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Variação linguística nas histórias em quadrinhos do Chico Bento de Maurício de Sousa e o preconceito linguístico Linguistic variation in the comics of Chico Bento by Mauricio de Sousa and the linguistic prejudice Rosembergh da Silva ALVES 1 Maria Lúcia Ribeiro de OLIVEIRA 2 Resumo: Este trabalho é o recorte de uma pesquisa do Nupic/FAFIRE e tem por objetivo abordar relações da linguagem escrita e oral nas histórias em quadrinhos, e apontar, através delas, o preconceito linguístico em relação ao dialeto caipira e às variações linguísticas. Para isso, contamos com estudos de Bagno (2004; 2009; 2010), Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Mollica e Braga (2007), nos quais encontramos sustentação. Através dos estudos, percebemos o quanto os fenômenos da língua são variados e as possibilidades de pesquisa que poderíamos abordar. Escolhemos, nesse recorte, mostrar o preconceito linguístico e as variações linguísticas expostos em uma mídia de livre acesso e que representa, hoje, um produto de grande circulação, como é o caso específico do gênero textual das histórias em quadrinhos, que contempla manifestações sociolinguísticas ou de preconceito linguístico, passíveis de serem trabalhados em sala de aula. Constituímos como corpus de pesquisa especificamente três histórias em quadrinhos da Turma do Chico Bento, de Maurício de Sousa. Para isso, pesquisamos em versões online aspectos sobre o criador, suas histórias e sobre a Turma do Chico Bento. As HQs analisadas neste trabalho, entre outras disponíveis tanto online quanto materialmente, podem ajudar como instrumento contra o preconceito linguístico e na divulgação e reconhecimento das variações linguísticas, auxiliando em desenvolver competências, valorizar as diferenças na língua e em diminuir as desigualdades sociais. Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Turma do Chico Bento. Preconceito linguístico. Variações linguísticas. Abstract: This work is a part of a research of the Nupic/FAFIRE and aims at addressing the written language relations and oral in the comics, and pointing through them, the linguistic prejudice against the “caipira” dialect and linguistic variations. In this regard, we count on on studies of Bagno (2004; 2009; 2010), Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Mollica and Braga (2007), in which we find support. Through the studies, we realized how much the language phenomena are varied and research possibilities that could address. We chose, for this cropping, to show the linguistic prejudice and linguistic variations exhibited in an open access media and is today a great movement of the product, as it is the specific case of comics genre stories, contemplating sociolinguistic expressions or linguistic prejudice, which can be worked in the classroom. We constitute the corpus of research specifically from three comics in Chico Bento’s Gang, by Mauricio de Sousa. In order to do so, we searched online versions, aspects about the creator, his stories and about the Chico Bento’s Gang. The comics analyzed in this work, among other available both online and physically, can help as a tool against linguistic prejudice and the dissemination and recognition of linguistic variations, helping to develop skills, enhancing the differences in language and in reducing social inequalities. Introdução Acreditar que o único português correto é o padrão é sustentar um mito e desmerecer qualquer tipo de variedade linguística, concretizando e incentivando a permanência do preconceito linguístico. O preconceito linguístico remete à ideia de 1 Graduando em Letras | FAFIRE | E-mail: [email protected] 2 Mestre em Linguística | UFPE | professora da FAFIRE e orientadora da pesquisa | E-mail: [email protected]

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Page 1: Variacao linguistica nas historias em quadrinhos do Chico ...quadrinhos da Turma do Chico Bento, de Maurício de Sousa. Para isso, pesquisamos em versões online aspectos sobre o criador,

Variação linguística nas histórias em quadrinhos do Chico Bento

de Maurício de Sousa e o preconceito linguístico

Linguistic variation in the comics of Chico Bento

by Mauricio de Sousa and the linguistic prejudice

Rosembergh da Silva ALVES 1

Maria Lúcia Ribeiro de OLIVEIRA2

Resumo: Este trabalho é o recorte de uma pesquisa do Nupic/FAFIRE e tem por objetivo abordar relações da linguagem escrita e oral nas histórias em quadrinhos, e apontar, através delas, o preconceito linguístico em relação ao dialeto caipira e às variações linguísticas. Para isso, contamos com estudos de Bagno (2004; 2009; 2010), Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Mollica e Braga (2007), nos quais encontramos sustentação. Através dos estudos, percebemos o quanto os fenômenos da língua são variados e as possibilidades de pesquisa que poderíamos abordar. Escolhemos, nesse recorte, mostrar o preconceito linguístico e as variações linguísticas expostos em uma mídia de livre acesso e que representa, hoje, um produto de grande circulação, como é o caso específico do gênero textual das histórias em quadrinhos, que contempla manifestações sociolinguísticas ou de preconceito linguístico, passíveis de serem trabalhados em sala de aula. Constituímos como corpus de pesquisa especificamente três histórias em quadrinhos da Turma do Chico Bento, de Maurício de Sousa. Para isso, pesquisamos em versões online aspectos sobre o criador, suas histórias e sobre a Turma do Chico Bento. As HQs analisadas neste trabalho, entre outras disponíveis tanto online quanto materialmente, podem ajudar como instrumento contra o preconceito linguístico e na divulgação e reconhecimento das variações linguísticas, auxiliando em desenvolver competências, valorizar as diferenças na língua e em diminuir as desigualdades sociais.

Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Turma do Chico Bento. Preconceito linguístico. Variações

linguísticas.

Abstract: This work is a part of a research of the Nupic/FAFIRE and aims at addressing the written

language relations and oral in the comics, and pointing through them, the linguistic prejudice against the “caipira” dialect and linguistic variations. In this regard, we count on on studies of Bagno (2004; 2009; 2010), Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Mollica and Braga (2007), in which we find support. Through the studies, we realized how much the language phenomena are varied and research possibilities that could address. We chose, for this cropping, to show the linguistic prejudice and linguistic variations exhibited in an open access media and is today a great movement of the product, as it is the specific case of comics genre stories, contemplating sociolinguistic expressions or linguistic prejudice, which can be worked in the classroom. We constitute the corpus of research specifically from three comics in Chico Bento’s Gang, by Mauricio de Sousa. In order to do so, we searched online versions, aspects about the creator, his stories and about the Chico Bento’s Gang. The comics analyzed in this work, among other available both online and physically, can help as a tool against linguistic prejudice and the dissemination and recognition of linguistic variations, helping to develop skills, enhancing the differences in language and in reducing social inequalities.

Introdução

Acreditar que o único português correto é o padrão é sustentar um mito e

desmerecer qualquer tipo de variedade linguística, concretizando e incentivando a

permanência do preconceito linguístico. O preconceito linguístico remete à ideia de

1 Graduando em Letras | FAFIRE | E-mail: [email protected]

2 Mestre em Linguística | UFPE | professora da FAFIRE e orientadora da pesquisa | E-mail: [email protected]

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que existe somente uma língua, conhecida como “certa”, que encontramos nas

gramáticas normativas e dicionários (BAGNO, 2007).

De acordo com Ilari e Basso (2006), a Língua Portuguesa do Brasil não é

uniforme, e nela estão presentes as variações linguísticas: diacrônica, diatópica,

diastrática e diamésica, a saber: variação ao longo do tempo, variação relacionada ao

espaço geográfico, variação em diferentes estratos sociais e a variação associada aos

diferentes meios e veículos entre a língua falada e a escrita. Essas variações só

comprovam que a língua não é compacta, mas sim dinâmica, e em constante

mudança. No entanto, tais variedades são desvalorizadas diante do modelo ideal de

língua, a norma de prestígio, caracterizada por muitos estudiosos como norma-padrão.

Para Bagno (2010), quando se estabelece uma norma padrão, ela ganha tanta

importância e prestígio social que as demais variedades são consideradas

“impróprias”, “inadequadas”, “feias”, “erradas”, “deficientes” e “pobres”. A norma

padrão usada na literatura, nos meios de comunicação, nas leis e decretos do governo,

ensinada na escola e explicada na gramática, caracteriza a língua utilizada por pessoas

de nível socioeconômico mais elevado. Porém, além dessa norma padronizada,

consagrada e tão prestigiada, que para Bagno (2007) é o português padrão, existe uma

outra língua que não é aprendida na escola, mas sim adquirida através da tradição

oral, uma língua espontânea e natural, utilizada pelas classes menos favorecidas da

população, como pobres e analfabetos que compõem o nosso país, o português não-

padrão. O português não-padrão caracteriza as pessoas marginalizadas, de nível

econômico baixo, pessoas que falam “errado”, pois falam uma língua diferente da

norma padrão, criando assim vários mitos que a cada dia se consagram em nossa

cultura, e que constituem o preconceito linguístico.

Erros de português são simplesmente diferenças entre variedades da língua.

Com frequência, essas diferenças se apresentam entre a variedade usada no domínio

do lar, onde predomina uma cultura de oralidade, em relações de afeto e

informalidade e culturas de letramento, como a que é cultivada na escola (BORTONI-

RICARDO, 2004). Para Bortoni-Ricardo (2004), os professores não sabem como agir

diante dos “erros de português” – a expressão está entre aspas porque é considerada

inadequada e preconceituosa – e é nesse momento que o aluno usa uma regra não

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padrão e o professor intervém, fornecendo a variante padrão, que as duas variedades

se justapõem na sala de aula.

A partir daí surge o questionamento: como os professores devem proceder

nesses momentos em sala de aula? Na prática, esse comportamento é ainda

problemático para os professores, que ficam inseguros, sem saber se devem ou não

corrigir os erros e quais erros devem ser corrigidos, ou até mesmo se podem ou não

falar em erros na sala de aula.

Para Marcuschi (2010), a oralidade e a escrita se complementam nos mais

diversos usos da linguagem, cada uma com características próprias, ora mais formal

ora menos formal, dependendo do tom de voz na oralidade ou das pontuações e

tamanhos de letras na escrita, mais especificamente nas histórias em quadrinhos, em

que as emoções são representadas através da escrita, pontuações e marcas de

movimento nos desenhos.

