vanice sargentini e pedro navarro barbosa (orgs.) - foucault e os domínios da linguagem.pdf
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Vanice Sargentini & Pedro Navarro-Barbosa(Org;
FOUCAULTE OS DOMINIOS DA LINGUAGEM
DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
claraluzEDITOR A
2004
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DiagramagaoClaudia de Oliveira
Projeto Grafico e Elaborate de CapaDez e Dez Multimeios/Galeria Design
Impressao e acabamentoGrdfica Supremo.
Sistema Integradoe Bibliotecas/UFES
Ficha Catalografica elaborada pela Se?ao de Tratamento da lnforma$ao da Biblioteca"Prof. Achtlle Bassi"- Institute de Clencias Matematicas e de Computa^ao - ICMC/USP
F652 Foucault e os dominios da linguagem: discurso, poder,subjetividade / Vanice Sargentini, Pedro Navarro-Barbosa. - Sao Carlos : Claraluz, 2004.260 p. : 21 cm
ISBN 85-88638-08-8
1. Analise do discurso. 2. Teoria de Foucault. I. Sargentini,Vanice, org. II. Navarro-Barbosa, Pedro, org. III. Titulo.
2004
Editora ClaraluzRua Rafael dc A. Sampaio Vidal, 1217
CEP 13560-390 - Centra / Sao Carlos - SPFone/Fax: (16) 3374 8332
www.editoraclaraluz.com.br
Sumario
Apresentacao.
CAPITULO 1Foucault e a teoria do discursoO enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistasMaria do Rosario Valencise GregolinFormagao discursiva em Pecheux e Foucault:uma estranha paternidadeRoberto Leiser Baronas.Uma teoria do discurso num certo prefacioMaria de Fatima Cruvinel
23
45
63
CAPITULO 2Foucault, o discurso e a HistoriaA descontinuidade da Historia: a emergenciados sujeitos no arquivoVanice Maria Oliveira SargentiniO acontecimento discursive e a construcaoda identidade na HistoriaPedro Luis Navarro-Barbosa
77
97
CAPITULO 3Foucault, o discurso e o poderEntre vozes, carries e pedras: a lingua, o corpo e a cidadena construcao da subjetividade contemporaneaCarlos Piovezani Filho 133Articulacoes entre poder e discurso em Michel FoucaultFrancisco Paulo da Silva .159
CAPITULO 4Foucault, o discurso e as subjetividadesA disciplinaridade dos corpos: o sentido em revistaNilton MilanezWeblogs: a exposicao de subjetividades adolescentes
.183
Maria Regina Momesso de Oliveira. .201
CAPITULO 5Foucault, o discurso literario e a linguagemimageticaTeorias e alegorias da interpretacao: no theatrumde Michel FoucaultMarisa Martins Gama Khalil 217Foucault nas visibilidades enunciativasNadea Regina Caspar 231
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FQUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEMi &ISCURSO, PODER. SUB3ETIVIDADE
APRESENTAgAO
Foucault, como o imaginamos? Essa retomada do titulo que
Maurice Blanchot1 da as suas reflexoes sobre o filosofo Francespoderia bem sintetizar aquilo que pretendemos oferecer aos leitores,
com a organiza9ao de um livro cujo objetivo e compreender aspectos
fundamentals do pensamento desse autor e articula-los a analisedo saber e do poder que se manifestam na materialidade discursiva.
A retomada desse enunciado-titulo, entretanto, ja opera umdeslocarnento: nao se trata aqui de registrar impress6es ou
suposi
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FOUCAULT E OS DOMiHIOS^DA^LINGUAgEM^DISCURSO, POOER, jUBJETTVrDADE
determinado padrao psicossocial, corno se faze-lo fosse possivel erelevante. Tampouco, enumerar Lima serie de adjetivacOes que, dada
a sua importancia no cenario intelectual e politico frances dos anos60, poderia rotula-lo como, por exemplo, o filosofo da geraciio
francesa de 68, o historiador das descontinuidades, aquele que
prodamou a morte do homem, o filosofo das genealogias do poder
e das praticas de subjetivacao dos corpos, o pensador da pos-modernidade on, ainda, o defensor do sistema, titulo que oincomodava.
Sem diivida, e precise reconhecer a dificuldade de separar ohomem da obra, sobretudo quando se estii diante de um pensadorque aprofundou e provocou importantes modificacoes em conceitoscentrais da historiografia francesa.
Embora nosso objeto de estudo seja a teoria das condicSes deemerge'ncia dos saberes e dos dispositivos de exercicio do poder enao a pessoa que foi Foucault, essa elisSo n3o e de todo possivel,
pois a sensibilidade que ele demonstrou as experiencias diversas,as conjunturas e as atmosferas culturais nas quais esteve envolto1'1
deixam-se fazer presentes nas analises que realizou das estruturasque subjazem a constituicao dos discursos, dos mecanismoscoercitivos que pesam sobre quern fala, do exercicio do poder nas
sociedades disciplinadoras e da estetica da existencia, o que atestaurn pensamento inquietante e em constante ebulicSo.
Deixemos falar, pois, a obra. Oual foi a contribuicao de Foucaultpara as ciencias humanas? Nao e de hoje que muitos tentamresponder a essa pergunta. E cada vez que um novo comentdrio
surge, o discurso fundador desse autor se desloca, se transforma ese dispersa nas diversas interpretacoes. Unidade na dispersao e o
" ROJAS, C. A. A. Os annales e a historiografia francesa: trad
e JurHndi r Malerba. Maringa: Ediiem, '2000.
E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 11
nue podemos constatar nas inumeras pesquisas que se orientamnas nocoes e nos principios foucaultianos. Estudos que procuram
objetivar a obra do filosofo sob varios olhares. Estudiosos que falamde lugares distintos, em busca de resposta as suas indagacoes. EsSo tantas e diferentes, como podemos observar nos titulos de
conferencias e seminarios realizados no Brasil na passagem dos
vinte anos de sua morte.Disponibilizar a comunidade academica um livro que pretende
discutir alguns pontos da teoria desse filosofo, numa data tao
significativa, e para n6s motive de satisfagao e um desafto. Satisfa^ao,
porque temos a oportunidade de reunir nos capitulos que seguemresultados de cinco anos de discussao e de pesquisas que o Grupode Estudos em Analise do Discurso de Araraquara - GEADA -vem realizando em torno das propostas de Foucault1; desafio, pois,
em meio as ciencias que reclamam a presenca desse autor, nossatarefa e situa-lo no campo dos estudos da linguagern, com a
consequ^ncia de fazer frente a outras perspectivas que nao veemnessa postura a constitui9ao do que se poderia chamar de estudo
dos fatos linguisticos.O desafio, na verdade, e duplo, Primeiro, necessario que nos
situemos dentro dos estudos linguisticos e, ao mesmo tempo, foradeles, ou seja, o objeto de nossas reflexoes nao e a materialidade
linguistica, mas a constituicao dos discursos e a possibilidade deserem enunciados. No entanto, so e possivel fazer uma analise dos
4 Vinculacto a pos-jrradua^ao em Lingiiisticii da Univerwidade E.stadiinl Pauli.sta (Unesp),alem da presence obra, o GEADA publicou tambem os seguinte.s titulos: GREGOLIN, M.R- V (org.). Filigranas do discurso: as vozes Ja historia. Araraqiiara: FCL/LalwratorioEditorial/UN ESP; Sao Paulo: Cultura Academica Editora, "000. GREGOLIN, M. R- V,CRUVINEL, M. F., KHALIL, M. C. (org.). Analise do discurso: entornos dn sentido.Araraquara: FCL/Labiiratorio Edicorial/UNESP; Sao Paulo: Cultura Academica Editora,2001. GREGOLIN. M. R., BARONAS, R. L. (org.)- Analise do discurso: a-s materialidadesdo sentido. Sao Carlos: Editora Claraluz, '2QG
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jj FOUCAULT E OS DOMJNIO5 DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAPE
discursos porque eles tern uma existencia material, porque eles
con tern as regras da lingua, de um lado, e aquilo que foi efetivamentedito, de outro.
Segundo, e preciso marcar tambem nossa posisao no interior
mesmo da vertente francesa de Analise do Discurso praticada aqui
nesses tropicos. Essa posicSo, subjacente as reflexoes dos autores,
insere-se num projeto de analise discursiva que, desde os ultimostrabalhos de Michel Pecheuxr>, desloca-se de um althusserianismo
stricto sensu para as propostas de Foucault e da Nova Historia. As
discussoes aqui realizadas registram, portanto, uma mudanca deperspective teorica, que se afasta de determinadas noc.oes erigidasno interior do materialismo historico, tais como: ideologia, aparelhosideologicos, divisao e luta de classes, para se aproximar de uma
perspectiva que concebe o discurso como pratica discursiva e opoder como algo que nao e localizavel em um unico polo.
Nesse sentido, a proposta que se encontra formulada nodesenvolvimento de cada uma das reflexoes reunidas neste livro
tenciona por em pratica aquilo que reivindica J-J. Courtine6 aoanalisar os efeitos da alianca entre marxismo e linguistica para aAnalise do Discurso. Para esse autor, os projetos de pesquisaprecisam devolver ao discurso sua espessura hist6rica, isto e, asanalises que tomam o discurso como objeto devem considerar o
modo como historicamente efetua-se o cruzamento entre os regimesde praticas e as series enunciativas disperses e heterogeneas que oanalista seleciona.
Sabemos que o percurso hist6rico de constituicao do
TECHEUX, M. O discurso; estimura ou acontecimento. Tradu9ao de Eni P. Orlandi, 2.ed., Campinas: Pontes, 1907.
COURTINE, J-J. O discurso inatingivet: marxismo e linguistica (1065-1985). In:CONRADO, V L. A. (org). Cademos de tradu^ao, n. 6. Traducao de Heloisa M. Rosario.Porto Alegre: Univer.sidade Federal do Rio Grande du Sul, ahr-jun, 1909, p. 5-18.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflDE 13
dispositive teorico de interpretacao no qual se tornou a Analise do
piscurso registra um dialogo com Michel Foucault, marcado ora
por aceitacao, ora por uma necessidade de reelaboracao, ora por
recusa das nocoes e dos principios que ele elaborou7.
A entrada do filosofo nessa ciencia do discurso se fez de modo
restrito, quando as analises comecaram a denunciar a necessidade
de se olhar para o discurso nao mais como uma mSquina fechada ehomogenea. Nesse momento, segundo registros sobre o
desenvolvimento. da Analise do Discurso, a nocao de "formacao
discursiva", desenvolvida por Foucault em sua Arqueologia do saber,e redefmida por Michel Pechuexs, que o faz, no entanto, mantendoainda o vinculo com a nocao de ideologia. A presenca de Althusser
nos anos GO e 70 e muito forte.Em outros momentos, Foucault e negado, porque se acredita
que ele sustenta um discurso marxista paralelo!'. Segundo seuscriticos, Foucault mata a historia, uma vez que nao trabalha com
as nocoes de ideologia, de divisao e de luta de classes; soma-se aisso o fato de que ele, conforme Pecheux1", nao teria considerado,em suas analises das condicoes de possibilidade do discurso, a
categoria marxista da contradicao.Vale lembrar que, enquanto a Analise do Discurso reunia
esforcos para compreender os discursos politicosf com o objetivo deoferecer um instrumento para a sua leitura, Michel Foucault
enipenhava-se na tarefa de ouvir e de tirar do anonimato o recalcado
essa relate entre os dois filosofos, ver GREGOLIN, M.R. Foucault e Pecheux naanalise do discurso. Dialogos ? Duelos. Sao Carlos; Claraluz, 20O4.
