vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com cao-guia

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SEÇÃO ARTIGOS Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com cao-guia 1 Advantages and disadvantages on mobility of blind people with guide dog Aline Carrero Fukuhara 2 Ana Claudia Marciano 3 Jaqueline Oppi 4 Ailton Barcelos da Costa 5 Maria Amélia Almeida 6 Rosimeire Maria Orlando 7 RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo analisar a pessoa com cegueira, usuário de cão-guia, na perspectiva da mobilidade, da adaptação e das dificuldades encontradas em relação à acessibilidade. A escolha desse tema surgiu da necessidade de ampliar as escassas experiências e pesquisas relacionadas com o assunto, já que, até onde se pode procurar, em diversas bases de dados nacionais e internacionais, existe uma grande deficiência em termos de pesquisa, o que dificultou a obtenção de informações. A coleta de dados ocorreu pela abordagem diferencial, com um questionário aplicado aos participantes por e-mail e rede social. A pesquisa contou com a participação de três homens com cegueira e usuários de cão-guia. Como resultado, chegou-se à conclusão de que o cão-guia facilita tanto na locomoção quanto na interação social da pessoa cega. Palavras-chave: Educação Especial. Cão-guia. Cegueira. Acessibilidade. Mobilidade. ABSTRACT This research aims to analyze the person with blindness, user guide dog from the perspective of mobility, adaptability, and the difficulties encountered in relation to accessibility. Having the choice of this theme emerged from the need to expand the meager experiences and research related to the subject, since, so far as one can search on several bases of national and international data, there is a great deficiency in terms of research, which difficult to obtain information. Data collection occurred through differential approach with a questionnaire administered to participants via email and social networking. The research involved the participation of three people with blindness and user guide dog, male. As a result, came to the conclusion that the guide dog makes both in mobility and in social interaction blind person. Keywords: Special Education. Guide dog. Blindness. Accessibility. Mobility. 1 Trabalho desenvolvido na disciplina Processos Investigativos I: Planejamento do Trabalho Científico, sob a orientação das professoras Maria Amélia Almeida e Rosimeire M. Orlando, e co-orientação do doutorando Ailton Barcelos da Costa na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 2 Licencianda em Educação Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 3 Licencianda em Educação Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 4 Licencianda em Educação Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 5 Doutorando em Educação Especial no Programa de Pós-graduação em Educação Especial da UFSCar. E-mail: [email protected] 6 Docente do Curso de Licenciatura em Educação Especial e do Programa de Pós-graduação da UFSCar. E-mail: [email protected] 7 Docente do Curso de Licenciatura em Educação Especial e do Programa de Pós-graduação da UFSCar. E-mail: [email protected] 138 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

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A presente pesquisa tem como objetivo analisar a pessoa com cegueira, usuário de cão-guia, na perspectivada mobilidade, da adaptação e das dificuldades encontradas em relação à acessibilidade. A escolha dessetema surgiu da necessidade de ampliar as escassas experiências e pesquisas relacionadas com o assunto, jáque, até onde se pode procurar, em diversas bases de dados nacionais e internacionais, existe uma grandedeficiência em termos de pesquisa, o que dificultou a obtenção de informações. A coleta de dados ocorreupela abordagem diferencial, com um questionário aplicado aos participantes por e-mail e rede social. Apesquisa contou com a participação de três homens com cegueira e usuários de cão-guia. Como resultado,chegou-se à conclusão de que o cão-guia facilita tanto na locomoção quanto na interação social da pessoacega.

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    Vantagens e desvantagens na mobilidade da

    pessoa cega com cao-guia1 Advantages and disadvantages on mobility of blind people with guide dog

    Aline Carrero Fukuhara 2

    Ana Claudia Marciano3

    Jaqueline Oppi4

    Ailton Barcelos da Costa5

    Maria Amlia Almeida6

    Rosimeire Maria Orlando7

    RESUMO

    A presente pesquisa tem como objetivo analisar a pessoa com cegueira, usurio de co-guia, na perspectiva da mobilidade, da adaptao e das dificuldades encontradas em relao acessibilidade. A escolha desse tema surgiu da necessidade de ampliar as escassas experincias e pesquisas relacionadas com o assunto, j que, at onde se pode procurar, em diversas bases de dados nacionais e internacionais, existe uma grande deficincia em termos de pesquisa, o que dificultou a obteno de informaes. A coleta de dados ocorreu pela abordagem diferencial, com um questionrio aplicado aos participantes por e-mail e rede social. A pesquisa contou com a participao de trs homens com cegueira e usurios de co-guia. Como resultado, chegou-se concluso de que o co-guia facilita tanto na locomoo quanto na interao social da pessoa cega. Palavras-chave: Educao Especial. Co-guia. Cegueira. Acessibilidade. Mobilidade.

    ABSTRACT

    This research aims to analyze the person with blindness, user guide dog from the perspective of mobility, adaptability, and the difficulties encountered in relation to accessibility. Having the choice of this theme emerged from the need to expand the meager experiences and research related to the subject, since, so far as one can search on several bases of national and international data, there is a great deficiency in terms of research, which difficult to obtain information. Data collection occurred through differential approach with a questionnaire administered to participants via email and social networking. The research involved the participation of three people with blindness and user guide dog, male. As a result, came to the conclusion that the guide dog makes both in mobility and in social interaction blind person. Keywords: Special Education. Guide dog. Blindness. Accessibility. Mobility.