Conforme afirmam Leite e Callou (2002), não existe variante boa ou má, língua

rica ou pobre, dialeto superior ou inferior, mas sim variações dialetais em nosso país,

explicitando por meio da fala as características da faixa etária, grupo sociocultural e a

região à qual o indivíduo pertence. No entanto, de acordo com Bortoni-Ricardo (2005),

a realidade é outra: as diferenças de natureza fonológica e morfossintática que

distinguem a linguagem rural da urbana e os diversos dialetos sociais, chamados

socioletos, são profundas. Alguns falantes usam as variedades sociais e étnicas como

recursos de variação da língua para enfatizar sua identidade, alterando-os com traços

da norma padrão quando as circunstâncias o exigem.

De modo geral, as línguas se apresentam de forma interativa mesclando a

linguagem escrita e a oral. Nesta pesquisa, enfocamos as marcas de oralidade e as

variações linguísticas existentes nas histórias em quadrinhos (HQs) do Chico Bento de

Maurício de Sousa, e também a existência do preconceito linguístico que o dialeto

caipira do homem do campo na turma do Chico Bento tem rotulado em si, não sendo

reconhecido como válido, e que é alvo de preconceito por parte dos falantes urbanos e

que são mais letrados, verificando-se e aplicando-se esse instrumento contra o

preconceito linguístico em salas de aula, através de leituras e análises das falas das

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personagens principais desta “turma da roça”, Chico Bento e seus amigos, o primo Zé

Lelé, a namorada Rosinha, a galinha Giselda, o porco Torresmo, entre outros.

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa do Núcleo de Pesquisa e Iniciação

Científica – NUPIC, desenvolvida no curso de graduação em Letras da Faculdade

Frassinetti do Recife – FAFIRE e tem por objetivo abordar relações da linguagem escrita

e oral nas histórias em quadrinhos, e apontar, através delas, o preconceito linguístico

em relação ao dialeto caipira e as variações linguísticas. Para isso, contamos com

estudos de Marcos Bagno, Stella Maris Bortoni-Ricardo, Maria Cecilia Mollica e Maria

Luiza Braga, nos quais encontramos apoio e sustentação para nossa pesquisa. Através

desses estudos, percebemos o quanto os fenômenos da língua são variados e as

muitas possibilidades de pesquisa que poderíamos abordar. Escolhemos, pois, nesse

recorte, mostrar o preconceito linguístico e as variações linguísticas expostos em uma

mídia de livre acesso tanto à criança como aos adolescentes, e que representa, hoje,

um produto de grande circulação, como é o caso específico do gênero textual das

histórias em quadrinhos.

Acreditamos que, através dessa pesquisa, as percepções de preconceito

linguístico e a valorização da língua possam ser identificadas, não somente nas

histórias em quadrinhos, mas também em todos os meios de comunicação,

principalmente na fala cotidiana. Esperamos, no resultado final desta pesquisa, o qual

será apresentado no Congresso de Iniciação Científica do NUPIC em 2017, que os

professores que utilizam esse tipo de texto em sala de aula abordem, além da leitura e

gramática, outros fenômenos da língua, os que estão mais presentes na fala, e com

isso, os alunos possam perceber o quanto a língua portuguesa é variada, e que não

importa a maneira como se fala e, sim, o que se fala.

As histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa

As histórias em quadrinhos, atualmente, são usadas nas salas de aula como

textos complementares e também são consideradas como leitura para diversão.

Justamente por esse fato é que as histórias em quadrinhos foram escolhidas para

mostrar os fenômenos que abordamos nesta pesquisa. Elas estão presentes, tanto na

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vivência escolar, como no cotidiano da criança e do adolescente, e também dos

adultos. Para que o grande público goste tanto deste tipo de leitura, acreditamos que

as histórias em quadrinhos continuam sendo um gênero muito apreciado e valorizado

por seus leitores. Acreditamos, também, que seus produtores tentam aproximá-las o

máximo possível do cotidiano, das vivências reais e, portanto, da língua falada, para

atrair cada vez mais leitores.

Para abordar sobre as histórias em quadrinhos e trazer o aporte teórico da

pesquisa sobre variações e preconceito linguístico, pesquisamos em monografias,

dissertações, teses, artigos científicos, resumos e anais de congressos, revistas e

reportagens, tanto impressas como digitais, sites específicos e livros de referência.

Constituímos como corpus de pesquisa especificamente histórias em quadrinhos da

Turma do Chico Bento, de Maurício de Sousa. Para isso, pesquisamos em versões on-

line aspectos sobre o criador e suas histórias e sobre a Turma do Chico Bento, e

colhemos, no site oficial, a maioria das informações.

