vértebo - da carne se faz verbo # 1
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Vértebo como convergência entre palavra e corpo, que se rever(te)beram. Por meio do verbo, explicitar a vértebra; verter em texto a fibra, versar sobre vertigens, verves, vértices – sobre o corpo, convertido em discurso verbal, que também é corpo. Verbo(hemo)rragia.TRANSCRIPT
ÍNDICE 04
ContramãoConversa com Mariana Lemos
>>MatériaÉ a seção mais jornalística da Vértebo. Trará notícias sobre os elementos que constituem a cena das artes do corpo, sejam eles políticos ou culturais, atuais ou antigos. Esses eventos e acontecimentos fazem parte da construção das artes do corpo, sempre em movimento. São, portanto, a sua matéria constitutiva – e a nossa também, já que reverberam em nossos
próprios corpos.
24Entre palavras e modos de pensarSobre os primeiros trabalhos de fim de
curso da graduação em Comunicação das
Artes do Corpo.
>>CiCatriZNesta seção da Vértebo, pontuaremos como as memórias do curso estão sempre presentes; cicatrizes que foram esquecidas serão, aqui, lembradas e discutidas. Porque só esquecendo é que se lembra.
27No SacreComentário sobre No Sacre, de Ismael Ivo.
>>(iN)DiSGEStÃOHá muitas maneiras de perceber o momento; recortaremos aqui algumas delas. A cada edição teremos este espaço dedicado a um comentário (in)digesto sobre um trabalho artístico.
29Qual é, afinal, essa minoria para quem se produz teatro? João Apolinário, janeiro de 1971
>>rUGaSNesta seção, daremos vazão pro que pode ter gerado furor há duas décadas atrás ou há dois séculos, localizando manifestações críticas e artísticas em diversos momentos do espaço-tempo, mas também questionando a lógica linear em busca de uma história que se faz no devir. Quais serão os textos e acontecimentos que entraram para
uma das possíveis História(s) das artes do corpo?
32Mas como é que faz pra sair da ilha?Manifestações e Dança se Move
>>BaBaTudo o que não coube...
35>>ViSÂO PEriFÈriCaProposta de escolha e organização de trabalhos artísticos que contribuam com a discussão da linha editorial de cada edição da revista. Considerando visão periférica como a “propriedade da visão de perceber o que está fora do foco principal de visão”, a Vértebo lança-se no desafio de construir discursos que articulem algumas manifestações de Artes do Corpo, trazendo à tona questões políticas e poéticas que estabeleçam relações entre diversos modos de operar artisticamente, em diferentes contextos históricos.
08Good Morning Mr. OrwellSobre Nam June Paik
>>FaCESA partir de entrevistas, esta seção consiste em apresentar diferentes pontos de vista acerca de uma mesma trajetória artística. A revista parte do princípio de que modos de percepção com naturezas distintas permitem não uma conclusão, mas, ao contrário, testemunham a impossibilidade do esgotamento da complexidade do que se observa. A busca não da identidade de uma face, mas sim da pluralidade das faces de um fazer artístico, é um dos caminhos
pelo qual a Vértebo pretende caminhar.
14Combustão RemixSheila Ribeiro
>>artiCULaÇÕESArticulações são conexões entre perspectivas, por meio de um aspecto em comum. Nesse sentido, convidados terão, aqui, espaço para expor pontos de vista acerca de assuntos que se relacionem com
a linha editorial de cada número.
Concebida ao longo de 2013, a revista Vértebo enfim vê materializada a sua primeira
edição. A partir da imagem do corpo que se excede em palavra, propomos verter em
texto a fibra, a carne em verbo. Esperamos suscitar discussões questionadoras, híbridas
e produtoras de conhecimento, e dar luz à produção teórico-prática – verbo-vertebral –
que muitas vezes não tem espaço de disseminação.
Concluir a primeira edição da Vértebo é, para nós, um motivo de grande alegria e imensa
responsabilidade. Uma vez que o compromisso da revista é difundir as artes do corpo
como produção de conhecimento, cada publicação seguirá um fio condutor que justifique
a sua existência. A linha editorial que organiza esta primeira composição de textos não
poderia ser outra: em meio às regras mercadológicas e políticoculturais das quais as artes
estão cercadas, o que ainda é possível produzir artisticamente? O que as artes do corpo
podem, no sentido de ter capacidade de, em contextos pouco propícios à sua existência?
Sem o compromisso de responder tais questões, a Vértebo transita por diversos pontos de
vista, em diferentes períodos históricos, com o intuito de estabelecer um olhar crítico para
o contexto em que pretende atuar – a cena profissional de dança, teatro e performance.
Nesse sentido, escolhemos textos que exprimissem concepções das artes do corpo não
apenas calcadas em si mesmas, mas atentas aos seus contextos políticos, sociais e, é claro,
artísticos. Assim, em “Matéria”, entramos em contato com a artista Mariana Lemos e o
centro lisboeta c.e.m., que produzem criações contínuas de olhos abertos às questões
existentes no centro histórico de Lisboa. Em “Faces”, presenciamos a convergência de
opiniões relativas ao coreano Nam June Paik, tido como o fundador da videoarte e,
portanto, de novas potencialidades artísticas. O texto performático de Sheila Ribeiro
em “Articulações” – mantido em sua formatação original justamente por seu caráter
escancarado de ação performática – expõe as inquietações do fazer artístico da performer,
sempre alerta àquilo que a rodeia, enquanto o texto crítico histórico de João Apolinário,
em “Rugas”, questiona o poder de alcance do teatro na década de 1970, trazendo à tona a
discussão sobre a “maioria” marginalizada na cultura. “Cicatriz” e “(In)digestão” são seções
interessantes àqueles que não têm tanta intimidade com o curso de Comunicação das
Artes do Corpo e com a sua produção teórico-prática. O primeiro resgata as primeiras
monografias e o primeiro projeto de cena resultantes do curso; o segundo apresenta um
ensaio crítico produzido em sala de aula, visando destacar o momento em que a ação
política do corpo é encoberta pelo prazer estético; ambos mostram o lugar de resistência
às leis do mercado das artes que a universidade pode possivelmente ocupar. Por fim,
“Baba” traz um questionamento importante das interseções entre a mobilização política
da dança em São Paulo e as manifestações ocorridas em junho. São conteúdos que nos
lembram constantemente de que a arte não está isolada de seus contextos, sendo, ao
contrário, definida por eles – o que, por sua vez, implica numa responsabilidade artística
por parte daqueles que a produzem, fato por vezes esquecido...
Importante dizer que começos são difíceis, porque envolvem acordos, estratégias e
abordagens inéditas. Aqui, na Vértebo, isso significou cortes, seções não publicadas, ideias
descartadas. Ainda assim, por crermos na revista como um espaço de possibilidades
para trocas entre artistas, teóricos e interessados em dizer-criar-dançar-atuar-cantar-
performar com seus corpos-vértebo, não importa tanto se as expectativas iniciais serão
atendidas, mas sim que se crie. No princípio era o verbo, e o verbo se fez carne. E a carne
se faz verbo, enquanto toca e cria afetos de forma arteira, fuleira, estrangeira, sem eira,
nem beira, de qualquer maneira.
Equipe editorial
Conversa com Mariana Lemos
Fernanda Perniciotti, graduada em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e mestranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP).
Juliana Miasso, graduada em Letras (USP-SP) e interessada pelas artes do corpo.
Acredito que quando nos movemos pela via da arte, o intuito não é salvar ou resolver
a vida das pessoas. No entanto, sei que a presença em continuidade de um corpo
em estado de dança, em constante escuta e criação, altera o contexto, gerando atmosferas
inesperadas, reconfigurando a paisagem coletiva, transformando-a e sendo com ela
permanentemente transformada. Acredito na vivência de uma arte que transforma por poder
tocar e ser tocada, que começa por espoletar a democratização dos sentidos, do olhar, da
presença... Que se instala pelo tempo que insistimos em permanecer dançando ali, no
quotidiano de um lugar da cidade. [...] Se a arte não for dia a dia em criação e movimento em meio à vida... Se a arte
for apenas quando se pede licença pra
acontecer, desisto.
Mariana Lemos
CoNtramão No final de 2013, Mariana
Lemos, dançarina brasileira radicada em Lisboa, apresentou o solo CRU no Tucarena. Mariana, licenciada em dança pela Unicamp e mestre em pedagogia da dança pela Escola Superior de Dança de Lisboa, é, desde 2004, professora do c.e.m. (centro em movimento), também em Lisboa. CRU foi criado em parceria com Sofia Neuparth, diretora do c.e.m., como resultado da participação de Mariana no Projecto Ir, que desde 2005 acompanha mulheres em contexto de prostituição de rua em Lisboa.
Apesar de ligada à situação real dessas mulheres, Mariana faz questão de ressaltar que não se trata de uma dança criada sobre elas, e sim junto com elas; um processo de criação, portanto, que nega a pré-definição de um tema que guie a composição coreográfica. Trata-se, assim, de uma dança pensada não como representação, no sentido comum da palavra – o que, segundo Mariana, seria completamente redundante e desnecessário: as mulheres em contexto de prostituição já existem, e a convivência artística com elas não valeria a pena se não buscasse resultados outros do que normalmente seria uma representação temática, gesto-literal –, e não como salvação ou redenção dessas mulheres, mas como troca, a partir da vivência com elas.
Matéria4 Vértebo 01
“Como o meu corpo de bailarina elabora viver a cidade de Lisboa a partir das prostitutas? Como o meu corpo de bailarina elabora em gestos as histórias que eu acompanho?”
Saiu frustrado do Tucarena quem imaginou que assistiria a movimentos estereotipados de prostitutas. A convivência contínua com essas mulheres visava à criação de frases gestuais (ou poemas, como prefere Sofia) próprias ao corpo de Mariana, já embebido do contexto de prostituição que ela por tanto tempo acompanhou.