    1 Trabalho desenvolvido na disciplina Processos Investigativos I: Planejamento do Trabalho Cientfico, sob a orientao das professoras Maria Amlia Almeida e Rosimeire M. Orlando, e co-orientao do doutorando Ailton Barcelos da Costa na Universidade Federal de So Carlos (UFSCar).

    2 Licencianda em Educao Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 3 Licencianda em Educao Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 4 Licencianda em Educao Especial na UFSCar. E-mail: [email protected] 5 Doutorando em Educao Especial no Programa de Ps-graduao em Educao Especial da UFSCar. E-mail: [email protected] 6 Docente do Curso de Licenciatura em Educao Especial e do Programa de Ps-graduao da UFSCar. E-mail: [email protected]

    7 Docente do Curso de Licenciatura em Educao Especial e do Programa de Ps-graduao da UFSCar. E-mail: [email protected]

    138 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    1. Introduo e justificativa

    A presente pesquisa trata das vantagens e desvantagens da orientao e mobilidade de

    pessoas com cegueira, usurias de co-guia, surgindo da necessidade de ampliar as escassas

    pesquisas, em nvel tanto nacional como internacional.

    Quanto deficincia visual, esta no pode ser definida apenas no sentido fsico, mas

    tambm no sentido social, uma vez que as dificuldades encontradas por pessoas com cegueira so

    muitas (WIGGETT-BARNARD; STEEL, 2008). Para essas autoras, uma vez que o ambiente no

    apropriado, ou quando as pessoas ainda no aceitam a ideia de um co entrar nos lugares pblicos

    ou privados, a vida da pessoa com deficincia se torna ainda mais complicada. Isso ocorre porque

    parte das pessoas no entende que ele um co treinado, que est ali para ser a viso da pessoa

    com deficincia, deixando de ser apenas um cachorro e passando a ser seu companheiro a

    trabalho (WIGGETT- BARNARD; STEEL, 2008).

    Tais barreiras ambientais e atitudinais so largamente encontradas no Brasil, como a

    dificuldade de acesso com segurana e autonomia aos espaos pblicos, edificaes, mobilirios,

    transportes, meios de comunicao, alm da falta de piso ttil e de compreenso com a permisso

    do acesso do co-guia a locais pblicos e privados (S, 2003). Por sua vez, S (2003), ao tratar da

    questo social, coloca em evidncia o preconceito e a falta de oportunidades para as pessoas

    cegas, mas isso vem mudando rapidamente ao longo dos ltimos 10 anos. Isso fica evidente na

    fala de Souza (2013), quando diz:

    Ao lado das lutas clssicas por acessibilidade e mobilidade urbana, eles reivindicam pleno acesso a terminais bancrios, etiquetagem braile em produtos de consumo, cardpios em restaurantes e folhetos publicitrios em braile ou udio. No campo da comunicao, lutam pela implementao do recurso da audiodescri- o em produtos audiovisuais, acessibilidade telefonia mvel, acessibilidade na web e subsdios para o acesso a tecnologias assistivas.

    Porm, o reconhecimento da acessibilidade como um importante tema, sua efetivao,

    pelo menos no Brasil, ainda no alcanou o estatuto de poltica permanente e consolidada, o que

    reduz o usufruto, por parte desses indivduos, de direitos de cidadania e desqualifica suas

    possibilidades de emancipao (SOUZA, 2003).

    Nesse sentido, pode-se falar da legislao sobre a acessibilidade do co-guia, iniciando

    por Martinez (2011), que diz que a Lei no 11.126/2005 permite a entrada do co- guia em

    ambientes de uso coletivo (restaurantes, shoppings, aeronaves, supermercados, txis, nibus, metrs, entre outros). Segue abaixo o texto da lei na ntegra:

    Art. 1o assegurado pessoa portadora de deficincia visual usuria de co-guia o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veculos e nos estabelecimentos pblicos e privados de uso coletivo, desde que observadas as condies impostas por esta Lei.

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    1o A deficincia visual referida no caput deste artigo restringe-se cegueira e baixa viso.

    2o O disposto no caput deste artigo aplica-se a todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no territrio brasileiro. Art. 2o (VETADO).

    Art. 3o Constitui ato de discriminao, a ser apenado com interdio e multa, qualquer tentativa voltada a impedir ou dificultar o gozo do direito previsto no art. 1o desta Lei. Art. 4o Sero objeto de regulamento os requisitos mnimos para identificao do co-guia, a forma de comprovao de treinamento do usurio, o valor da multa e o tempo de interdio impostos empresa de transporte ou ao estabelecimento pblico ou privado responsvel pela discriminao.

    Art. 5o (VETADO).

    Art. 6o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicao.

    Braslia, 27 de junho de 2005.

    LUIZ INCIO LULA DA SILVA

    Em seguida, o Decreto no 5.904, de 21 de setembro 2006, vem regulamentar a lei citada.

