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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA
EM ASSOCIAÇÃO AMPLA DE IES
(UFC/UECE/UNIFOR)
ADRIANO RODRIGUES DE SOUZA
EXPERIÊNCIAS EM SITUAÇÃO DE CRISE DE SUJEITOS EM SOFRIMENTO
PSÍQUICO: ANÁLISE DE NARRATIVAS
FORTALEZA
2013
ADRIANO RODRIGUES DE SOUZA
EXPERIÊNCIAS EM SITUAÇÃO DE CRISE DE SUJEITOS EM SOFRIMENTO
PSÍQUICO: ANÁLISE DE NARRATIVAS
Tese submetida à Coordenação do Curso de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da
Universidade Federal do Ceará (UFC) e das
Universidades Estadual do Ceará (UECE) e
Fortaleza (UNIFOR) com Associação de
IES – Ampla, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Saúde
Coletiva.
Área de concentração: Políticas, Gestão e
Avaliação em saúde.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo José Soares
Pontes
FORTALEZA
2013
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências da Saúde
S713e Souza, Adriano Rodrigues de.
Experiências em situação de crise de sujeitos em sofrimento psíquico: análise de narrativas /
Adriano Rodrigues de Souza. – 2013.
149f. : il. color., enc. ; 30 cm.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Doutorado em Associação Ampla de IES
(UECE/UFC/UNIFOR), Fortaleza, 2013.
Área de concentração: Avaliação de programas de vigilância e controle, serviços e modelos
assistenciais; avaliação de modelos de formação e integração ensino-serviço.
Orientação: Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes.
1. Saúde Mental. 2. Intervenção na Crise. 3. Narração. 4. História. I. Título.
CDD 616.8915
A minha querida e amada mãe (in memória),
Fransquinha, que me ensinou que sem estudo a
pessoa não cresce. Ela sempre dizia: estude ou
vai dá murro em ponta de faca... Te amo!
Mãe, onde esteja.
A minha companheira, amiga e incentivadora,
Aline, com quem compartilho um amor
imenso e intenso. Agradeço pela amizade e
paciência no decorrer deste trabalho.
As minhas filhas Alice e Cecília, que
compreenderam em sua sabedoria infinita o
tempo ausente de seu pai nas brincadeiras e
nos feriados.
A minha irmã, Adriana, pelos incentivos.
E, ao meu pai, Dadá, que após anos de vida,
começou a estudar e buscar o conhecimento
que lhe foi tirado pelos desígnios de vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu rochedo e o meu lugar forte.
À minha segunda família, meu sogro, João, e a minha sogra, Socorro, que foram apoiadores
desta luta. As minhas queridas e lindas cunhadas, Evelyne, Caroline e Sabrine, pelo incentivo
e a esta última, agradeço pelos trabalhos realizados que contribuíram para confecção deste
estudo.
Aos alunos do grupo de pesquisa em saúde coletiva da UNIFOR que contribuíram para
transcrição das narrativas, mesmo correndo o risco de falhas e esquecimentos, cito: Renata
Silveira, Joyce Carla, Aldeniza Gadelha, Cristianne Barros. A todas que contribuíram de uma
forma ou de outra para o engrandecimento desta tese.
Ao meu orientador, Professor Dr. Ricardo Pontes, pelas inúmeras vezes que me ausentei por
compromissos profissionais... Orientador paciente e um exemplo de mestre que devemos nos
espelhar.
À minha amiga que fiz no doutorado, se assim posso considerar, que passei a respeitar e
admirar, professora Dra. Maria Salete Bessa Jorge.
Aos colegas da Coordenação do Colegiado de Saúde Mental, especialmente Rane que soube
compreender minhas ausências profissionais. Muito obrigado!
À Coordenação do Curso de Enfermagem da Universidade de Fortaleza, pelo incentivo ao
meu crescimento profissional. Obrigado por integrar esta grande família.
Às amigas da disciplina Enfermagem em Saúde Pública I da UNIFOR, pela disposição em me
ajudar nas horas de sufoco.
À banca examinadora pela disponibilidade em contribuir neste trabalho.
Aos meus amigos verdadeiros, cujos nomes não cito com receio de esquecer alguém, obrigado
por compartilhar esta nova conquista de vida.
Aos familiares e sujeitos em sofrimento psíquico que contribuíram com suas historias de vida
para a concretização deste estudo.
[...] Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já subira
aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de Lisboa de um
lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade; penetrara por
aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio ladrilhado, deixando à
esquerda e à direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mistério
da loucura; [...].
Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura
em vida, um semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão
condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem. A saúde não
depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida,
prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do
corpo e para onde.
Com que terror, uma espécie de pavor de cousa sobrenatural, espanto de
inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao
estabelecimento da praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.
No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto,
esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave, meio hospital,
meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por
uns centos de metros, em face do mar imenso e verde, lá na entrada da baía,
na Praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos,
meditabundos, como monges em recolhimento e prece.
De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdia-se logo a
ideia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de
tolices ditas aqui e ali. Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio,
uma ordem perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam
bem, na sala de visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares
aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e
mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de
uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da
loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que
inexplicável fuga do espírito daquilo que supõe o real, para se apossar e
viver das aparências das cousas ou de outras aparências das mesmas.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria
natureza fica amedrontado, sentindo que o germe daquilo está depositado
em nós e que por qualquer cousa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos
sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos,
dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há
mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele
vem a ser após. E essa mudança não começa, não se sente quando começa e
quase nunca acaba.
[...] Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911
(LIMA BARRETO)
RESUMO
Este estudo buscou resgatar a vivencia dos familiares e sujeitos em sofrimento psíquico
durante situações de crise. Historicizando esses fatos foi possível retratar um contexto de vida
que se ramifica de diversas formas para alcançar um atendimento digno e resolutivo. Trata-se
de estudo qualitativo que utilizou a História Oral Temática como método de apreensão das
narrativas. As narrativas estão apresentadas na íntegra, com textualização do autor, cujo
objetivo foi manter a singularidade e especificidade contidas no discurso. Como narradores,
tivemos setes sujeitos, seis mulheres e um homem, estes foram identificados de diversas
formas, tendo como ponto zero o Sistema de Atendimento Médico de Urgência (SAMU).
Para desvelar as ideias contidas nas narrativas, utilizei o referencial metodológico de Paul
Ricoeur que considera a compreensão como ordenação do enunciado narrativo e quando esta
estrutura organizacional não se estabelece, não é possível compreender a narrativa, requer
uma explicação. Objetivando alcançar esta explicação, optamos por utilizar aspectos
codificados, explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo
do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos, a rede de
atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos, o cuidado e suas
dimensões: perspectiva da família e da rede, o porvir na visão do familiar e do sujeito em
crise. As narrativas revelaram sofrimento psíquico marcado por multicausalidades,
potencializado pelo meio ao qual o sujeito encontra-se inserido. A ausência de rede de
assistência emergencial às situações de crise foi registrada em todas narrativas coletadas,
tendo como foco principal a carência de estruturas de retaguarda aos serviços substitutivos, o
que gera sofrimento psíquico em familiares, sujeito e vizinhos. Marcaram, também, os relatos
excessivos de violência praticados pelo sujeito em situações de crise. A terapêutica com ervas
ganhou notória importância nos relatos dos familiares, seguido pelos atos espirituais, medidas
buscadas para suprir a ausência da assistência adequada. A partir deste contexto, o cuidado
ganha relevante importância no compreender as situações de crise instaladas, uma vez que é
possível encontrar diversas formas de tratamentos, inclusive métodos arcaicos à segregação
prisional. Por fim, encontrei nas narrativas a esperança de cura ou tratamento que permita aos
familiares e sujeitos retornarem a uma vida saudável e normal. Evidenciei no estudo relatos
peculiares da realidade vivenciada no contexto das situações de crises psíquicas, como a não
formação da tríade de cuidado sujeito, família e rede de atenção, que a despeito de a família
perceber que o hospital psiquiátrico não é a estrutura assistencial desejada, lança mão deste
por ser o único recurso existente e que é preciso rever o suporte de retaguarda dos novos
serviços instalados pela Reforma Psiquiátrica.
Palavras-Chave: Saúde Mental, Intervenção na Crise, Narração, História.
ABSTRACT
This study ought to redeem experiences of families and individuals in psychological distress
during crisis situations. Historicizing these facts, it was possible to portray a life context that
branches in various ways to achieve a dignified and decisive care. It is a qualitative study that
used thematic oral history as a method of seizure of narratives. The narratives are presented in
full, with textualization of the author, whose objective was to maintain the uniqueness and
specificity contained in the speech. As storytellers, we had seven subjects, six women and one
man, these were identified in several ways, with the Zero point the System of Emergency
Medical Service (SAMU). To disclose the ideas contained in the narratives, I used Paul
Ricoeur’s methodological referential, that consider understanding as a ordination of the
narrative enunciation and when this organizational structure is not established , it is not
possible to understand the narrative, requires an explanation. In order to achieve this
explanation, I chose to use aspects encoded as therapeutic measures and their diversity; care
and its dimensions in the family perspective in relation to the health care network, the future
vision of the family and the individual in crisis. The narratives revealed psychological distress
marked by multi-causalities, enhanced through which the subject is inserted. The absence of
network emergency assistance to crisis situations was recorded in all narratives collected,
focusing mainly on the lack of structures to rear services, which generates psychological
distress in relatives, individuals and neighbors. Marked also the reports of excessive violence
by the subject in crisis situations. Therapy with herbs gained remarkable importance in the
accounts of family members, followed by spiritual acts, measures sought to address the lack
of adequate assistance. From this context, care gain relevant importance in understanding the
crisis installed, since it is possible to find different forms of treatments, including archaic
methods to segregational prison. Finally, I found in the narratives hope of cure or treatment
that enables individuals and families return to a healthy and normal life. Found in the study
reports the peculiar reality experienced in the context of psychic crisis situations, such as non-
formation of the triad of subject care, and family care network, which in spite of the family
realize that the psychiatric hospital care structure is not desired, makes use of this because it is
the only resource available and it is necessary to review the support behind the new services
installed by the Psychiatric Reform.
Keywords: Mental Health, Crisis Intervention, Storytelling, History.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES, QUADRO E TABELA
FIGURA 1 Distribuição das Internações Psiquiátricas de Fortaleza de
2005 a 2011.............................................................................
37
FIGURA 2 Redes Assistenciais da atenção integral à saúde do Sistema
Municipal de Saúde de Fortaleza............................................
40
FIGURA 3 Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza.................. 44
FIGURA 4 Distribuição geográfica do município de Fortaleza por
SER..........................................................................................
50
FIGURA 5 Esquema de captação dos entrevistados.................................. 53
FIGURA 6 Fluxograma seguindo pelos familiares na busca por
assistência no momento da crise.............................................
104
FIGURA 7 Fluxograma demonstrativo de um projeto
terapêutico...............................................................................
112
QUADRO 1 Critérios de inclusão e exclusão.............................................. 53
TABELA 1 Tipos de Estabelecimentos de Saúde do município de
Fortaleza cadastrados no CNES..............................................