Para iniciarmos a questão da variação e do preconceito linguístico nas histórias

em quadrinhos da Turma do Chico Bento, objeto de análise desta pesquisa, faremos

inicialmente, uma breve síntese sobre as histórias em quadrinhos do seu criador

Maurício de Sousa e a personagem Chico Bento.

Em 1961, Maurício Araújo de Sousa cria o inocente e carismático caipira Chico

Bento, uma personagem do campo, com hábitos e costumes tipicamente brasileiros e

que remete ao Jeca Tatu, personagem icônica de Monteiro Lobato. No entanto,

segundo Maurício de Sousa, Chico Bento é inspirado em seu tio-avô, um caipira do

interior de São Paulo, mas que poderia ser qualquer homem do campo retratando a

originalidade do caipira e cronologia de uma época. Chico Bento é uma criança que

representa a pureza, a simplicidade e a simpatia que caracterizam as pessoas do

interior paulista. É o típico caipira que anda de pé no chão, usa um chapéu de palha e

toca modas de viola. Mora na Vila Abobrinha, onde adora gastar seu tempo nadando

no rio, pescando, dormindo na rede e brincando com os seus amigos. Não é muito

interessado nos estudos e tem um carinho enorme pelos animais do seu sítio, como a

galinha Giselda, o porquinho Torresmo e a vaca Malhada.

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Quando surgiu, as tirinhas da personagem eram voltadas ao público adulto e

publicadas em jornais. Nessas tirinhas, a personagem aparecia mais alto e magro do

que o atual, mas sempre de pés descalços, calça coronha pula-brejo e com um chapéu

de palha. Essas características permanecem até hoje na personagem, além da camisa

amarela lisa e da calça azul quadriculada. Em 1982 foi lançada a primeira revista em

quadrinhos da “Turma da Roça”, tendo como personagem principal o próprio Chico

Bento e as personagens secundárias, sua namorada Rosinha, os amigos Zé Lelé e Hiro,

seu primo Zé da Roça, a professora Dona Marocas, o Padre Lino e outras personagens,

como seus pais, e os animais de criação e estimação. De coadjuvante em tirinhas a

personagem principal de uma revista em quadrinhos, foi através de histórias repletas

de humor, inocência, lições de respeito e cidadania que a Turma da Roça conquistou

seu espaço, agradando desde crianças a adultos do público brasileiro, e tornou-se a

“Turma do Chico Bento”, uma revista em quadrinhos à parte da Turma da Mônica, e o

dialeto caipira, que antes era motivo de preconceito e tratada como fala errônea,

começou a ser visto como representante real de uma classe menos privilegiada, uma

vez que o dialeto não deve ser compreendido como um erro e sim como uma variante

de uma língua.

Língua, variação e sociedade

Fizemos, ainda, um breve estudo teórico sobre importantes temas que foram

usados em nossas análises ao longo desta pesquisa. Este trabalho compreende alguns

conceitos de Sociolinguística. Para isso, foi necessária também uma breve reflexão

sobre Variação Linguística, temas que estabelecem relações entre a sociedade e a

língua. Em seguida, apresentamos um estudo sobre o Preconceito Linguístico, tema

presente durante toda a análise do corpus desta pesquisa. Para a realização desse

estudo teórico, baseamo-nos em reflexões de alguns estudiosos, tais como: Bagno

(2004; 2009; 2010), Bortoni-Ricardo (2004; 2005), Mollica e Braga (2007), Silva (2003),

Silveira e Barin (2012), e Werneck (2010).

1. Sociolinguística e variação linguística

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A Sociolinguística, subárea da Linguística, estuda a língua em uso nas

comunidades de fala e se propõe a investigar e correlacionar seus aspectos linguísticos

e sociais. E, como ciência, se faz presente em espaços interdisciplinares, na fronteira

entre língua e sociedade, focalizando os empregos linguísticos concretos,

principalmente os de caráter heterogêneo (MOLLICA; BRAGA, 2007). Segundo Mollica

e Braga (2007), todas as línguas têm um dinamismo inerente. Sendo assim, são

heterogêneas. O português falado no Brasil está repleto de exemplos de formas

distintas que se equivalem no nível do vocabulário, da sintaxe e morfossintaxe, do

sistema fonético-fonológico e no domínio pragmático-discursivo. Cabe, ainda, aos

estudos sociolinguísticos, investigar o nível de estabilidade ou mutabilidade das

variações linguísticas; o surgimento ou extinção de línguas, multilinguismos e

mudanças linguísticas.

A variabilidade linguística está presente em todas as línguas naturais humanas e

a Sociolinguística considera especialmente como objeto de estudo a variação, passível

de ser descrita e analisada cientificamente. Sendo assim, a variação linguística parte do

pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e

sociais, também referidos como variáveis independentes, pois, os usos de estruturas

linguísticas são motivados e essas alternâncias configuram-se como sistemáticas e

previsíveis.