    Nessa regulamentao, ficam claros os diretos e deveres do usurio de co-guia, bem como a

    discriminao de locais em que so permitidos sua entrada ou no, conforme os artigos a seguir:

    Art. 1o A pessoa com deficincia visual usuria de co-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal em todos os locais pblicos ou privados de uso coletivo. 1o O ingresso e a permanncia de co em fase de socializao ou treinamento nos locais previstos no caput somente poder [sic] ocorrer quando em companhia de seu treinador, instrutor ou acompanhantes habilitados. 2o vedada a exigncia do uso de focinheira nos animais de que trata este Decreto, como condio para o ingresso e permanncia nos locais descritos no

    caput. 3o Fica proibido o ingresso de co-guia em estabelecimentos de sade nos setores de isolamento, quimioterapia, transplante, assistncia a queimados, centro cirrgico, central de material e esterilizao, unidade de tratamento intensivo e semi-intensivo, em reas de preparo de medicamentos, farmcia hospitalar, em reas de manipulao, processamento, preparao e armazenamento de alimentos e em casos especiais ou determinados pela Comisso de Controle de Infeco Hospitalar dos servios de sade. 4o O ingresso de co-guia proibido, ainda, nos locais em que seja obrigatria a esterilizao individual. 5o No transporte pblico, a pessoa com deficincia visual acompanhada de co-

    guia ocupar, preferencialmente, o assento mais amplo, com maior espao livre

    sua volta ou prximo de uma passagem, de acordo com o meio de transporte. Art.

    6o O descumprimento do disposto no art. 1o sujeitar o infrator s seguintes

    sanes, sem prejuzo das sanes penais, cveis e administrativas cabveis:

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  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    I - no caso de impedir ou dificultar o ingresso e a permanncia do usurio com o co-guia nos locais definidos no caput do art. 1o ou de condicionar tal acesso separao da dupla: Sano - multa no valor mnimo de R$ 1.000,00 (mil reais) e mximo de R$

    30.000,00 (trinta mil reais); II - no caso de impedir ou dificultar o ingresso e a permanncia do treinador, instrutor ou acompanhantes habilitados do co em fase de socializao ou de treinamento nos locais definidos no caput do art. 1o ou de se condicionar tal acesso separao do co: Sano - multa no valor mnimo de R$ 1.000,00 (mil reais) e mximo de R$

    30.000,00 (trinta mil reais); e

    III - no caso de reincidncia:

    Sano - interdio, pelo perodo de trinta dias, e multa no valor mnimo de R$ 1.000,00 (mil reais) e mximo de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

    Uma vez claros os diretos e deveres do usurio de co-guia, e os locais em que so

    permitidos sua entrada ou no, estando estabelecido o direito de ir e vir do co, importante falar

    sobre como as pessoas podem lidar com ele. Nesse sentido, o Instituto Iris (s.d.) elencou 10

    pontos que as pessoas precisam saber quando estiverem diante de um co-guia, conforme

    seguem:

    1. Nunca fale ou toque no co-guia enquanto ele estiver com a guia e o colete. O uso deste equipamento significa que ele est trabalhando, ou seja, conduzindo o seu dono, portanto no pode perder o foco de suas atividades. 2. Jamais alimente o co-guia. Ele tem horrio certo para comer. 3. O co-guia fofinho, mas est trabalhando. Ele s pode ser acariciado quando estiver sem a coleira e o colete - sinal de que est no intervalo de descanso. 4. Se estiver com algum co, controle-o para que no prejudique o trabalho do co-guia e seu dono. 5. No tenha medo do co-guia: ele bem treinado e no vai te morder. 6. Se quiser ajudar uma pessoa com deficincia visual e seu co-guia, pergunte primeiro se o dono est precisando de auxlio. Jamais o toque sem que ele esteja preparado. 7. Em nibus ou no metr, seja gentil e deixe o co-guia e o seu dono entrarem primeiro no coletivo. Isso facilita o trabalho do co. 8. Nos coletivos, o co-guia sempre se posiciona aos ps do seu dono, acomodado no assoalho. Alm disso, est treinado e habituado a viajar em qualquer tipo de transporte, dentro e fora do pas. Tome cuidado, ao sair, para no pisar nele. 9. O co-guia est habituado e capacitado a entrar e permanecer em todos os tipos de estabelecimento. Fique tranquilo: ele no far baguna ou causar transtornos. 10. A Lei 11.126 garante o acesso da pessoa com deficincia visual e seu co-guia a qualquer ambiente coletivo, pblico ou privado.

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    Falando agora da relao do co com a pessoa cega, pode-se comear com Lindemann

    (LINDEMANN; BOYD, 1981), que relata que, ao longo dos anos, essas pessoas foram se tornando

    mais independentes em razo dos recursos que lhes eram oferecidos. Para Mendona e

    colaboradores (2008) e Hoffman (1999), essa independncia da pessoa com deficincia visual

    adquirida por meio do processo de orientao e mobilidade, o qual composto por um conjunto

    de habilidades motoras, cognitivas, sociais e emocionais, e por um grupo de tcnicas especficas

    (guia vidente, proteo e bengala), que lhe possibilitam conhecer, relacionar-se e deslocar-se de

    forma independente e autnoma nas vrias estruturas, nos espaos e nas situaes do ambiente.

    Por sua vez, Felippe (2001) diz que essa mobilidade da pessoa com deficincia visual por

    ser feita com a ajuda de outra pessoa (guia vidente), usando seu prprio corpo (autoprotees),

    usando uma bengala (bengala longa), usando um animal (co-guia) e usando a tecnologia.

    No entanto, para Santos e Castro, a orientao o aprendizado no uso dos sentidos para

    obter informaes do ambiente: saber onde est, para onde vai ou como fazer para ir a algum

    lugar. Podem-se usar audio, tato, cinestesia (percepo dos movimentos), olfato e viso

    residual, se ela existir. A mobilidade o aprendizado para o controle dos movimentos de forma

    organizada e eficaz (SANTOS; CASTRO, 2013).