51
LISTA DEABREVIATURAS E SIGLAS
ABP Associação Brasileira de Psiquiatria
ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CCSM Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza
CEVEPI Célula de Vigilância Epidemiológica
CFP Conselho Federal de Psicologia
CT Comunidades Terapêuticas
DINSAM Divisão Nacional de Saúde Mental
ESF Estratégia Saúde da Família
ESP Escola de Saúde Publica
EUA Estados Unidos da América
HSMM Hospital de Saúde Mental de Messejana
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
MOP Movimento Popular em Saúde
MTSM Trabalhadores em Saúde Mental
PACS Programa de Agentes Comunitário de Saúde
PSF Programa Saúde da Família
RASM Rede de Atenção em Saúde Mental
RT Residência Terapêutica
SAMU Serviço de Atenção Médica de Urgência
SER Secretaria Executiva Regional
SILOS Sistemas Locais de Saúde
SUS Sistema Único de saúde
UECE Universidade Estadual do Ceará
UFC Universidade Federal do Ceará
UNIFOR Universidade de Fortaleza
IPC Instituto de Psiquiatria do Ceará
CMSF Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza
PT Partido dos Trabalhadores
PSOL Partido Socialista e liberdade
DPU Defensoria Pública da União
SMSE Sistema Municipal de Saúde Escola
CAB Célula de Atenção Básica
MS Ministério da Saúde
HG Hospitais Gerais
IJF Instituto Dr. José Frota
ABRAV Associação Brasileira de Agentes de Viagem
GPSMS Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde
CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
HOV História Oral de Vida
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
APH Atendimento pré-hospitalar
CEDECA Centro de Defesas da Criança e Adolescente.
SMS Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza
TCE Traumatismo Crânio Encefálico
EEG Eletroencefalograma
IML Instituto Médico Legal
AVC Acidente Vascular Cerebral
CIOPS Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
1.1 Trajetória profissional e implicação do investigador ......................................................... 13
1.2 Delimitação do objeto de estudo .......................................................................................... 16
2 OBJETIVOS ............................................................................................................................. 18
2.1 Geral ....................................................................................................................................... 18
2.2 Específicos .............................................................................................................................. 18
3 REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................................... 20
3.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico ........................................ 20
3.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental .................................................................. 25
3.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita........................................... 30
3.4 O sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais ................ 33
3.5 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise na rede de atenção de saúde
mental de Fortaleza ..................................................................................................................... 36
4 PERCUSSO METODOLÓGICO ........................................................................................... 48
4.1 Marco conceitual da hermenêutica de Paul Ricoeur ......................................................... 48
4.2 Trajetória da pesquisa e procedimentos ............................................................................. 49
4.2.1 Cenário da pesquisa ............................................................................................................ 49
4.2.2 Amostra intencional e sujeitos investigados ....................................................................... 52
4.2.3 Técnicas e questões norteadoras para busca das narrativas ............................................. 53
4.2.4 Análise e interpretação das experiências............................................................................ 56
4.2.5 Textualização e transcriação das entrevistas .................................................................... 57
4.2.5.1 A história de Geia ............................................................................................................. 58
4.2.5.1.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 58
4.2.5.1.2 A narrativa ...................................................................................................................... 59
4.5.2.2 A história de Iris ................................................................................................................ 69
4.5.2.2.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 69
4.5.2.2.2 A Narrativa ..................................................................................................................... 70
4.5.2.3 A história de Orfeu ............................................................................................................ 75
4.5.2.3.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 75
4.5.2.3.2 A narrativa ...................................................................................................................... 76
4.5.2.4 A história de Hestia ........................................................................................................... 79
4.5.2.4.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 79
4.5.2.4.2 A narrativa ...................................................................................................................... 79
4.5.2.5 A história de Afrodite ........................................................................................................ 81
4.5.2.5.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 81
4.5.2.5.2 A narrativa ...................................................................................................................... 82
4.5.2.6 A história de Hera ............................................................................................................. 84
4.5.2.6.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 84
4.5.2.6.2 A narrativa ...................................................................................................................... 85
4.5.2.7 A história de Atena ............................................................................................................ 90
4.5.2.7.1 Contexto e caracterização ............................................................................................... 90
4.5.2.7.2 A narrativa ...................................................................................................................... 90
4.2.6 Questões éticas ..................................................................................................................... 94
5 RESULTADOS: CATEGORIAS ANALÍTICAS .................................................................. 95
5.1 Explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo .......... 95
5.2 Do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos ............ 100
5.3 A rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos ...... 106
5.3.1 SAMU ................................................................................................................................. 106
5.3.2 Polícia e bombeiros ............................................................................................................ 109
5.3.3 Hospital Mental de Messejana ........................................................................................... 109
5.3.4 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ............................................................................ 110
5.4 O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede ....................................... 111
5.5 O porvir na visão do familiar e do sujeito em crise ........................................................... 118
6 REFLETINDO SOBRE A COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DOS SUJEITOS DO
ESTADO ..................................................................................................................................... 122
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 132
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 135
APÊNDICES ............................................................................................................................... 143
ANEXOS ...................................................................................................................................... 14
13
1 INTRODUÇÃO
“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na
intensidade com que acontecem...” (Fernando Pessoa).
1.1 Trajetória profissional e implicação do investigador
Foi na intensidade com que as coisas aconteceram na minha vida que inicio o
relato acerca do interesse pelo campo da saúde mental. Desde 1994, quando ingressei na
Universidade Vale do Acaraú para cursar Enfermagem, direcionei a conhecer e vivenciar a
saúde mental. Foi a primeira experiência, não apenas na disciplina Psiquiatria, mas no campo
de estágio da disciplina Médico Cirúrgico, em que me deparei na sala de recuperação da Santa
Casa de Misericórdia de Sobral, Ceará, com o meu primeiro sujeito em situação de crise.
Não recordo o nome da paciente, assim, será, aqui, tratada de Maria. Maria,
sujeito em sofrimento psíquico, encontrava-se na sala sentada no chão e rodeada de
profissionais de saúde que objetivavam aplica-lhe um anestésico, pois precisava submeter-se à
cirurgia. Ao perceber aquela agitação e observando como Maria estava assustada, solicitei à
professora que me permitisse intervir e fui prontamente proibido; não desistindo, sai às
escondidas e quando percebi estava sentado no chão junto à Maria. Conversei e expliquei a
Maria sobre o que sucedia e esta aceitou que realizasse a punção venosa, solicitada a uma
profissional mais hábil.
Ainda na Faculdade, vivenciaria outro fato que marcaria minha trajetória no
campo da saúde mental. Durante estágio na Casa de Repouso Guararapes1, observei um
sujeito em crise epilética; ao cair no chão, um dos auxiliares do setor se aproximou do sujeito
e desferiu-lhe alguns pontapés e, em seguida, atirou-lhe terra. Aquilo me revoltou, motivo de
protesto verbal, logo contido pelo professor. Conheci ali a cruel realidade da Instituição
Psiquiátrica, do isolamento aos maus-tratos.
Antes mesmo de terminar a Faculdade, mantive os primeiros contatos com o
secretário municipal de saúde de Crateús, minha terra natal, na tentativa de garantir meu
primeiro emprego. Solicitaram-me a comparecer no início do ano para ser direcionado ao
trabalho: com tamanho entusiasmo, compareci no feriado do dia primeiro de janeiro de 1998,
1 Clínica psiquiátrica conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) de Sobral que foi condenada pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) devido à morte de Damião Ximenes Lopes, em
04/10/1999 (SILVA, 2011).
14
uma quarta feira, à Secretaria de Saúde de Crateús, em busca da função. No dia seguinte,
retornei e, em conversa com o Secretário, fui encaminhado ao Programa de Agente
Comunitário de Saúde (PACS) e designado a estruturar o setor de vigilância epidemiológica.
Colaborei com a implantação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) daquela cidade, em
1999. Neste período, convivi com alguns militantes da Reforma Psiquiátrica cearense.
Eram tempos de transformação no campo da saúde, consolidava-se a
municipalização da saúde, descentralizavam-se os processos gerenciais e expandia-se o
Programa Saúde da Família (PSF), atual Estratégia Saúde da Família (ESF). Aconteciam
transformações de ordem organizacional e sanitária. O Sistema Único de Saúde (SUS) se
consolidava como política, assim, tornava-se primordial implantarem-se os Sistemas Locais
de Saúde (SILOS). Impulsionado pelo gestor local da saúde, em 2001, inicie o Curso de
Especialização em Vigilância Epidemiológica, da Escola de Saúde Publica do Ceará (ESP),
concluindo com a monografia intitulada: Conhecendo o fazer informação: o Sistema de
Informação em Saúde de Crateús.
Em 2002, fui aprovado em seleção pública para a 5ª microrregional de saúde de
Canindé2, em que permaneci por nove meses. Em 2003, fui convocado pelo município de
Fortaleza para assumir concurso público. No momento da lotação, optei por integrar a equipe
multiprofissional do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), da Secretaria Executiva
Regional (SER) IV3. Nesta atividade, tive a oportunidade de conhecer e acompanhar diversos
sujeitos psiquiátricos e conviver com o sofrimento psíquico destes. Por dois anos, acompanhei
as dificuldades e os desafios deste espaço de tratamento.
Foram momentos de sofrimento pessoal por deparar-me com situações sem
perspectiva de solução. Aquilo me angustiava, atormentava, a ponto de refletir em patologias
físicas. Contudo, foram dias que me excitaram a transformar o espaço em que estava inserido.
Voltei neste espaço a vivenciar situações de emergência com sujeitos em situação de crise
psíquica. Ao chegar um dia para o expediente de trabalho, deparei-me com uma paciente em
crise no leito do consultório de enfermagem. Não dispunha de medicação injetável que
controlasse seu estado. As colegas que a acompanhavam tinham acionado o Sistema de
Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), sem êxito. Por várias vezes, o enfermeiro e o
2 A regionalização é a diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS) que orienta o processo de
descentralização das ações e serviços de saúde e os processos de negociação e pactuação entre os gestores (Pacto
pela Saúde 2006, Portaria/GM n.º 399, de 22 de fevereiro de 2006) (CEARÁ, 2012). 3 O município de Fortaleza encontra-se divido em regiões administrativas, denominadas Secretarias
Executivas Regionais (SER). As SER dividem a cidade em seis regiões administrativas, com a função executiva
das políticas setoriais (FORTALEZA, 2006).
15
médico do plantão da tarde também tentaram essa solução, em vão. Foi necessário, ao final,
transportar a referida paciente para o hospital psiquiátrico em transporte particular.
Essa situação proporcionou várias reflexões que me instigaram a novos desafios e
questionamentos. Foram cogitações de diversas ordens, dentre estas, emergiu a necessidade
de conhecer os usuários que frequentavam os CAPS de Fortaleza e o perfil social a que
pertenciam. Era uma questão interessante a ser investigada, realizada após ingresso no
Mestrado de Enfermagem, da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2005, como
dissertação.
No mesmo ano, busquei um novo desafio, o de integrar a equipe da Célula de
Vigilância Epidemiológica (CEVEPI), de Fortaleza. O primeiro contato com o coordenador
aconteceu e fui integrado à equipe com a condição de monitorar os dados da saúde mental do
município, atividade desafiadora pela completa ausência de informações neste campo. Mesmo
com os empecilhos encontrados, consegui estruturar uma avaliação mensal das internações
psiquiátricas, o que contribuiu para uma avaliação mais abrangente da rede de saúde mental
do município.