“A gente trabalha no corpo a emergência do gesto, e isso não é um assunto, mas uma forma de trabalhar, de viver o corpo. Fisicalizar a pergunta, isso pra mim também é teoria.”
Nesse sentido, é bastante curiosa a impressão que a artista teve da apresentação em São Paulo. Ao voltar para Lisboa, ela se deu conta de que o deslocamento de espaço-tempo (do bar da Dadá, um dos locais lisboetas em que se apresentava, para o Tucarena) ressignificou o seu trabalho. E é provável que isso tenha a ver com o distanciamento do contexto original da criação, que muitas vezes impedia a dança de acontecer (Mariana inclusive cita esses momentos de não acontecimento, não tão
de sua estrutura. Ou seja, os artistas que lá trabalham não criam a partir de uma demanda controlada ou pautada pelo governo, e sobrevivem com dificuldades profissionais. Apesar da situação financeira em Lisboa não ser nada propícia para a continuidade dos trabalhos artísticos, os projetos do c.e.m. contam, sim, com planejamento de longo prazo.
“Não ter dinheiro pra criar, pesquisar, por um lado, é péssimo, porque o dinheiro público não está indo para a cultura, mas, por outro lado, abre no artista, no pesquisador um desejo real de fazer. Porque você não precisa cumprir um prazo, uma demanda, mas passa a lidar com as questões emergentes. A criação é urgente. Isso muda tudo, porque a continuidade é parte do processo.”
A relação entre arte e Estado parece ser historicamente complicada. Todas as burocracias que permeiam um financiamento público não condizem, na maioria das vezes, com a sutileza e a velocidade de questões emergentes da criação. A institucionalização, tal como tem se apresentado no universo artístico, não abre espaço para os questionamentos contínuos com os quais contam uma pesquisa.
“Dúvida que não cessa, em um mundo de respostas prontas.”
Não é possível dizer que os artistas que conseguem financiamento público não possuem um desejo real do fazer artístico, mas acompanhar a atual produção paulistana nos convoca a refletir: de fato existe a emergência do gesto ou a dança está pautada pela demanda proposta nos editais? Possivelmente, nem uma coisa nem outra, ou, as duas ao mesmo tempo. Os polos de resistência existem; alguns criadores insistem em respeitar a temporalidade da criação em seus trabalhos artísticos mesmo com o financiamento público, mas o que talvez não seja tão simples de encontrar seja uma estrutura de construção conjunta, uma mobilização artística que se consolida como, por exemplo, o c.e.m. em Portugal. Apesar de já ter virado um jargão a nomenclatura “artista pesquisador”, ainda não existe em São Paulo um centro de investigação, principalmente
um que, como é o perfil do c.e.m., tem como mote de criação a relação com a cidade. Talvez seja da natureza do tipo de políticas culturais que estão consolidadas a individualidade do processo de trabalho, a dificuldade em aproximar, refletir, construir e criar com o outro.
Quando Mariana propõe “a dança como documentação do corpo na experiência da cidade”, declara, no mínimo, um desejo de encontrar na criação essas zonas de compartilhamento com a cidade e os cidadãos. Importante dizer que não se trata de um olhar assistencialista, mas uma proposta de discutir no corpo essa cidade, nas palavras de Mariana, ser um “corpo na experiência da cidade”.
Algumas dúvidas surgem com intensidade: existe uma relação possível entre arte e financiamento público? Quando se fala em políticas públicas culturais, o que exatamente está se discutindo? Como repensar esses modelos sem abrir mão do investimento do governo em políticas culturais? Afinal, abrir mão da elaboração de políticas públicas é dificultar a difusão da formação artística, retirar do artista a chance de ter uma profissão regularizada, com um mínimo de garantias, além de abstrair do Estado o seu dever de garantir a distribuição dos bens culturais, da informação.
Talvez seja o momento de olhar para as políticas públicas como um processo artístico, em que os artistas e a arte não se encaixem no que já existe, mas proponham, criativamente, outros modos de fazer e pensar política. Possivelmente, não existe ninguém melhor que os próprios artistas para entender a política na emergência do fazer artístico. A institucionalização parece sim estar confortável e certa de sua infinidade em uma torre de marfim, mas encontrar com algumas utopias pode ser um processo atrevido na busca de outras formas de políticas públicas culturais.
raros assim) – apesar de, em algum nível, ela sempre acontecer. Ou seja, CRU não necessariamente está ligado (de maneira direta, visível) às prostitutas de Lisboa, é algo outro; é o corpo experienciando a convivência com essas mulheres, e não mostrando-as – talvez venha daí a necessidade de tornar longínquo esse ambiente primeiro que muitas vezes deixa o trabalho enevoado...
Tem-se aí uma outra perspectiva da dança, e da arte em geral; de como ela pode se colocar no mundo e se relacionar ao mundo, já que, no fim das contas, um não se separa do outro (apesar de muitas vezes ter-se a impressão de que grande parte da dança contemporânea, quando pensada a partir de um contexto mais amplo, que é a lógica atual do mundo, se fecha em uma torre de marfim...).
Com efeito, o trabalho de escuta do entorno é algo característico do c.e.m. Mariana conta como se deu o início desse olhar à cidade, do olhar a Lisboa. Há alguns muitos anos, o c.e.m. teve que mudar de sede, passando a ocupar um espaço no centro histórico de Lisboa. A mudança, já refletindo muito a proposta da instituição, foi realizada pelos próprios alunos e funcionários, que fizeram a pé o percurso até o novo espaço, levando nas costas os móveis e “até o piso do chão!”. A caminhada trouxe consigo uma nova percepção da cidade, e aquilo que esta suscitava passou a ser ouvido (e movido). A partir daí, o que surge nas pesquisas são as questões que estão na cidade, no mundo, e não um tema pré-estabelecido que vá guiar o processo – como acontece com CRU.
“A dança sendo a documentação do corpo na experiência da cidade.”
A artista saiu do Brasil, especificamente de São Paulo, há dez anos, e encontrou no c.e.m. um centro de investigação. Quando decidiu se mudar da capital paulista, o contexto político da cidade era muito diferente do atual, pois, há oito anos, o Fomento à Dança modificou completamente o perfil das políticas públicas para a área, e, consequentemente, da própria produção artística. Já em Lisboa, o projeto do c.e.m. não possui financiamento público e só arrecada investimento para cobrir 60%
6 Vértebo 01 7Matéria
A arte é pura
fraude. Você só precisa
fazer algo que
ninguém tenha
feito antes.
Nam June Paik
[Sobre Nam June Paik]
Lucio agra: “O Paik não é alguém que eu tivesse descoberto imediatamente. Por exemplo, eu sabia da existência do [John] Cage, mais do que a do Paik. Eu soube mais do mestre do que do discípulo, porque Paik estudou com Cage. Tem um vídeo dele [Paik] com a Charlotte Moorman, em que eles tocam uma peça do Cage, ela quebra um vidro, aí toca uma nota do violoncelo, depois ele se deita, e ela estica uma corda de violoncelo nele, e toca. Essas coisas que eram uma sequência, como o Cage fez no Water Music. Quer dizer, essa música performática... O Paik chega para mim, também, através das bienais, como a 17ª, onde se veria o Fluxus, as instalações do Nam June Paik. Eu vi uma instalação dele no Sesc Pompeia, dezenas de monitores espalhados em um jardim. Aí você vê ele fazendo corpos com monitores, instalações com monitores velhos e novos, milhares de coisas, naquele negócio da acumulação. Então, eu acho que ele foi muito importante para tornar possível e aceitável essa ideia, de que eu gosto muito, que é a da acumulação, em que existe toda uma área da produção artística, nas artes visuais, no teatro, na dança, na performance, que tem a ver com essa história. É mais ou menos como você acumular um monte de lixo, mas não é lixo, porque tem uma seletividade empregada naquilo ali, que dá àquilo uma configuração especial. Tem um trabalho do Cildo Meireles que é uma torre de rádios, que eu acho que é totalmente influenciado pelo Nam June Paik. Eu diria que o Paik era disciplinadamente
Good morning mr. orwell
caótico. Tudo que ele estava fazendo já era performance. Quando se dá a ligação com o Fluxus, que representa justamente artistas inquietos, que não estavam querendo se manter em uma única linguagem, o trabalho do Paik vai ter um pouco de música, um pouco de artes visuais, porque ele mesmo não tinha um lugar consolidado, esse “lugar para as coisas que não tem lugar”, que hoje tem o nome de performance. Meu olhar pra ele é o dele ser o godfather da performance. Ele inventou o jeito de usar a videoarte para ser um discurso que interviesse no mundo artístico, porque ao colocar um ímã em cima da tela de televisão que está transmitindo um programa com o [Marshall] McLuhan, ele torna esse teórico algo perceptível fisicamente, tatilmente.”
Otávio Donasci: “Paik foi o fundador da videoarte, da videoperformance, da videoescultura... Tudo que tem vídeo na frente ele inaugurou. Ele foi um cara de música, de eletroacústica, compositor, depois artista plástico, e como pesquisador de eletrônica ele fez o sintetizador de vídeo (junto com o engenheiro eletrônico Shuya Abe). Trabalhou com o grupo Fluxus com uma não arte. Uma dessacralização da arte. Quando ele começou a usar as telecomunicações como arte, e fez uma rede mundial, em um evento que durou 24 horas no mundo inteiro (Good Morning Mr. Orwell), mostrou outro aspecto de sua arte: uma meta-arte em que não só ele, mas muitos artistas e o público participavam de modo global. Foi um prenúncio de uma arte global interativa. Trabalhou com a não arte, decadência, quebra da inocência, a arte degenerada. Quando ele começou a usar as telecomunicações, e fez uma rede mundial, um evento 24 horas no mundo inteiro, que é um outro aspecto dele, isso mudou a
sua cabeça e aí começou a pensar no que chamam de globalização. Ele fazia quadros em movimento, transpondo conceitos da música para o vídeo, trabalhando com a plasticidade e a materialidade da imagem em movimento, como nas artes visuais. Por incrível que pareça, eu estou mais perto do Paik inventor, professor Pardal, que faz traquitana. Eles [os curadores] citam [como artistas que fazem videoarte paikiana] o Guto Lacaz, o Tadeu [Jungle], o [José Roberto] Aguilar, que tem algumas instalações, mas é bem referencial. O Paik não influenciou nada na minha obra, porque não o conhecia na época. Mas depois ele me ajudou a valorizar aspectos da minha obra que antes eu não via. Por exemplo, eu penso o vídeo colocado no corpo, como rosto (a videocriatura), já o Paik nunca fez isso. Ele até colocou vídeo nos seios da Charlotte [Moorman], e um aparelho de três polegadas no pênis de um ator. Mas o que ele fazia eram instalações,
assemblages com imagens e televisores, muitas vezes humaniformes, mas sem criar um ser híbrido como eu fazia. Tinha um viés de humor, debochado, não se levava muito a sério. Falava um péssimo inglês. Suas entrevistas em inglês vinham com legendas em inglês. Ele era um coreano gozador, usava uns chapéus esquisitos, dava umas entrevistas debochando da arte. Por isso gostei dele.”