Sobre o consenso de que a no9ao de "forma^ao discursiva" tenha sido tomada deernprestimo a Michel Foucault, ver aqui o testo dfc Roberto Leiser Baronas, no qual ele
!) lscute a "paternidade" dessa no^ao.LECOURT, D. Siir I'archeoloeie du savoir, a propos de M. Foucault. La Pensee, agosto
l970-X, M. Reim.ntons de Foucault a Spinoza. In: MALDIDIER, D. L'inquictude du
. Paris: Cendres, 1900.
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14 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE
da razao ocidental", inaugurando aquilo que, anos depois, tornou-se alvo de interesse dos pesquisadores: os discursos do cotidiano.
Poderfamos l is tar ainda outros exemplos dessa relagaoconflituosa e, ao mesmo tempo, de harmonia entre Michel Foucault
e a Analise do Discurso, mas deixemos essa missao aos autores. O
que nos cabe nessa apresentacao e enfatizar a necessidade de marcar
a posicao do filosofo no campo dos estudos do discurso; salientarque, vinte anos depois de sua morte, as suas propostas continuam
vivas e provocando inquietacoes.
A denominacao dos capf tu los deste l ivro evidencia a
aproximacao entre M. Foucault e os dominios da linguagem,
sobretudo no que tange a discurso, historia, poder e subjetividade.
No capitulo 1, intitulado Foucault e a teoria do discurso, os
autores abordam pontos fundamentals do pensamento de Foucault,
desenvolvidos na fase em que sua preocupagao estava voltada a
teoria do discurso e a explicitacao do metodo de analise.
Maria do Rosario Gregolin, em 0 enundado e o arqmvo: Foucault
(entre)mstas, presenteia-nos com um texto que mescla o sabor da
narracao ficticia de uma entrevista entre ela e Michel Foucault,
que teria ocorrido no verao de 1969, na calcada da Rive Guache,
com a compreensao de conceitos centrais desenvolvidos em A
Arqueologia do Saber. O torn ficcional do qual se serve a autora
poderia, em principio, impedir a emergencia de um discurso
comprometido com o fazer cientifico. A entrevista ficticia, entretanto,
emoldura e da um certo dinamismo a esse texto, pois, com esse
recurso, a autora deixa o discurso de Foucault falar de si mesmo, o
que nos desvenda um grande texto metalingiiistico. Nesse sentido,
o texto expoe sua heterogeneidade, sendo marcado ora por aspas,ora por italico, num exercicio linguistico-discursivo constants para
11 FOUCAULT, M. Hist6ria da Loucura. Sao Paulo: Per spec tiva, 1SI78.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA UNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 15
deixar que o pensamento do filosofo se sobressaia a voz da autora
cuja interpretacao, presente na formulagao das perguntas, destina-
se a tracar um "programa de leitura" que oferece ao leitor elementos
para compreender as trs nog5es pilares que sustentam o metodo
arqueologico: enunciado, formacao discursiva e arquivo.Formafdo discursiva em Pecheux e Foucault: uma estranha
patermdade, de Roberto Leiser Baronas, apresenta uma discussao
circunstanciada sobre o conceito de formacao discursiva, resgatando
os contextos nos quais tal sintagma surge ou sofre reconfiguracoes.
O autor evidencia que a nogao de formagao discursiva tern
"paternidade partilhada" e apresenta a relevancia de se repensar
esse conceito em sua complexidade, considerando tanto o genero
como o posicionamento ideologico como "elementos essenciais no
fornecimento das condicoes que possibilitam a irrupcao das
discursividades". Nesse sentido o texto expoe a atualidade e a
produtividade desse conceito para as teorias do discurso.Em Uma teoria do discurso num certo prefdcio, Maria de Fatima
Cruvinel busca elementos para compreender a teoria do discurso
esbogada no prefacio de As palavras e as coisas. O texto de Cruvinele, antes de tudo, um convite ao leitor para se deixar conduzir pelo
"discurso diferente" de Foucault, um discurso apaixonante e, ao
mesmo, provocante, pois "perturba todas as familiaridades do
pensamento" da "epoca (seculo 20) e lugar (Ocidente)" em que se
encontrava o filosofo. De inicio, a autora alerta-nos sobre as
especificidades desse prefacio, um texto "nada facil", que usa a escrita
de Jorge Luis Borges como "isca" para seduzir o leitor a aceitar a
tarefa que Ihe e proposta no texto que antecede a obra, a saber: oestudo da emergencia e da ruptura do saber em periodos historicos
especificos da civilizacao ocidental.O capitulo 2, Foucault, o discurso e a Historia, contempt
tambem, aspectos da arqucologia do discurso, mas o foco, iies
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16 FOUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAOE
momento, sao os pontos de contato entre discurso e historia, numa
perspective que considera a Historia como descontinuidade e odiscurso como acontecimento.
Vanice Maria Oliveira Sargentini, com o texto A descontiinudade
da Historia: a emergenaa dos sujeltos no arqmvo, faz uma reflexao
sobre aspectos teoricos que permitem tracar um dialogo entre a
arqueologia dos discursos empreendida por Foucault e o dispositive
de interpretacao erigido pela Analise do Discurso. Essa tarefa e
realizada de um lugar discursive determinado, que consiste na
retomada de estudos realizados tanto por lingiiistas quanto por
historiadores que veem a necessidade de estabelecer uma relagao
entre "linguistica e hisuJria", Essa retomada, entretanto, e feita
tambem de um lugar de fala especifico: o estudo da linguagem
atravessado por uma perspective discursiva, o que justifica a busca
por pontos de contato entre as propostas de Michel Pecheux e de
Michel Foucault. Essas reflexoes possibilitam a autora realizar uma
segunda tarefa: analisar o modo como o sujeito visto no interior
dos estudos do discurso e, com isso, '''apontar a emergencia do sujeitono arquivo".
Com o proposito de abordar a construcao da identidade na
produgao discursiva da midia impressa sobre o V Centenario do
Descobrimento do Brasil, Pedro Luis Navarro-Barbosa, em O
acontechnento discursive e a construfdo da identidade na Historia, situa
sens estudos a partir das nocoes foucaultianas de historia e de
acontecimento discursive. Conduz-nos a elucidative apresentacao
das conduces de aparicao desses conceitos, encaminhando-nos a
reflexoes sobre o sujeito do discurso, visto como uma "plurahdade
de posicoes e uma descontinuidade de funcoes". O autor desenvolve
a a n a l i s e da produgao de iden t idade nac ional no d iscurso
jornalistico, considerando a dispersao de emmciados Jmageticos e
verbais que atualizam temas em confronto sobre o aniversario de
FOLfCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 17
500 anos do Brasil.
O fio condutor em torno do qual apresentam-se as reflexoes
realizadas no capitulo 3, Foucault, o discurso e o poder, aponta
para a fase genealogica das investigacoes de Foucault, na qual o
autor volta seu olhar para a relagao entre poder, saber e as diversas
fbrmas de sujeicao do corpo na sociedade moderna.
A a r t i cu lacao entre discurso, poder e a producao de
subjetividades do tempo presente e explorada no artigo Entre.
-oozes, carries e pe.dras: a lingua, o corpo e. a adade na constru$ao da
subjetimdade contemporanea, de Carlos Piovezani Filho. O autor
observa o controle das representacoes e dos usos da lingua e do
corpo na midia, bem como das formas de circulacao no espaco
urbano. Para tal parte do texto de M. Pecheux Dehmitafdes,
inversoes e deslocamentos e observa como entre o z>er e o di%?,r
estao presentes os projetos urbanos e as politicas linguisticas
das sociedades ocidentais. Apoiando-se na nogao de sociedade
de controle, proposta por Foucault, recupera como se dao as
relagoes entre as edificacoes urbanas e o controle dos usos
lingiusticos e dos embelezamentos do corpo no f ina l do seculo
passado e inicio deste. Em conclusao, aponta para a "ubiqiiidade
midiatica de nossa sociedade de controle", que engendra modelos
de conduta p a r a o compor tamento l inguagei ro , para a
apresentagao corporal e para a ocupagao da cidade.
Francisco Paulo da Silva, partindo do principio segundo o
qual a descricao do funcionamento discursivo solicita a procura de
"algo a mais" que a simples representacao entre palavras e coisas,
examina o modo como se efetuam as Articulafdes entre poder e discurso
em Michel Foucaidt. O objetivo do autor e, portanto, "rastrear" nas
propostas do filosofo o conceito de poder, a relacao entre saber e
poder, os efeitos de poder, a sua atuacao sobre o sujeito e os modos
de materializagao dessa relacao no discurso. As formulagoes
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18 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE
enunciativas analisadas por Silva oferecem-lhe condicoes para a
compreensao das estrategias de subjetivacao empregadas para
produzir uma subjetividade capaz de "funcionar socialmente no
dominio da ordem que se deseja estabelecer".
A tecnologia politica do corpo inspira tambem as discussoes
real izadas no qua r to capitulo, Foucault, o discurso e as
subjetividades. As analises apresentadas pelos autores inscrevem-
se, portanto, no ambito da genealogia do poder, com o acrescimo de
uma proposta que visa articular a nocao de pratica de subjetivacao
com a producao discursiva da identidade.
Centrando-se em questoes relativas ao sujeito, Nil ton Milanez,
em A disciplinaridade dos corpos; o sentido em remsta, explora a analise
de um texto verbal e nao-verbal, presente em uma revista,
compreendida como um suporte que encerra dispositivos de
consti tuicao de ident idades . O autor pauta-se nos estudos
foucaultianos que apontam o sujeito como uma fabrica9ao historica
e, portanto, vulneravel ao mecanismo da disciplinaridade e do
controle. Observa, pela analise, que a disciplinaridade dos corpos
transfer ma em objetos as pessoas, monitorando-as a partir de"tecnicas de si".
Weblogs: a exposicao de suhjetimdades adolescentes, de Maria Regina
Monies so de Ol ivei ra , e um texto que procura a n a l i s a r
os"ciberdiarios" - paginas pessoais nas quais internautas na faixa-
etaria entre 14 e 21 anos registram suas experiencias afetivas, suas
musicas p refer idas, suas frustracoes entre outros assuntos do
cotidiano - com base no conceito foucaultiano de "tecnicas de si". 0
depoimento de "blogueiros" e as experiencias que a autora encontra
narradas nos ivfevdes tin ados a esse uso permitem que ela veja nessas
paginas pessoais uma pratica discursiva de busca e de construcao
de identidades, uma vez que acabam por se constituir em "uma
tecnica de si" para os adolescentes "blogueiros".
POUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUASEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 19
No quinto e ultimo capitulo, Foucault, o discurso literario e
a linguagem imagetica, as autoras buscam no pensamento do
filosofo Frances aspectos te6rico-metodologicos que permitem tracar
um paralelo entre dispositivo de interpretacao e a leitura do texto
literario e entre teoria do enunciado e manifestacoes discursivas
nao-verbais e verbo-visuais..
A questao da interpretacao esta no centro das reflexoes
realizadas no texto Teorias e alegorias da interpre.tafao: no theatrum
de Michel Foucault, de Marisa Martins Gama Khalil, que focaliza o
discurso literario na sua fun^ao primeira, que e a de ser um "espa90
instigador de leituras e de interpretagoes". Essa natureza do fazer
literario permite que Khalil estabeleca um dialogo entre Michel
Foucault e um numero delimitado de literatos universais Miguel
de Cervantes, Italo Calvino, Jorge Luis Borges, Henry James,
Guimaraes Rosa, Fernando Pessoa e Camoes -, o qual nos conduz
por um percurso anali t ico que desvenda nao "uma teoria da
interpretagao, mas a sugestao de uma rede de apontamentos
plausiveis para uma interpretacao da interpretacao".
Em Foucault nas visibt.hda.des enuna.at7.vas, Nadea Regina Caspar"
apresenta como questionamento a possibilidade de aplicar a teoria
arqueologica em outras materialidades discursivas que nao somente
a verbal. Para isso, a autora explora os conceitos de enunciado, de
acontecimento e de visibilidades enunciativas, com o objetivo de
evidenciar que a proposta do metodo arqueologico revela-se tambem
interessante para a analise de textos imageticos e de textos que
conjugam palavra, som e imagem, como e que o caso da linguagem
cinematografica.
Foucault alerta-nos que as margem de urn livrojamais sao nitidas
rtem ri.goromme.nte determmadas: alem do titulo, das pnmeiras linhas e
do ponto final, alf.m de sua coufigurafdo niterna e, da forma que Ihe da
itto?iomia, elf. estd preso em um sistern'a de remissoes a outros Irvros,
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20 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
outros textos, outrasfrases: no em uma rede1*. Assim, todo livro - e este
nao poderia ser diferente - e, ao mesmo tempo, espaco de reuniao e
dispersao. Conscientes dessa teia na qual todo texto se plasma e da
qua) tlra sen sentido, convidamos nossos leitores a habitarem as
proximas paginas, completando-as ou recompondo-as com sua
leitura.
Vanice Sargentim e Pedro Navarro-Barbosa
Capitulo 1
Foucault e a teoria do discurso
rOUCAULT, M A arqueologia do saber Rio
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FQLJCAUIT E OS DOMINIp_S_DA LINGUAGEH: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDflDE 23
O enunciado e o arquivo: Foucault (entre )vistas13
Maria do Rosai-jo Valencise Gregotin*
I Ha um conceito que e fundamental para o seu metodo arqueologico: o enunciado. Tanto que ele ocupa todo o terceirocapitulo de A Arqueologia do Saber1*. A sua defmicao se faz por
oposicoes a outros conceitos (frase, proposiao, speech acts) e pela
analise da relacao entre enunciado e lingua. For que o enunciado
ocupa esse lugar central no seu metodo? Qual e o seu conceito de
enunciado?
A discussao sobre o enunciado ocupa todo capitulo III da
Arqueologia do Saber, cujo titulo e, justamente, O enunciado e o arquivo.
Como o proprio nome diz, quis mostrar a relacao de dependencia e
de hierarquia entre essas duas nocdes - a mais ampla (arquivo) e a
mais molecular (enunciado} do metodo que estou propondo. Todo
o capitulo se articula a partir de duas questoes, derivadas da minha
reflexao sobre o que eu investiguei nos meus trabalhos anteriores15:
Naquele verao de 1900. quando Pans esteve clara como ntinca, eu podena te-!c>encontrado. A cal^ada da Rive Gauche fei-vilhava dt; transeuntes absortos demais na vida.Estariamos sentados num daqueles cates cm que pululam pessoas lendo jornal. Enquancoconversavamos, sobre a mesa, pousada, estaria a primeira editito da Arqueotogia da Saber(os livi-os sao passaros que voarn e dc repente pinisam sua fuia plumagem sobre as nossasmaos) e ele interrompia a fala, de quatido em quando, para .sorver lentos goles de cKa.* Prafessora da Univei'sidade Estadual Paulista, Araraquara, SP. Coordenadora do GrupoJe Estudos de Analise do Discurso de Araraquara (GEADA).14 FOUCAULT, M. (lyey). A Arqueologia do Saber. Trad. bras. Luis Felipe Baeta Neves.Rn> de Janeiro: Forense Universitaria. 1986'.''' No momento de^ta entrevista, em 1969, ana da publicafao de A Arqueologia do Saber,Foucault ja havia publicado A Historia da Loucura (19B^), O Nascimentu da Clinica (19G3) e^i palavran e ax Coisas ( I96f i ) A Arqueolugia e um momento te6rico-inetodo!6gico, deleiiexao solire esses traballiot; antenores.
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24 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DI5CUR5O, PODER, SUB3ETIVIDADE
"o que e o enunciado?" e "como a teoria do enunciado pode se ajustar
a analise das formacoes discursivas?". A elas vou tentar responder,
nesse capitulo III, seguindo certos passos: primeiro, definindo o
que entendo por "enunciado"; logo a seguir, destacando as
caracten'sticas da "funcao enunciativa"; depois, teorizando a
"descricao dos enunciados"; para, entao, a partir da exposicao das
caracteristicas do enunciado (raridade, exterioridade, aciunulo),
chegar a desenvolver a articulacao entre os conceitos principals
que tenho manipulado em meus trabalhos - "enunciado" / "formacao
discursiva" / "arquivo". Como pode ver, o enunciado {ou, como
espero ter deixado claro, a.Jimcdo enunciativa} e a unidade elementar
do discurso. Em sen modo de ser singular (nem inteiramente lingiiistico,
nem exdusivamente material) o enunciado e indispensdvel para que se
possa dizer se hd ou ndo frase, proposicao, ato de hnguagem. [...J ele ndo
e, em si mestno, uma unidade, mas s'mi uma funpao que, cruza um dominio
de estruturas e de unidades possiveis e que faz com que aparecam, com
conteudos concretes, no tempo e no espa$o. {1986, p. 98-99). Se o descrevo
a partir de oposicoes com outras unidades frase, proposicao, atos
de Hnguagem - e para marcar as diferencas e para acentuar que os
estudos lingiiisticos sempre deixaram o enunciado como um resto,
um elemento residual e, portanto, pressuposto, mas nao analisado.
Se voce seguir minha exposicao, ate certo ponto didatica, nesse
capitulo III , podera ver que o enunciado se distingue desses tres
conceitos porque:
a) ao contrario da proposi9ao, o enunciado esta no piano do
discurso e, por isso, nao pode ser submetido as provas de
verdadeiro/falso. Por isso, diferentemente da proposicao logica, para
os enunciados nao ha formulacoes equivalentes (por exemplo,
"ninguem ouviu" e diferente de "e verdade que ninguem ouviu"
quando os encontramos em um romance. Trata-se de uma mesma
FOUCAULT E OS DQMINIQS DA HNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 25
estrutura proposicional, mas com caracteres enunciativos bastante
distintos);b) ao contrario da frase, o enunciado nao esta, necessariamente,
submetido a uma estrutura l inguist ica canonica {como, em
port ague's, sujeito-verbo-predicado), isto e, nao se encontra um
enunciado encontrando-se os constituintes da frase. Um quadro
classificatorio das especies botanicas e constituido de enunciados
que nao sao "frases"; uma arvore genealogica; um livro contabil; a
formula algebrica; um grafico, urna piramide... todos tern leis de
uso e regras de constru9ao que sao diferentes daquelas das frases.
Por isso, nao parece possivel defmir um enunciado pelos caracteres
gramaticais da frase {1986, p. 93);
c) o enunciado, parece, a primeira vista, mais proximo do que
se chama os speech acts (atos de Hnguagem). No entanto, diferentemente
das pesquisas pragmaticas da filosofia analitica inglesa, nSo
proponho procurar o ato material {falar e/ou escrever); ou a intencao
do individuo que esta realizando o ato (convencer; persuadir etc.)
ou o resultado obtido (se foi "feliz" ou nao). O que procure e descrever
a operacdo que foi efetuada, em sua emergencia nao o que ocorreu antes,
em termos de mtenfao, ou o que ocorreu depots, em termos de "eficdcia" -
was sim o que se produziu pelo proprio fato de ter sido enunciado e
precisamente neste enunciado (e nenhuin ontro) em circunstancias bem
determinadas (1986, p. 94).
Para defmir o enunciado, alem de mostrar suas diferencas comsses conceitos {frase, proposi^ao, speech acts), tambem o correlaciono
com o conceito de lingua. Quero mostrar que lingua e enunciadonao estao no mesmo nivel de existencia. Dou como exemplo dessa
"lerenca as letras que estao numa mdqurna de escrever, que naoCOnstituem enunciados; no entanto, quando eu as disponho ern uma
Pagma - seguindo regras que vem do sistcma da lingua - tornam-ei-iunciado. A lingua e um sistema de construcao para enunciados
-
26 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
possiveis. No entanto, para a analise arqueologica nao interessa
esse campo de virtualidades das formas lingiiisticas, porque nao
basta qualquer reahzacao material de eleimntos lingiiisticos, ou qualquer
emergencia de signos no tempo e no espafo, para que mn enunciado aparefa
e passe a existir (1986, p. 98}. Porque o que torna uma frase, uma
proposi9ao, um ato de Imguagem em um enunciado e justamente a
funfdo enunaativa-. o fato de ele ser produzido por um sujeito, em
um lugar institucional, determinado por regras socio-historicas que
defmem e possibilitam que ele seja enunciado. Toda a discussao
sobre o conceito de enunciado e feita para precisar o objeto da
descricao arqueo!6gica: nao o enunciado atomico com sen efeito de
sentido, sua origem, sens hmites e sua individualidade - mas sim o campo
de exercicio dafunfao enundativa e as condifdes segimdo as quais elafaz
aparecerem nnidades diversas (que podem ser, mas nao necessanamente,
de ordem gramatic.al ou logica] (1986, p. 122).
E essa funpao enunciativa que interessa a Arqueologia. Por
isso, desenvolvo-a no item 2 do capitulo III, momento em que discuto
o exercicio dessa funfao, suas condicoes, suas regras de controle, o
campo em que ela se realiza.