A variação linguística constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de

formas linguísticas alternativas, as variantes, as quais configuram um fenômeno

variável, que é chamado de variável dependente (MOLLICA; BRAGA, 2007). Uma

variável é compreendida como dependente, pois o emprego das variantes não é

aleatório, mas influenciado por grupos de fatores ou variáveis independentes, de

natureza social ou estrutural. Essas variáveis independentes podem ser de natureza

interna ou externa à língua e exercem pressão sobre os usos, aumentando ou

diminuindo sua frequência de ocorrência.

Ao estudar a língua em uso numa comunidade, defrontamo-nos com a realidade

da variação. Os membros dessa comunidade são falantes de idades diferentes e

pertencentes a estratos socioeconômicos distintos, desenvolvendo atividades variadas,

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e é natural que essas diferenças sociais ou externas atuem na forma de cada um

expressar-se (SILVA, 2003).

De acordo com Mollica e Braga (2003), a variação linguística é uma das

características universais das línguas naturais que convive com forças de estabilidade,

pois os usos da língua são controlados por variáveis estruturais e sociais que podem

ser agentes internos ou externos ao sistema linguístico. Das variáveis externas ou não-

linguísticas, registram-se os marcadores regionais predominantes em comunidades

identificadas geograficamente, simultaneamente com indicadores de estratificação

estilístico-social, de forma que a variação descreve tendências de uso linguístico de

comunidades de fala caracterizadas diferentemente quanto ao perfil sociolinguístico.

As variáveis linguísticas e não linguísticas não agem isoladamente, operando na

inibição ou no favorecimento do emprego de variantes semanticamente equivalentes,

admitindo-se que existam pelo menos o padrão popular e o culto.

Metodologia

Neste recorte da pesquisa foram selecionadas e analisadas algumas histórias em

quadrinhos, gênero textual que contempla, muitas vezes, manifestações

sociolinguísticas ou de preconceito linguístico, passíveis de serem trabalhados em sala

de aula. Posteriormente, foi selecionado um corpus, de três HQs, que possibilitou a

discussão com o arcabouço teórico pré-selecionado a respeito da sociolinguística nesse

gênero textual, seguida às variedades da língua portuguesa e às manifestações de

preconceito linguístico.

Análise das histórias em quadrinhos da Turma do Chico Bento

Escolheu-se o gênero textual histórias em quadrinhos (HQs) por tratar de duas

grandes modalidades da língua portuguesa: a língua escrita e a oralidade.

Compreendendo-se a dinâmica do gênero, suas características principais e estruturas

ao expor atos de fala de maneira escrita. Ao representar a oralidade por meio de

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balões, as HQs expõem as variedades do Português falado em diferentes ocasiões,

verificando-se as diferenças entre os falares das diferentes personagens.

A seguir, estão apresentados e discutidos três trechos de HQs selecionadas da

turma do Chico Bento (Figuras 1, 2 e 3).

Figura 1 - História em quadrinhos do Chico Bento. Título: Privilégios da cidade, p. 1.

A figura 1 mostra as personagens Chico Bento e seu primo Zeca em um ambiente

da Zona Rural na fictícia Vila Abobrinha. O primo Zeca inicia o diálogo no quadrinho

criticando o ambiente rural onde Chico Bento vive, chamando o lugar de “fim de

mundo”. E o Chico Bento responde ao primo com uma pergunta: “Fim di mundo, pru

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quê?”, percebendo-se o uso da variação linguística diatópica através do dialeto caipira

utilizado pela personagem. Pelos dados da Figura 1, constata-se uma manifestação

muito comum entre brasileiros preconceituosos: o fato de sentir-se envergonhado,

superior e menosprezar as pessoas que utilizam variação linguística na fala. Apesar de

serem primos, a personagem da cidade não tenta compreender a variação linguística

na fala do primo do campo, e esse tipo de manifestação vindo do seu convívio e

aprendizado no espaço urbano acaba sendo refletido em seus diálogos com a

personagem do espaço rural, a qual não tem contato com ambientes sociais de comum

acesso aos dois, utilizando sua linguagem de maneira natural, mas, às vezes não sendo

compreendido e aceito como é ou fala.

Em todas as falas da personagem Chico Bento há a presença desta variante ou

‘socioleto’, variação pertencente ao português não padrão, considerada erroneamente

como “erro” do português, segundo a norma padrão, e que manifesta preconceito

linguístico, tanto no português escrito quanto na oralidade. Conforme Bagno (2010), a

maioria das pessoas chama de “errado” ou acha que “não é português”,

demonstrando-se que o que muita gente pensa que é “fala de gente ignorante” na

verdade não é. Pois, no momento em que se estabelece uma norma-padrão, ela ganha

tanta importância e prestígio social que as demais variedades são consideradas

“impróprias”, “inadequadas”, “feias” e “pobres”. Sabe-se que o português não é um

bloco compacto e sólido, mas sim um conjunto de “coisas aparentadas” entre si com

algumas diferenças, chamadas variedades não padrão (BAGNO, 2010). Para Bortoni-

Ricardo (2004), a sociedade precisa deixar de acreditar no “erro de português”, e

passar a observar os fenômenos de variação e mudança linguística de modo mais

consciente e cientificamente embasado.