    Dessa forma, percebe-se que a orientao e a mobilidade de uma pessoa cega com a

    bengala exigem uma percepo dos movimentos (SANTOS; CASTRO, 2013), e que o uso do

    co-guia exige outra construo desse corpo (WIGGETT-BARNARD; STEEL, 2008).

    Quando se fala da mobilidade com um animal (co-guia), para Dunca e Allen (2000), a

    melhora da autoestima dessas pessoas tem sido associada aos ces de servio, que um tipo de

    co de assistncia treinado especificamente para ajudar as pessoas que tm deficincia,

    distinguindo significativamente dos no proprietrios, melhorando, assim, sua autoestima. No

    mesmo sentido, as pessoas tm maior autoestima, confiana, tolerncia e independncia aps a

    aquisio do co de servio, tendo resultados positivos de aumento da autoestima,

    principalmente dentro de seis meses depois de os participantes receberem o co (VALENTINE;

    KIDDOO; LAFLEUR, 1993).

    Quanto utilizao do co-guia, no se conhece ao certo como ele surgiu, mas

    acredita-se que seja bastante antigo, com diversos relatos ao longo da histria da humanidade,

    como o da existncia de uma gravura nas runas romanas do sculo I da cidade de Heculaneum

    (MARTNEZ, 1991). Porm, a primeira tentativa de treinamento de ces para guiar cegos remonta

    a 1780, no hospital para cegos Les Quinze-Vingts de Paris. Em 1788, Josef Riesinger, austraco,

    treinou um spitz alemo to bem que as pessoas duvidavam que ele fosse cego (TAVOLIERI, 2013;

    MARTNEZ, 1991).

    142 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    Foi somente durante a Primeira Guerra Mundial que foi iniciada a utilizao de

    pastores-alemes como ces mensageiros e guias, facilitando a mobilidade dos soldados feridos

    que retornavam cegos da frente de batalha, chegando-se a usar mais de 25 mil ces (OSTERMEIER,

    2010). Para o autor, com o final da guerra se aproximando, foi criada em 1916 a primeira escola de

    ces-guia do mundo, localizada em Oldenburg, Alemanha.

    Aps a Primeira Guerra Mundial, a Escola Evergreen (Hospital Geral do Exrcito dos

    Estados Unidos), em Baltimore, tornou-se o centro de reeducao dos soldados de guerra que

    estavam cegos e realizou um extenso programa educacional e de reabilitao, alm de prestar

    cuidados hospitalares e mdicos aos homens (OSTERMEIER, 2010).

    Ainda para Ostermeier (2010), os mais de 80 anos subsequentes de treinamento e

    difuso de escolas de co-guia nos Estados Unidos levaram a mais de 10 mil ces-guia em

    atividade naquele pas nos dias de hoje, sendo eles hoje usados tanto por civis quanto por

    veteranos de guerra.

    Quanto introduo do co-guia no Brasil, no existem informaes seguras sobre isso.

    J sobre o nmero de ces-guia em atuao, Tavolieri (2013) diz que atualmente existem entre 70

    e 100 deles em atuao.

    Atualmente, como ces-guia so utilizadas raas como o labrador retriever,

    pastor-alemo, golden retriever, primeiro cruzamento de labrador retriever com golden retriever

    e primeiro cruzamento de border collie com golden retriever, airedale terrier, border collie, boxer,

    dlmata, schnauzer gigante, samoyed e poodle padro (para os candidatos ou seus familiares que

    sejam alrgicos a pelo de cachorro), alm de outras raas puras e cruzadas (AMDIO; FERREIRA,

    1988).

    Em relao reviso terica sobre a temtica da mobilidade com o co-guia, em nvel

    tanto nacional quanto internacional, foram poucos os estudos encontrados sobre o assunto,

    principalmente quando se trata da literatura brasileira.

    Para se chegar a essa concluso, recorreu-se ao banco de dados brasileiro da

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) e ao peridico brasileiro

    especializado revista Benjamin Constant. Em seguida, foram consultadas as bases de dados Education Resources Information Center (Eric), o Catlogo de Publicaciones de Servici- os Sociales da Organizacin Nacional de Ciegos Espanoles (Once) e os peridicos British Journal of VisualImpairment e Journalof VisualImpairment&Blindness. Foram empregados os seguintes descritores representativos da temtica de investigao para o perodo compreendido entre 2003

    e 2013, utilizados isoladamente e em associao, em ingls, portugus e espanhol: "cegueira",

    "deficincia visual" e "co-guia".

    Comeando pelas pesquisas brasileiras, S (2003) fala sobre os vrios instrumentos

    usados pelas pessoas cegas para se locomover. Para a autora, destaca-se a opo pelo co-guia,

    que poderia amenizar um pouco essa questo de segurana em sua mobilidade.

    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 143

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    Na verdade, ele tem sua utilizao pouco difundida, de difcil acesso e aceitao social, ou seja,

    ainda recente a lei que garante o acesso de pessoas com deficincia visual acompanhadas do

    co-guia a ambientes de uso coletivo (S, 2003). Ainda segundo a autora, no Brasil, a Lei no

    12.492/1997 colaborou para que uma mulher pudesse circular no metr com seu co-guia, como

    relatado a seguir:

    So numerosos e desafiadores os obstculos que dificultam ou impedem a locomoo, a livre circulao, a comunicao, a interao fsica e social das pessoas cegas ou com baixa viso em suas atividades dirias. No raro, estas pessoas convivem com atitudes, atos discriminatrios e estruturas excludentes que convertem o quotidiano em campo de batalha e tornam a condio de cidadania mera abstrao ou um ideal inatingvel. (S, 2003, p. 4)

    J Moura e Castro (1998) apresenta a evoluo dos instrumentos utilizados por

    deficientes visuais e o crescimento da disciplina orientao e mobilidade (O&M) ao longo da

    histria. Para ele, o processo de O&M, ao ser estudado e aplicado, deve implicar a opinio dos

    prprios cegos, dos tcnicos e da populao em geral, porm h ainda muito a estudar na rea.