2 Entende-se, entao, que o enunciado e um conjunto de signos emfunfao enunciatwa. Portanto, ser um elemento do nivelenunciativo e a primeira caracteristica do enunciado?
Sim, a primeira e a mais fundamental. Insisto nesse ponto,
porque ha Lima relacao muito especial entre o enunciado e o que ele
enuncia. Essa relacao e diferente daquela que existe entre outros
pares: entre o significante e o significado; entre o nome e o que ele
designa; entre a frase e seu sentido; entre a proposicao e o seu
referente. Entre o enunciado e o que ele enuncia nao ha apenas
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSQ, PODER, SUB3ETIVIDADE 27
relacao gramatical, logica ou semantics; ha uma relacao que envolve
os sujeitos, que passa pela his toria , que envolve a propria
materialidade do enunciado.
3 Exatamente esses serao os pontos discutidos a seguir. Voce poderia falar um pouco sobre a relacao entre o sujeito e oenunciado?
O sujeito do enunciado nao pode ser reduzido aos elementos
gramaticais. Veja, por exemplo, que, em uma formulacao verbal,
mesmo quando nao aparece gramaticalmente a primeira pessoa,
ha sujeito. Do mesmo modo, a relacao do enunciado com o sujeito
que o enuncia nao e a mesma se um mesmo conjunto de signos
estiver em uma conversa ou em um romance (por exemplo, "deitei-
me cedo ontem" pode ser dito por um sujeito qualquer e pode
aparecer num livro de Proust como Em busca do tempo p&rdido). Para
que um enunciado exista e necessario assinalar-lhe um "autor" ou
uma iustancia produtorat!i. Mas esse "autor" nao e identico ao sujeito
do enunciado (em termos de natureza, status, funcao, identidade).
Existem romances nos quais ha varies sujeitos que enunciam. Isso
nao e caracteristica apenas dos textos romanescos - e uma
caracteristica geral, j& que o sujeito do enunciado nao e o rnesmo de
um enunciado a outro; essa fun9ao pode ser exercida por diferentes
sujeitos, isto e, um umco e mesmo indimduopode ocupar, alternadame.nte,,
em uma serie de enunciados> diferentes posi^oes e assumir o papel de
diferentes sujeitos (1986, p. 107). Num enunciado como "duas
quantidades iguais a uma terceira sao iguais entre si" a posi9ao de
sujeito e neutra, pois pode ser ocupada por qualquer enunciador.
Ja em "ja demonstramos que..." o sujeito e localizado em uma serie
lu Essa figiu-a discur-siva do "autor", Foucaulc tratarS em seu texto 0 qua sum autor? (1971).
-
28 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LJNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
enunciativa, fixado no interior de um dominio constituido por um
conjunto finito de enunciados ditos antes e que sao retomados - ha
a existencia previa de um conjunto de operacoes efetivas que talvez
nao tenham sido realizadas por um unico sujeito. Ao contrario, em
"chamo de reta a...", o sujeito do enunciado e o sujeito da operagao.
Toda essa discussao e muito interessante, pois o que torna uma
frase em um enunciado e o fato de podermos assinalar-lhe uma
posi^.ao de sujeito. Assim, descrever uma formulacao enquanto
enunciado consiste em determinar qual e a posicao que pode e deve
ocupar todo mdividuo para ser sen sujeito (1986, p. 109). Todas essas
questoes relacionadas ao sujeito do enunciado levaram-me a concluir
que nao e preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como identico ao
autor da formulacao, nem substancialmente, nemfuncionalmente. Ele nao
e causa, ongem ouponto departida dofendmeno de articulacao escrita ou
oral de. uma frase; nao e, tampouco, a inten$ao significativa que, invadindo
silenciosamente o terreno das palavras, as ordena com o corpo invisivel de
sua intuigao; nao e o niicleo constante, imovel e identico a si mesmo de uma
serie de operacoes que as enunciados, cada um por sua vez, viriam
manifestar na superftcie do discurso. E um lugar determinado e vaxio que
pode ser efehvamente ocupado por indimduos diferentes; m-as esse lugar
em. vex de ser defimdo de uma vez. por todas e de se manter umforme ao
longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia - ou melhor, e
varidvel o bastante para poder continuar identico a si mesmo, atraves de
vdrias frases, bem como para se modificar a cada uma (1986, p. 109).
4 Outra caracteristica do enunciado e o fato de que ele tern se-mpre margens povoadas de outros enunciados {1986, p. 112).Ha uma relacao do enunciado com a serie de formulacoes com as
quais ele coexiste. Isso atesta sua historicidade. Do seu ponto de
vista, essa e mais uma diferenca entre frase, proposicao e o enunciado.
POUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 29
Ao contrario daquelas (que mesmo isoladas, amputadas de todos
os elementos a que podem remeter, continuam sendo frases e
proposicoes, sendo reconheciveis pelos seus elementos gramaticais
e logicos) o enunciado tern que ser correlacionado a um campo
subjacente. Derivada dessa ideia, que insere o enunciado no campo
da intertextualidade, pode-se pensar no papel da memoria na
producao dos sentidos?
Quando se trata do enunciado, o efeito de contexto so pode ser
determinado por uma rede verbal. As margens nao sao, tampouco,
identicas para todos os enunciados: o modo de presenga de outros
enunciados e diferente, quer se trate de um romance ou de uma
conversa rotineira, pois o halo psicologico de uma formulacao e
comandado de longepela disposicao do campo enunciativo (1986, p. 112).
Desse modo, o que chamo de "campo associativo" forma uma trama
complexa:
a) Ele e constituido pela serie das outras formula9oes, no
interior das quais o enunciado se inscreve;
b) Ele e constituido, tambem, pelo conjunto das formulacoes a
que o enunciado se refere (implicitamente ou nao) seja para repeti-
las, seja para modifica-las ou adapta-las; seja para se opor a elas,
seja para falar de cada uma delas. Por isso, todo enunciado liga-se a
uma memoria e, assim, nao ha enunciado que, de uma forma ou de
outra, nao reatualize outros enunciados (1986, p. 113);
c) Ele e constituido, ainda, pelo conjunto das formulacoes cuja
possibilidade ulterior e propiciada pelo enunciado e que podemv'ir depois dele como conseqiiencia, sua seqtiencia natural ou sua
replica;
d) Ele e cons t i t u ido , f i na lmen te , pelo conjunto das
coes cujo status e comparti lhado pelo enunciado em
-
30 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
questao, em relacao as quais se apagara ou tomara um ]ugar
(sera valorizado, conservado, sacralizado e oferecido como objeto\ ' ' J
possivel a um discurso future). For estar imerso nesse movimento
que institui sua enunciabilidade, pode-se diz&r, de modo geral, que
uma seqiiencia de elementos linguisticos so e enunciado se estiver imersa
em um campo enunciativo em que apareca como elemento singular
(1986, p. 113).
Com tudo isso, quero dizer que, desde sua raiz, o enunciado
se delineia em um campo enunciativo onde tern lugar e status, que
Ihe apresenta relacoes possiveis com o passado e que Ihe abre urn
mturo eventual. Imerso nessa rede verbal, ele so pode ser apanhado
em uma trama complexa de producao de sentidos e, por isso,
podemos concluir com uma caracteristica geral e determinante sobre
as relacoes entre o enunciado, o funcionamento enunciativo e a
memoria em uma sociedade: ndo hd enunciado em geral, livre, neutro e
independente; mas sempre um enunciadofazendo parts de uma serie ou de
um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apotando
e deles se disttngiundo: ele se tntegtu sempre em umjogo etmticiativo (1986,
p. 114).
5 Segundo sua proposta arqueologica, a quarta condicao para que uma seqiiencia de elementos linguisticos possa serconsiderada e analisada como um enunciado t a sua existencia
material. Sobre essa questao, o sen texto lanca uma pergunta:
poderiamos falar de enunciado se uma voz ndo o tivesse enunaado, se
uma superjicie ndo registrasse os seus sigiios, se ele ndo tivesse tornado
corpo em um elem.ento sensivel e se ndo tivesse de.ixa.do marca - apenas
aigims instantes em uma memoria ou em um espafo? (1986, p. 115).
Do seu ponto de vista, do que se compoe essa materialidade doenunciado?
6
POUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 31
O enunciado e sempre apresentado em uma espessura material,
que o constitui. Ele e caracterizado por seu status material e sua
identidade e sensivel a uma modificacao desse status, dependendo
do genero de texto em que esta inserido. A materialidade e
constitutive do enunciado: ele precisa ter uma substancia, um
suporte, um lugar, uma data. Alem disso, e necessario que essa
materialidade possa ser manipulada pelos enunciadores e, por isso,
ha um regime de materialidade repetivel (1986, p. 117) defmida por
certas instituicoes, como a literatura, a ciericia, o juridico etc. Essa
repetibilidade material define antes possibilidades de reinscri9ao e
de transcricao (mas tambem limiares e l imites) do que
individualidades limitadas e pereciveis.
A identidade do enunciado esta submetida, tambem, aos limites
que Ihe sao impostos pelo lugar que ocupa entre outros enunciados.
"A terra e redonda" e um enunciado diferente antes e depois de
Copernico: apesar de o sentido das palavras nao ter mudado,
modificou-se a relac5o dessa afirmagao com outras proposicoes. O
mesmo conjunto de elementos verbais e inserido em um campo de
estabihzacdo que permite, apesar de todas as diferencas de enunciacao,
repeti-los em sua identidade e fazer surgir um novo enunciado (1986,
P- 119). Ao mesmo tempo, institui-se um campo de utilizacdo, que
permite a sua constancia, a manuten9ao de sua identidade atraves
dos acontecimentos singulares das enuncia9oes.
Isso significa que os enunciados agenciam a memoria,
constroem a historia, projetando-se do passado ao futuroP
Certamente. Ao inves de ser uma coisa dita de forma definilwa -perdida no passado como a de.ci.mo de uma batalha, uma catdstrofe
a ou a morte de um rei - o enunciado, ao mesmo tempo em que
-
32 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSQ, POPER, SUBJETIVIDADE
surge em sua materialidade, aparece com, um status, entra em redes, se
coloca em campos de utilizacao, se oferece a transferencias e a modiftcacoes
possiveis, se Integra a operacoes e em estrategias onde sua identidade se
mantem oi/ se apaga. Assim, o enunciado arcula, serve, se esquwa, permits
ou impede a reahzacdo de, um desejo, e docil ou rebelde a interesses, entra
na ordem das contestacoes e das lutas, torna-se tema de apropriacdo ou derivahdade {1986, p. 121).