Neste caso específico das histórias em quadrinhos (HQs) do Chico Bento, a

variação linguística é verificada através das alternâncias que se expressam

regionalmente, as variedades geográficas, considerando-se os limites físico-

geográficos, verificados também na fala do primo Zeca. Tradicionalmente, concebe-se

uma ecologia linguística horizontal, com a constituição de comunidades geográficas

com base em marcadores regionais (MOLLICA; BRAGA, 2007). Contudo, para Bagno

(2010), as variedades não são restritas às qualidades intrínsecas, internas e linguísticas

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de uma língua. Sendo assim, as variedades de uma língua têm recursos linguísticos

suficientes para desempenhar sua função de veículo de comunicação, de expressão e

de interação entre os indivíduos, características estas expressadas nos quadrinhos da

Figura 1.

Figura 2 - História em quadrinhos do Chico Bento. Título: Os hóspedes, p. 1.

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A figura 2 mostra as personagens Chico Bento e sua mãe, além dos parentes

chegados da Cidade. Assim como na figura 1, percebemos também na figura 2 que,

para os parentes de Chico Bento, o ambiente rural é um lugar somente para descanso,

e não para se viver, como a cidade grande. Percebemos, entre a fala da mãe de Chico

Bento e do seu Tio Tenório, a utilização de duas variantes linguísticas, que ocorrem

tanto nos eixos diatópico e diastrático, manifestando-se tanto regionalmente, quanto

em diferentes estratos sociais, levando-se em consideração as fronteiras geográficas e

sociais. Concebe-se, neste caso, também, além de uma ecologia linguística horizontal,

uma marcação vertical, gerada por meio de indicadores sociais. A tradição

dialetológica discretizou os padrões sociolinguísticos, distinguindo de forma rígida

variedades como padrão culto, popular e o falar regional. Além dos traços

descontínuos, identificados nos polos rural e urbano, devem-se levar em consideração

recursos comunicativos próprios. O grau de isolamento geográfico e social aumenta os

traços que definem essa estratificação descontínua, assim como as relações sociais e o

grau de relação do falante ao meio (MOLLICA; BRAGA, 2007).

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Figura 3 - História em quadrinhos do Chico Bento. Título: Distraído demais, p. 1.

Percebe-se, a partir da HQ em questão, no diálogo entre Chico Bento e seu

amigo Hiro, que estudam na mesma escola e vivem no mesmo ambiente rural, apesar

de suas diferenças pessoais e de comportamento, além da fala, que existe a

possibilidade de os estudantes respeitarem as manifestações na língua desprestigiadas

pela sociedade, compreendendo que cada cidadão exerce sua comunicação de

maneira única e que as variações linguísticas são decorrentes de vários fatores

extralinguísticos elencados por Bagno (2010), dentre eles: origem geográfica, que

avalia a variação da língua conforme a região geográfica do falante; status

socioeconômico, afirma que as pessoas de nível econômico elevado não falam da

mesma maneira que as demais; grau de escolarização, que discute as variedades da

língua em falantes menos escolarizados; idade, que avalia a língua conforme a faixa

etária do falante; sexo, fator que faz variar a língua conforme o gênero sexual do

falante; mercado de trabalho, que discute as mudanças e variações linguísticas

conforme a profissão do falante; e redes sociais, que tratam das variações linguísticas

conforme as redes de pessoas que convivem no mesmo espaço e partilham dos

mesmos interesses. Essas características linguísticas impregnadas em cada falante

podem ser alteradas no decorrer do tempo, se alguns desses fatores forem alterados,

mas nenhum pode mudar a cultura e a vivência desse falante.

No caso dos dados das figuras 1 e 2, as personagens Chico Bento e sua mãe

apresentam em suas falas a variante do dialeto caipira e sofrem preconceito linguístico

através dos fatores sociais, aumentando as barreiras entre o português padrão e suas

variantes.

Os sociolinguistas têm-se voltado para a análise dessas relações entre as

variações linguísticas verificadas no português falado e escrito por indivíduos de

diferentes realidades, como as personagens observadas nas figuras 1 e 2, identificados

como constituintes dos polos rural e urbano. Neste sentido, o preconceito linguístico

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tem sido discutido, pois, ainda predominam as práticas pedagógicas do certo/errado,

tomando-se como referência o padrão culto. Contudo, sabemos que as línguas em

geral apresentam uma grande diversidade, da qual o falante adquire primeiro as

variantes informais e num processo sistemático e contínuo, pode vir a apropriar-se de

estilos e gêneros formais, aproximando-se das variedades cultas e literárias (MOLLICA;

BRAGA, 2007).

