Invocação de São Jerônimo: Ensaios sobre a Arte e Técnicas de Tradução. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo, Editora Mandarim, 2001.

2 Mortimer J. Adler, Aristóteles para Todos. Trad. Pedro Sette-Camara. São Paulo, Editora É, 2010, p. 108-09. (Coleção Educação Clássica)

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Aliás, um contrarregra que, por alguma razão, se julgue digno dos holofotes está

fugindo à sua função. Pode até ser que tenha seu talento e o exiba noutras

oportunidades; mas, enquanto estiver como contrarregra, ele é contrarregra!

O mesmo vale para o revisor. Um pressuposto básico, fundamental, da atividade do

revisor é que este revisa textos alheios. Isso implica que o revisor, enquanto revisor:

a) Renuncia seu próprio estilo, suas preferências, seu gosto pessoal. Se as escolhas

do autor/tradutor estão corretas, coerentes, aplicadas sistematicamente,

adequadas ao tom do texto, não cabe ao preparador/revisor modificá-las.

(Voltaremos a este assunto adiante)

b) Presume que o tradutor é alguém suficientemente qualificado para fazer o

serviço de tradução. Se esta presunção vai se sustentar ao longo do trabalho é

outra história. Em geral, parta-se desta presunção e procure-se imaginar por que

o tradutor fez determinadas escolhas. A história nos diz que o surgimento da

gramática e do ofício de revisores está relacionado a certa reverência diante dos

textos escritos. O revisor é um humilde zelador do texto alheio e só deve

interferir quando for capaz de justificar, de modo plausível, cada uma de suas

intervenções.

c) Intervém no texto criteriosamente. Na minha segunda semana de trabalho como

revisor, fiz alterações no texto de um dos diretores de uma grande empresa. Este

deu um chilique, perguntando quem tinha mexido no texto dele. Muito

cautelosamente, mas com firmeza, tive de explicar a razão de cada uma das

intervenções que fiz. Certamente, quem mais saiu ganhando com essa

experiência fui eu. Daí saí com o preceito: Não intervir arbitrariamente, mas

criteriosamente.

2. Diligência x Negligência

Se há um vício mortal ao revisor de textos, este é a negligência, a displicência, a

presunção de que ninguém vai conferir a qualidade do trabalho. Ainda que demore, em

algum momento os problemas virão à tona e o profissional ficará marcado. Por

exemplo: todos os colaboradores recebem o manual de padronização e estilo. O manual

não pretende ser exaustivo nem uma camisa de força; mas contém critérios

convencionais que DEVEM ser aplicados. Se o manual diz que o número da remissão à

nota de rodapé deve ficar depois do sinal de pontuação, não há nada que justifique que

este apareça antes! Se o manual prescreve que, depois do título de um livro citado em

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referência vem ponto final, não há razão para que conste vírgula. E assim por diante.

Muito curiosamente, a maior parte das padronizações de notas de rodapé precisa ser

refeita nas provas, porque o preparador não as fez adequadamente! Isso tem nome:

negligência! São exemplos de negligência também erros de ortografia gritantes (que até

o revisor do Word pode pegar), dúvidas que podem ser resolvidas com uma simples

consulta ao Google, etc.

O revisor diligente confere tudo, consulta tudo, não se furta à pesquisa, tira dúvidas,

confere, relê...

3. Prudência x temeridade

A partir daqui, as virtudes passam a aproximar-se umas das outras. Já dissemos que o

revisor humilde tenta inferir os critérios do autor/tradutor e que o revisor diligente

pesquisa, consulta, tira dúvidas. Pois bem, o próximo passo é que o revisor prudente

não intervém quando têm dúvida, não repadroniza injustificadamente, não mexe no

texto à revelia daquele que assina o texto. Se, num romance, o tradutor optou por manter

as marcações de diálogo com aspas, mantenham-se; se optou por usar travessões,

conservem-se. Se, num texto ensaístico, o tradutor optou por usar as segundas pessoas,

que assim seja; se ocorrem termos pouco usuais, por que vulgarizá-los? (Voltaremos a

essas questões de texto adiante; por ora, atente apenas para o fato de que a prudência

recomenda pesquisa, perguntas, esclarecimentos, e somente então permite que se façam

as intervenções).

4. Segurança x insegurança

De maneira nenhuma nossa intenção é tolher a liberdade do preparador/revisor.

Queremos apenas que nosso corpo de colaboradores seja formado por profissionais

seguros do que fazem. Repetidas vezes, preparadores deixam comentários e revisores de

prova fazem marcações a lápis com questões que poderiam facilmente ser resolvidas

(com um pouquinho mais de diligência). Estar seguro de si e de seu trabalho significa

apenas que se fez o trabalho com diligência e se é capaz de justificar as decisões

tomadas.

5. Responsabilidade x irresponsabilidade

Espera-se que os profissionais responsáveis assumam as consequências de seus atos,

para o bem e para o mal. Caso algum padrão não tenha sido aplicado, o colaborador

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deve estar disposto a refazer imediatamente o que fez de modo incompleto ou

equivocado; caso se comprometa a entregar o trabalho em determinado prazo, espera-se

que o cumpra ou, ao menos, avise a editora com alguma antecedência que não

conseguirá cumpri-lo. Sumir é atitude irresponsável. Não responder e-mails é atitude

irresponsável. Não atender o telefone é atitude irresponsável.

Não cabe aqui tratar deste assunto, mas abordo-o apenas de passagem: em geral, o

profissional já sabe quanto vai receber por determinado trabalho no momento em que o

aceita. Alegar que fez o trabalho proporcionalmente ao valor recebido não é apenas

irresponsabilidade: é ser desonesto! Se aceitou fazer o trabalho, faça-o com

profissionalismo e responsabilidade!