7 Quais sao, pois, as tarefas da descrigao dos enunciados?A grande tarefa que se propoe na descri^ao dos enunciados e
a de defmir as condi9oes nas quais se realizou o enunciado, conduces
que Ihe dao uma existencia especifica. Esta existencia faz o enunciado
aparecer em rela?ao com um dominio de objetos; como jogo de
posicoes possiveis para um sujeito; como elemento em um campo
de coexi.stencia; como materialidade repetivel. No entanto, acredito
que ainda nao desenvolvi uma teoria do enunciado: essa e uma tarefa
que deixo para o future, para que eu ou outros a fagam. For ora,
tomo apenas o cuidado de fazer algumas precisSes terminologicas,
fixando um vocabulario, ja que estou operando com conceitos sematribuir-lhes exatamente o significado que tern para os gramaticos,
para os logicos e para os lingiiistas. For exemplo, posso te dar um
pequeno glossario, so por precaucao17:
performance linguistics: todo conjunto de signos efetivamenteproduzidos em lingua natural {ou artificial);
POUCAULT E OS POMINIOS DA LINGUAGEM^DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 33
fyrtnulacao: ato individual {ou, a rigor, coletivo) que faz surgir,
em Lim material qualquer e segundo uma forma determinada, esse
p-rupo de signos; e um acontecimento demarcavel no espaco e tempo,relacionado a um autor e pode constituir um "ato de fala" (speech
ad};frase ou proposicao: unidades que a gramatica e a logica podem
reconhecer em um conjunto de signos;enunciado: chamaremos enunciado a modahdade de existencia propria
desse conjunto de signos: modalidade que Ihe permite ser algo diferente de
uma serie dt, tracos, algo diferente de uma sucessao de marcas em uma
substancia, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser
humano; modalidade que Ihepenmte estar em rela$ao com um dominio de
objetos, prescrever uma posifao dejinida a qualquer sujeito possivel, estar
situado entre outras performances ve.rbais, estar dotado, enfim, de uma
materialidade, repetivel (1986, p. 123);formacao discursiva: lei de serie, principle de dispersao e de
reparti9ao dos enunciados;discurso: conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo ststema de
formacao (discurso clinico, economico, da historia natural, etc.) {1986, p.124).
8 Apesar de afirmar que ainda nao desenvolveu uma teoria - no sentido forte do termo - acho que ja estao delineadas asHnhas-mestras do metodo arqueologico. Voce poderia pontuara%umas caracteristicas da natureza dessa descricao dos enunciados
esta em elaboracao?
Realmente, eu adverti que ainda nao e a hora de formularteoria. O que pretendo, por enquanto, e inostrar como se pode
Qrganixart semfalha, sem contradicao, sem nnposicao interna, um dominio
-
34 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
em que, estao em questao os enunciados, sen prmdpio de agtitpamentos, as
grandes unidades lustoricas que eles podem constituir e. os metodos que
permitem descreve-los (1986, p. 132). Acredito, no entanto, que alguns
tracos mais gerais da descrigao ja estao enunciados no capitulo III
da Arqueologia do Saber. Trata-se de uma descri^ao historica, mas
que nao pergunta pelo sentido secreto dos enunciados e sim o que
significa o fato de terem aparecido e nenhum outro em seu lugar na
evidencia da linguagem efetiva (1986, p. 126). Trata-se de uma
descrigao que se diferencia da Hermeneutica: a polissemia - que
autoriza a hermeneutica e a descoberta de um outro sentido diz
respeito a frase e aos campos semanticos que ela utiliza. O enunciado
nao e assombrado pela presenca secreta do ndo-dito, das significacoes ocultas,
das repressoes; ao contrdrio, a maneira pe.la qual os elementos ocultos
fuucionam e podem ser restituidos depende da propna modalidade
enundativa: sabemos que o "ndo-dito", o "reprimido", nao e o mesmo -
nem em sua estrntura nem em seu efeito - quando se trata de um mundado
matemdtico e de um enunciado economico, quando se trata de uma
autobiografta on da narracdo de um sonho. (1986, p. 127)'s. Trata-se
de uma descricao que nao ere que o enunciado tenha uma clareza
total: as analises gramaticais, logicas etc. tomam o enunciado como
tao obvio, que nao os analisam. A tarefa da arqueologia e tentar
tornar visi'vel e analisavel essa transparencia tao proxima que
constitui o elemento de sua possibilidade. Nem oculto, nem visivel,
o nivel enunciativo estd no limite da linguagem (...) o subito
aparecimento de uma frase, o lampejo do sentido, o brusco indice da
designacdo, surgem sempre no dominio do exercido de uma
enundativa (1986, p. 130).
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEHi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 35
9 A segunda pergunta que se coloca, nesse capitulo III da0 Arqueolog!.a, indaga sobre as relacoes entre o enunciado e asformacoes discursivas. Mais clararnente, voc^ pretende pensar como
se relacionam o enunciado e as formapoes discursivas, no interior
do me"todo arqueologico...
Partindo do problema da descontmmdade no discurso e da
singularidade do enunciado, procure analisar certas formas de
grupamentos enigmaticos. Os principios de unificacao desses
grupamentos nao sao nem gramaticais, nem logicos e exigiram que
eu me voltasse para o problema do enunciado. Foi assim que eu
percebi que as dimensoes proprias do enunciado sao utilizadas na
demarcacao das formacoes discursivas. O que eu descrevi como
fonnafao discursiva constitui grupos de enunciados, isto e, conjunto
de performances verbals que estao ligadas no nivel dos enunciados.
Isso supoe que se possa defmir o regime geral a que obedecem seus
objetos, a forma de dispersao que reparte regularmente aquilo de
que fa lam, o sis tema de seus referenciais; que se defina o regime
geral ao qual obedecem os diferentes modos de enunciacao, a
distribuigao possivel das posicoes subjetivas e o sistema que os
define e prescreve. A defmigao de formacoes discursivas ocupa todo
o capitulo II da Arqueologia do Saber.
10 E dessa defini9ao, podemos deduzir o que voce entendecomo "discurso" e "pratica discursiva"?Em minhas obras anteriores, usei o conceito de discurso de
rma muito flutuante, polissemica, entendendo-o ora como dominio
de todos os enunciados; ora como grupo individualizavel de
>; ora como pratica r eg ul amenta da de um certo numero
-
36 FOUCAULT E O5 DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
de enunciados. A partir de minhas reflexoes sobre as formacoes
discursivas, posso agora chamar de "discurso" a urn con-junto de
enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formacdo discursiva;
ele e constituido de wn nimie.ro limitado de enunciados, para os quais
podemos definir um conjunio de condicoes de existencia; e, deparle. aparte,
histonco fragmento de lustona, nmdadc, e desconhnuidade na propria
historia, que coloca o problema de sens propnos limites, de sens cort.es, de
suas transformacoes, dos modos especificos de sua temporalidade (1986,
p. 135-36). Do inesmo modo, posso definir pratica discursiva como
um conjunto de regras anommas, histoncas, sempre determinadas no tempo
e no espaco, que definiram, em uma dada epoca e para mna determmada
area social, econ.om.ica, geogrdfica ou hngiiistica, as condifoes de exercicio
dajjmcdo ennnciatwa (1986, p.136).
n Ha, ainda, tres caracterist icas que a sua anal ise enunciativa leva em conta ao tratar dos enunciados: araridade, a exlerioridade e o acumulo. Voce pode nos indicar como
relacionar esses conceitos aos outros, ja defmidos nesta entrevista?
Ao contrario de uma certa analise do discurso, que trata do
sentido implicito, soberano e comunitario, a analise enunciativa que
eu proponho leva em conta um efeito de raridade. Para essa analise
do discurso tradicional, o discurso e, ao mesmo tempo, plenitude e
riqueza indefmida. A analise que eu proponho - dos enunciados e
das fbrmacoes discursivas - quer determinar o princfpio segundo o
qua! puderam aparecer os linicos conjuntos significantes que fbram
enunciados, busca estabelecer, portanto, uma lei de raridade (19SG,
p. 138). Disso decorre que se pressupoe que nem tudo e sempre
dito; por isso, estudam-se os enunciados no limite que os separa do
que nao esta dito, na instancia que os faz surgirem a exclusao de
POUCAULT E OS POMJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIPAPE 37
todos os outros. Essas "exclusoes" nao sao o sentido secreto, mas a
evidencia de que o enunciado efetivamente realizado esta sempre
em sen lugar proprio. Ao mesmo tempo, essa raridade indica que
os enunciados nao tern uma transparencia infmita: nem tudo pode
ser dito num lugar qualquer por um sujeito qualqueri!>.
Proponho uma an&lise que busca determinar o "valor" dos
enunciados: sen lugar, sua capacidade de crrculacao e de troca, sua
possibdidade de transfortnacao; de aparece como um bem finito, limitado,
desejavel, uhl - que tern suas regras de aparecimento e. tambem suas
condifdes de apropriacao e de utihzacao e que coloca, por consegumte,
desde sua existencia a questao do poder20; que e objeto de uma lula, e de
uma luta politica (1986, p. 139). A ideia de raridade me auxilia na
tarefa de libertar a analise dos enunciados de Lima historicidade
que recorre ao psicologismo, as mentalidades, a teleologia, ao
histonco transcendental. Assim fazendo, minha investigagao
procura restituir os enunciados a sua dupersao, para considera-los
em sua descontmuidade, para apreender sua propria irrupcao no lugar
e no momento em que se produziratn; para reencontrar sua
incidencia de acontecimento (1986, p. 140). Dai, a ideia de
exterioridade: a analise busca reencontrar o exterior onde se repartem,
em sua relativa raridade, em sua vizinhanca lacunar, em sen espa9o
aberto, os acontecimentos enunciativos. Isso tern algumas
consequencias teoricas: a) o campo dos enunciados e entendido como
local de acontecimentos, de regularidades, de relacionamentos; b) o
dominio enunciativo nao torna como referencia nem um sujeito
^dividual, nem uma mentalidade coletiva, mas um campo anonimocuja configura^ao defina o lugar possivel dos sujeitos falantes; c) as
'iiscussao soln-
-
38 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
series sucessivas nao obedecem a temporalidade da consciencia: o
tempo dos discursos nao e a tradufao, em uma cronologia msivel, do tempo
obscu.ro do pensamento (1986, p. 141). A abordagem da raridade e da
exterioridade tern, ainda, uma conseqiiencia que afeta todo o
dispositive teorico-metodologico da analise: nao nos situamos no
nivel de um cogito, do pensamento, mas no conjunto das coisas ditas,
buscando as relafoes, as regularidades e ax transformafdes qne podem ai
ser observadas, o domimo do qual certasfiguras e certos entrecruzamentos
mdicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de
um autor. "Nao importa quern Jala", mas o que ele diz nao e dito de
qualquer lugar. E conszderado, necessariamente, no jogo de uma
exterioridade (1986, p. 1*1-42).
Sobre a 110530 de aaimulo, ela parece estar entrelacada a
essas ideias de raridade e de exterioridade... Parece-me
que, nela, encontramos o fio da temporalidade...