Para Bortoni-Ricardo (2005), apesar de existirem, as diferenças linguísticas

diatópicas e diastráticas são de baixa relevância, já que não impedem a inteligibilidade,

as compreensões e interpretações da fala e da escrita. Segundo a autora, as diferenças

de natureza fonológica e morfossintática que distinguem a linguagem rural da urbana

e os diversos dialetos sociais são mais profundas. Essas diferenças tendem a se

conservar devido ao acesso limitado à ampla e efetiva escolarização. Apesar de a

escola ser corretiva e unificadora da língua, as variedades populares e as que

representam a variação diatópica (rural versus urbana) não desaparecem, pois existem

fatores psicossociais referentes à ideologia vigentes e às atitudes dos falantes em

relação à língua que favorecem sua conservação.

O preconceito linguístico

A Língua Portuguesa, enquanto língua materna e disciplina escolar, deveria estar

ancorada na realidade dos estudantes, e próxima e ao alcance de todas as pessoas de

modo geral, referindo-se às práticas sociais escritas e orais e, dessa forma, ancorada

nos objetos de estudo da sociolinguística: variações e preconceito. O Brasil é um país

rico em diversidades sociais e culturais, e consequentemente, caracteriza-se por ser

um país rico em linguagens. As variações geográficas revelam múltiplas facetas, e

representações de um mesmo português, aquela língua abordada pela gramática

normativa, “única”, “imutável”, “concreta” e “correta”, dão lugar às mais diversas

formas de expressão de acordo com cada região (SILVEIRA; BARIN, 2012).

Para Bagno (2009, p. 27), “não existe nenhuma língua no mundo que seja

uniforme e homogênea. O monolinguísmo é uma ficção”. Percebe-se, assim, que a

problemática no ensino de língua portuguesa é gerada quase que unicamente pelos

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equívocos conceituais elencados, que restringem e condenam a língua não padrão do

ensino. Dessa forma, a variação não padrão é, geralmente, tratada como uma

“anomalia”, uma espécie de anormalidade na língua ou como erro. Na Língua

Portuguesa não é diferente, principalmente no Brasil. Fruto de uma educação

tradicional no ensino da Língua Portuguesa, o pensamento da população brasileira que

teve acesso ao ensino básico entende a Língua Portuguesa como sinônimo de

Gramática Normativa. Em seguida ao estudo e reconhecimento de variações

linguísticas, é preciso trabalhar com os estudantes o trato com o preconceito

linguístico, pois “é preciso que a escola atue no sentido de evitar dicotomias

simplificadoras e reducionistas e que permita a exposição dos estudantes à variedade

sem estimular a reprodução de preconceitos” (BRASIL, 2000, p. 134).

Conforme Bagno (2009), o preconceito linguístico é tão poderoso porque, em

grande medida, ele é invisível, no sentido de que quase ninguém se apercebe dele e

quase ninguém fala dele. Poucas pessoas reconhecem a existência do preconceito

linguístico, que dirá a sua gravidade como um sério problema social. E, quando não se

reconhece sequer a existência de um problema, nada se faz para resolvê-lo. É

evidente, a partir da perspectiva de Marcos Bagno, a necessidade de esclarecimento

aos estudantes sobre a diversidade linguística e do preconceito em que circulam as

práticas de interação linguística, tornando-se necessário, segundo o mesmo autor, um

movimento de combate ao preconceito linguístico em prol da educação de língua

materna como mais democrática e coerente com a sociedade e o sujeito que a

articula. A partir disso, seria inviável continuar a ensinar uma língua de maneira

reduzida, como se houvesse uma única e insubstituível norma a ser seguida. O

português brasileiro é dinâmico por estar sujeito a uma gama de variações no espaço

geográfico e social, no tempo e na escolha do canal de articulação. Assim como a

sociedade brasileira passa por processos de mudança muito rapidamente, o mesmo

acontece com a língua, tornando-se claras as variações implicadas. Dessa forma, é

óbvio e lógico que a Língua Portuguesa não se baseia em um único livro denominado

gramática normativa.

Segundo Werneck (2010), deve-se ter cuidado e respeito ao lidar com pessoas

que têm saberes e produzem cultura, embora se expressem de modo pouco

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familiarizado com a gramática de nossa língua. Não há justificativa para transformar a

linguagem popular ou o dialeto caipira, típico de um espaço rural, em piada, chacota e

risos, porque seria um desrespeito às pessoas que não tiveram oportunidades para

aprender bem, e consequentemente, à sua fala e à sua escrita, ou seja, à sua variante

linguística. Independente do espaço onde é falada ou escrita, a língua deve ser

respeitada, pois esta tem um valor comunicativo, além de estabelecer uma relação de

confiança entre as pessoas, apesar de não ser necessário que os indivíduos em

situações de comunicação tenham pleno conhecimento da língua e oportunidade de

escolha do uso de sua língua.

Utilizando-se como base de exemplificação as HQs analisadas, é comum ouvir a

seguinte frase: “As pessoas sem instrução ou as pessoas da Zona Rural falam tudo

errado”. Isso se deve simplesmente a uma questão que não é linguística, mas social e

política. Pelo fato de as personagens caipiras falarem “ocê”, “carece”, “sô”, “fio”, etc.