    Ainda em relao ao Brasil, Martinez (2011) narra em forma de autobiografia sua

    histria com o co-guia Boris e a luta para ter acesso ao metr da cidade de So Paulo. A autora

    inspirou a aprovao de duas leis - uma estadual, em 2001, e outra federal, em 2005 -, que

    garantem o acesso de ces-guia a todo e qualquer local pblico e privado de uso coletivo.

    Com relao literatura internacional, comea-se por Ostermeier (2010), j citado, que

    trata da primeira escola de ces-guia do mundo, estabelecida na Alemanha durante a Primeira

    Guerra Mundial, e da criao e difuso de escolas de co-guia nos Estados Unidos durante o sculo

    XX.

    Amdio e Ferreira (1998), por sua vez, apresentam uma traduo parcial de um artigo

    sobre co-guia da Royal New Zealand Foundation for the Blind Guide Dog Services. O artigo, no

    formato pergunta-resposta, esclarece as dvidas mais frequentes sobre o uso de co-guia, ainda

    incomum poca de sua publicao.

    Gray (2008) reporta alguns aspectos da investigao de O&M, independncia e

    qualidade de vida por 147 crianas e jovens com deficincia visual entre 0 e 19 anos na Irlanda do

    Norte.

    J Casals (2007) analisa aspectos da O&M de usurios de ces-guia, fazendo

    comparaes com o uso da mobilidade com a bengala e com o auxlio de guia vidente,

    mostrando-os como uma habilidade complementar ao uso da bengala e do guia vidente.

    Por fim, Wiggett-Barnard e Steel (2008) exploraram a dinmica da posse do co- guia na

    frica do Sul com seis participantes. Por meio de uma entrevista estruturada, as

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  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    autoras dizem que esta proporcionou uma compreenso mais clara do co-guia e de seu

    relacionamento com o proprietrio, bem como da influncia do co na vida de uma pessoa com

    cegueira. De fato, tal experincia parece provocar uma mudana de vida, com consequncias

    negativas e positivas para a pessoa cega (WIGGETT-BARNARD; STEEL, 2008). Esse estudo tambm

    aponta o uso do co-guia como auxlio no desenvolvimento da coordenao motora da pessoa

    cega.

    Dessa forma, chegou-se naturalmente s questes da pesquisa: Como a acessibilidade

    da pessoa cega com o co-guia no transporte, nos estabelecimentos pblicos e privados

    brasileiros? Quais as diferenas em sua mobilidade em relao bengala?

    2. Objetivos

    A presente pesquisa teve como objetivo investigar as vantagens e desvantagens do

    co-guia em relao mobilidade da pessoa cega.

    Quanto aos objetivos especficos, procurou-se investigar:

    a relao do co-guia com a pessoa cega;

    os possveis benefcios da utilizao do co-guia;

    o cumprimento da legislao sobre o acesso do co-guia.

    3. Mtodo

    A pesquisa qualitativa, usando a abordagem diferencial, que teve como intuito

    investigar a natureza e as causas da variao e desenvolvimento dentro de uma populao com

    deficincia visual (WARREN, 1994).

    Foram selecionados sete participantes, usurios de co-guia, por meio de rede social da

    internet, em comunidades de cinco instituies de atendimento especializado ao deficiente visual

    com co-guia ou escola de treinamento, localizadas no Brasil.

    Aps a aprovao da pesquisa no Conselho de tica de Pesquisas com Seres Humanos da

    Universidade Federal de So Carlos, com o Parecer no 443.193/2013, foi realizado o contato com

    os participantes, explicando o propsito da pesquisa e convidando-os a assinar o Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

    A coleta de dados ocorreu por entrevista estruturada, pela prpria rede social, enviando

    formulrios para eles responderem e enviarem de volta para os pesquisadores.

    A anlise de dados foi baseada em Wiggentt-Barnard e Stell (2008), analisando as

    respostas de forma qualitativa.

    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 145

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    Quanto aos materiais e equipamentos, foram utilizados na pesquisa os seguintes

    materiais: folha de sulfite A4, lpis, caneta, borracha, notebook e impressora. Como instrumento de pesquisa, foi construdo um questionrio estruturado baseado em

    Amdio e Ferreira (1998), S (2003) e Wiggentt-Barnard e Stell (2008), tendo sido este revisado

    por juzes (alunos de ps-graduao do PPGEEs/UFSCar e que eram mentores na referida disciplina

    de graduao), o qual segue na ntegra no Apndice.

    4. Resultados e discusso

    Para a realizao da pesquisa, o grupo contou com a participao de sete usurios de

    co-guia, o que corresponde a cerca de 10% dessa populao disponvel no Brasil, chamados de

    P1, P2, P3, P4, P5, P6 e P7, sendo cinco do sexo masculino e duas do sexo feminino, com idades

    entre 27 e 64 anos.

    Sobre a obteno e o treinamento, trs participantes conseguiram seus ces no Brasil e

    quatro, nos Estados Unidos, evidenciando a dificuldade em sua obteno no pas, apesar do

    crescente nmero de escolas de treinamento, indo ao encontro de Martinez (2011) e S (2003).