Em 2006, ainda no decorrer do Mestrado, submeti-me a um novo desafio
profissional: a docência acadêmica, assumindo a disciplina Saúde Mental, na Faculdade de
Enfermagem, da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Este fato oportunizou articular
experiências profissionais com o saber acadêmico. Iniciei, então, uma nova trajetória
profissional, que permitiria direcionar aos futuros profissionais de enfermagem os
conhecimentos epistêmicos do campo da saúde mental. Concluí, no ano seguinte, o Mestrado
em Enfermagem, com a defesa da dissertação: Centro de Atenção Psicossocial: perfil
epidemiológico.
O crescimento profissional e intelectual conquistado neste campo de atuação e na
academia motivou-me a integrar a coordenação do Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza
(CCSM), ocorrido, simultaneamente, com meu ingresso no Doutorado em Saúde Coletiva, da
Universidade Federal do Ceará (UFC), em associação com a Universidade Estadual do Ceará
(UECE) e a Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Cheguei, finalmente, ao doutorado em 2010, com saberes, vivências, emoções e,
acima de tudo, tormentos e inquietações intelectuais, que integraram e integram o campo
existencial, profissional e pessoal. Espero, no transcrever deste percurso de vida e no relato
destes fatos, sempre marcados por excessos ou ausências biográficas, ter traçado um perfil de
minha trajetória e de minha implicação com o tema saúde mental. Procurei reproduzir fatos,
momentos, situações que foram elementos fundamentais para minha formação intelectual e
16
individual, elementos essenciais para compreender o caminho escolhido para trilhar no
doutorado o campo temático da saúde mental.
1.2 Delimitação do objeto de estudo
Como visto, minha trajetória profissional tem me proporcionado a lida com o
sofrimento psíquico de indivíduos, principalmente quando estão em situação de crise.
Uma das situações-limite recentes vivenciadas por mim neste contexto aconteceu
quando, como membro da equipe central de saúde mental do município de Fortaleza,
presenciei a conversa de uma colega ao telefone com uma coordenadora de CAPS. No
diálogo, a coordenadora relatava uma situação problema corriqueira na rede de serviços, em
que um de seus usuários encontrava-se em situação de crise e não apresentava melhoras do
quadro. Neste relato, a profissional expunha que o expediente de trabalho estava chegando ao
fim e com ele o dilema de qual destino seria dado a este paciente, pois, neste período, o
município não dispunha de uma emergência psiquiátrica ou mesmo de leitos de observação.
Passada a situação, procurei saber que encaminhamento havia sido dado ao referido caso. Fui
informado que naquele dia o paciente retornou a casa; e que, no dia seguinte, em seu bairro,
agrediu uma pessoa com uma arma branca (faca), encontrando-se preso.
Essa situação-limite fez emergir o problema central de meu estudo durante o
doutorado e algumas perguntas condutoras: como o sujeito em sofrimento psíquico vivencia
as situações de crise no cotidiano dos espaços assistenciais da rede de saúde mental? Como
ocorre o cuidado diante da situação de crise psíquica? Qual o fluxo de atendimento dos
sujeitos em situação de crise psíquica na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza? Quais
as facilidades/dificuldades encontradas pelos sujeitos e familiares diante das situações de crise
psíquicas?
Ao considerar a conjuntura conceitual e institucional da Reforma Psiquiátrica e a
realidade vivida nos espaços onde atuo, defendo a tese de que a rede de atenção em saúde
mental de Fortaleza-CE não fornece atendimento adequado ao sujeito em adoecimento
psíquico em crise, que atenda, minimamente, suas necessidades, considerando a atenção
primária, secundária e terciária. Desta forma, a rede se apresenta, ainda, com graves nós-
críticos, principalmente, para situações de crise, além de fragilidades em relação ao cuidado
humanizado, com práticas, ainda, centradas na lógica hospitalocêntrica e farmacológica,
contribuindo para o surgimento ou prolongamento de sofrimento psíquico em famílias e
sujeitos adoecidos.
17
A relevância do estudo centra-se primordialmente na possibilidade de fornecer
espaço de reflexão crítica sobre a atenção em saúde mental para sujeitos em situação de crise
no SUS de Fortaleza, além de oportunizar o direito de expressão a um grupo de pessoas
marginalizadas e desassistidas em suas necessidades de atenção à saúde mental. Logo,
pretendemos, a partir de seus relatos cheios de dramaticidade, propiciar o rompimento do
silêncio sobre essa situação existencial de sofrimento dos sujeitos e suas famílias, oferecendo
subsídios que o redirecionamento das políticas de saúde mental no enfrentamento da questão,
além de denunciar a relevância social do problema.
18
2 OBJETIVOS
2.1 Geral
Compreender as experiências vivenciadas por sujeitos em sofrimento mental e seus
familiares na busca por assistência na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza quando
em situações de crise.
2.2 Específicos
Identificar o itinerário de sujeito e familiar durante a atenção às situações de crise
psíquica;
Descrever como acontece a assistência ao sujeito em sofrimento psíquico durante as
situações de crise no município de Fortaleza.
19
“CASA DE ORATES”
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo
médico, o Dr. Simão Bacamarte [...] o nosso médico mergulhou inteiramente no
estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou
especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não
havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal
explorada, ou quase inexplorada. [...] A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de
que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que
cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas
descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos
andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim
costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir
todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades[...]. A proposta excitou a
curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente
se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma
casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência. [...] A Casa
Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez
apareciam verdes em Itaguaí [...]; Itaguaí tinha finalmente uma casa de orates[...].O
principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus
diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o
remédio universal [...] — Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer;
ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos. [...] E tinha razão. De todas
as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos,
eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro
meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos;
mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. [...] o alienista procedeu a uma
vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes
principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios,
alucinações diversas. [...]Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava
os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os
gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes,
circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de
outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais
atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta
interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor
regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não
só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força
de sagacidade e paciência [...] A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma
ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. [...] No
conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto
com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. [...] Assim, apontou com
especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar,
Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc.,
uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e
entidades ridículas. [...] Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, [...]
é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos
definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de
todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
MACHADO DE ASSIS, 18...
20
3 REVISÃO DE LITERATURA: ESTADO DA ARTE
3.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico
A concepção de sofrimento psíquico vem sendo encarada de diversas formas ao
longo da história, sempre acompanhada por padrões culturais, sociais e político de cada
época. Historicamente, a doença mental tem se apresentado como um fenômeno social que
teve como modelo de atenção “na idade clássica” o internamento, cujas estruturas hospitalares
foram reformadas, adaptadas e construídas com objetivo de recolher, alojar, alimentar os que
para lá eram enviados (FOUCAULT, 2009).
Estes locais estabelecem-se como um poder semijurídico, estabelecido pelo rei
entre a polícia e a justiça, permitindo decidir, julgar e executar punições, tratamento e
internamentos contra qualquer indivíduo considerado sem-razão. Por séculos, a estrutura para
o tratamento da loucura centrava-se em instituições hospitalares conhecidas como
manicômios (FOUCAULT, 2009).
Etimologicamente, manicômio é um lugar de “cuidar de loucos” ou “casa de
loucos” (BARRIENTOS, 1999). O manicômio era entendido como um espaço de observação
sistemática que permitia descrever e classificar as alterações apresentadas pelo louco. O
primeiro exemplo de adequação manicomial foi visto em 1656, no Hospital Geral de Paris,
que passou por reformas e reorganização administrativa para receber os loucos (FOUCAULT,
2009). Enquanto isso, a Alemanha criou e expandiu por seu território as casas de correção
(FOUCAULT, 2009).
O constituir desses espaços instituiu a Grande Internação, em que se encarceram
indivíduos marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, entre estes, os loucos em
crise (FOUCAULT, 2009; AMARANTE, 2010). Vários espaços de cuidado se organizam
nesse período, recebendo diversos termos como: madhouse, ou casa de loucos e asylum,
encontrados em texto em inglês; em obras italianas, os termos utilizados são asilo e hospício.
O manicômio seria a instituição que se caracterizaria por acolher os doentes mentais e dar-
lhe o tratamento sistemático esperado (PESSOTI, 1996, p.152).
A instituição desses espaços de coação tiveram como delimitantes as situações de
crise que se apresentavam nas formas mais variadas possíveis, como: violências do furor,
culpabilidade, isolamento social, deterioração do funcionamento social, comportamento
estranho, deterioração do trato pessoal e higiene, embotamento afetivo ou afeto inapropriado,
alteração do discurso, crenças e pensamentos mágicos, percepção incomum das experiências e
21
falta de iniciativa, interesse ou energia (CARVALHO; COSTA 2008). A permanente
necessidade de conter e imobilizar a doença mental estabelece o manicômio como estrutura de
força, espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes constituídos, decide, julga e
executa a contenção e o isolamento do sujeito em furor (FOUCAULT, 2009).
Pessotti (1996), em sua análise sobre a loucura e as formas de concebê-la ou tratá-
la em diferentes épocas, considera que o século XIX merece o título de “século dos
manicômios”, pois:
Em nenhum outro século o número de hospitais destinados a alienados foi tão
grande; em nenhum outro a terapêutica da loucura foi tão vinculada à internação; em
nenhum outro século o número de internações atingiu proporções tão grandes das
populações. Mais ainda, em nenhum outro século a variedade de diagnósticos de
loucura, para justificar a internação, foi tão ampla. Como decorrência, a atenção
dada à loucura e ao manicômio, nos ambientes culturais e médicos, jamais foi tão
grande e tão difusa. E a medicina da loucura, em conseqüência, nunca floresceu
tanto antes do século passado...[sec. XIX]...seja como etiologia, seja como
semiologia ou terapêutica. O manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como
especialidade médica (PESSOTI, 1996, p. 9).
É nesse espaço segregador que, durante o século XIX, Pinel encontrara os loucos
e lá os deixara, mas, sem antes, se vangloriar por “libertá-los” (FOUCAULT, 2009). A
libertação acontece com a retirada das correntes dos alienados de Paris, fato que se constituiu
em um grande progresso no tratamento do louco. Pois, a mera liberdade de movimentar-se e
de locomover-se os restituía à condição humana (PESSOTI, 1996).
Ao analisar a obra de Pinel em seu Tratado, datado de 1809, considerado fundador
da psiquiatria médica moderna, Pessotti (1996, p. 69) destaca que o papel fundamental do
manicômio é...
Sustentar a origem passional ou moral da alienação e propor que a essência dela e o
desarranjo de funções mentais destoavam gritantemente da atitude vigente até o final
do século XVIII. [...] Com Pinel, o manicômio se torna parte essencial do
tratamento, não será mais apenas o asilo onde se enclausura ou se abriga o louco,
será um “instrumento de cura”, conforme o definiu Esquirol.
Assim, estabelece-se a função curiosa do manicômio do século XVIII: lugar de
diagnóstico e classificação, retângulo botânico, cujas espécies de doenças são divididas em
compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas, também, espaço fechado para
um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de
submissão.
Foucault (2009), na Microfísica do Poder, em estudo clássico sobre o tema, afirma
que a internação é uma criação institucional própria do século XVIII.
... Antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, e era
22
essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo
da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo;
podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou
perigosas. Nestas condições compreende-se a impossibilidade do espaço artificial do
hospital em ser um lugar privilegiado, onde a loucura podia e devia explodir na sua
verdade. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza,
pois que era a forma visível da verdade; tinha nela mesma o poder de dissipar o erro,
de fazer sumir as quimeras. As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência
a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da
cidade. Esquirol ainda considerou isto quando ao fazer os planos de um hospital
psiquiátrico. Recomendava que cada cela fosse aberta para a vista de um jardim.