Meu olhar pra ele é o dele ser o godfather da performance.
FaCES10 Vértebo 01 11Faces
Lucio agra, Otávio Donasci e Chris Mello são
professores da
linha de formação
em Performance
do curso de
Comunicação das
Artes do Corpo
(PUC-SP).
Christine Mello: “O Paik é um artista dos deslocamentos. Deslocamentos entre oriente e ocidente, entre música, performance, dança, teatro e vídeo, entre cultura erudita e popular. Deslocou o eixo das imagens e sons da TV com um ímã e criou a videoarte. Ao mesmo tempo em que trouxe uma visão da Coréia, seu país natal, ele se colocava no mundo entre visões outras, transmutadas entre Ásia, Europa e América, entre Tóquio, Düsseldorf e Nova York, sendo ele mesmo um nó de rede, uma verdadeira aldeia global. Algo próximo ao que denominamos hoje por “glocal” (global/local). Ele nasceu em 1932 e faleceu em 2006. Enfrentou de modo agudo a sociedade midiática, deslocando
percepções do que nela era establishment, com gestos críticos, poéticos e cheios de humor. Pensou nos atravessamentos midiáticos do corpo em tempo presente. Não foi em vão que trabalhou práticas performativas por meio da televisão, das transmissões ao vivo e dos satélites. O Paik surge numa época pós-Segunda Guerra, e, nesse sentido, o corpo que se constitui em seus trabalhos traz muitos deslocamentos. É um corpo informe, com marcas dos trânsitos e das violências da(s) guerra(s). Inicialmente, é um corpo desconstruído pela música, pela performance, pelo filme. É quando descobre o vídeo e passa a realizar aquilo que denomina “minha TV distorcida”. Produziu
Entrevistas realizadas por Marcelo
Fernandes, cantor, professor de Danceability
e graduando em Comunicação das artes do
Corpo (PUC-SP).
grandes diálogos com John Cage, Merce Cunningham, Living Theater, Joseph Beuys e a comunidade de artistas que integravam o Fluxus nos anos 1960-1970. Ele apresenta a si mesmo como um artista-xamã, que sintetiza arte e tecnologia para exorcizar o consumo de massa. Tem um caso curioso, quando no Festival Videobrasil foi apresentado seu trabalho Tv-Buddha com a figura do “preto velho”, foi muito divertido. Ele participa no Brasil, nos anos 1970-1980, de mostras e Bienais de São Paulo, e isso influencia muito uma geração de videoartistas como o Tadeu Jungle, o Walter Silveira, o Otávio Donasci, entre muitos outros. Sobre artistas com viés paikiano, eu penso nas vanguardas
nova-iorquinas, na Laurie Anderson, no Charles Atlas, no Talking Heads, no Stephen Vitiello (que é um grande parceiro do Eder Santos), na MTV, na Pipilotti Rist, no Corpos Informáticos, na Bia Medeiros, no Milton Marques. Mas o mundo todo quando faz vídeo hoje é um pouco Paik.”
Recomendamos: Programa Zoom, da TV Cultura, em homenagem a Nam June Paik (2006)
12 Vértebo 01 13Faces
Combustão remix
tiago Lima, Sheila ribeiro, Joao Milet Meirelles -
CHaMaNDO ELa é um jeito de ver e mostrar a
moda através da potência e do perigo. um hub de
delícias que chama pra moda aquela coisa que não
dá pra falar o que é. moda – dança – arquitetura –
tecnologia – aldeia e...
Fui convidada pela professora Helena Katz (minha orientadora no doutorado e minha amiga) pra falar do ATO PERFORMÁTICO de meu colaborador e amigo Salvatore Iaconesi, em sua aula na PUC-SP. Ele foi diagnosticado com um câncer no cérebro e, como na instituição médica “paciente” e “pessoa” são duas coisas distintas, ele achou um jeito de continuar sendo uma pessoa. Hackeou os resultados digitais de seu exame – que para ele eram inacessíveis –, colocou o resultado na web, criou um site e pediu cura pra outras pessoas. A cura que ele queria era de todo tipo possível e imaginável: curas artísticas, curas de variados tipos de visão médica, curas de amizade, esotéricas, digitais, religiosas… O importante é que fosse pra ele e entre eles (rEDE): criar sentidos, criar CURA. Salvatore (por necessidade estética? política? digital? artística?) conceituou design e arte do corpo e explodiu um paradigma biopolítico.
CHamaNDo ELa DEsDE 2001
Evaporando e remixando dados para a revista Vértebo...
Recusei o convite da Helena por impulso, já que eu tinha um editorial do CHAMANDO ELA pra fazer no mesmo momento. Aliás, as imagens que o CHAMANDO ELA iria criar naquele dia eram, justamente, uma cura performática pro Salvatore. Fiquei triste. Era tão importante…
Se um smartphone pode telefonar e ver um mapa ao mesmo tempo, sendo um EUS de identidades múltiplas e parciais (como diz o meu marido e amor Massimo Canevacci – que é também antropólogo), é possível falar sobre a Cura do Salvatore, participar da Cura pro mesmo Salvatore e fazer o editorial do CHAMANDO ELA: ubiquidade! João (Meirelles) e Tiago (Lima), os fotógrafos, meus amigos, levaram iluminação profissional de estúdio. Helena e estudantes estavam lá. O corpo que se criou é o conflito de todos esses dados e tensões.
É uma honra e agradeço o convite para a 1ª edição desta revista autônoma feita por artistas e estudantes das artes do corpo da PUC-SP – pra mim, é uma responsabilidade com frisson.
Perguntei aqui pros organizadores o que queriam de mim ou comigo; a resposta chega em três parágrafos feitos de palavras fortes, de peso:
- os palavrões: arte-artístico-artista, corpo (e artes do corpo), político, projeto, possibilidade, poética, espaço, mundo, sentido, eixo, troca, formato, mídia, digital, cultura, economia, sociedade;- as com ão: comunicação, ocupação, questão, relação, configuração;- as com ento: comprometimento, questionamento, deslocamento.
Decidi acolher esse desafio e dialogar com o que me foi pedido deslizando por eixos do meu trabalho. Compartilhando esses assuntos com vocês…
Sou uma artista fascinada por fenômenos. Gosto de entender a configuração das e nas coisas…
Sheila: -“Vértebo? O que é?”Revista: -“Vértebo – Da carne se faz verbo – porque a ideia é que o mote da discussão artística seja sempre o corpo.”Sheila: -“Uma metáfora teológica? Tem relação por estar em uma universidade católica?”
Meu trabalho em dança é um processo para aprender a olhar e ver – isso não significa que eu consiga. Duvidar do que entendeu é mais do que entender o que viu. Eu trabalho assim. No meu processo, achar que as coisas, fenômenos do mundo, mudanças e posições “são imbecis” significaria passar ao lado deles – por exemplo, ter 5 mil amigos no Facebook não é imbecil, é um fenômeno.
Uma maneira pra estar nas coisas do mundo é não julgá-las, mas penetrá-las e ser penetrada por elas. O que me interessa é testemunhar e criar testemunhas de processos de mudança, de possíveis outros.
Imagem: Chamando Ela, La cura open source di
Salvatore Iaconesi | São Paulo
sala de aula performance arte emoção política cultura
digital vontade de viver, PUC-SP
Imagem: Chamando
Ela, Bombom | Cabula,
Salvador
Imagem: Chamando Ela, La cura open source di
Salvatore Iaconesi | PUC, São Paulo
Eu e Helena – performando, fazendo cura.
Salvatore: http://opensourcecureforcancer.com/
Folha de São Paulo: http://migre.me/irfSW
Matéria sobre o evento na PUC TV: http://migre.me/irfZx
artiCULaÇÕES14 Vértebo 01
Imagem: Chamando Ela,
Seguranças | São Paulo
Chamando Ela por Helena Katz:
a(s) DaNCa(s) DO(s) SUJEitO(s) iNDEXaDO(s)
http://migre.me/ito1b
Chamando Ela por Massimo Canevacci:
DiSPLaCiNG attraCtiONS
http://migre.me/ito1P
chamandoela.com
Exercício contra a mesmice (O Estado de São Paulo,
15/abril/2013)
http://migre.me/itC10
receitas e Dúvidas por Helena Katz (site da autora)
http://migre.me/itC2p
assista ao vídeo em: http://migre.me/itCmz
Imagem: Chamando
Ela, Grafiteiro Gallerista
Policial Jornalista
São Paulo
Imagem: Chamando Ela,
Devices | São Paulo
Imagens:
Joa Hiscott
Imagem: Chamando
Ela, Tenondé-Porã FC |
Parelheiros, São Paulo
O senso crítico é, pra mim, estar na possibilidade. Do quê? Não sei…
Nas várias entrelinhas de toda e qualquer coisa que possa se tornar possível.