    H divergncias sobre o tempo de treinamento do animal e acompanhamento,

    provavelmente por falta de informao, ou as respostas dos participantes dizem respeito somente

    a uma das fases do treinamento, como vemos a seguir em P1 e P3, respectivamente:

    O treinamento do co-guia foi realizado nos Estados Unidos. O treinamento dura aproximadamente um ano e meio e quando o deficiente vai buscar o co-guia nos Estados Unidos fica l por volta de um ms para se socializar com o co-guia. (Participante P1)

    Em So Paulo, durao de trinta dias. (Participante P3)

    Quanto sua manuteno, todos os participantes disseram que similar ao cuidado de

    um animal comum, como vemos a seguir em P7 e P3, respectivamente:

    Quanto a custos, um co-guia custa, para o usurio, o mesmo que um co de companhia bem-cuidado; algumas instituies oferecem alguma ajuda com vacinas, alimentos etc. Os ces que vm do exterior costumam trazer um kit de utenslios e produtos para o co, mas a manuteno por conta do usurio. (Participante P7)

    Para o cego, o custo de cuidar de um co parecido com [o de] um cachorro comum, em torno de duzentos reais por ms. (Participante P3)

    Uma grande dificuldade relatada pelos participantes de se conseguir um co- guia no

    Brasil (MARTINEZ, 2011 ; S, 2003) em razo da existncia de poucos locais de treinamento e de

    seu alto custo, com tempo de espera de aproximadamente cinco anos,

    146 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    prximo realidade da frica de Sul, concordando com o relatado por Wiggentt-Barnard

    e Stell (2008), mas bem longe da realidade dos Estados Unidos (OSTERMEIER, 2010). Observa-se

    isso na fala do participante P3:

    No Brasil a dificuldade est em falta de apoio do governo para as instituies. O custo de treinamento de um co para a instituio gira em torno de trinta mil reais. No Brasil no se compra co-guia. O usurio cego entra em uma fila e aguarda um co compatvel com seu perfil. Eu fiquei cinco anos na fila.

    Quanto adaptao com o co-guia, P1, P3, P4, P5 e P7 relataram no terem tido

    nenhuma dificuldade, ao contrrio de P2 e P6, indo ao encontro de Wiggett-Barnard e Steel

    (2008). Observa-se isso na fala de P4: "Parece que eu j nascera para andar com ces- guia. No

    senti nenhuma dificuldade."

    Por sua vez, P2 e P6 falam da dificuldade na adaptao com o animal. Por sua vez, P6

    relata: "As dificuldades que tive em sua maioria ocorreram por eu no confiar totalmente em

    alguns momentos na concentrao do co-guia, bem como no exercer plenamente o domnio

    sobre ele."

    Sobre o meio de locomoo dos participantes, todos relataram usar o co-guia em

    detrimento da bengala longa, por ele proporcionar inmeras vantagens, como eficaz deteco de

    obstculos areos, poder percorrer grandes distncias com ritmo intenso e trazer segurana e

    confiana na locomoo em lugares desconhecidos pelos usurios (CASALS, 2007).

    Os participantes destacaram tambm, como grande vantagem do uso de co-guia, o fato

    de ele proporcionar e facilitar a interao social com as demais pessoas (VALENTINE; KIDDOO;

    LAFLEUR, 1993; DUNCAN; ALLEN, 2000; WIGGENTT-BARNARD; STELL, 2008).

    Essas vantagens so vistas claramente na fala do participante P2:

    Acredito que, basicamente, posso percorrer grandes distncias, num ritmo muito mais intenso, com o co-guia; outro benefcio a interao com as pessoas, que ocorre atravs do co. No meu caso, j tive uma experincia bem sria, com relao segurana; em novembro de 2008, ao puxar a porta do elevador, no 12o

    andar, por trs vezes "mandei" o co entrar e ele no me obedeceu; logo eu soube que a porta se abriu sem o elevador estar presente.

    Elas tambm so demostradas na fala de P5: "Com o co-guia, temos mais autonomia e

    liberdade, e certamente mais segurana para andar em locais que no conhecemos."

    Quando se pergunta se os participantes enfrentaram alguma dificuldade em acessar

    lugares pblicos e privados (nibus, metrs, avies, trens, txis, lojas, restaurantes etc.), seis

    usurios de co-guia relatam que encontraram, exceto P6, que alegou que no enfrenta nenhuma

    dificuldade.

    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 147

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    Tais dificuldades citadas se referem principalmente ao fato de as pessoas confundirem o

    co-guia com um cachorro comum, impedindo-o de acessar lugares pblicos e privados,

    concordando com Martinez (2011) e S (2003) quando se referem realidade brasileira. Alm

    disso, os autores supracitados apontaram o no cumprimento de leis estaduais e federais, alm do

    no estabelecimento de uma cultura do uso do co-guia no Brasil, concordando com a realidade

    sul-africana (WIGGETT-BARNARD; STEEL, 2008) e a pesquisas brasileiras (MARTINEZ, 2011; S,

    2003).

    Esse fato aparece na fala do participante P3: "A maior dificuldade as pessoas

    confundirem um co-guia com outro cachorro qualquer, tentando impedir o livre acesso, mesmo

    garantido por lei, fazendo com que muitas vezes eu tenha de explicar a situao."