Outro lugar terapêutico usual era o teatro. Natureza invertida. Apresentava-se ao
doente a comédia de sua própria loucura colocando-a em cena. Emprestando-lhe um
instante de realidade fictícia. Fazendo de conta que era verdadeira por meio de
cenários e fantasias, mas de forma que, caindo nesta cilada, o engano acabasse por
estourar diante dos próprios olhos daquele que era sua vítima. Esta técnica por sua
vez também não tinha desaparecido completamente no século XIX. Esquirol, por
exemplo, recomendava que se inventassem processos aos melancólicos, para que sua
energia e seu gosto pelo combate fossem estimulados (FOUCAULT, 2009, p. 120-
121).
A prática do internamento no começo do século XIX coincidiu com o momento
em que a loucura era percebida menos com relação ao erro do que com relação à conduta
regular e normal. Momento em que aparece não mais como julgamento perturbado, mas como
desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre.
Enfim, em vez de se inscrever no eixo verdade-erro-consciência, se inscreve no eixo paixão-
vontade-liberdade.
Qual poderia ser então o papel do asilo nesse movimento de volta às condutas
regulares? Certamente, ele teria de início a função que se confiava aos hospitais no fim do
século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no
meio do doente, possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e
também estimulá-la. Mais que um lugar de desvelamento, o hospital, cujo modelo foi dado
por Esquirol, é um lugar de confronto. A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida,
deveria encontrar uma vontade reta e paixões ortodoxas. Este afrontamento, este choque
inevitável e a bem dizer desejável, produzirão dois efeitos: a vontade doente que podia muito
bem permanecer inatingível, pois não é expressa em nenhum delírio, revelará abertamente seu
mal pela resistência que opõe a vontade reta do médico; e, por outro lado, a luta que a partir
daí se instala, se for bem levada, deverá conduzir a vontade reta à vitória, e a vontade
perturbada à submissão e à renúncia.
Técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX - isolamento,
interrogatório particular ou público, tratamentos-punições como a ducha, pregações morais,
encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa,
relações preferenciais entre o médico e alguns de seus doentes, relações de vassalagem, de
23
posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico - tudo tinha por função
fazer do personagem do médico o "mestre da loucura", aquele que a faz se manifestar em sua
verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a
domina, acalma e a absorve depois de tê-la sabiamente desencadeado.
Soma-se a isso o pensamento de periculosidade do louco que estabelece a
necessidade de isolamento (internamento), tornando-se fundamental a criação e manutenção
de manicômios, em que se utiliza o poder absoluto para fechar nestas casas habitantes sãos,
como fez Simão Bacamarte, no alienista, qualquer sinal de desrazão, violência, furor ou
insanidade mental fazia-se necessário o cerceamento (FOUCAULT, 2009; ASSIS, 2007).
Pinel vai estabelecer ações que modificam a forma de tratamento disponibilizado
aos loucos, de regra, este tratamento ficava a cargo de pessoas sem formação médica e
religiosa. Tratamentos alheios ao saber médico e que se agravam quando se tratava de sujeitos
perigosos (PESSOTI, 1996). Isso antecipou e expandiu a necessidade de reformar a
instituição manicomial e instituir atividades que exercesse funções básicas de observação
sistemática do comportamento de sujeitos e de assegurar experiências reais que corrigissem
pedagogicamente os vícios de razão desviada (PESSOTI, 1996).
Para essas funções se instituírem, Esquirol, o primeiro e mais destacado discípulo
de Pinel, constituiu um novo processo de trabalho em manicômios, organizando
estatisticamente as enfermidades mentais da época. Lentamente, esta organização gerou as
primeiras formas de tratamentos terapêuticos (PESSOTI, 1996; BASTOS, 2009).
Nesse período, Emil Kraepelin, ainda, era estudante e nem imaginava que teria
seu nome ligado ao movimento da psiquiatria. Kraepelin classificou e documentou os
primeiros diagnósticos da loucura para o século XX. Finalizou sua obra com a criação de uma
sistemática nosológica e distinguiram as alienações endógeneas das exógeneas, o que
permitiria considerá-lo o ‘pai da psiquiatria moderna’ (AMARANTE, 1996). Como professor,
sua primeira lição era que “todo alienado constituísse de algum modo um perigo para seus
próximos, porém em especial para si mesmo” (OLIVEIRA, 2009, p. 31).
A contemporaneidade da psiquiatria foi marcada pelo destaque de diversos
autores organicistas, que ampliaram os conhecimentos das doenças mentais em uma
perspectiva psicológica, destacam-se: Freud (1856-1939), Pavlov (1849-1936), Kurt Lewin
(1890-1947) (PESSOTI, 1996). Destes, Freud tornou genial, criando a psicanálise.
As escolas médicas contestaram a descoberta de Freud. Como admitir a existência
de algo independente e mais poderoso que a consciência (inconsciente). Este algo
independente e mais poderoso revelou a parte animal do ser humano, fazendo o sujeito ser
24
movido por forças que desconhecia o verdadeiro sentido de experiências que estavam em um
lugar cuja consciência não poderia chegar (BEZERRA, 1989).
A destituição do sujeito de sua razão, realizada por Freud, permite-o a torna-se
parte de seu processo terapêutico. Freud inclui o sujeito no processo de descoberta de seus
desejos, a partir da cadeia discursiva seria possível promover o deciframento do saber
inconsciente (RIBEIRO, 2006). Ao livrar-se das amarras do consciente, fez com que o sujeito
produzisse articulação discursiva que o levaria a distintas cenas do seu inconsciente. Freud,
ainda, contribuiu para o diagnóstico dos alienados quando afirmou que o homem aliena-se de
si ao retirar o sentido de seus desejos. Repressão, recusa e rejeição são os mecanismos
utilizados para este fim, engendrando as doenças mentais (TENENBAUM, 2010).
Com os novos conceitos idealizados por Freud, a alienação mental passou a ter
estrutura caracterizada por uma perda do relacionamento com o mundo, com o eu e a
instituição, trazendo com isso mudança, convocando os prestadores de assistência em saúde
mental a uma atualização conceitual e ética, com a finalidade de modificar os modos
assistenciais, buscando por desenvolver uma intervenção à doença baseado em projeto
terapêutico que incluíam as percepções dos sujeitos em sofrimento mental (AMARANTE,
1994; SILVIA; FONSECA, 2005).
Todavia, não foram os conceitos freudianos que se estabeleceram durante o século
XX, mas a nosologia de Kraepelin que inseriu o conceito de personalidade psicopática,
implantando a noção de anormalidade (AMARANTE, 1996). Neste sentido, ocorreu mudança
na concepção do saber médico, marcada pela substituição da doença mental - século XIX -
para a concepção de anormalidade do século XX.
A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença, a anormalidade. A
Medicina ganha, ao longo do contexto histórico, o direito de restabelecer a harmonia, o
equilíbrio, expulsando a doença e restaurando a saúde. Em vez de se estabelecer como
terapêutica e resolutiva, opta por discutir e gerar diversos sistemas classificatórios de
enfermidades, principalmente da doença mental.
Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se o movimento psiquiátrico que propôs
a transformação da assistência psiquiátrica, estabelecendo que a mesma devesse ser
transformada ou abolida, pondo em contestação a assistência ofertada pelo hospital
psiquiátrico. Este movimento mobilizou a sociedade que passou a dirigir seus olhares para as
formas de cuidados disponibilizados pelos hospícios, descobrindo, assim, as condições de
vida oferecidas aos sujeitos psiquiátricos internados e percebendo que em nada se
diferenciava daquelas dos campos de concentração: o que se podia constatar era a absoluta
25
ausência de dignidade humana! Nascendo, assim, “as primeiras experiências de Reformas
Psiquiátricas” (AMARANTE, 2007, p. 40).
A concentração em uma única forma terapêutica provocou a superpopulação nos
manicômios. Com isso, os custos de manutenção destes espaços tornaram-se inviáveis e em
vez de lugares de reeducação das ideias e dos hábitos, passaram a se distanciar da proposta
idealizada (PESSOTI, 1996). Deste modo, passaram a explicitar o preconceito, o abandono e
as más condições de tratamento e cuidado às pessoas internadas.
Isso caracterizou o movimento de Reforma Psiquiátrica instalado pelo mundo,
pois se tornou primordial enfrentar ao mesmo tempo as faces do problema, estabelecendo
cuidado cidadão ao sujeito em sofrimento psíquico.
3.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental
Desde a criação do isolamento como forma de tratamento, ainda, hoje, em vigor
em instituições, a psiquiatria tem tentado instituir as mais variadas formas de cuidar de
doentes, focando em um processo de desconstrução do modelo manicomial instituído.
A desconstituição do manicômio como único modelo de cuidado do sujeito em
sofrimento psíquico obriga a instituir serviços com características de acolhimento, cuidado e
trocas sociais. Serviços que aprazam relação integral entre profissionais, instituição e usuário,
através do estabelecimento de princípios libertários, humanitários e sociáveis que resultem em
reintegração deste sujeito. A reinserção exige substituição das práticas psiquiátricas para
práticas de cuidado por ações de cuidado que respeitem a dignidade e a necessidade do sujeito
em sofrimento psíquico (OLIVEIRA, 2009; GONÇALVES; SENA, 2001).
Pode se compreender o cuidado como a essência humana estabelecida através de
um processo de comunicação. Boff (2008) afirma que o cuidado entra na natureza e na
constituição do ser humano e torna-se uma das coisas fundamentais da vida. O cuidado vai
além de um ato, de uma atitude, abrange um momento de atenção, de zelo, de
responsabilização com o outro. Este processo de responsabilização nos novos aparatos de
atenção em saúde mental procura compartilhar com familiares e comunidade as obrigações de
criação de um estatuto de cidadania e autonomia dos sujeitos (SILVA, 2007).
O projeto reformista do campo da saúde mental vem sendo direcionado pelo
projeto de desinstitucionalização da loucura, iniciado na França, em que se impulsionaram os
movimentos reformistas contra os manicômios, pregando que deveriam ser retirados destes
espaços o maior número possível de sujeitos. Desenvolveram-se modificações e críticas, tanto
26
de ordem conceitual quanto prática, que passaram a contestar a eficiência do manicômio no
tratamento do sujeito mental. Esta conjuntura transformadora idealizaria as novas formas de
assistência e uma destas seria a ideia de que o contato com a vida normal traria boa
recuperação aos doentes, contudo se buscava reduzir os crescentes números de internados e,
automaticamente, abater-se-iam os gastos públicos com este tipo de tratamento (PESSOTI,
1996).
O rompimento epistêmico do manicômio se estabeleceu de acordo com os
diferentes contextos históricos em que foram criados. O termo manicômio foi substituído
gradativamente pela especificação de hospital psiquiátrico, este, por sua vez, oficializou-se
como casa de correção, “não sendo necessário obter a permissão oficial para abrir um hospital
ou casa de correção: todos podem fazê-lo à vontade” (FOUCAULT, 2009, p. 54).
No entanto, este rompimento não aconteceu com essa facilidade, ao contrário, a
desconstrução do modelo percorreu décadas para sofrer modificação significativa. Toda
modificação, mesmo as mais simples, acarreta consequência significativa, por isso a liberação
dos doentes mentais de espaço secular precisou ser realizada com o cuidado e a garantia de
que este rompimento não causaria danos a eles.