Como artista do corpo, perpassar, brincar, deslocar, desviar, virar, assimilar, criar amizades e encontros e todo o resto que eu não sei.
“Sos una artista que toma riesgos en muchos aspectos y es de esta libertad de la que hablo yo entiendo que se pueda interpretar de otra forma, pero para mi es como la sabiduría de un artista de hacer lo que tiene que hacer, sin ser obediente a nada ni nadie, es de esa libertad de la que hablo. No haces lo que se espera que hagas, haces lo que queres.”
Esta é a percepção da artista uruguaia Federica Folco sobre minha prática artística. Pode ser um pouco romantizado, talvez, mas fiquei contente que meu trabalho inspirou isso nela que, inclusive, disse que não sou “esteticamente correta”, brincando com a expressão “politicamente correta”.
Me interesso pela aptidão da ocupação. Quem ocupa o que e quem e como? As artes ocupam sendo sintomas do mundo em que estão. É impossível “usar” as mídias digitais. Elas já estão por aí em todos nós já ralados nelas. Corpo como carne-de-pixel, como escreve o poeta espanhol Agustín Fernández Mallo. Corpo como conjuntura – expanso para além do ser humano.
Sheila ribeiro
Gustavo Bitencourt
Wagner Schwartz
Joe Hiscott - Sheila ribeiro - Martin Bélanger -
Khalil Elkasbaoui - Jacques Moisan - George Stamos
rECEItas E DÚVIDas 2012
KILLING aN arab 2004
“Receita é método, procedimento, energia potencial e tudo o que venha depois desses padrões.”
Tem cinema. Tem moda. Tem tecnologia. Tem mandarim. Tem fotografia. Tem vivos. Tem mortos.
Inserido nas fontes atemporais de conflito humano, como poder, inveja, ambição, noções de pertencer, de identidade e de “outro”, este vídeo reinterpreta uma das músicas da banda inglesa The Cure. Emprestando a estética de videoclipe, mostra fantasias íntimas tratando a violência como parte da experiência humana, como fez Albert Camus, em 1942, em seu livro O Estrangeiro.
Imagem:
Gustavo Bitencout
Imagem: Sheila Ribeiro
Imagem:
Wagner Schwartz
HaCKEaNDO ParaSitaNDO rEVELaNDO
OUtrOS DaDOS SaMPLEaDOS
7x7 artIstas Por artIstas, desde 2009
O 7x7 surgiu em 2009, quando eu, então vivendo na China, vim pro Brasil apresentar meu trabalho no Festival Contemporâneo de Dança, em São Paulo. Percebendo um tipo de precariedade de reverberação dos trabalhos, e incomodada com isso, perguntei pra primeira pessoa do lado se ela tinha assistido à minha apresentação e se gostaria de escrever sobre o que viu. Era o Bruno Freire, artista que hoje integra o 7x7. Outros seis artistas escreveram sobre os outros seis trabalhos do Festival e envolvi o Idança para publicar as manifestações (um portal online especializado em dança contemporânea). Semeei esse desejo e hoje o 7x7 tem 5 anos e é autogerido por 7 artistas: Arthur Moreau, Bruno Freire, Caroline Moraes, Laura Bruno, Rodrigo Monteiro, Lucia Naser e eu.
O 7x7 é um conectivo de “artistas-interlocutores”, que prolifera convites vivos – em momentos de relaxamento, em momentos intersticiais pós-apresentações de dança e performance – com um foco de detectar inquietações de outras pessoas, capturá-las e expandi-las. Acaba por contribuir no desenvolvimento da prática da dança contemporânea e, poderíamos dizer, da arte contemporânea, por todos os cruzamentos e indisciplinaridades com as quais interage e recria.
Enquanto ação artística e obra expandida, o 7x7 faz arte de uma maneira que propaga as incontroláveis lógicas de conectividade da cultura digital: muita
coisa está acontecendo, no ar, circulando, mas podemos concretizar somente parte dessa realidade. Então, o 7x7 funciona atiçando primeiro um movimento virtual reverberativo de elenco randômico: em uma logística de conectividade incontrolável, mesmo que compositiva. Em seguida, instiga e reverbera redes comunicacionais imateriais, sinérgicas e transculturais, através de manifestações críticas-poéticas sobre, para, com, e em torno das artes do corpo e de seus artistas: o artista escreve sobre outro artista de maneira artística. Os convites são para produzirem textos, imagens, audiovisuais, ou... reverberando, criando outras dimensões de sensibilização e acesso aos trabalhos. As manifestações são polifônicas, a maioria em português/inglês – existindo também o bilingüismo português/espanhol, português/francês, e traduções pinceladas. O 7x7 conecta pessoas e mantém aceso um desejo de criar
mais 7x7Portal oficial - seteporsete.net
Facebook - https://www.facebook.com/projeto7x7
Bienal SESC de Dança 2013 -http://migre.me/itD0K
Idança - http://migre.me/itD1B
Festival Contemporâneo de Dança - http://festivalcontemporaneodedanca.com
Blog – www.projeto7x7.wordpress.com
Blog 7x7 reúne artistas para falar sobre o trabalho de outros artistas na Bienal Sesc de
Dança, por Carol Macário (Notícias do Dia, Florianópolis) - http://migre.me/itD3M
Corpo, encontros, cidade - eonline - http://migre.me/itD4r
sinergia estético-política. São cruzamentos de olhares que criam pequenas tensões, sendo inspiração e desvio entre o próprio olhar e o das outras pessoas, dessentindo, percebendo diferenças, universos íntimos, traçando uma cartografia de fluxos que tremem – persistindo na vontade de porosidades e de coabitação. O 7x7 articula artistas e trabalhos, artistas e outros artistas, obras e obras – e esse movimento não é autorreferencial e endogâmico. Ele está na rede e trata de coisas, de sentimentos, de políticas de fazeres em movimentos descentrados. O 7x7 é como uma obra, uma dança.
Sheila ribeiro - Benoît Lachambre - Plastik Patrik
Elielson Pacheco - Edgard Scandurra
Sandra Coutinho - Sophie Deraspe
Sheila ribeiro - Josh S. - Basa (turbo trio)
LEGENDa DIEt 2001
orGaNIZaDor DE CarNE 2007
legenda Diet é uma garota-outdoor e um show de música. Em um ambiente fantástico, créditos e legendas de tradução “orientam” e “explicam” um universo onírico, estéril e poluído.
Inspirada na abundância de referências metropolitanas e no complexo processo de discerni-las, legenda Diet ilustra as referências da URBE comunicacional, redesenhando-as em oráculos, vidências e elogios; mixando slogan, libido e confusão.
“Está claro que há anos a percepção está condicionada pela publicidade, pela mídia, pelo consumo, dentre outros dispositivos. Daí a importância do jogo proposto em organizador de carne, que é o de perguntar se nós ainda somos capazes de perceber o que nos organiza. Se ainda identificamos as vidas duplas, triplas, quádruplas, múltiplas que fazem parte do nosso estar no mundo.” (Helena Katz, em O Estado de São Paulo)
A partir de uma aventura no DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais), organizador de carne especula o que é ser gente no trânsito e na construção da ética contemporânea. Tabu, racismo, politicamente correto, etologia, design interno e publicidade projetam matéria bruta desejante. O poder se deslocando no chamado momento pós-colonial. Gente? Animal? Pós-humano? Quem e o que organiza a sua carne?
Imagens:
Sophie Deraspe
Imagem:
João Milet Meirelles
Imagem:
Mikael Vonojovic
Imagem: João Milet Meirelles
Imagem: Gil Grossi
18 Vértebo 01 19Faces
Sheila ribeiro - anna rita Emili
orGaNIC totEm 2010
Uma tenda de refugiados VIP-Louis Vuitton. Uma bolsa Masp-Louis Vuitton. O estádio olímpico Herzog & De Meuron-Louis Vuitton - fetichic. Em um conceito de soft architecture, esta instalação coreográfica multimídia transpassa moda, arte, design e publicidade.
Como um acessório no corpo da cidade, um dress-code, este totem feito não somente para ser visto, mas também experienciado, é um evento para entender e poetizar a cidade e seu trânsito. TOTEM ORGÂNICO estabelece novas maneiras de perceber o habitat contemporâneo através dos novos fetichismos da metrópole global e no seu sincretismo visual contemporâneo.bolsa-corpo: um vestido, pele, couro. bolsa-corpo-habitat. bolsa gigante ou um predinho - na rua.
Imagem: Sheila Ribeiro
Sheila ribeiro - Jorge alencar - Dimenti
um DENtE CHamaDo bICo 2009
Configurada como um stand de vendas de um empreendimento imobiliário – o Iemanjá Privilège - ações poéticas abarcam intervenções urbanas e produções audiovisuais. O PRIVILÈGE é um empreendimento de padrão diferenciado pioneiro e de qualidade oferecendo facilidades e benefícios a você e ao seu sonho. O slogan-título foi capturado das “Pérolas do ENEM” – “as aves têm na boca um dente chamado bico”.
Negra e linda, assim é a Bahia. Um lugar sagrado, protegido por divindades cristãs e africanas, num sincretismo único. Com rica culinária local e uma profusão de cores, A BAHIA É MUITO MAIS! - Bahiatur
Pierre Verger veio visitar souvenires voluntários. A classe média artística veio ao stand de vendas ver o MEU iemanjá PRIVILÈGE. OBRAS INICIADAS. Um Dente Chamado Bico é uma coisa que é chamada de outra. Essa coisa (bico) tem, de certa maneira, QUASE a mesma função da primeira (dente).
Todo menino do PelôSabe tocar tamborTodo menino do PelôSabe tocar tamborSabe tocarSabe tocar
Imagem:
João Milet Meirelles
Imagens: Louis Philippe
St-Arnauld
Imagens: Rafael Ortega
o PrImEIro VErDaDEIro CLoNE HumaNo 2003
Uma instalação coreográfica entre a melancolia e o lúdico. Clonagem: poder e desejo. O percurso de pequenas salas e estreitos corredores leva o espectador ao “laboratório de clonagem”. Ali, ele se depara com “explicações” de como um clone é feito. Por último, o espectador chega à “sala do clone” onde se depara com a seguinte frase: “DESCULPEM-NOS, O CLONE NÃO NASCEU”. Frustração recorrente com a publicidade. Quem é o clone contemporâneo? Onde ele está?