Acho que sim. A leitura, o traco, a decifrafao, a memoria
defmem o sistema que permite, usualmente, arrancar o discurso
passado de sua inercia e reencontrar, num momento, algo de sua
vivacidade perdida (1986, p. 142). Minha analise nao propoe
despertar textos de seu sono atual para reencontrar as marcas
legiveis em sua superficie. Pelo contrario, ela propoe segui-los ao
longo de seu sono, ou antes, levantar os iemas relacionados ao sono, ao
esquecimento na es-pessura do tempo em que subsistem, se conservaram
onforam esquecidos. A remanencia dos enunciados - sua conservacao
- ocorre devido a um certo numero de suportes (como o livro, por
exemplo), certos tipos de instituicoes (e o caso das bibliotecas, que
tern, primordialmente, essa func.ao), certas modalidades estatutarias
(pense, por exemplo, no texto religiose, no jur id ico etc.). O
FOUCAULT E OS DOHJNIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 39
esquecimento e o grau zero da remanencia: os jogos da memoria e
-
40 FOUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEMi DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
discursos, A positividade desenvolve um campo em que podem ser
estabelecidas identidades formais, cont inuidades tematicas,
translates de conceitos, jogos polemicos. Assim, a positividade
desempenha o papel do que se podena chamar um a priori historico
(1986, p. 146): as condicoes de emergencia dos enunciados, a
lei de sua coexistencia com outros, a forma especifica de seu
modo de ser, os principios segundo os quais subsistem, se
transformam e desaparecem. O que chamo de a priori historico e
o conjunto das regras que caracterizam uma pratica discursiva
(1986, p. 147). Quanto a positividade, e o termo que venko
empregando, enfim, para designar a meada que venho tentando
desenrolar. (1986, p. 144).
"I /\ Acho que chegamos, enfim, ao conceito mais amplo de
-M~^T0 sua proposta de analise: acho que estamos tocando no
conceito de arquivo... A par t i r dele, pensando em termos
hierarquizado.s, podemos unir todos os conceitos - enunciado;
conJLinto de enunciados (discurso); formacoes discursivas; praticas
discursivas; a priori historico; positividade; arquivo. Posso pensarassim?
Acredito que sim, de uma certa maneira eu venho operando
por circulos concentricos. Veja o que eu escrevi em algumas
paginas22:
O dominio dos enunciados assim articulado por a priori historicos,assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido
-2 Pequena pausa. Abro meu exemplar da primeira edi^ao da Artjueohgta (i|iit en acabarade comprar numa daquelas bvrarias do Qvartier Latin, e que ja estuva gas to de tan to metisdedoK deslizarem, na leitura, pela branca superficie de suas piginas) leio e transcrevo, naIntegra, o que me parece um achado.
FOUCAULT E OS DOMJNIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 41
por ibrmacoes discursivas distintas ../] 6 um volume complexo emque se diferenciam regioes lieterogeneas e em que se desenrolam,segundo regras especfficas, praticas que nao sti podem superpor. Aoinves de vermos alinharem-se, no grande livro mi'tico da liistoria,pa l av ra s que tradu/.em, em caracteres v is fve is , pensamentos
const!tuidos antes e em outro lugar, ternos nas praticas discursivassistemas que instauram os enunciados como acontecirnentos (tendo
siias condicoes e seu dominio de aparec imento) e coisas(compreendendt) sua possibilidade e seu campo de utili/.acao). Sao
todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisasde outro) que proponho chamar de arquivo. ...3 Trata-se do que fazcom que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milenios[^...3 tenham aparecido gracas a todo um jogo de relacoes quecaracterixam particularmente o nfvel discursive. ..7j O arquivo e, deinfcio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimentodos enunciados como acontecimentos singulares. [../] e o que defineo sistema da enunciabilidade do enunciado-acontecimento. Q...J e osistema de seu funcionainento. Q..]] entre a tradiciio e o esquedmento,ele fax aparecerem as regras de uma prfttica que perrnite aos enunciadossubsistirem e, ao inesmo tempo, se modificarem regularmente. E o
sistema geral da formacao e da transformagao dos enunciados- r_...] Oar fMi ivn nao e descritivel em sua totalidade e incontomavel em sua
atualidade.
Uma questao geral: a denominagao de "arqueologia" para
essa analise - e, logicamente, ja sabendo das restricoes
que voce faz sobre alguns dos sentidos contidos na etimologia da
palavra, confer me aquela entrevista que acaba de ser publicada
no Magazine Litleraire-'3 ~ deriva desse conceito nuclear de
"arquivo"?
nua-se do Lex to "Michel Foucault expl ica .seu ul t imo livro". (Entreviini turn .1.1chier) Magazine Litt^raire a* 1909. |) ii^-a") Trad bras, em: Moua, M.B (Org}
ichel Foucaulr. Arqueologia das Cieiicias e Historia dos Sistemas de Pcnsaniento.l. Dt'to.1 & ,.(-,,;,,.,- {/) R,,, de Janeiro Foreu.se Llniver.sHiiria, aooo, p. 1'!')-1 .W
-
42 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Talvez possamos pensar assim, se considerarmos que o
"arquivo" e o centre em torno do qual gravitam os outros conceitos
operatorios da minha analise. O arquivo forma o horizonte geral a
que pertencem a descngao das formafdes discursivas, a analise das
positimdades, a demarcagao do campo enunciativo. Por isso, o nome de
arqueologia aos estudos que venho empreendmdo. Como voce afirmou,
restrinjo o sentido de "arqueologia", pois ele nao deve mdtar a busca
da origem on a uma escavacdo geologica. Ele designa o tema geral de uma
descrifdo que mterroga o jd-dito no nivel de sua existencia: dafun^ao
enunaativa que nele se exerce, daformafdo discursiva a que pertence, do
sistema gerat de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os
discursos como prdticas especificadas no demento do arquivo (1986, p.
151).
Para fmalizar: agora que ja delineou o "metodo
arqueologico" - e, de alguma forma, ja acertou as
contas com seus criticos - esta pensando em um novo trabalho,
certamente...
"Acertar contas" e uma expressao muito forte,
pr inc ipalmente porque tenho inumeros interlocutores e,
certamente, nao poderei nunca estar quite com todos. Ademais,
nunca pensei em escrever um livro que fosse o ultimo, que
interditasse as vozes futuras. Pelo contrario, escrevo para que
outros livros possam ser escritos e nao necessariamente por mini.
Quanto ao que estou escrevendo agora... Estou trabalhando o
texto de minha aula inaugural no College, de France: trata-se de
uma fala em que abordo os perigos que o discurso representa
para a nossa sociedade - nunca se falou tanto e nunca, na
historia do ocidente, se temeu tanto as palavras. Pretendo tratar
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE 43
dos disposi t ivos de cont ro le da pa lavra , algo que tenho
denominado como "a ordem do discurso"*4. Tambem pretendo
avancar um pouco mais os principios da an&lise do discurso.
Um deles, e talvez o mais importante, estou denominando
"principio da inversao", porque proponho que, em vez de
enxergar a originalidade, a origem, a continuidade, e preciso
ver o jogo negative de um recorte e de uma rarefacao do discurso.
A ele, acrescenta-se a necessidade de atender ao "principio de
descont inuidade": porque os discursos sao rarefeitos nao
significa que para alem deles reine um grande discurso ilimitado,
contmuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado;
sabendo disso, os discursos devem ser tratados como praticas
descontinuas, que se cruzam por vezes, mas tambem se ignoram
e se excluem. Ha, alem disso, o "principio de especificidade": o
discurso nao pode ser tornado como um jogo de significa9oes
previas; ao contrario, ele deve ser concebido como uma violencia
que fazemos as coisas, como uma pratica; e e nesta pratica que
os acontecimentos do discurso encontram o "principio de sua
regularidade". E seguindo o "principio da exterioridade", e
necessario nao se concentrar no niicleo interior e escondido do
discurso, mas, a partir do proprio discurso, de sua aparicao, de
sua r egu la r idade , passar as suas condicoes ex te rnas de
possibilidade, aquilo que da lugar a serie aleatoria desses
acontecimentos e fixa suas fronteiras (1996, p. 53). Como ve,
estou tomando alguns pontos da arqueologia e aprofundando-
s. Quero, alem disso, tratar de uma figura que ficou poucoesbocada na Arqueologia do Saber: o autor. Quero escrever um
que procure problematizar a questao "o que e um autor?".
t-ssa aula inaugural sera publicada em: FOUCAULT, M (1971). A ordem do discurso.rad- bras, de Laura Fraga Sampaio. Sao P;uilo Loyola, 199(i
-
44 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Talvez para fechar um ciclo. Estou caminhando na direcao de
analises que focalizem as relacoes entre o saber e o poder...-"
Enfirn, o future... nao e ele apenas um pequeno lampejo, quaseinvisivel, num fim de tarde como e esse hoje incontornavel em
sua atual idade, assim intervalar entre o que somos e o queimaginamos no devir?se
-* Esse cexto, que ruarca inn l i m i a r da passagem de Foucault para as retlexoos snbre odiscurso e (> poder, sera publicado em: FOUCAULT, M. (19G9). Qu'est-ce qu 'un auteii!'?.Ill: Bulletin dc la Societe FVancaise de Philosophic, n3. Trad. port. Lisboa: Vega, 199-23(1 Levanta-se. Di/_ adeus Vejo sua s i lhueta e.sjrma caimnhar contra o sol que se poeientamente. Estou ainda na mesa do cafe e a cliiivena ]a fna, e.squecida na alvura da toalliaU m a . v i s a o de sonho sua ilcrura recortada contra a tarde, cammhaiido lentanii-nte s,e5^ . , .mi.stura aos trati>euntes Foi-se, desl^iln entre milliares de rnstos que cruxam a nevoa docotidiano Imerso nil bruma da histona, i leixa, indelevel, a inscn^ao de um lugar unde eupoderia te-lo (.-ncontrado e dai registrado em frap;eis palavru.s o que c!e tiio \rigorosameteme dava
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 45
Forma^ao discursiva em Pecheux e Foucault:uma estranha paternidade27
Roberto Leiser Raronas *
ll accovplera.it /c chat avt-'t: le ckeval et I'art modern avec \
socialism!: et que, si c'etait du donquicfiotttiitMi, il voidaii etre
un Don Qtiichotte, pares que le socialism* etait pour lui fere
de la hberle ut da pLustr et qud rejetait tout autfe socialisms.