    Um dos grandes problemas encontrados pelos usurios de co-guia se refere

    locomoo em txis, j que, dos seis que alegaram problemas, cinco citaram esse como um grande

    problema na locomoo com co-guia nas cidades brasileiras, o que pode ser visto claramente na

    fala do participante P7:

    Comecei a usar co-guia em 1993 e l se vai muito tempo, muita coisa mudou de l para c, mas, o que persiste, at hoje, , de vez em quando, dificuldade com taxistas; acontecem recusas de nos transportar, mas, quando se consegue entrar no txi mesmo a contragosto do motorista, nunca me aconteceu de chegar ao destino sem que o taxista me pedisse desculpa e declarasse que, de ento adiante, receberia cegos e seus guias com prazer. Nos ltimos 20 anos as coisas mudaram radicalmente, no temos mais quase nenhum problema de acesso com nossos ces em locais pblicos de uso coletivo; alguns condomnios podem, eventualmente, tentar alguma coisa, mas a lei explcita e logo se resolve tudo.

    Esse resultado similar ao da realidade sul-africana, descrita por Wiggett-Bar- nard e

    Steel (2008), e tambm vai ao encontro de S (2003).

    Outro problema ocorre quando as pessoas, ao confundirem o co-guia com um cachorro

    comum, brincam com ele, distraindo-o, prejudicando seu trabalho (WIGGETT- BARNARD; STEEL,

    2008). Isso relatado pelo participante P3:

    O co-guia pode brincar e receber carinho, desde que no trabalhando. Fazer carinho ou brincar com co-guia em hora de trabalho pode causar acidentes graves para o co ou seu dono, j que a ateno do mesmo ser desviada.

    J o participante P7 diz que o fato de algumas pessoas brincarem com o co- guia no

    atrapalha, como se nota em sua fala, a seguir:

    As pessoas costumam brincar, e isso no traz nenhuma influncia quanto ao trabalho do co-guia, se a pessoa cega utilizadora do co souber manter a liderana enquanto chefe da matilha, posto que todo dono de ces tem de saber manter essa liderana. Embora os instrutores e escolas digam que permitir que as

    148 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    pessoas brinquem com o co lhe tira a ateno, no acredito que seja verdade, por experincia prpria. Apenas quando ele est efetivamente guiando, ou seja, andando, no aconselhvel brincar com o co. Afinal, ele est trabalhando naquele momento.

    Por fim, indagados se existia alguma pergunta ou informao que no foi perguntada

    e que queriam esclarecer, trs deles (P1, P2 e P5) deram respostas relativas aos cuidados com o

    co-guia, como em Martinez (2011). Isso observado na fala de P5:

    Em caso de doena do co-guia, voc tem algum auxlio da instituio que o forneceu? Resposta, no meu caso especificamente, estou enfrentando desde janeiro um problema com o sangue e problemas hepticos com meu co-guia, que me obrigou a promover uma campanha pela internet, a fim de conseguir recursos para poder bancar o tratamento, que pode ser consultada no meu blog. Ou seja, a instituio no auxiliou em nada. J outras instituies do todo o auxlio, inclusive promovendo o tratamento de sade em seus prprios centros de treinamento, como o caso da instituio de Braslia no Distrito Federal.

    Duas respostas (P3 e P4) foram no sentido de obteno do co-guia, no diferindo

    muito de Martinez (2011), como se observa na fala de P4: "Conseguir um co-guia no Brasil ainda

    muito difcil. As ofertas so bem poucas e h muita procura."

    J P7 falou sobre a dificuldade de integrao do usurio com a sociedade, indo ao

    encontro de Valentine, Kiddoo e Lafleur (1993), como se v a seguir:

    Como o co-guia interfere na integrao do cego na sociedade? Pois acho que essa , afinal, a maior contribuio que obtive dos meus guias, a presena do co chama ateno, cativa as pessoas, que se aproximam e passam a interagir conosco. Sem co, muita gente at teria vontade de se aproximar, mas se sente inibido pela nossa deficincia; o co serve de pretexto, abre portas, faz amigos, aproxima colegas de trabalho. Tive co-guia por 17 anos e, h quase quatro, estou sem conseguir reposio para meus companheiros que se foram. A diferena brutal, sinto falta deles a cada minuto de cada dia, todos os dias.

    Apenas um participante (P6) no quis dar nenhum complemento ltima pergunta.

    Para concluir esta pesquisa, a partir dos sete questionrios disponveis e das categorias

    elencadas, pode-se dizer que emergiu uma questo que no fazia parte dos objetivos iniciais

    propostos: o que, de fato, ter um co-guia?

    Para se obter essa resposta, um passo fundamental conhecer o cotidiano do co-guia e

    poder acompanhar a relao dele com seu usurio. Tambm necessrio considerar que essa no

    somente uma relao utilitria e funcional, mas tambm uma interdependncia, que permite a

    constituio de vidas.

    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 149

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    Porm, as dificuldades para realizar esta pesquisa mostraram claramente que isso no

    tarefa fcil, no sendo possvel, com o mtodo apresentado, a aplicao de questionrios pela

    internet aos usurios brasileiros de ces-guia. Uma soluo seria fazer uma pesquisa de campo,

    com entrevistas pessoalmente aos usurios, aliada a uma observao direta da inter-relao entre

    co-guia e usurio, bem como visitas a escolas de treinamento destes, aliando-se a entrevistas

    com os treinadores, partindo-se do trabalho realizado por Wiggett-Barnard e Steel (2008) na frica

    de Sul. Para tal, seria fundamental o financiamento de uma agncia de fomento, e tal projeto

    poderia ser desenvolvido em um mestrado e/ou doutorado, j que a pesquisa de tornaria longa e

    com altos custos.