O rompimento teve como objetivo a aproximação do doente, da doença e das
práticas terapêuticas, visando resgate desse sujeito e o rompimento da relação “objetal
profissional x sujeito para construção de um novo olhar, recorte teórico, relações interpessoais
e estratégias de abordagem terapêutica que resgate a condição de sujeito do doente mental”
(OLIVEIRA, 2005, p. 42).
Sobre essa óptica, movimentos de abordagem terapêuticos se estruturam no
cenário mundial, dos quais se destacaram: a Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades
Terapêuticas, na Inglaterra; a Psiquiatria Preventiva, nos Estados Unidos (EUA); e a
Desinstitucionalização italiana.
As Comunidades Terapêuticas (CT), no Reino Unido, constituíram-se as
primeiras experiências neste campo, tendo como objetivo recepcionar e atender aos soldados
que retornavam da guerra e precisavam de cuidados psíquicos, pois a rede hospitalar era
isoladora e segregante.
A expressão “comunidades terapêuticas” foi cunhada por Tom F. Main, em 1946,
em referência ao trabalho iniciado em 1943, por Wilfred R. Bion e John Rickman, no
Northfield Hospital. O termo foi aplicado também ao trabalho de Maxwell Jones, em Mill Hill
(1941 – 44), Dartford (1945), na divisão de reabilitação industrial de Belmont (1947 – 59) e
no Dingleton Hospital, em Melrose, Escócia. Estes psiquiatras ampliavam os recursos
27
terapêuticos para além da relação médico/sujeito, envolvendo os auxiliares médicos e próprios
doentes no trabalho de cura e reabilitação (BARROS, 1994). Estas comunidades se
estabeleceram por permitir uma “democratrização das opiniões, tolerância, comunhão de
internações e objetivos e confronto com a realidade” (DESVIAT, 1999, p. 35).
Vanguardista desse período, a França instituiu a Psiquiatria de Setor e a
Psicoterapia Institucional. A Psiquiatria de Setor acreditava que as experiências do modelo
hospitalar estavam esgotadas, e que o mesmo deveria ser desmontado, isto é, deveria ser
tornado obsoleto a partir da construção de serviços assistenciais que iriam qualificando o
cuidado terapêutico. Com isso, o modelo liberal viu-se ameaçado por um serviço de
psiquiatria que planejava, assumia compromissos e proporcionava novas formas de assistência
(AMARANTE, 2007; DESVIAT, 1999).
A Psicoterapia Institucional foi cunhada por Georges Daumézon e Koechlin, em
1952, em referência a experiências alternativas francesas que exploravam terapeuticamente as
atividades laborativas, como terapia ocupacional. Os primeiros trabalhos de referência foram
desenvolvidos em Saint – Alban (1941) e na clínica privada de La Borde (1953) e tiveram
como referência a Psicanálise e a Sociologia. Buscava-se por promover intervenções junto ao
doente e espaço institucional (BARROS, 1994).
Nos EUA, desenvolveu-se a Psiquiatria Preventiva que também ficou conhecida
como Saúde Mental Comunitária e apresentava como entendimento que todas as doenças
mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Como bases teóricas,
seu idealizador Gerald Caplan escreveu a obra “Princípios de Psiquiatria Preventiva” que
tinha como modelo inspirador a “História Natural da Enfermidade”, de Leavell e Clark,
porque a doença mental também apresentava uma História Natural e detectada precocemente,
poderia ser prevenida. Assim, foram estabelecidos três níveis de prevenção, de acordo com o
momento evolutivo da doença mental:
... Prevenção Primária [como]: intervenção nas condições possíveis de formação
da doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e
(ou) do meio; prevenção secundária [entendida como] intervenção que busca a
realização de diagnóstico e tratamento precoces da doença mental e prevenção
terciária: que se define pela busca da readaptação do sujeito à vida social, após
a sua melhora (BIRMAN; COSTA, 1994, p. 54).
Dessa forma, ocorreu deslocamento da psiquiatria em duas linhas: a primeira
deslocou a psiquiatria para a saúde mental, resgatando também a noção de modo psicossocial,
o que representa sem dúvida ampliação do campo conceitual e inovação no aspecto ético da
28
psiquiatria. O segundo deslocamento provocou a saída do hospício para a comunidade
(AMARANTE, 2007).
Completando o quadro das novas alternativas de atenção à doença mental, têm-se
também a Antipsiquiatria, termo cunhado nos anos de 1960 e que ficou identificado a uma
atitude de mera contestação e rebeldia (GOULART, 2007; AMARANTE, 2007). O
movimento congregou críticas à psiquiatria e às instituições psiquiátricas, por entender que a
loucura e a doença mental eram construções sociais e viam a instituição psiquiátrica como
agência de controle social (GOULART, 2007).
Porém, o movimento de maior impacto acontecido no contexto da Reforma
Psiquiátrica mundial foi o processo de desinstitucionalização italiana que representou
rompimento com o hospital psiquiátrico, com o modelo comunitário terapêutico inglês e com
a política de setor francesa, conservando destes movimentos apenas a democratização das
relações e a ideia de territorialidade (BARROS, 1994).
O movimento italiano tornou-se referência histórica importante nos movimentos
de Reforma Psiquiátrica que emergiram no mundo (GOULART, 2007). Pois, estabeleceu-se
por recomendar um tratamento alternativo ao modelo tradicional. Seu idealizador, Franco
Basaglia, psiquiatra, professor universitário, foi pressionado a gerenciar o manicômio da
província de Gorizia, no extremo norte da Itália, localidade sem o menor destaque do ponto de
vista político e acadêmico (AMARANTE, 1996).
Inicialmente, reconheceu o convite como um sepultamento de sua vida acadêmica,
no entanto, seguindo orientação do Prof. Belloni, assumiu e tornou-se o nome mais
importante de todo o conjunto de atores sociais e políticos que participaram do movimento de
reforma italiana. Foi, nas inquietações, reflexões e ações desse psiquiatra que se revelou
paradigmaticamente a construção de um sentido alternativo às normas e à cultura vigente da
época em relação ao sujeito em sofrimento psíquico (GOULART, 2007).
A transformação paradigmática não foi fácil, a chegada ao manicômio de Gorizia
foi tão intensa que fez Basaglia recordar do período que passou preso, pois encontrou os
internos fechados à chave (AMARANTE, 1996). Após um período de reflexão, assumiu o
desafio, pois vislumbrou uma experiência inovadora, sintonizada com a psiquiatria social
europeia do pós-guerra.
Basaglia encontrou em Gorizia uma arquitetura que contava com oito setores
fechados, quatro femininos e quatro masculinos, totalizando 629 internos, classificados como
“agitados”, “crônicos” e “tranquilos”, segundo os cânones da psiquiatria clássica
(GOULART, 2007). Basaglia iniciou por contestar a psiquiatria, isso se expressou no
29
princípio de “negação do mandato institucional” (BASAGLIA, 1985). Para isso, proibiu a
contenção dos sujeitos nos leitos e estabeleceu, paulatinamente, novas regras de organização e
comunicação. Este seria, na opinião de Antônio Slavich, o momento fundante de todo o
movimento que se desenvolveria posteriormente (GOULART, 2007).
O momento veio atrelado à implantação de novos conceitos, como o de
desinstitucionalização. Abordada no movimento sobre a tríade da construção de uma nova
política de saúde mental, com centralização no trabalho terapêutico, objetivando enriquecer a
existência global e a construção de estruturas externas substitutivas, a internação manicomial
(ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001). Como consolidação do processo
desinstitucionalizador, teve-se o movimento que denunciou os maus-tratos, as formas
prisionais e ineficazes dos manicômios, resultando na desconstrução destes serviços
assistenciais e na consolidação do movimento antimanicomial.
A despeito da evolução ocorrida em Gorizia, a experiência de Basaglia não pode
ser utilizada como bem-sucedida, pois não se concretizou a sonhada desinstitucionalização ou
fechamento do manicômio (GOULART, 2007; BARROS, 1994). No entanto, foi na cidade de
Trieste que a experiência mais bem-sucedida e conhecida da Reforma Psiquiátrica italiana
ocorreria (GOULART, 2007). Nesta região, constituiu-se uma estratégia de transformação
que privilegiou o momento externo sem preocupar-se com o desmontar do manicômio,
esperando que enfraquecesse por si, após o advento dos serviços territoriais (BARROS,
1994).
Dessa experiência, eclodiu a Lei 180 (Lei Franco Basaglia), que proibiu a
construção de novos manicômios, impedindo novas admissões, regulamentando as
internações compulsórias e garantindo os direitos de autodefesa e autotutela (GOULART,
2007). Ademais, ressalta-se que a Psiquiatria Democrática, com matriz teórica no marxismo,
intentava revolucionar concepções e terapêuticas médicas vigentes mediante análise crítica da
cultura manicomial e do saber psiquiátrico (RANDEMARK; JORGE; QUEIROZ, 2004).
A Psiquiatria Democrática passou a contestar a posição da doença mental, já que,
historicamente, havia sido reduzida a loucura na conceituação da Medicina da época e o
sujeito aprisionado em seu mundo, juntamente com sua patologia. A Psiquiatria Democrática
não negou a existência da doença mental, a proposta de Basaglia foi colocar entre parênteses a
doença e, assim, destituir o indivíduo daquilo que poderia ser rótulo para defini-lo
(GOULART, 2007; BASAGLIA, 1985).
Assim, se produzir uma reformulação na relação sujeito-médico, sujeito-
terapêutica e sujeito-instituição, redimensionando os objetivos institucionais, tendo como
30
princípio norteador as necessidades reais dos sujeitos, colocando-o como foco central da
atenção e não mais a doença, que na visão basagliana ficaria aprisionada. Destituíam-se as
ideias de que o doente mental era um indivíduo incompreensível e, como tal, perigoso e
imprevisível, impondo-lhe, como única alternativa, a morte social (BASAGLIA, 1985).
A luta teve por objetivo a mudança cultura, profissional e social, visando maior
tolerância e menor autoritarismo diante do sujeito mental (GOULART, 2007). Por esse
motivo, a Reforma Psiquiátrica italiana foi respaldada e recomendada pela Organização
Mundial de Saúde a converter-se em parâmetro para a reorientação das políticas de saúde
mental em todo o mundo, inclusive no Brasil (BARROS, 1994).
3.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita
Foram os êxitos apresentados pelo movimento reformista italiano, liderado por
Franco Basaglia, que fizeram com que o psiquiatra e seus colaboradores viessem ao Brasil em
duas situações históricas. A primeira, em 1978, para o I Congresso Brasileiro de Psicanálise,
Grupos e Instituições, no Rio de Janeiro, e a segunda, em 1979, para o III Congresso Mineiro
de Psiquiatria, em Belo Horizonte. As referidas vindas contribuíram decisivamente para
constituição do movimento reformista brasileiro (AMARANTE, 2007).
Os encontros foram o culminar de um movimento reformista idealizado por
trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), em 1978, que denunciaram
as más condições assistenciais dos hospitais psiquiátricos brasileiros, colocando em xeque a
política psiquiátrica brasileira (AMADOR, 2010). A visão de descaso na assistência ao sujeito
psiquiátrico, denunciada pela DINSAM, foi constatada e mostrada por Franco Basaglia,
quando em uma destas estadas no Brasil, visitou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena,
expondo para sociedade brasileira a crueldade e violência da assistência psiquiátrica que era
prestada aos sujeitos mentais (AMARANTE, 2007).