Esses indivíduos acabam sendo rotulados e pertencem a uma classe social

desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação e aos bens culturais da

elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas

mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia” e “pobre”, quando na verdade é

apenas diferente da língua ensinada na escola. Assim, o problema não está naquilo

que se fala, mas em quem fala o quê. Neste caso, o preconceito linguístico é

decorrente de um preconceito social.

A militância contra o preconceito linguístico se faz necessária na medida em que,

segundo Bagno (2009, p. 96), “os preconceitos, como bem sabemos, se impregnam de

tal maneira na mentalidade das pessoas que as atitudes preconceituosas se tornam

parte integrante do nosso próprio modo de ser e de estar no mundo”.

Neste sentido, as HQs da Turma do Chico Bento analisadas neste trabalho, entre

outras disponíveis, tanto online quanto materialmente, podem ajudar como

instrumento contra o preconceito linguístico e na divulgação e reconhecimento das

variações linguísticas, auxiliando no sentido de desenvolver competências, valorizar as

diferenças na língua e, principalmente, de diminuir as desigualdades sociais.

Considerações finais

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Mediante as histórias em quadrinhos da Turma do Chico Bento, nas três figuras

apresentadas, estão presentes variações linguísticas e o preconceito linguístico,

objetos de estudo da Sociolinguística. Nessa perspectiva, tendo em vista um ensino

mais democrático, em que o aluno se veja e se represente enquanto articulador de

uma língua, torna-se relevante capacitar o corpo docente e discente ao

reconhecimento das variedades linguísticas existentes.

Os leitores de HQs devem perceber e compreender as personagens e suas falas,

além da escrita, como agentes do processo de interlocução, independente da

linguagem que utilizam, seja pela utilização de variações linguísticas ou pelos

ensinamentos que as personagens passaram para os outros, gerando resultados

significativos como instrumento eficiente contra o preconceito linguístico.

Com base nos pressupostos teóricos aqui trabalhados, destaca-se a importância

desse gênero textual nas aulas de Língua Portuguesa, pois permite o acesso concreto

dos aprendizes ao maior número possível de modalidades faladas e escritas de sua

língua, modalidades que só se realizam empiricamente.

Com relação ao tratamento das variações linguísticas em sala de aula, bem como

do preconceito linguístico decorrente dos mitos em relação à linguagem, comprovou-

se neste trabalho, as possibilidades de aplicação dos temas com os estudantes. Pois,

além de formar um profissional para o mercado de trabalho, a escola deve formar

cidadãos críticos para exercer cidadania nas relações interpessoais em sociedade. Esta

pesquisa também mostra ser possível se desprender da didática centrada na língua

padrão e ir além dos paradigmas referentes à língua, trabalhando e criticando fatores

sociais que envolvem as mudanças e variações linguísticas, além do preconceito

linguístico. Seria importante também a utilização das HQs da Turma do Chico Bento

para possibilitar a formação de estudantes menos preconceituosos ou, pelo menos,

compreensivos e tolerantes com as diversas manifestações da oralidade, fazendo-se

referência e respeitando-se o contexto geográfico e social de cada um. Nesse sentido,

é necessária uma mudança de atitude, perder essa ideia de “certo” e “errado” e

refletir a respeito de um ensino mais consciente e menos preconceituoso.

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Por fim, ressalta-se a possibilidade do trabalho docente com questões sobre a

sociolinguística nas aulas de língua portuguesa, promovendo-se a democracia dos

conteúdos, de materiais didáticos e atividades para desenvolver e a aproximação deles

com a realidade, tornando o espaço da sala de aula um laboratório de análise da língua

como um todo e proporcionando aos estudantes maior desenvolvimento em relação à

sua língua materna, através da ferramenta do gênero textual das histórias em

quadrinhos, servindo de apoio para docentes interessados na temática sociolinguística

e em desenvolver um trabalho social com a língua.

Referências

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Loyola, 2009.

______. A língua de Eulália: novela sociolingüística. 16. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

______. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São

Paulo: Parábola, 2010.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na

sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

______ . Nós cheguemu na escola, e agora? sociolingüística & educação. São Paulo:

Parábola, 2005.

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2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso

em: 21 set. 2016.

ILARI, Rodolfo; BASSO Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a língua

que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.

LEITE, Yonne; CALLOU, Dinah. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São

Paulo: Cortez, 2010.

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MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. (Org.) Introdução à sociolinguística: o

tratamento da variação. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

SILVEIRA, Bruno Tonetto; BARIN, Nilsa Teresinha Reichert. Variação e preconceito: por

uma didática sociolinguística em sala de aula. Disciplinarum Scientia. Santa Maria, v.

13, n. 1, p. 1-16, 2012. (Série: Artes, Letras e Comunicação)

WERNECK, Hamilton. O professor, a linguagem e o aluno. Há um limite para o uso da

linguagem coloquial em sala de aula; o exército do lecionar exige ponderação e

firmeza. Revista Língua Portuguesa. São Paulo, v. 4, n. 53, p. 13, 2010.