    No entanto, algumas falas dos participantes desta pesquisa j podem dar uma ideia de

    resposta pergunta emergente.

    Assim, notou-se a necessidade do usurio de confiar totalmente nos ces-guia, j que

    eles agora so seus olhos. Por sua vez, o co recebe todos os cuidados de um animal convencional,

    como alimentao, vacinas e cuidados com a sade. Isso se observa nas falas a seguir:

    O co-guia deve obedecer os comandos do dono, bem como todos os cuidados e responsabilidades devem ser deste. (Participante P1)

    Todas, como, por exemplo, o fato do cachorro enxergar e fazer com que o deficiente ande como se estivesse enxergando, pois o deficiente com a bengala esbarra tanto nos obstculos areos quanto nos obstculos terrestres. (Participante P2)

    A principal diferena que com co-guia voc no detecta os obstculos e sim o co, dando a segurana de no bater em obstculos areos. Voc entrega a conduo ao co e confia nele. (Participante P1)

    No mesmo sentido, percebendo-se uma tentativa de responder pergunta emergente,

    Wiggett-Barnard e Steel (2008) dizem que os ces-guia parecem fornecer mais do que apenas

    ajuda na mobilidade, sendo companheiros e amigos. Essas autoras tambm dizem que eles so

    uma grande responsabilidade, alm de no serem seres perfeitos, capazes de sozinhos dar "vida" a

    uma pessoa, mas parecem, sim, melhorar a vida das pessoas que voluntariamente se candidatam a

    um deles.

    5. Concluso

    Pode-se dizer que o objetivo geral foi alcanado com sucesso, conseguindo-se investigar

    as vantagens e desvantagens do uso do co-guia em relao mobilidade da pessoa cega.

    Primeiramente, foi constatada grande dificuldade dos participantes em conseguir um

    co-guia no Brasil, mostrando-se prxima realidade da frica de Sul, mas bem longe da dos

    Estados Unidos.

    150 Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014

  • Vantagens e desvantagens na mobilidade da pessoa cega com co-guia

    Quanto s vantagens do uso do co-guia na locomoo de pessoas cegas, os

    participantes relatam a eficaz deteco de obstculos areos e o fato de ele proporcionar maior

    segurana em seus deslocamentos, mas a principal vantagem de seu uso foi o relato de facilitao

    em interaes sociais com as demais pessoas.

    J sobre as desvantagens do uso do co-guia, a principal relatada foi o fato de as pessoas

    confundirem-no com um cachorro comum, brincarem com ele, distraindo-o, prejudicando seu

    trabalho e a mobilidade de seus usurios.

    Tambm ficou comprovada a dificuldade de acesso aos espaos pblicos, privados e aos

    transportes, alm da falta de compreenso para o acesso do co-guia a tais locais.

    Nesse mesmo sentido, quando se aborda a questo da legislao, o relato que ainda

    faltam informaes por parte da sociedade, causando muitas vezes transtornos aos usurios de

    co-guia.

    Um tpico que permeou todos os resultados foi o relato da falta da cultura de co-guia

    no Brasil, o que leva dificuldade de acesso a um co-guia por parte das pessoas cegas, alm do

    desrespeito legislao, prejudicando bastante a locomoo dessas pessoas.

    Falando agora em implicaes desta pesquisa, pode-se dizer que os resultados das

    entrevistas tm implicaes para a prestao de servios dos governos municipais, estaduais e

    federal para pessoas com cegueira, j que grande parte dos participantes relatou dificuldade na

    acessibilidade infraestrutura das cidades brasileiras.

    Outra implicao a necessidade de educao da populao brasileira como um todo

    para lidar melhor com o co-guia e seus usurios, j que, apesar da existncia de leis sobre a

    locomoo e o acesso do co-guia, em espaos tanto pblicos quanto privados, as leis ainda no

    so respeitadas, muitas vezes por falta de conhecimento.

    A principal limitao da pesquisa foi a dificuldade de encontrar usurios de co- guia,

    deixando como sugesto a realizao de futuras pesquisas com maior nmero de participantes.

    Como sugesto de futuras pesquisas, ficou a necessidade de aprofundar as vantagens do

    co-guia como facilitador de interaes sociais.

    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 151

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    Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 20, n. 57, v. 2, p. 138-154, jul.-dez. 2014 153

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    Apndice: Questionrio

    1. Identificao pessoal:

    Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino Idade:

    Profisso:

    2. Qual o meio utilizado para sua locomoo?

    ( ) Bengala ( ) Co-guia ( ) Outros:

    3. Onde voc obteve o co-guia?

    4. Onde foi realizado o treinamento com o co-guia? Qual foi a durao?

    5. Como foi sua adaptao com o co-guia? Quais as dificuldades?

    6. Existe algum acompanhamento aps o treinamento? Se sim, qual?

    7. Voc enfrenta dificuldade em acessar lugares pblicos e privados (nibus, metrs, avies,

    trens, txis, lojas, restaurantes etc.)? Quais so elas?

    8. As pessoas costumam brincar com o co-guia? E com tal atitude influenciaria seu

    comportamento?

    9. vivel a obteno de um co-guia? Em caso afirmativo, quais so os custos em se t-lo?

    10. Quais as diferenas em sua mobilidade com o co-guia em relao bengala?

    11. Se existe alguma pergunta ou informao que no foi perguntada e queira esclarecer,

    coloque a seguir.

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