Milan Kundera
Michel Foucault em Vigiar e Pumr, ao se reportar ao caraterheuristico do discurso nietzscheano, afirma que o unico sinal dereconhecimento que se pode ter com um pensamento como o deFriedrich Nietzsche e precisamente utdizd-lo, faze-lo ranger, gritar.Penso que essa pratica possa ser deslocada para trabalhos que sepropoem realizar um dialogo entre a Analise do Discurso deorientacao francesa e o arcabou9o teorico de Michel Foucault, porexemplo. Para tan to, e necessario, contudo, que se faca nao so o
Enncando um pu 111:0 com as palavras, ta^'ii 14111 trocadilho a partir da expn-'ssao deMichel Pecheux estranlia i'amihat'idade - quando estu desenvolve com P;iul Henry oconceito dt pre-conMiriiido Sabe-se que ;i palavra uiema unheimhch designs aquiio que eafetadu pelo signo do familiar e do estrangeiro A ulassica tradu^ao da expressao de Freudpor "inqmetanCe estrangeindade'', Micliiit Pecheux sempre preferiu, em relacao a suainterpretacao do jire-constrtiido, nquela da "estranha familiaridade". Essa expi'essao tainbetiiaparece no textu de abertura do Coloquio Materialites Discur-sives, realizado na UniversidadeParis X - Nanterrc em 1980, no qual Michel Pecheux despediu-se, nao sein ierocidade, dateoi-ia do disturso" apresentadii como um "fantasma tuonco unilicador". Ele se dirige
aquelys que "trabalham no campo da lingiiistica, d:i liistona, da anah.fe do discurso e dapsicaiii'dise'', con\ ocando o teixe de suas questoes em tnrno do "triplo real d;i lingua, dahistona e do mc
-
46 FOUCAULT E OS DOMIN1OS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PODER, SUSJETIVIDflDE
pensamento foucaultiano ranger, gritar, isto e, render o maximo,
mas a propria teoria do discurso proposta por Michel Pecheux e,
tambern, alguns dos conceitos desenvolvidos por Mikail Bakhtin.
Neste trabalho, certamente, nao darei conta dessa herculea tarefa;
apontarei apenas algumas indicaooes de uma perspectiva de analise
discursiva que procura retomar algo tanto do fio do discurso quanto
do interdiscurso.
Ao ler algumas das narrativas da escrita da analise do discurso
francesa e possi'vel constatar que urn de sens conceitos mais caros,
o de formacao discursiva, foi abandonado no infcio dos anos oitenta
na Franga. As razoes para a sua renuncia, apontadas por tais
narrativas, nern sempre muito claras, vao desde a alegacao de que
a formacao discursiva possui um carater eminenterriente
taxionornico ate a existencia de uma relagao conflituosa entre o
marxismo e Michel Foucault. Ha em rela^ao a narrativa do conceito
formacao discursiva nos termos de Guilhaumou (2003), "um eclipse
nao explicitado". Contudo, embora denegado pelo grupo de Michel
Pecheux na Franca e, apesar do es ta tuto desse conceito se
apresentar muitas vezes de maneira indefinida, ele permanece ainda
bastante operative nas pesquisas sobre o discurso, principalmente
no Brasil, Essas narrativas publicadas em frances e em portugues
asseveram que Michel Pecheux teria emprestado o sintagma
formafao discursiva da A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault,
para, a luz do materialismo historico, reconfigura-lo, relacionando-
o com o conceito althusseriano de ideologia.
Neste texto, numa primeira hipotese de trabaIho*B, alem de
questionar esse posicionamento, asseverando que tal conceito tern
"B Como "bom ladrao de palavras", tomo de emprestimo essa expressao de Michel Fuucault
(1973), o (jut eu gostar/a. de dizer-lkes nesta-^ conferenaas sao caisas possivelmente inzratas, fatsas,
erroneas, qt/e apresmtarei a titulo de hipoteses de tmbalho; hipoteses lie traballw para um trabaUloJuturo. Pedma, portanto sua indulgencia e, mais do (jtie isto iua maldo.de.
cnUCAUlT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM; DISCURSO, PQDER, SUBJETIVIDADE 47
pelo menos uma paternidade partilhada, procure numa segunda
hipotese inicialmente explicitar tal eclipse e, posteriormente,
evidenciar que, desde que reconfigurado*1' a partir do mirante do
dialogismo bakhtiniano, por exemplo, esse conceito pode ainda ser
bastante produtivo para a teoria do discurso. Para tanto, entrando
defmitivamente na ordem arriscada do discurso cientifico, trago de
inicio em forma de citagao uma nota de rodape que faz parte do
artigo Qs fundamentos teoncos da 'Anahse Automdtica do Discurso' de
Michel Pecheuj;, cujo autor e Paul Henry:
Existem muitos pontos de contato entre aquilo que Michel Foucault
elaborou no que se refere ao discur^o e aquilo que fez Michel Pecheux,
pe!o menos no nive! teorico (por exemplo, encontra-se em Foucault
uma nocao de "formacao discursiva" que tern alguns pontos em cornum
com nquela de Pecheux), e em particular no nfvel prStico (Foucault
nunca tentou elnborar um dispositive operacional de anSlise do
diKcurso) ... Pecheux partilhava com Foucault um interesse comum
pelt! liistoria das ciencias e das ideia.s que pode explicar por que ambus,
mais do que qualquer outro autor, ibcalixararn o discurso (HENRY,
1993, p. 38).
Parto entao dessa citacao para tentar precisar quais seriam
efetivamente os pontos de contato e de afastamento entre as nocoes
foucaultianas e de Michel Pecheux de formacao discursiva. Devo
dizer que nao sou o primeiro a empreender tal tarefa. Ha todo um
conjunto de estudiosos do discurso que anteriormente, com
competencia e mais legitimidade, se debru9aram sobre essa questao,
que lateralmente. Dentre esses pesquisadores, citaria pelo
dois: Denise Maldidier e Jean-Jacques Courtine, ambosllngiiistas franceses, que participaram ativamente do grupo de
*a p " -C-ssa articulatao tbi sugerida pela Profa. Maria do Rosano Gregolin durante uma aula
0 "rograma de P6s-Gradua^ao em Linguistica e Lingua Portuguesa da FCL/Unesp Araraquara em 2000.
-
48 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA UNGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
Analise do Discurso, fundado por Michel Pecheux. A primeira ex-
professora da Universidade de Paris X, morta tragicamente em
1990 e o segundo, atualmente, e professor na Universidade de Paris
III - Sorbonne Nouvelle.
Maldidier em L'lnquietude du discours: textes choisis de Michel
Pecheuj:, na apresentacao, intitulada (Re)Ler Michel Pecheux hoje,
historiciza o percurso de Michel Pecheux, dividindo-o em tres
grandes momentos: primeiro, o das grandes construcoes, no qual
Michel Pecheux, com base nos postulados althusserianos, construiu
todo um dispositivo teorico-analftico de analise automatica do
discurso que procura desconstruir as evidencias de LaPalice; depois,
aquele dos tateamentos, em que o filosofo Frances, com a crise do
marxismo e com a cegueira e a surdez dos sociolingiiistas marxistas,
reve muitos de sens posicionarnentos e se propoe a "quebrar o
estranho espelho da Analise do Discurso" e, por ultimo, o da
"desconstrucao domesticada", quando Pecheux, aproximando-se de
Foucault e de Lacan, tenta precisar os limites entre descri5ao e
interpretacao, vendo o discursive na sua estrutura e no seu
acontecimento. Como diz Denise Maldidier:
O projeto de Michel Pecheux nasceu na conjiintuni dos anos de [060,
sob o stgno da articulacao entre a lingtifstica, o materialismo historico
e a psicanalise. Ele, progressivamente, o amadureceu, explicitou,
retificou. Seu percurso encontra em uheio a virada da conjuntura
teoriua que se avoluma na Franili7.acao da.s positividades, de
um lado. Retomo do sujeito, derivas na diregao do vivido e do individuo,
de outro. Deslizamc'iito da politica'para o espetactilo! Era a grande
quebra. Deixavanms o tempo da "luta de classes na teoria" para entrar
no do "debate". Nesse novo contexto, Michel Pecheux tentou, ate o
*" TraduvSo brasileira Eni P. Orlandi, Maldidier, Denise. A inquietafao do discurso: (Re)lei1
MSchd Pecheus hoje. Campinas, Pontes, 2003.
E OS DOHJN1OS DA LINGUASEM;: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDAPE 49
limite do possfvel, re-pensar tuJo o que o discurso, enquanto conceito
ligado a um dispositivo, destgnava para eie (MALDIDIER, l!>90;
2003, p. 1G).
Courtine, na re vista Langages n. 62, Alguns probkmas teoricos e
tnetodologicos em Analise do Discurso: a proposito do discurso comunista
dirigido aos cristaos*1, no capital o II, intitulado "O conceito de
formacao discursiva", empreende uma discussSo teorica que objetiva
refletir sobre o uso que e feito do conceito de formafao discursiva
nos trabalhos de Michel Pecheux, tanto no nivel te6rico quanto no
das praticas de analise, bem como, mostrar as contribuicoes que a
no9ao foucaultiana de formacao discursiva poderia trazer no sentido
de eliminar o problema da homogeneidade na constituicao dos
corpora discursive em Analise do Discurso. Passaremos agora a um
exame da nocao de formacao discursiva em A arqiteologia do saber,
de Michel Foucault.
No escritos foucaultianos, a no9ao de formacao discursiva
aparece pela primeira vez em A arqueologia do saber, texto que,
posteriormente, nos Ditos e escntos, o proprio Foucault diz que teria
sido escrito como introducao de As palavras e as coisas e que depois
fora transformado num livro que tenta teorizar sobre a historia
das chamadas ciencias do homem. Contudo, nao numa historia
traditional, contmua na qual os seres humanos marcham em busca
de um telos, de um devir, mas numa historia descontinua que
descreve o momento mesmo de irrupcao dos acontecimentos
discursivos, tornando-os inteligiveis em termos de regras que os
governam e os regulam.
Agrade^o ao Prof. Sirio Possenti que gentilmetite nos ceden a sua tradu
-
SO FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE FQUCAULT E OS DOMJNIOS DA LINGUAGEM: PISCUR5O, PODER, SUB3ETIVIDAPE SI
Na verdade A arqueologia do saber se constitui numa descricaobastante complexa e didatica do metodo arqueologico, uma teoriaque procura compreender o funcionamento dos discursos que
constituem as ciencias humanas, tomando-os nao mais como conjuntosde signos e elementos signiflcantes que remeteriam a determinadas
representac6es e conteudos, tal como pensavam os estruturalistas
tr ibutaries de Saussure, mas como um conjunto de praticasdiscursivas que instauram os objetos sobre os quais enunciam,circunscrevern os conceitos, legitimam os sujeitos enunciadores e fixamas estrategias serias que rareiam os atos discursivos.
Com o metodo arqueologico Michel Foucault busca descrevernao so as condicoes de possibilidade dos enunciados que formamas ciencias empiricas, mas as condicoes mesmo de existe'ncia dessesenunciados. Para tanto, segundo Foucault,
e precise renunciar a todo.s os temas - tradi^ao; inf luencia ;desenvolvimentoeevolugSo; mental idade ouespiritojtipos egeneros;livro e obra; ideia da on gem; ja-dito e nao dito -que tern por funcSogarantir a inf ini ta continuidade do discurso e sua secreta presenca MO
jogo de uma ausencia sempre reconduzida. E preciso estar prontopara acoiher cada momento do discurso em sua irrupcao deacontecimentos, nessa pontualidade e dispersao temporal, que Ihepermitc ser repetido, sabido, esquucido, transfbrmado... Nao remete-io a longinqua presenca da origeiri; e preciso trata-to nojogo da suainstancia (FOUCAULT, 19BR, p. 28).