Sheila ribeiro - rogério rochlitz - tina BBB
sHoW 2003
Instalação coreográfica inspirada nos reality shows. Com a ajuda de câmeras escondidas, espectadores e intérpretes transformam-se em “estrelas” sem talento em particular, depois de terem sido postos à prova em situação de mercadoria. O corpo (a pessoa) é um território político. Trata da correção e da sobrevivência do corpo; de ilusão, de manipulação, de desejo, de prazer e de brincadeira.
Na sala de visita/todo mundo agita/vai pra lá/vai pra cá/dá uma voltinha
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Vértebo 01 21
articulações
Sheila ribeiro - Núcleo do Dirceu - Elielson Pacheco
Sheila ribeiro - Benoît Lachambre
Sheila ribeiro - Massimo Canevacci
LuGar Pra FICar Em PÉ 2009
Do You oWN busINEss 2012
VIP 2005
saNDmaNN 2006
Sob o pretexto de videoclipe musical comercial, Lugar pra ficar em pé mapeia microcosmos e biografias psíquicas através de canções de amor, misturando a dor de cotovelo e a latência das locações da cidade de Teresina, dos artistas que compuseram as músicas, de seus intérpretes e dos performers do Núcleo do Dirceu: Aracy de Almeida, Patty Pravo, Nina Simone, Tim Maia, Albinoni, Eurobusiness, Soraya Portela...
LUGAR PRA FICAR EM PÉ aldeia e metrópole.“Paris – Tóquio - Teresina- Londres”Tensão do meio do caminho colonial/pós-colonial, pré-industrial/pós-industrial.Carnaval mental e precariedade erótica!
romaimigraçãorosasturistaspequenos objetose talcada um no seu lugaraffarituoicom alexguerraFontana diTrevi, Roma, ItáliaAlex Guerra
VIP é construída em uma zona limiar (cênica e da web) entre algo contextualizado no espaço geográfico e uma estrutura de web-arte. Em um pequeno escritório simulado – VIP – encontra-se uma performance digital, também VIP. O espectador incorporado à instalação dá vida performática ao ambíguo espaço “real”: ele é um trabalhador? alguém “importante”? um artista? Já no espaço íntimo da web, o que o espectador vive com a obra web é uma proposta de sensibilização vida- morte, dinheiro-crença, publicidade-
SANDMANN é uma experiência etnográfica-cênica do antropólogo Massimo Canevacci e da artista Sheila Ribeiro que, tendo como inspiração o conto “Der Sandmann” (“O homem de areia”) de E.T.A. Hoffmann, enfrenta, penetra e dissolve os novos fetiches visuais produzidos na contemporaneidade.
Para tanto, utiliza-se da apresentação simultânea de uma etnografia textual aliada a recursos visuais e sonoros e de uma instalação coreográfica multimídia. Juntos, etnografia e coreografia formam uma arquitetura mix-mídia, multilinguística, plurilógica que evoca uma sensorialidade multicomunicacional e multisequencial. Assim, SANDMANN favorece olhares descentralizados da parte de cada espectador para o cenário fluído dos novos fetichismos visuais: o corpo que se transforma em bodyscape, flutuante entre os códigos das metrópoles comunicacionais.
Imagens; Alexander Galvão | desenho: Massimo
Canevacci Imagem: Alex Guerra
Imagem: Sheila Ribeiro
Imagens: divulgação galeria Q Contemporary
Imagem 1: Alessandro Silvestri
Imagem 2: Luca Spano
Imagem 3: Sérgio Bairon
status, ilusão-realidade - através de um site hackeado da marca de roupa Sisley, em que o próprio espectador torna-se o modelo.Limites éticos são testados no percurso de VIP, que em sua proposta lúdica propõe desafios tais como o de preencher data de nascimento (e de morte!), tirar foto com webcam, ver-se no corpo de um modelo da Sisley, escolher o quanto pagaria para uma verdade virtual (estilo oráculo), decidir preencher ou burlar o número de seu cartão de crédito para continuar o jogo, até que... o computador mostra-lhe um erro fatal...“Iiii, será que eu quebrei o computador?” – “aviso algum técnico... ou saio de fininho?”. A cada fase, o espectador se depara com sua ética pessoal. Em dez minutos, o programa reinicia e um outro visitante pode interagir com a obra.
Sheila ribeiro - Salvatore iaconesi
YouNKum EL HaLWIN Your bEautIFuL EYEs 2012
Visão eróptica da biopolítica. Fascinação fetish e controle pela óptica como uma janela do corpo – Window(s), pop-up –, sintetiza e poetiza sintomas ambíguos da contemporaneidade. Olho transversal e transversátil, flutuando nos multiversos ao redor.
QRcode: corpo-psique, um cidadão, a ser escaneado. O tríptico (your beautiful eyes) é uma rede de olhos (3D, três olhos) que, ao ser escaneada, recebe como dado outros olhos, olhares e olhadas: os olhos do Google que decidem; a máquina de scan que te olha; o gráfico que informa através do olho central – explodindo tantos outros em um panóptico invertido. Eróptica twittiana.
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Vértebo 01 23
articulações
Entre
modos de pensar
pala vrase
Para esta primeira publicação, foram escolhidas duas monografias de conclusão de curso, uma de dança, de Viviane Duarte Silva (Por um fio – O limiar de controle no corpo), outra de performance, de Andrea Christine Bella Krotoszynsky (Performance e auto-organização – Um olhar evolutivo da performance para o trabalhos em novas mídias interativas), e um projeto de cena de teatro, desenvolvido pela primeira turma de teatro do curso Comunicação das Artes do Corpo, em 2002 (Materializar o efêmero).
A monografia Por Um Fio – O limiar de controle no corpo foi escrita no ano de 2004 com orientação da Prof.ª Dr.ª Christine Greiner, propondo “discutir, a partir da metodologia teórico-prática, a questão do limiar de controle da criação e interpretação do movimento de dança”. Para isso, a pesquisa questiona “até que ponto é possível exercer o controle sobre os movimentos, considerando a complexidade
do funcionamento do corpo, no que se refere a ações voluntárias e involuntárias, conscientes e inconscientes e suas graduações, extremamente sutis”. Dividindo o seu trabalho em duas partes, Viviane elege como objeto de estudo, no primeiro capítulo, o processo criativo do artista Merce Cunningham, apresentando um breve relato de sua vida e assim relacionando-a à ciência. No segundo capítulo, ela relata três de seus experimentos – M², Limiar e D³ –, para assim evidenciar “que a dança depende do trânsito das informações que atravessam o corpo, num fluxo inestancável de troca com o ambiente”.
Ao apresentar um breve panorama histórico de Cunningham, reportando seu encontro com John Cage, seu trajeto pela Martha Graham Dance Company, a não hierarquização no corpo cunninghaniano e a importância do acaso em suas obras, Viviane traz o entendimento de corpo
biológico em constante interação com o seu ambiente e, para isso, utiliza o entendimento de corpo como mídia proposto pelas pesquisadoras Christine Greiner e Helena Katz. “O corpo é pensado como sendo um contínuo entre o mental, o neural, o carnal e o ambiental, sendo impossível a separação entre corpo e ambiente, já que eles são desenvolvidos em codependência. [...] Aqui a dança pode ser considerada com um trânsito permanente entre biologia e cultura, que coevoluem e se adaptam, de acordo com a possibilidade de cada corpo. Pois dançar se constrói através do sistema sensório-motor do corpo que se transforma pela informação que agrega, como qualquer outro organismo.” A partir do entendimento de corpomídia, ela propõe uma leitura do
trabalho de Cunningham; com isso, uma rede de relações foi levantada: utilização de dados, relação com crianças, com números e com a matemática. A palavra cubo, por exemplo, tem a ver com algum valor elevado ao número três: três pessoas em cena, três “jeitos de dança”. “O título se refere ao cubo do dado e ao cubo de três dançarinos.” O terceiro experimento, Limiar, tem a proposta de investigar tanto o limiar de controle entre o corpo e o ambiente, como aquele entre a vida e a morte. “Trata-se de estados de transição entre dois patamares de metaestabilidade. Segundo uma visão sistêmica de mundo, ao abandonar um patamar de relativa estabilidade, o sistema tende a atingir outro, sobrevivendo e ganhando um acréscimo de complexidade.” Concluindo sua monografia, Viviane diz: “São muitas as questões que surgiram a partir desta pesquisa teórico-prática. Algumas respostas só serão elaboradas no tempo, se desdobrando em outras questões. De todas elas, a que mais me inquietou foi justamente a que comecei a esclarecer durante a produção desta monografia. A questão do limiar de controle fez transbordar a minha dança. Para estudá-la, foi preciso investigar de modo absolutamente enredado a teoria e a prática, assim como me foi poeticamente ensinado no curso de Comunicação das Artes do Corpo.”
O projeto de cena Materializar o efêmero foi escrito em 2002 pela primeira turma de teatro das Artes do Corpo, com orientação do Prof. José Rubens Siqueira. Desenvolveu-se o espetáculo SOMBRA y SOL especialmente para esse projeto. A peça combinou surrealismo e teatro do absurdo, a partir de trechos de A casa de Bernalda Alba e Assim que passem cinco anos, de Federico García Lorca, e Oração e primeira comunhão, de Fernando Arrabal, ambos dramaturgos espanhóis. “O resultado é um divertido e pungente retrato do homem contemporâneo, embebido da estética poderosa da pintura espanhola e da vitalidade do canto e da dança flamenca.”