O destratar do sujeito mental e a expansão da rede psiquiátrica particular
capitanearam significativos movimentos contrários à forma de assistência psiquiátrica que se
instituía no país, massificando-se, assim, as denúncias de maus-tratos e desassistência aos
sujeitos mentais, fazendo com que os manicômios fossem afrontados, questionados e que
novas formas interpretativas da loucura fossem elaboradas.
Indignando-se com o descaso da assistência ao sujeito mental e com as péssimas
condições de trabalho, emergiu-se o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental
31
(MTSM)4, como movimento social que empunhou o lema: “Por uma Sociedade sem
Manicômios” (NICK; OLIVEIRA, 1998). O referido lema consolidou a influência da
“tradição basagliana”, no movimento de reforma brasileira, que passou a centrar sua luta
contra o hospitalocentrismo, instituindo-se o movimento de desinstitucionalização
(OLIVEIRA, 2005).
Para Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), a palavra desinstitucionalização pode
assumir diferentes conceitos e objetivos, a depender do contexto cultural e político nos quais
está inserida. No Brasil, é fácil identificar linhas distintas na aplicação do processo de
desinstitucionalização, tendo reformistas que aplicam a conotação de desospitalização, com
política de altas hospitalares, de redução de leitos e fechamento dos hospitais psiquiátricos,
enquanto, outra linha institui a desinstitucionalização como processo social, complexo, que
transforma não apenas o modelo assistencial, mas o lugar social da loucura, da diferença e
divergência (AMARANTE, 2009).
Independente da forma de utilização do processo de desinstitucionalização, este se
tornou um marco epistêmico do movimento da Reforma Psiquiátrica. As visões instituídas
pelo processo da desinstitucionalização motivaram a reorientação do modelo de atenção à
saúde mental brasileira, em que se tentavam modificar o modelo centrado na doença mental,
executado no interior dos manicômios, para inclusão de um modelo centrado nos cuidados à
saúde mental, sem estigma e discriminação (BRASIL, 2004).
A reorientação proposta para o modelo de atenção ao sujeito em sofrimento
mental e o processo de desospitalização criaram a perspectiva de modificação das estruturas
assistenciais de atenção a este sujeito, instituindo, assim, as estruturas extra-hospitalares, que
deveriam assistir os sujeitos egressos de hospitais psiquiátricos e constituir um filtro contra
hospitalizações ulteriores (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001).
O MTSM observou que para empreender o processo de reforma e instituir os
aparatos extra-hospitalares, requeria-se a mobilização de diversos seguimentos sociais, em
que se integraram o Movimento Popular em Saúde (MOP), os militantes do Partido
Comunista Brasileiro e do Partido dos Trabalhadores (em estruturação na época), lideranças
religiosas, movimentos estudantil e, principalmente, familiares e usuários dos serviços
mentais que passaram a aderir ao movimento, desempenhando papel relevante na implantação
4 Esse movimento nasceu no Rio de Janeiro, deflagrado por uma crise na Divisão Nacional de Saúde
Mental (DINSAM). Teve, inicialmente, um caráter trabalhista, com reivindicações por melhores condições de
trabalho, para depois ampliar-se e causar impacto político (AMARANTE, 1995).
32
de serviços alternativos ao manicômio (GOULART, 2007; BRASIL, 2005; NICK;
OLIVEIRA, 1998).
Essa mobilização civil incentivou a sociedade brasileira a incorporar-se na
discussão da loucura e assistência prestada em instituições, instigando congressista, como
Paulo Delgado (1989), a apresentar projetos de lei que propusessem a substituição da rede de
assistência hospitalar por um sistema de serviços substitutivos de atenção ao sujeito mental
(SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).
Delineou-se, então, a construção de uma política de saúde mental inovadora, que
diversificava em distintas estratégias a forma de atenção ao sujeito mental, que nesta nova
atenção, tornava-se “usuário” (OLIVEIRA, 2005). Este cuidado tem se dado através de vários
dispositivos, os quais se destacam os núcleos e Centros de Atenção Psicossociais: unidades
locais/regionais que se constituem em porta de entrada da rede de serviços para as ações
relativas à saúde mental, contando com população adscrita definida pelo nível local e
oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação
hospitalar (BRASIL, 2010a); as Residências Terapêuticas (RT) para egressos de hospitais
psiquiátricos com registro de longas internações, que não possuem mais suportes sociais e
nem laços familiares (BRASIL, 2000) e o Programa Federal “De volta para casa”, programa
de reintegração social de pessoas acometidas de transtornos mentais, egressas de longas
internações psiquiátricas e proporciona o pagamento de um auxílio-reabilitação psicossocial
(BRASIL, 2010).
Porém, essa diversidade estrutural de serviços não foi suficiente para criar uma
rede de dispositivos articulados e muito menos para estabelecer a Reforma Psiquiátrica na
agenda estatal, justamente pela falta de linhas de financiamento específicas para a área
(GODOY, 2009). Por esse motivo, o processo de reforma apresentou implantações distintas
entre as regiões do país, sendo que a heterogeneidade apresentada não prejudicou a instituição
deste novo modelo de atenção ao usuário de saúde mental, uma vez que não houve precedente
de implantação de uma reforma deste tipo em um país com as características (geográficas,
políticas, sociais) do Brasil (BEZERRA JÚNIOR, 2007).
Com base nesses motivos, considera-se o processo de Reforma Psiquiátrica
brasileira consequência natural de uma transformação da própria ciência, que busca por
produzir atenção em saúde, focada na égide dos princípios do SUS, proporcionando ao
usuário compromisso de qualidade na assistência terapêutica dispensada, preservando os
direitos do sujeito mental e, com isso, contribuindo para transformação do modelo
hospitalocêntrico (AMARANTE, 2007).
33
Para os gestores nacionais da Política de Saúde Mental brasileira, as alterações
ocorridas em três componentes comprovam a modificação do modelo de atenção à saúde
mental. Trata-se da expansão da rede comunitária, da redução de leitos com reconfiguração do
porte dos hospitais e da inversão do financiamento (DELGADO, 2007).
Afirmações desse tipo tendem a considerar a macro política, desconsiderando o
contexto político-administrativo de municípios que apresentam em suas realidades uma
transição deficitária, já que não oferecem uma rede extra-hospitalar sustentável que disponha
de estrutura mínima, como: CAPS, emergência psiquiátrica, leitos psiquiátricos em hospitais
gerais, em quantidades suficientes e em funcionamento. A ausência desta estrutura é,
facilmente, percebida em diversos municípios brasileiros, proporcionando, com isso,
desassistência aos sujeitos em sofrimento psíquico em situação de crise.
Os novos serviços psiquiátricos estruturados pela Reforma não atende...
à nova cronicidade que ultrapassa as consultas ambulatoriais. São novos padrões de
cronicidade de grande ubiquidade, onipresente em todas as reformas,
independentemente dos sistemas sanitários e de cobertura social que as sustentam,
em especial o grupo dos “jovens adultos crônicos”, de comportamentos psicopáticos,
que com seus atos interpelam tanto o sistema de saúde quanto os serviços sociais e o
aparato judicial (DESVIAT, 1999, p. 77).
Assim, tendem a apresentar priorização de demanda a partir da oferta,
proporcionando consultas rápidas e com intervalos de tempo demorados entre si, realidade
vivenciada nos CAPS de Fortaleza, cujo intervalo médio é de 45 a 60 dias entre as consultas,
incentivando, assim, a utilização da terapêutica farmacológica que transforma o usuário em
consumidor de medicamentos psicotrópicos, visando, essencialmente, contenção de
sofrimento abordado, exclusivamente, como sintoma de uma doença, sendo que a ausência
desta medicação motiva o sujeito à crise (GODOY, 2009; SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).
3.4 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais
A descontinuidade no processo de assistência acontecido nos novos serviços de
atenção em saúde mental tem contribuído para um aumento exacerbado da terapia
farmacológica, como também, para um desencadear de situações de crise psíquicas por parte
dos sujeitos em sofrimento psíquico. Por esse motivo, delimitamos como recorte para este
estudo as situações de crise ocorridas com sujeitos em sofrimento psíquico no espaço urbano-
territorial-assistencial, em uma capital de grande porte do nordeste do Brasil. Tal escolha se
34
justifica e concretiza pelo simples motivo de ter sido a situação mais vivenciada pelo autor em
seu percurso profissional e por considerá-la uma das mais dramáticas no contexto atual da
reestruturação da rede de atenção em saúde mental em Fortaleza.
Devido à diversidade de termos presentes na literatura (transtorno, distúrbio,
doença, sofrimento), usados nos estudos de saúde mental para designar anomalias, sofrimento
ou comprometimento psicológico ou mental, utilizamos neste estudo a terminologia de
sofrimento psíquico, que remete a pensar um sujeito que sofre (AMARANTE, 2007). Neste
sentido, entendemos como sofrimento psíquico o que Sampaio (1993), define:
O conjunto de mal-estares e dificuldades de conviver com a multiplicidade
contraditória de significados, oriundo do antagonismo subjetividade/objetividade.
Caracteriza-se por dificuldade de operar planos e por definir o sentido da vida,
aliado ao sentimento de impotência e de vazio, o eu experimentado como coisa
alheia (SAMPAIO, 1993, p. 407).
O sofrimento psíquico, de uma forma geral, é uma experiência negativa complexa,
associado, geralmente, à dor e à infelicidade. Está relacionado com uma condição aversiva e
apresenta diversas formas de manifestação (COSTA, 2006). Geralmente, apresenta caráter
essencialmente subjetivo, pois está ligado à significação que assume no tempo e espaço, bem
como no corpo de cada indivíduo. Sendo que as manifestações e reações se agravam de
acordo com o ambiente desfavorável, no qual o indivíduo encontra-se inserido (BRANT;
MINAYO-GOMEZ, 2003).
Logo, o sofrimento psíquico pode ser entendido como uma manifestação subjetiva
e exclusiva de cada indivíduo. E, quando este sofrimento se manifesta de forma grave “remete
a noção de crise como sendo um momento de ruptura ou uma mudança de curso de um
equilíbrio...” (COSTA, 2010, p. 80).
Etimologicamente, a situação de crise é definida como o estado ou condição de
uma pessoa que atravessa uma situação crítica (FERREIRA, 2012). Em termos técnicos-
científico, a crise pode ser compreendida de diversas formas, como no modelo clássico da
psiquiatria que a classifica como uma situação na qual há grave disfunção, e ocorre,
exclusivamente, em decorrência da doença; ou, como no modelo psicossocial, em que é
concebida como a expressão de uma crise existencial, social e familiar, que envolve a
capacidade subjetiva do sujeito em responder às situações desencadeantes (AMARANTE,
2007).
Crise será compreendida neste estudo como:
...um momento individual específico, no qual efervescem questões, afetos, gestos e
comportamentos variáveis singulares, que afetam em graus diversos a vida cotidiana
da própria pessoa e daqueles de seu convívio, e costumam ser determinante das
35
demandas e intervenções em serviços de Saúde Mental (JARDIM; DIMENSTEIN,
2007, p. 183).
A situação de crise específica no estudo caracteriza-se como um quadro psicótico,
compreendido como “perda do teste de realidade” (COSTA, 2006).