Ao colocar ern suspense todas essas "sujeicoes antropologicas",e possivel descrever quais os atos discursivos que conquistaram
sua l iberdade condicionada, apos terem passado por uminterrogators numa especie de "polfcia discursiva", que se reativaa cada um dos discursos efetivamente ditos e que determine aquiloque pode e deve ser dito por um sujeito autorizado, com base nummetodo aceito, se inserindo dessa maneira no verdadeiro da epoca.
Nao se trata, todavia, de qualquer ato discursivo: enunciados docotidiano, por exemplo, mas de "atos discursivos serios", isto e,
enunciados3^ que manifestam uma incessante "vontade de verdade".Esses enunciados serios entao se relacionam com enunciados do
mesmo ou de outros tipos e sao condicionados por um conjunto de
regularidades internas, constituindo um sistema relativamente
autonomo, denominado de forma^ao discursiva.E e nesse sistema que internamente se produz um conjunto
de regras as quais definem a identidade e o sentido dos enunciadosque o constituem. Em outros termos, e a propria forma9ao
discursiva como uma lei de serie, principio de dispersao e derepartigSo dos enunciados que define as regularidades que validamos seus enunciados constituintes; por sua vez, tais regularidades
instauram os objetos sobre os quais elas falam, legitimam os sujeitospara falarem sobre esse objeto e definem os conceitos com os quaisoperarao e as diferentes estrategias que serao utilizadas para definir
um "campo de opcoes possiveis para reanimar os temas jaexistentes... permitir, com umjogo de conceitos determinados, jogar
diferentes partidas" (FOUCAULT, 1986, p. 45).Depois dessa breve apresentacao do conceito de formacao
discursiva em Foucault, discuto a emergencia desse conceito emPecheux. O conceito de forma?ao discursiva aparece pela primeiravez em Michel Pecheux no seu artigo A semdntica e o carte sanssureano:ttngua, linguagem e discurso33. Ao criticar os lingiiistas pos-
"ara Foucault o enunciado difcre-se tanto da f'rase, da propoM^ao quanto do ati de iala,s ele e ;i unidiide elementar do discurso. "Em seu modo de ser smguhir (nern iiiteiramenteiJMistico, nem exciusivamente material) o enunciado e indis|iensavl para que .se pos.sa
1 se ha ou nrlo Ji-ase, proposicao, ato de lineuairem (. ) ele nao e. em si mesmo, umallni I j f> f^ \ !atle> niiis Mini uma 11111930 que cruza um domimo de estruturas e. de unidades possiveisJs L
e ' com qe apare^-am, com conteudos concretes, no tempo e no espafo (p. 98-9).. _ e^to produzido em cnlaboracao com Clamline Haro ih f e Paul Henry, publicadoMA\a lnu"te lla Rev ' ista Langages, niimero '24-, 1 9 7 1 Inedito em por tugues . I n
O1DIER, D. L'InquietudeduDiscoiirs.-textesdeMRliel Pecheux. Editions dnCenclres,'95)0, n i q fiu T- , -i '33-53 I radu^ao provisona nos.sa.
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52 FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
saussureanos - estruturalistas e gerativistas - por terem de alguma
maneira trazido o modelo fonologico saussureano para o dominio
do sentido, produzindo uma especie de filosofonema que
caracterizaria toda a lingtiistica, Pecheux rnostra que, ao se pensar
as sistematicidades da lingua como um continuum de niveis, se esta
na verdade, recobrindo o corte saussureano entre langiie/parole. "O
elo que liga as significances de um texto as suas condicoes s6cio-
historicas, nao e secundario, mas constitutive das pr6prias
significasoes" {Pecheux, 1971, p. 147). Pecheux propoe entao uma
mtervenfdo epistemologica nas semanticas lingiiisticas. E precise
"mudar de terreno" e encarar uma nova problematica o discurso.
Esse conceito devera ser pensado a luz do materialismo historico.
E a partir dele que se pode fazer a localizacao de novos objetos,
colocando-os ern relacao corn a ideologia.
Nous avancerons, en nous appuyant sur uin grand nombre deremarques contenues dans- ce qu'oi\ appelle "les classiques du marxisme"que les formations ideologiques ainsi definiee.s comportent
necessairement, comme tine de leurs composants, une on plusiersformations discursives interreliees, qui determiner! t ce qui pent etdoit etre dit (articule sous la tonne d'uri harangue, d'um sermon,d'um pamphlet, d'um expose, d'un programme, etc.) a partir d'un
position donneedans conjocture donnee: le point essentiel ici est qu'ilne s'agit pas seulement de la nature de.s mots employes, rnais aussi (etsurtout) des constructions dans lequelles ce.s mots se combinent,dans la rnesure ou el les determinent la signification que prennent cesmots: comme nous 1'indiquions en commencant, les mots changent desens selon les positions tenues par ceux qui les emploint; on peutpreciser maintenant: les mots "changent de sens" en passant d'imeformation discursive & une outre (PECHEUX, ]j)7l , p. 148).
Entretanto, ao verificar o inventario intelectual de Michel
Pe'cheux e possivel constatar que o germen desse conceito aparecealguns anos antes de 1971, num outro texto de Pecheux, Lexis et
FOUCAULT E OS DOMINIOS DA LINGUflGEM: DISCURSO, PODER, SUB3ETIVIDADE 53
metalexis: iesprobtem.es des determinants^, escrito a quatro maos com
C. Fuchs. Na verdade, o esboco de tal conceito aparece em forma de
nota de fim no texto de A. Culioli, Notes sur la formahsation en
lingtiistique.
Le fonctionnement du langage a ses multiples niveaux interdit ladichotomic simplifkatricc' entre la langue (concue comme systenie
necessaire) et la parole (notion baprisant, sans 1'expliquer, la distanceentre cette nei:e,ssite du systeme et la fameuse'liberte dulocuteur') :
en fait il importe de reconnaitre que ces niveaux de fonctionnement
du langagc sont eux-rnemes soumis a des regies, mais queI'apprehension de ces regies echape (partiellement) an linguists, dansla rnesure ou de.s determinations non linguistiques dir exemple de.seffets institutionneis lies aux proprietes d'une formation sociale)entrent necessairement en jeu. I I ne s'agit nullemimt de remettre encause 1'idee selon laquelle 'la langue n'est pas une superstructure' (ansens marxiste de ce mot} mais d 'avancer que les formationsdiscursives sont, elles, fondamentalernent iiees aux superstructures,
a !a fois comme effets et comme causes. Une theorie de Teffet dediscours' ne peut ignorer ce point, quelle que soit par ailleurs lamaniere dont elle fbrmule son objet (sous !a tonne d'une 'pragniatiqiie'd'une 'rhetorique' on d'une 'strategic de la argumentation'}
(PECHEUX & FUCHS, 1!H>8, p. 32, grifos meus).
Chamo atencao para o fato de que o conceito/0rm.afao discursiva,
embora nao esteja desenvolvido, esta enunciado desde 1968, data
da publicacao do artigo de Culioli, Pecheux e Fuchs. O que me
possibilita asseverar que, pelo menos no sen processo de gestacao,esse conceito nao veio da A Arqueologia do Saber de Michel Foucault,cHJa primeira publicacao data de 1969. Embora as discussoes sobre
^ Arqueologia do Saber estivessem latentes entre a intelligentsia
francesa, mesmo antes de sua publicacao, penso que esse conceitotenha derivado do paradigma marxista fortuafao social, formafdo
~
"ULIOU. A. (org.). Cahiers pour 1'analyse, Editions du Seuil, n. 9, juiliet
-
54 FOUCAULT E 05 DOMINIOS DA LINGUAGEM: DISCURSO, PODER, SUBJETIVIDADE
ideologica e, a partir dai, formacao discursiva. Somente em 1977iM e
que Pecheux reordena o conceito foucaultiano de formacaodiscursiva a anilise das contradicoes de classe.
Acredito que Pecheux propoe mais urna considera9ao formal
dos processes discursivos tanto no interior dos discursos quanto
entre um discurso e outro, e menos uma consideracSo substantiva
de ideologias particulares e formacoes discursivas dentro de umaforma concreta, estabelecida. De acordo com essa defmicao, uma
formafao discursiva parece-me melhor compreendida como um jogo
de principios reguladores que formam a base de discursos efetivos,mas que permanecem separados deles. Essa formulacao sugere entaoque palavras, expressoes e proposicoes adquirem seus significadosa partir de determinadas formacoes discursivas nas quais saoproduzidas (os elementos lingiiisticos selecionados, como eles sao
combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeitoativo, e nSo uma propriedade estavel. Novamente, uma expressao
ou proposi?ao nao possui sentido "proprio" perpetuamente imovel
e inerente a ela. Pecheux enfatiza o ponto resultante que produziu
a emergencia dessa "matriz de sentido", individuos sao entaointerpelados "como sujeitos falantes (como sujeitos de seu discurso)pelas formacfies discursivas nas quais representam dentro da
36 Em um texto ainda medito aqui no Brasil, Retnimtons de Fvucault a. Spmaza (1977), MichelPecheux exphcita a retotnada e reelabora^ao que fnz do conceito de formacao discursivade Michel Foucault: "isso nos conduz a pensar que toda formacao ideologica devenecessariamente ser analisada de um ponto de vista 'regional', e pode ser que isso expllqueque toda ideologia seja dividtda (nao identica a si mesma). b porque as fbrmacoes ideologicastern um carater regional que elas se referem as inesmas 'coisas' de modo diferente (Liberdade,Dens, a Justica etc), e e porque as forma9f>es ideologicas tern um carater de classe que elasse referem simultaneamente as mesmas 'coisas' (por exemplo, a Liberdade) sob modalidadescontraditdrias ligadas aos antagonismos de classes. Nessas condi9oes, parece que e namodalidade pela qual se designa (pela fala ou pela escrita) essas 'coisas1 cada vez 'identicas'e divididas que se especifica aquilo que se node, sem inconveniente.s, chamar de 'formacaodiscursiva', com a condieao de se entender bem que a perspectiva regional das fbrma.s de'reparticiio' e dos 'sistema.s de dispersao1 de Foucault se encontram assun reordenados aanalise das contradi^Ses de classe". (Tradu^ao provisona Maria do Rosano Gregolm).
FOUCAULT E OS DOMINIOS PA LINGUAGEM: DISCURSO, POPER, SUBJETIVIDADE 55
linguagem as formacoes ideologicas que os correspondent"
(P&CHEUX, 1975, p. I l l - 12). Tal concepcao obriga Michel
Pecheux a declarar que o sujeito e "suscetfvel de esquecer", ou seja,
esse sujeito interpreta mal ou absorve a "causa" ou determinaca'o
de seu discurso, pensando ao contrario ser seu criador,