Com um número grande de participantes, o grupo se dividiu para estudar áreas artísticas específicas, como teatro, dança, artes plásticas, literatura e cinema. Tendo em vista os escritores citados há pouco, “houve um enorme período de leituras e interpretação
corpo em Cunningham. Em seguida, relata três experimentos em que algumas questões levantadas na obra de Cunningham e nas discussões acerca do limiar de controle foram testadas. Em M², com sua colega de curso, Maria Elvira Machado, Viviane realizou um experimento na garagem do prédio de Maria, lugar que lhe interessava muito. Com o tempo, Beto de Faria, outro colega, que já tinha experiência com vídeo, passou a integrar o trabalho, produzindo junto com elas uma videodança. “O título do trabalho, M², metro quadrado, é pela relação com os espaços arquitetônicos da cidade.” No segundo estudo, D³, a aluna optou por experimentar operações de acaso vistas no
O corpo é pensado como sendo um contínuo entre o mental, o neural, o carnal e o ambiental, sendo impossível a separação entre corpo e ambiente, já que eles são desenvolvidos em codependência.
CiCatriZ2
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Vértebo 01 25
Cicatriz
das obras, em que eram levantadas considerações dramatúrgicas, discordâncias a determinadas peças e sugestão de trechos que mais se aproximavam do olhar sobre os dois autores”. Depois de um semestre de pesquisa e estruturação do texto, teve início o processo criativo que ganhou corpo carnal e movimento, ou seja, “ensaios, ensaios e ensaios”.
Para terminar este relato sobre os trabalhos, temos Performance e auto-organização – Um olhar evolutivo da performance para os trabalhos em novas mídias interativas, escrita no ano de 2004, com orientação da Prof.ª Dr.ª Christine Greiner. Depois de um contato com a fotografia, as artes plásticas, a música e várias técnicas de dança, e com quase 20 anos de convivência com seu colega Renato Cohen em performances e trabalhos interativos em suporte eletrônico, Andrea realizou “com Luiz Camara, em 1999, o trabalho de dança para a internet Dance Juke Box e, em 2000, [...] ENTRE, processo que se desdobrou em múltiplos ‘produtos’ (apresentações, experiências colaborativas e, na Internet, interfaces interativas), e continua se desenvolvendo atualmente”.
Andrea cita que a monografia é sua “primeira experiência formal de desenvolver a questão do processo criativo na arte da performance e seus desdobramentos (apresentações, obras). É principalmente um exercício de reflexão sobre as características dos procedimentos da performance no território das artes contemporâneas [...].” Ela compreende as manifestações performáticas como sistemas complexos, que estabelecem âmbitos próprios entre si. “Pretendo alcançar pelo menos dois objetivos ao final desta monografia, primeiro investigar como se pode fazer uma análise da arte da performance através da ideia de auto-organização, e, com sorte, contribuir na reflexão sobre performance com articulações pertinentes. E, segundo, compartilhar um pouco de minha trajetória artística que envolve performance através da disponibilização de trabalhos e documentações de trabalhos recentes.” Ela discorre sobre uma seleção de manifestações que compreendem o universo da performance na qual ela está
inserida, propõe um esclarecimento daquilo que lhe afeta enquanto artista, para assim tecer relações entre auto-organização e contemporaneidade, e por fim mostra os experimentos realizados que norteiam o seu trabalho: Macbeth de Shakespeare, Galáxias de Haroldo de Campos e a Teoria Geral dos Sistemas.
Andrea conclui: “Ao fim de quatro anos de pesquisas e descobertas, cada estudante esteve em contato com novos conhecimentos a respeito das artes cênicas, e com isso é chegado o momento da experimentação dessa rede de conceitos e pensamentos que se conecta com o universo artístico de cada um. A urgência de encontrar caminhos confluentes, onde corpo e mente agora ocupam o mesmo espaço, a cena, quebrando o velho paradigma de Descartes ‘Penso, logo existo’. As possibilidades de ação cênica se abrem, possibilitando a coexistência de linguagens mais tradicionais até as ultimas tendências da Life Art. O ambiente que o projeto final cria é acima de tudo suporte à experimentação criativa, onde teoria e prática têm a chance de habitar o mesmo espaço, possibilitando aos jovens artistas/universitários campo fértil para esse aprofundamento. [...] E agora se inicia a concretização de tudo o que foi dito, conversado, declamado, gritado, e que vai ganhando corpo manifesto. Afinal, o produto cênico nasce quando se abre a cortina uterina do palco, e o que estava acalentado no útero criativo ganha autonomia e cresce em contato com o mundo.”
O processo de conclusão do curso de Comunicação das Artes do Corpo, seja ele um projeto cênico ou uma monografia, é a oportunidade de organização de alguns conhecimentos com os quais os alunos entram em contato durante os quatro anos. O ambiente universitário pode estabelecer um momento de suspensão das regras mercadológicas, se configurando como um polo de resistência e possibilidade de encontrar outros trajetos de reverberação na cena profissional.
O apoteotico e um misticismo selvagem se encontram em No Sacre. Não é de se surpreender, portanto, que a discussão sobre o maravilhoso da Poética aristotélica caiba aqui, ainda que não dê conta de todos os aspectos espetaculares organizados por Ismael Ivo. Além disso, as esferas de poder “sesquiano” que legitimam o artista e o fazer artístico se mostram, nesse espetáculo, à luz de uma ética e de uma estética colonialista que autorizam dez corpos brasileiros a participarem de um esforço de produção transnacional.
O visual e a coreografia são épicos, mas promovem mais uma colagem de elementos do que uma real discussão sobre os mesmos. Até porque em um espetáculo como esse, tocar em uma rede complexa de imagens que diz respeito a rituais, transe, incorporação, espiritualidade, processo de civilização e ao centenário Le Sacre du Printemps, torna-se uma pletora de muito assunto para pouco tempo. A ação política do corpo acaba se perdendo no amálgama de cenas costuradas pelo prazer estético e se funde na liberação bacanal de corpos belos
que seduzem, mas que não se descontroem.Um momento durante os minutos iniciais ilustra esse ponto. Os bailarinos saem do foyeur, onde propuseram uma ação inicial, e passam para o palco, lugar da consumação do ritual. Nesse entremeio, convidam membros da plateia para subir ao espaço designado para a cena, e estes instantaneamente se manifestam desnudos dos processos e padrões civilizatórios em meio à ritualística do momento.
Impossível não fazer um leitura que intertextualize com aqueles corpos manifestos que foram às ruas. O grito de liberdade, nesse momento coreografado, tem seu lugar: no platô do indizível, naquilo a que a arte dá vazão sem o crivo do controle social, mas que logo se reposiciona na relação tradicional espectador-artista, e se cala em meio a ordem do momento. A mobilização de corpos por um sentido comum, seja ele de reivindicação ou protesto, e que não se concretiza com tanta facilidade no cotidiano, alcança seu jorro ejaculatório naquele breve momento no palco.
NO SaCrEComentário sobre No Sacre, de ismael ivo
Este texto foi escrito como exercício para a aula de teorias da Dança – as experiências indisciplinares, da professora
Helena Katz.
(iN) DiGEStÃO2
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Vértebo 01 27
(iN) Digestão
Julio Cesar Françozo é professor de hip
hop, técnico em Dança (Etec de Artes)
e graduando em Comunicação das
Artes do Corpo (PUC-SP).
Dando luz a outro aspecto, não compreendo por que hoje as trilhas em dança, principalmente, apresentam-se com um volume demasiadamente alto. A mim me parece ser algo que não é proposto como forma de cambiar o pensamento do corpo, mas simplesmente como uma mímese de um padrão sonoro desconfortável que se encontra em voga em inúmeros outros ambientes, artísticos ou não. A problemática desse fato, aqui, se dá numa falha de concepção, que pressupõe uma bailarina dando um texto sobre acordes musicais de extrema intensidade, em um determinado momento, o que inviabiliza o processo comunicativo e não faz acontecer nem o texto, nem a música.
A beleza dos movimentos parece dançar com algumas facetas do que foi proposto por Stravinsky e Nijinski, mas o conteúdo do discurso de Ivo é empobrecido pelo tom fantástico que a coreografia constrói com a iluminação e o incessante fluxo de pétalas de rosas que caem do teto. A dança deixa de ser surpreendente e começa a cair em formuletas da contemporaneidade, sem uma construção dramatúrgica para momentos como gritos e assomos de profunda paixão entre os corpos dançantes.
O maravilhoso se conforma na estrutura megalomaníaca de produção, composta por 24 bailarinos internacionais, dentre os quais dez são brasileiros e fizeram estágio com o famoso coreógrafo na cidade de Viena, Áustria, por seis semanas, apoiados por esforços do capital público e privado. A real necessidade de tal esquema é uma incógnita, mas nesse tipo de dança corporativa, em que instituições e nomes tarimbados mobilizam estruturas de extremo poder, a poiesis é reduzida frente ao alto impacto visual e sonoro, que apenas alguns poucos com milhares de reais conseguem produzir.
Marcelo Fernandes é cantor, professor de DanceAbility e graduando em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP).
Coreógrafo/diretor: Ismael Ivo. Teatro Paulo Autran, Sesc Pinheiros, 17/08/13
Qual é, afinal,
essa minoria para quem se produz teatro?
João Apolinário, janeiro de 1971
Todo esse teatro que se fez em 1970, toda essa
superprodução largamente subvencionada
pelo Governo, foi dirigida a um certo mercado
de consumo, como é óbvio, numa cidade de
mais de cinco milhões de habitantes, mesmo
tendo, apenas, pouco mais de 20 teatros de
estreia.
Mercado de consumo cultural formado
por classes diferentes de público que se
provaram, mais uma vez, constituírem uma
minoria, tão mais insuficiente quanto parece
certo que a atual crise do nosso teatro se
verifica por uma destas razões: ou excesso de
produção ou/e uma produção inadequada
ao consumo.
Não se coloca já o velho problema do teatro
não ter público porque é muito caro ou por
ser muito caro não ter público.