A palavra crise em sua origem grega, krisis, caracteriza um estado, no qual uma
decisão tem quer ser tomada. Neste contexto, crise não aborda apenas a experiência individual
e nem será um privilégio dos sujeitos em sofrimento psíquico (FERIGATO; CAMPOS;
BALLARIN, 2007). A utilização do termo crise pela primeira vez foi atribuída a Erich
Lindernann’s, em 1944, que trouxe à luz a “teoria da crise” que abordava as consequências
psicológicas causadas nos seres humanos após tragédias ou catástrofes (FERIGATO;
CAMPOS; BALLARIN, 2007).
Conforme Desviat (1999, p. 64),
A crise é um ‘estado limite’, um rompimento da continuidade habitual, um momento
difícil da vida de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Portanto, a crise não é
uma entidade, nem manifestação específica, é uma alteração do corpo ou do sujeito
que requer técnica de intervenção terapêutica diferenciada.
Geralmente, a crise é precipitada por uma ou mais circunstâncias que, às vezes,
ultrapassam a capacidade de o indivíduo ou sistema de manter a sua homeostase
(FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007). São de fase costumeiramente curtas e estão
associadas à sobrecarga mental por perdas imprevistas (DESVIAT, 1999).
No contexto psiquiátrico, Dell’Acqha e Mezzina (1998, p. 58) caracterizam como
“situações de crise”:
As que respondem a pelo menos três destes critérios: grave sintomatologia
psiquiátrica; grave ruptura no plano familiar e/ou social; recusa do tratamento;
recusa obstinada de contato e situação de alarme em seu contexto de vida e
incapacidade pessoal de afrontá-las.
Esses parâmetros “identificam aquelas situações que por alarme ou gravidade
eram enviadas ao hospital psiquiátrico com internação forçada, além de definidas como
perigosas para o sujeito ou para os outros” (DELL’AQCUA; MEZZINA, 1988, p. 59). A
evolução conceitual de loucura e, consequentemente, o conceito de crise teve sua constituição
no contexto social de cada época, o que hoje se denomina de crise psiquiátrica, entendida
outrora como manifestação de sabedoria, de possessão demoníaca, bruxaria, de subversão da
ordem social e, por fim, como doença (FOUCAULT, 2006; FERIGATO; CAMPOS;
BALLARIN, 2007).
36
A crise também receberá a definição de desequilíbrio psíquico, no qual o sujeito
se encontra desprovido de suas competências, levando-o às situações de conflito (COSTA;
CARVALHO, 2008). Este desequilíbrio pode ser de ordem passageira ou se estabelecer
permanentemente, podendo ser classificada em:
Crises Evolutivas geradas pelos processos ‘normais’ de desenvolvimento físico,
emocional ou social. Na passagem de uma fase a outra do processo evolutivo
(...) conflitos podem ser gerados, levando à desadaptação, que não sendo
elaborados pela pessoa podem conduzir à doença mental; Crises Acidentais,
imprevistas, precipitadas por uma grande ameaça de perda ou por uma perda, que
por sua capacidade de perturbação emocional teria a capacidade de poder levar
futuramente à doença (BIRMAN; COSTA, 1994, p. 57).
Uma pessoa em crise, geralmente, precisa de ajuda e, em alguns casos, esta deve
ser imediata (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007). Pois, as crises tornam o indivíduo suscetível
ao adoecimento psíquico, podendo desencadear, agravar e cronificar a loucura.
3.5 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise na rede de atenção de saúde
mental de Fortaleza-CE.
Nos últimos anos, o município de Fortaleza tem optado pela implantação de uma
política de substituição da rede hospitalocêntrica. Com isso, o município vem estruturando e
implantando ações estratégicas de substituição a este aparato assistencial, exemplo disso é a
expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que passaram de três, em 2005, para
14, em 2006, sendo seis CAPS do tipo geral, um por Secretaria Executiva Regional (SER),
seis CAPS ad um por SER e dois CAPS infantil, um na SER III e outro na SER IV. Ainda, há
16 leitos psiquiátricos em hospital geral, três ocas comunitárias e duas residência terapêutica,
um serviço hospitalar de álcool e outras drogas - com leitos de observação e dois consultório
de rua5. Nesta rede, ainda, há presença de cinco hospitais psiquiátricos. No momento da
escrita deste texto, havia sido fechadas a Casa de Saúde São Gerardo (2007) e a Clínica de
Saúde Mental Dr. Suliano LTDA (2010) (FORTALEZA, 2011).
No intuito de atingir os princípios norteadores e organizativos do SUS, a
Secretaria de Saúde de Fortaleza opta por instituir um modelo integral de atenção à saúde,
criando o Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE), composto por Redes Assistenciais
(Estratégia Saúde da Família, Especializada, Urgência e Emergência, Saúde Mental),
5 São dispositivos públicos clínico-comunitários que fazem oferta de cuidados em saúde aos usuários em
seus próprios contextos de vida, adaptada para as especificidades de uma população complexa (BRASIL, 2010).
37
Vigilância à Saúde (Inteligência Epidemiológica – vigilância epidemiológica, sanitária e
ambiental), Gestão, Pesquisa e Controle social (Figura 1) (FORTALEZA, 2007). Isso
motivou diálogos constituídos com outras áreas do conhecimento, fortalecendo a organização
e o funcionamento do modelo integral de saúde.
Fonte: ANDRADE, 2006.
Figura 1 – Redes Assistenciais da Atenção Integral à Saúde do Sistema Municipal de Saúde
de Fortaleza-CE.
A estrutura organizacional de redes de atenção à saúde teve início na década de
1920, no Reino Unido, concepção dawsoniana que tomara forma de sistema integrado de
saúde no início dos anos de 1990, nos Estados Unidos, e foi inovada com adaptações
necessárias, para ser hoje o Sistema de Saúde Público (MENDES, 2007).
Na perspectiva de desenvolver uma atenção à saúde mental, organizada em ações
articuladas e compartilhada entre gestão e sociedade civil, estrutura-se a Rede de Saúde
Mental (RASM) de Fortaleza. As estruturações de uma RASM articulada, através de ações
intersetoriais e interinstitucionais, buscam por enrijecer as parcerias entre poder público e
movimentos sociais.
VISA
INTEGRALIDADE
ESF
GESTÃO DO CUIDADO
REDE DE SAÚDE
MENTAL
URGÊNCIA E EMERGÊNCIA
HOSPITAIS
ESPECIALIZADAS
38
Os novos arranjos organizacionais estabelecidos com a instituição das redes de
saúde vêm colaborando para a constituição de um processo democrático, emancipatório e
inovador na forma de assistir o sujeito de sofrimento psíquico. Nesta conjuntura, foram
realizadas discussões e debates na elaboração da Política de Saúde Mental, realizada
contratação de assessores e supervisores para acompanhar a Rede de Saúde Mental, ampliação
do número de serviços e profissionais na rede e estabelecimento de parcerias com as demais
redes, principalmente, com a Célula de Atenção Básica (CAB) e o Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (SAMU) (FORTALEZA, 2007).
Esses pontos foram importantes para a consolidação da RASM, contudo a
ampliação dos aparatos assistenciais foram os que mais impactaram na estruturação da rede.
Em 2004, o município contava com uma assistência psiquiátrica focada no
hospitalocentrismo, com a presença de sete hospitais psiquiátricos: Hospital São Vicente de
Paulo, Casa de Saúde São Gerardo, Hospital de Saúde Mental de Messejana, Instituto de
Psiquiatria do Ceará, Instituto Espírita Nosso Lar, Hospital Mira y Lopes, Clinica de Saúde
Mental Dr. Suliano LTDA. e apenas três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
localizados nas SER III, IV e VI (CEARÁ, 2008).
A expansão dos novos serviços de atenção em saúde mental em Fortaleza
acontece lenta e, geralmente, impulsionada por resoluções do Conselho Municipal de Saúde
(CMSF). Em 2001, em sua 14ª reunião extraordinária, o CMSF deliberou sobre a necessidade
da existência de uma política de Saúde Mental para o município de Fortaleza, centrada nos
CAPS e em ações de saúde mental por área de abrangência (FORTALEZA, 2001).
Todavia, essa deliberação não surtiu o efeito esperado, tendo como possíveis
causas o desinteresse político e a pressão da indústria hospitalocêntrica, que sempre procurou
por demonstrar a importância do hospital psiquiátrico ao tratamento do sujeito de sofrimento
psíquico. No entanto, em 21 de dezembro de 2004, na 33ª reunião extraordinária do CMSF,
decidiu-se por aprovar a proposta da Comissão Municipal de Saúde Mental e Reforma
Psiquiátrica de instituir uma Política de Saúde Mental para Fortaleza, a qual teria como base a
consolidação do Modelo de Atenção Integral à Saúde Mental, com o sistema de referência e
contrarreferência, tendo a atenção básica como porta de entrada do sistema e a retaguarda dos
serviços especializados, como os CAPS, Hospitais-Dia e Hospitais Gerais (FORTALEZA,
2004).
A aprovação culminou com a mudança de gestão municipal, que implicou em um
projeto de reformulação da administração pública. Na saúde, a proposta de implantação de
uma política de saúde mental, ancorada nos princípios do SUS e centrada em uma rede de
39
serviços públicos substitutivos (CAPS, Residência terapêuticas, Centros de convivência etc.),
fundamentada no compromisso de qualidade na assistência, na defesa dos direitos dos sujeitos
de sofrimento psíquico e na desconstrução do modelo manicomial (FORTALEZA, 2007).
A despeito disso, o município não tem se isentado da polêmica da hospitalização
psiquiátrica, que tem se instalado com severas críticas à política de atenção disponibilizada
pelo município. As contestações tiveram início em 2007, com o fechamento da Casa de Saúde
São Gerardo, segunda estrutura hospitalar implantada no Ceará (1935), primeira privada. No
ano do fechamento, a unidade hospitalar contava com 154 leitos privados e 97 mantidos pelo
Sistema Único de Saúde (SUS) (FORTALEZA, 2008).
O fechamento foi impulsionado pelos dados positivos da redução de internações
psiquiátricas que o município apresentava e também pelo compromisso assumido pela gestão
municipal da ampliação da rede substitutiva, principalmente, com a implantação de leitos
psiquiátricos em hospitais gerais. Esta ampliação foi possível devido à articulação entre o
Hospital Batista Memorial6, o Instituto Vandick Ponte
7 e o município de Fortaleza, que
resultou na Unidade de Saúde Mental, no Hospital Geral Ana Carneiro8, inaugurada em julho
de 2007, com capacidade operacional de 30 leitos.
Em 2009, com o rompimento entre as entidades, cessou-se a Unidade de Saúde
Mental Ana Carneiro. Uma redução de 30 leitos psiquiátricos ocorreu. A partir deste fato,
constatou-se estagnação na expansão da rede substitutiva do município de Fortaleza, fosse
pela não restituição dos leitos em hospitais gerais e não abertura ou ampliação de novos
serviços substitutivos. Esta inércia potencializou o hospital psiquiátrico, do qual se tornou o
único local de amparo aos sujeitos de sofrimentos psíquicos em crise. Mesmo que a rede
implantada proporcionasse impactos terapêuticos, como demonstraram os dados de
internações, ainda não era suficiente para suprir as necessidades de atenção aos usuários. A
inexistência de uma estrutura de retaguarda aos CAPS, principalmente na questão da crise
psíquica, é facilmente encontrada na rede de atenção à saúde mental de Fortaleza.
Todavia, a ampliação ocorrida, em 2006, promoveu resultados satisfatórios.