Exatamente para isso é que o Governo do
Estado, por intermédio da Comissão Estadual
de Teatro, subvenciona as Companhias,
obrigando-as apenas à concessão de
“temporadas populares”, o que pressupõe
uma primeira distinção entre esse público
consumidor: os que podem pagar ingressos
que vão de um mínimo de dez cruzeiros a
um máximo de 25 e aqueles que não podem
pagar e para os quais essas “temporadas
populares” seriam (se esse público existisse)
a única forma de consumir teatro.
Mas esse público pretensamente “popular”
existe? Qual é, afinal, o nosso mercado de
consumo cultural, no qual se inserem os
espectadores de teatro?
Talvez seja um pouco fastidioso para o
leitor irmos à raiz das coisas, mas achamos
necessário, antes de criticar com mais
objetividade a situação atual do teatro
paulista, tentar achar, com a ajuda dos nossos
historiadores e sociólogos, as respostas para
esse problema grave, pois que interessa
fazermos teatro, tenha ele o nível que tiver,
se não for consumido por um público já
identificado? Na verdade, que interesse
poderá ter fabricar produtos da mais diversa
utilização se não houver quem os utilize ou
se forem inadequadamente produzidos para
as necessidades do consumo?
Quando os descobridores do Brasil chegaram
aqui, encontraram uma comunidade
rUGaS2
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Vértebo 01 29
rugas
primitiva sob organização tribal, no estágio
da pedra lascada.
A transição fez-se com a justaposição
(não confundir com fusão) daquilo que
é designado por “aculturação” (indígena,
portuguesa e negra), logo mercantilizada nas
relações que levaram à transplantação da
civilização ibérica, a qual marca a primeira
etapa, segundo Nelson Werneck Sodré,
“anterior ao aparecimento da pequena
burguesia”. A segunda etapa, ainda segundo
ele, é também de “cultura transplantada”,
mas “posterior ao aparecimento da pequena
burguesia”, para, finalmente, na etapa
atual, iniciada com a Revolução de 1930,
se desenvolver o processo de uma cultura
nacional com o alastramento das relações
capitalistas. Quer dizer, esta terceira etapa
vem da “época em que a classe dominante
no Brasil é a burguesia” e a ela pertence já a
vigência dos meios modernos de cultura de
massa.
Essa “classe culta”, de timbre aristocrático,
de que, aliás, “ainda não se libertou
completamente”, consumia uma “cultura
de elite”, dirigida mais para a preparação do
indivíduo com títulos que lhe permitisse
maior dignidade social, isto é, o comando
político e econômico, enquanto essa
“pequena burguesia colonial” consumia os
produtos do trabalho intelectual em maior
escala, fazendo dela, assim, “aquilo que se
conhece como público para as artes”.
Antes de vermos como hoje se mantêm
algumas dessas constantes sociais, importa
saber como Marx definiu essa mesma etapa
de desenvolvimento capitalista em que,
como no Brasil, os produtos da cultura se
transformaram em mercadorias: “Este foi
o tempo em que as próprias coisas que,
até então, eram transmitidas, mas jamais
trocadas; dadas, mas jamais vendidas;
adquiridas, mas jamais compradas – virtude,
amor, opinião, ciência, consciência etc. –,
em que tudo enfim passou ao comércio.
Este foi o tempo da corrupção geral, da
venalidade universal ou, para falar em termos
de economia política, o tempo em que tudo,
moral ou físico, tornando-se valor venal, é
levado ao mercado, para ser apreciado no
justo valor.”
No caso do teatro, hoje, as raízes desse
tráfego da cultura mostram por um lado que,
a partir de 1945, enquanto o país abandonava
as influências europeias para ceder lugar às
norte-americanas, iniciava-se aquilo que
Werneck Sodré classifica “prelúdio do teatro
brasileiro autêntico” (peças com motivos
brasileiros de Gastão Tojeiro, Oduvaldo
Viana e, depois, Joracy Camargo), marcando
o rompimento com a prosódia portuguesa
e a ascensão de Leopoldo Fróes que sucede
como grande ator a Procópio Ferreira.
Vem, também, o TBC, embora marcado de
influência estrangeira, produzir teatro para
um “público que é recrutado, naturalmente,
na pequena burguesia: ela é que ouve rádio,
assiste teatro, lê jornais, revistas, livros, vai ao
cinema, e que constituirá, em seguida, larga
audiência para a televisão”.
Mas, nos 25 anos posteriores, parece fácil
provar-se que a evolução do público se dá
indiferente não só aos interesses da classe
latifundiária ou também chamada alta
burguesia (fechada no consumo de uma
cultura de elite, embora por vezes revele certo
interesse pelas manifestações do teatro),
mas também indiferente aos interesses “dos
trabalhadores operários, semioperários e os
que trabalham a terra ou nela”.
Sobra, assim, uma pequena burguesia
nacional, acrescida da burguesia estrangeira
vinculada aos grandes centros urbanos,
como São Paulo, das quais faz parte, claro, o
que se designa por “classe estudantil”, público
que constitui a maioria da minoria dos
espectadores de teatro. Minoria porque nem
toda a pequena burguesia ou a burguesia
estrangeira vão ao teatro, embora assistam,
por exemplo, televisão etc.
As tentativas que foram feitas no sentido de
ampliar essa minoria, sobretudo no decurso
da década de 1960, ou foram cerceadas por
razões políticas ou aconteceu o que Brecht
reafirmaria, depois de Marx: “As grandes
engrenagens, como a ópera, o teatro, a
imprensa etc., impõem suas concepções
de maneira incógnita. Há muito tempo que
se contentam de utilizar, como alimento do
agrupamento de consumidores, o trabalho
dos intelectuais que ainda tomam parte na
distribuição dos lucros, que pertencem de
certo modo às classes dirigentes, embora
sejam, socialmente, proletarizados. Dito de
outra forma, há muito tempo que as grandes
engrenagens orientam a criação artística
segundo seus próprios critérios.”
E é isso o que tem acontecido com o nosso
teatro: vem servindo uma minoria segundo
seus próprios critérios, entrando assim no
jogo capitalista que se desenvolve entre a
oferta e a procura. Uma cota favorecida pelas
subvenções do Governo e uma procura cada
vez menor, pois essa alienação da realidade
brasileira conduz ao círculo vicioso da
repetição de formas importadas de cultura,
comunicadas ou perceptíveis muitas vezes
de maneira defeituosa, algumas mesmo já
tão velhas quanto o próprio vanguardismo
em que se inspiram.
Quer dizer: a primeira identificação do
espectador de teatro, seguindo estes
critérios históricos e sociológicos, prova
que as classes “dos trabalhadores, operários,
semioperários e os que trabalham na terra ou
nela” continuam marginalizados da cultura e
que, pelos resultados há muito verificados (e
nesta temporada acentuados), as chamadas
“temporadas populares” subvencionadas
pelo Governo são puro sofisma.
A segunda identificação, fácil e clara, é que
o público que assiste teatro em São Paulo
(quiçá no Brasil) é formado pela pequena
Mas esse público pretensamente “popular” existe? Qual é, afinal, o nosso mercado de consumo cultural, no qual se inserem os espectadores de teatro?
burguesia nacional, uma parte minoritária
da alta burguesia, pela burguesia estrangeira
e pela classe estudantil – esta conquistada
aqui pelo trabalho do Oficina e do Arena.
É pouco. É uma minoria que não justifica a
superprodução de 1970. E o mais grave é que
“embora oriente a criação artística segundo
seus próprios critérios”, como acontece
com o teatro importado (mesmo o de alto
nível como O Arquiteto e o Imperador da
Assíria), o desgaste sucessivo provocado
pelas contradições que temos tentado provar
torna essa minoria indiferente e ausente dos
teatros.
É que, mesmo nessa minoria, há critérios
de consumo diferentes, possibilidades de
compra diferentes, exigências culturais
diferentes.
Diferenças que temos vindo a salientar em
função das classificações propostas em
nosso artigo de 24/12/1970 e que se resumem
nos dilemas ali também exemplificados.
Há que insistir na análise dessas diferenças,
tentar identificá-las, continuar, enfim,
uma crítica a essa superprodução nas suas
relações com o consumo, como já iniciamos
no artigo antecedente (31/12/1970) ou nos
próprios espetáculos criticados em 1970,
para podermos realmente saber “qual o teatro
necessário ao nosso subdesenvolvimento”.
*João Apolinário Teixeira Pinto foi um poeta
e jornalista português. Combateu o fascismo
tanto em sua terra natal, quanto em seus anos
de exílio no Brasil. Colaborou em inúmeras
publicações importantes nos dois países.
Fundou, com outros jornalistas, a APCA –
Associação Paulista de Críticos de Arte. O texto
aqui publicado foi retirado do livro A crítica de
João Apolinário – Memória do teatro paulista
de 1964 a 1971, contemplado no programa
Petrobras Cultural e organizado por Maria
Luiza Teixeira Vasconcelos.
30
Vértebo 01 31
rugas
MaS COMO é QUE FaZ Pra Sair Da iLHa?Manifestações e Dança se Move
“Como é que faz pra lavar a roupa?
Vai na fonte, vai na fonte
Como é que faz pra raiar o dia?
No horizonte, no horizonte
Este lugar é uma maravilha
Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte
A ponte não é de concreto, não é de ferro
Não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento”
Lenine
Junho de 2013 parece ter se
inscrito como um momento histórico em
todo o Brasil. O cruzamento de gerações
definidas como conformadas, em um país
com uma reputação de desmobilização,
ergueu um coro que parou as principais
ruas de quase todo o território nacional.
Sobre esse momento, a produção intelectual
nacional e internacional foi intensa,
extensa e quase imediata. As manifestações
conhecidas como Manifestações de Junho
receberam atenção por meio do livro
Cidades rebeldes, dos autores David Harvey,
Ermínia Maricato, Slavoj Žižek, Mike Davis
et. al, e do “Posfácio à edição brasileira”,
acrescentado no trabalho de Manuel Castels
Redes de indignação e esperança.
Não caberia aqui, por exemplo, a tentativa
de uma discussão sobre as manifestações,
pois profissionais mais qualificados já
ocuparam e ainda vão ocupar essa função.
Inúmeros textos, entrevistas, publicações,
comentários, reportagens, matérias – em
todos os formatos possíveis e imagináveis
– foram produzidos a partir desse episódio.
A revista Vértebo começou a ser concebida
em meio ao turbilhão desses fatos. Houve
uma tentativa de encontrar nas artes do
corpo, especialmente na dança, pontos de
discussão que pudessem cruzar com as
manifestações de junho, mas tal tentativa
não obteve sucesso.
Desde maio de 2011, parte da dança paulista e
paulistana se reúne no movimento A Dança
se Move para discutir políticas públicas
para a área no âmbito municipal, estadual
e federal. O A Dança se Move começou
por iniciativa da Cooperativa Paulista
de Dança, representada pelo seu atual
presidente Sandro Borelli, que se aliou ao
antigo movimento Mobilização Dança, na
expectativa de recomeçar uma mobilização
política para a dança. O contexto pelo qual
o A Dança se Move está cercado é repleto
de idas e vindas, conquistas e intrigas,
mobilização e desmobilização, assim como
imobilização em alguns momentos.
O Movimento é precedido pelo já citado
Mobilização Dança, criado em 2002. É
através dos esforços de alguns artistas
empenhados com o Mobilização que foi
possível a conquista da Lei de Fomento à
Dança, em 2006. Contudo, a organização
de grupos de trabalho para a discussão
das políticas públicas na dança antecede o
próprio Mobilização Dança. A Cooperativa
Paulista de Bailarinos e Coreógrafos,
criada em 1993, que desembocou na atual
Cooperativa Paulista de Dança, já nasceu
com tal intuito. Apesar de receber o nome
de cooperativa, relatos da época confirmam
o caráter de movimento que a organização
possuía. Enfim, é possível retroceder ainda
mais no contexto histórico de mobilização
política da dança, acrescentando as
inúmeras conquistas e decepções; porém,
mesmo reconhecendo a importância
histórica de alguns desses acontecimentos,
basta uma introdução para iniciar a reflexão
que aqui será proposta.
A Dança se Move e Manifestações de
Junho – o que tem uma coisa a ver com
a outra? A princípio, nada! Foi então que
uma dúvida surgiu, dúvida essa que pauta e
justifica a existência deste texto: por que as
discussões de políticas públicas realizadas
no A Dança se Move não sofreram um
relevante impacto com as manifestações
que agitaram o país inteiro?
Qualquer um que tenha participado de
alguma das reuniões do A Dança se Move
poderia responder: não é possível dar
conta nem da pauta da dança, imagina
comentar ou se posicionar em relação
às manifestações!? Se essa resposta fosse
suficiente, como de fato pode ser, a proposta
do texto se encerraria imediatamente.
A tentativa aqui será testar uma outra
hipótese não tão simples e nem tão
certeira, uma hipótese baseada na dúvida –
manter-se em estado de dúvida como um
posicionamento político.
Todos esses anos de discussões de políticas
públicas construíram o atual contexto
artístico de São Paulo. A produção artística
resultante da Lei Municipal de Fomento
à Dança acontece todas as semanas,
praticamente de domingo a domingo.
Cada vez mais artistas apostam em
enviar projetos para o edital que financia
a maior parte da produção em dança
contemporânea da cidade. Comparada a
algumas cidades do país, São Paulo vive
uma relação diferenciada entre a dança e o
poder público municipal. Não existe relato
de lugar, no Brasil, que tenha tanto dinheiro
revertido para esse campo artístico – o que
não significa uma construção efetiva de
políticas públicas.
Porém, as discussões do A Dança se Move
não estão tão voltadas para a relação da
dança com a cidade que a financia. O
que ocupa as pautas do Movimento é
sempre a busca por melhores condições
de trabalho para os artistas da dança. A
importância dessa busca não é passível de
discussão, uma vez que as possibilidades
de produção não podem ser apartadas do
que se pode produzir em dança. Contudo, a
questão é: as discussões de um movimento
organizado em políticas públicas não
deveriam contemplar a importância da
dança na cidade? A dança paulistana não
é responsável por estar sensível aos outros
setores de São Paulo? O que justifica reverter
os impostos dos cidadãos se eles não forem
levados em consideração na hora de discutir
políticas públicas?
Uma das respostas possíveis para essas
questões poderia ser imediata: os artistas
também são cidadãos e pagam seus
impostos. Sem dúvida é um argumento
infalível. Agora, não se pode perder de
BaBa3
2
Vértebo 01 33
Baba
vista o caráter amplo e o tamanho da
responsabilidade em discutir políticas
públicas em uma cidade com, em média,
11,32 milhões de habitantes.
É preciso ressaltar que a dança paulistana
enfrenta uma ausência muito relevante
para a organização de um campo
profissional – um efetivo Sindicato de
Dança. Simplificando, a função de um
sindicato é pleitear e consolidar as regras do
mercado de trabalho de determinada área –
estabelecer piso salarial, horas de trabalho,
benefícios, aposentadoria etc. Desde a sua
fundação, em 1991, o Sindicato de Dança é
dirigido por Maria Pia Finócchio. Além de
conceder o DRT (atestado de capacitação
profissional retirado na “Delegacia Regional
do Trabalho”) em um processo muito
duvidoso no que diz respeito a sua eficácia
de análise, o SindDança não parece atuar
em outros setores da vida profissional do
artista. A ausência do Sindicato como um
representante relevante da dança atrasa
discussões primordiais para a construção
de um campo de trabalho.
As questões acerca do artista e de sua
trajetória parecem tomar todo o tempo de
encontros e discussões. Perde-se, dia após
dia, a oportunidade de se pensar a dança na
sua relação com o público, com a cidade,
com o comum. Discutir políticas públicas,
atualmente, parece ser uma dobradinha
entre “artista e trabalho” e não “dança e
cidade” – não que ambas as propostas não
possam caminhar juntas, mas quando a
ênfase está no extremo oposto, talvez seja
desejável radicalizar as formas de análise
para que o que está consolidado possa se
desestabilizar.
Com a proliferação da lógica que tem
pautado as políticas no país, a lógica dos
editais, o processo de construção de um
novo edital parece ocupar a necessidade
de estabelecer algumas formas de
trabalho, como já dito anteriormente, a
função de um sindicato, o que de fato
não acontece. Mesmo após oito anos de
Fomento à Dança, não parece claro, por
exemplo, qual a remuneração justa para
um bailarino ou quanto custa um solo de
dança. Os editais também não suprem a
ausência de programas que fomentem a
continuidade da dança, com projetos em
rede, com a construção de possibilidades
de sustentabilidade, o pensamento
na educação básica para aumentar o
número de apreciadores da dança, entre
outras necessidades que só poderiam ser
trabalhadas com a elaboração de programas,
de efetivas políticas públicas culturais.
Serão esses alguns dos motivos pelos quais
o A Dança se Move não se sentiu convidado
ou convocado a se manifestar em relação às
Manifestações de Junho? Ou é apenas mais
um sintoma da falta de tempo que assola
esse momento histórico em que vivemos?
Ou, ainda, voltando ao início do texto, a
pauta especifica de dança já é extensa o
bastante?
Fernanda Perniciotti, graduada em
Comunicação das Artes do Corpo e mestranda
em Comunicação e Semiótica (PUC-SP).
Le Sacre du Printemps [A Sagração da Primavera] (1913), Nijinski
Marco da dança no século XX, Le Sacre du
Printemps introduziu ao público dos Ballets
Russes, de Sergei Diaghilev, no Théâtre
des Champs-Élysées em Paris, uma obra
avant-garde com música dissonante e a
ousada coreografia de Nijinski. A quebra
de convenções gerou escândalo na plateia
– de acordo com os relatos históricos –,
que provavelmente não sabia que estava
presenciando uma revolucionária ruptura
de conceitos na música e na dança
ocidental. A coreografia comemorou seu
centenário em 2013.
Lugar pra Ficar em Pé (2008), Sheila Ribeiro
Com uma série de videoclipes, Lugar pra
Ficar em Pé transita por diversos lugares,
abordando preconceitos geográficos,
culturais, sociais, sexuais e midiáticos. A
dança-performance-videoclipe de Sheila
Ribeiro traz composições de cenas e ritmos
que deslocam o olhar e reorganizam
contextos que, apesar de muito próximos,
não são vistos em relação entre si. Imagens
sobrepostas questionam umas às outras,
produzindo a tensão necessária para
desestabilizar alguns contratos sociais bem
estabelecidos, inclusive aqueles contratos
que determinam as barreiras entre as artes
e, algumas vezes, só significam reservas de
mercado.
A Cozinha Performática (2013), Marcos Moraes
Dividida em três eixos – jantares
performáticos, experimentos performáticos
e criação cênica –, A Cozinha Performática
tem como mote de criação a troca e o
cruzamento entre artistas de diversas
linguagens. Com discussões permeadas
de divergências artísticas e políticas, a
busca parece ser por encontrar formas
de compartilhamento que desencadeiem
distintas concepções dentro do próprio fazer
artístico. A abertura para manifestações de
outros modos de compor e pensar a arte
parece ser necessária para que uma área
se questione e, talvez, descubra caminhos
que ainda podem ser percorridos.
Good Morning Mr. Orwell (1984), Nam June Paik
Instalação performática internacional
realizada no réveillon de 1983 para 1984,
com videoperformances acontecendo ao
vivo e outras gravadas, que conectaram
artistas como Merce Cunningham, John
Cage, Laurie Anderson, Peter Gabriel,
Allen Ginsberg, dentre outros. A referência
à sociedade distópica orwelliana criou
uma dialética com as mídias de massa
em ascensão e prenunciou a emergência
de um mundo guiado pela comunicação
entre satélites.
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Vértebo 01 35
Visão Periférica