Exemplo disso foi a redução das internações psiquiátricas que, mesmo com a diminuição de
leitos, apresentaram declínios. Consoante ao Relatório de Gestão da CCSM de 2006, houve
6 Unidade hospitalar que teve início em 03 de julho de 1967, funcionando hoje com 106 leitos e atendendo a
Clínicas Médicas, Cirúrgica, Obstétrica e exames (HOSPITAL BATISTA, 2011). 7 Instituição implantada em 2005, sem fins lucrativos que realiza atendimento a sujeitos de sofrimento
psíquico (FONSECA, 2012). 8 Unidade psiquiátrica em hospital geral que prestava assistência a sujeitos em sofrimento psíquico
graves e aos usuários de substâncias psicoativas. Os usuários são assistidos por uma equipe que atua de forma
interdisciplinar (FONSECA, 2012).
40
redução de 34% (922) das internações psiquiátricas de pessoas com transtornos mentais e
comportamentais devido ao uso de álcool e 11% (4.719), em relação às pessoas com
transtornos esquizofrênicos, esquizotípicos e delirantes (FORTALEZA, 2007). Quando
correlacionado às internações entre os anos de 2006 (ano da implantação da RASM) e 2012, a
redução ampliou-se para 42,4% (531) nas internações psiquiátricas de pessoas com transtorno
mentais e comportamentais devido ao uso de álcool e de 24,3% (3.163), em relação às pessoas
com transtornos esquizofrênicos, esquizotípicos e delirantes. Registro de elevação foi
identificado entre os usuários de substância psicoativos, justificado pela disseminação do
crack (BRASIL, 2010).
Figura 2 - Distribuição das internações psiquiátricas por ano. Fortaleza, CE, Brasil, 2005 a
2012.
Em 2011, o Colegiado de Saúde Mental, em continuidade ao processo de
implementação da Política de Saúde Mental de Fortaleza, que teve como modelo de atenção
em Saúde Mental a implantação de uma rede de serviços substitutivos ao modelo
hospitalocêntrico, continua com o processo de desinstitucionalização de pessoas com
transtorno mental.
Ao utilizar-se da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e
os direitos do sujeito em sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde, o
Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza desenvolveu a Comissão de Avaliação da Clínica de
Saúde Mental Dr. Suliano, com vista ao seu descredenciamento junto ao SUS. No discurso do
41
Colegiado, este descredenciamento resultaria na implantação da segunda residência
terapêutica do município (FORTALEZA, 2010).
O fechamento ocorreu em fevereiro de 2011, sendo desativados 96 leitos
psiquiátricos públicos (credenciado pelo SUS) e quatro (4) particulares. Em março do mesmo
ano, o Instituto de Psiquiatria do Ceará (IPC) comunicou ao Conselho Municipal de Saúde de
Fortaleza (CMSF) o fechamento de 80 leitos, inicialmente cerrados para reforma, que
terminou com o fechamento definitivo em dezembro de 2011. Com isso, somaram-se 180
leitos psiquiátricos a menos na rede de atenção à saúde mental de Fortaleza. Como
consequência desta drástica redução, a central de regulação de leitos do município passou a
registrar um aumento na filha de espera por leitos psiquiátricos, com média de 16 sujeitos por
dia. Esta concentração de sujeito resultou no aumento das internações psiquiátricas em julho
de 2011 e em 2012 (BRASIL, 2011).
A acentuada redução no número de leitos de internação psiquiátrica no município
passou a pautar as redações dos jornais locais e a estimular as audiências públicas na câmara
municipal, na assembleia estadual e promotoria de justiça de defesa da saúde pública.
Manchetes como: Hospital Mental: 25 doentes disputam uma única vaga, de 13/05/2011;
Reduzir leitos psiquiátricos, mas com reposição de vagas, de 23/05/2011; Seis horas é limite
máximo de espera por leito psiquiátrico, de 18/11/2011, publicadas no Diário do Nordeste.
Soma-se a essas a matéria vinculada no jornal O Povo, com título: Audiência discute a falta
de leitos, de 13.08.2011.
Nas abordagens, a discussão principal foi a redução de leitos psiquiátricos e o
sofrimento enfrentado pelos sujeitos de sofrimento psíquico em conseguir vaga de internação.
Reportagens retrataram a situação dos sujeitos que se encontravam largados no chão, sem
espaço para internação, e familiares angustiados, "acampados" há mais de uma semana na
entrada do Hospital Mental de Messejana. Transcorrido seis meses deste relato, o jornal
retornou ao hospital e deparou-se com a mesma situação: gritaria por todos os lados, sujeitos
empilhados e dormindo ao relento, com água e comida minguada à espera de atendimento
hospitalar (GIRÃO, 2011).
A disputa por leitos desencadeou uma sequência de audiências nos mais diversos
espaços políticos e jurídicos do município de Fortaleza. Uma das primeiras ocorridas foi na
Câmara Municipal de Fortaleza, em 19/05/2011, convocada pelo vereador Ronivaldo Maia
(PT), que debateu o fim dos manicômios. Em 18/10/2011, a convocação de audiência foi
realizada pelo vereador João Alfredo (PSOL) e aventou as condições físicas e estruturais do
CAPS da SER IV. Em nível de assembleia estadual, a comissão de seguridade social vem
42
convocando este debate, através do deputado Heitor Ferrer, que convocou audiência para
discutir o fechamento dos leitos de hospitais psiquiátricos de Fortaleza (FORTALEZA, 2011;
FÉRRER, 2012).
Sem dúvida, a audiência de maior impacto foi a promovida pela promotoria de
justiça de defesa de saúde pública, ocorrida em 13/08/2011, que teve como tema central o
impacto da redução dos leitos psiquiátricos e a capacidade e qualidade oferecida pelos CAPS
da capital (GONÇALVES, 2011).
Exausta por esperar resolução e não obter; e solidária ao sofrimento dos sujeitos
em sofrimento psíquico e seus familiares, a Defensoria Pública da União (DPU) solicitou
liminar contra a União, o Estado do Ceará e o município de Fortaleza, exigindo que os réus
impelidos restituíssem o funcionamento dos 106 leitos fechados no Estado. Através desta
interpelação, o juiz da 6ª vara federal, Ricardo Arruda, determinou, em decisão liminar, que
os sujeitos em sofrimento psíquico em crise, com indicação de internação, não poderiam
esperar mais que seis horas por um leito (GIRÃO, 2011).
Com a determinação, gestores estaduais e municipais tinham tempo limitado para
traçar estratégias que solucionassem a situação de precariedade apresentada na atenção aos
sujeitos em sofrimento psíquicos em crise. O município defendeu-se relatando a expansão de
sua rede substitutiva e prometendo, para o mais breve possível, a implantação de um CAPS
tipo III, com funcionamento 24 horas (inaugurado em abril de 2012), assim como a abertura
da segunda residência terapêutica (em funcionamento desde março de 2012), a qual se figura,
ainda, como promessas municipais a disponibilização de 20 leitos para internações
psiquiátricas nos hospitais gerais do município. O Estado garantiu a abertura de 21 leitos na
cidade de Sobral e negociação de vagas para os hospitais Albert Sabin e Waldemar de
Alcântara.
Ao pressupor a inexistência de serviços específicos em atenção à crise psíquica
junto aos novos serviços, o sujeito constrói um itinerário terapêutico baseado no significado
que atribui à doença e que, por um processo cultural de aflição causada pela patologia, leva-o
à rede hospitalar. Em Fortaleza, os sujeitos em situação de crise psíquica são conduzidos aos
Hospitais de Saúde Mentais de Messejana (HSMM) e ao Instituto de Psiquiatria do Ceará
(IPC), geralmente, conduzidos por ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (SAMU).
Conforme indicadores do Ministério da Saúde (MS) estima-se em,
aproximadamente, 20%, a prevalência de transtornos mentais na população, em Fortaleza.
Este percentual corresponderia, hoje, a 489 mil pessoas, utilizado para o cálculo a população
43
de 2.447.409 (OLIVEIRA, 2011), necessitando de algum cuidado em saúde mental. Ao
mesmo tempo considera-se que 3% da população necessitam de atenção emergencial em
função de situações de crise, o que equivaleria ao quantitativo de 73 mil pessoas (BRASIL,
2011).
No entanto, a cobertura desta estrutura não é capaz de absorver a demanda da
população de Fortaleza, principalmente de pessoas com transtorno mental cronificado,
reforçando a existência dos hospitais psiquiátricos (BASTOS, 2009). Acrescente-se a isso a
ausência de serviços de atenção substitutivos de 24 horas, a inexistência de emergência
psiquiátrica municipal, a carência de uma rede de referência e contra referência entre as redes
de atenção. Estes fatos fazem com que os diversos casos de crise psiquiátrica sejam atendidos
pelo Serviço Móvel de Urgência (SAMU) e encaminhados à emergência psiquiátrica estadual
do HSMM ou a do Instituto de Psiquiatria do Ceará (IPC).
Dados do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) apontam a grande
demanda oriunda das crises psiquiátricas, fato que motivou a disponibilização de uma
ambulância exclusiva para o atendimento desta demanda. Em 2011, este serviço atendeu
2.548 chamados, sendo 27,5% (701) por agitação psicomotora, 17,2% (439) por surto
psicótico e 2,7% (69), tentativa de suicídio. Entre os hospitais de destino, tem-se o Hospital
de Saúde Mental de Messejana com 64% (1.625) dos encaminhamentos (FORTALEZA,
2011).
A Resolução 60, do CMSF, que implanta a política de saúde mental de Fortaleza
orienta para uma organização de serviço que tenha como porta de entrada a Atenção Básica.
Quanto às crises psiquiátricas, devem ser atendidas nas Urgências Psiquiátricas instaladas nos
Hospitais Gerais (HG) municipais ou no Instituto Dr. José Frota (IJF) Centro (FORTALEZA,
2004).
Porém, o que se observa é a centralização das urgências psiquiátricas no Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). A família, por dificuldade de transportar a
pessoa adoecida até o aparato assistencial, quando esta se encontra em crise, termina
acionando este serviço, mesmo sabendo que, na maior parte dos casos, a intervenção é muito
traumatizante (CAVALHERI, 2010). O SAMU de Fortaleza tem como critério de prioridade
para atendimento pré-hospitalar da urgência em saúde mental a presença de comportamento
agressivo auto ou heterodirigido, seguindo o protocolo de urgências psiquiátricas (Figura 3)
(FORTALEZA, 2011).
44
Figura 3 – Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza.
O sujeito, geralmente, é removido diretamente para uma unidade hospitalar, uma
vez que os HG recusam-se a recebê-lo, mesmo quando o quadro é clínico e não psíquico.
Experiência parecida acontecia em Triste, quando no modelo anterior à Reforma havia relação
fechada entre hospital geral e hospital psiquiátrico no itinerário da pessoa em situação de
crise: quando esta chegava à sala de emergência do HG, sem que se considerasse a natureza
ou os motivos para a crise, após exame superficial, era enviada, compulsoriamente, ao
hospital psiquiátrico (NORCIO, 2001).
A resposta às emergências psiquiátricas deve ser significativa, com prevenção e
redimensionamento da própria situação, procurando por priorizar a prestação de melhores
cuidados. O despreparo da rede de saúde mental no atender ao sujeito de sofrimento psíquico
em situação de crise resulta na transferência e delegação dessa tarefa aos serviços de
Síndrome de
abstinência
alcoólica
(SAA)
Nível Grave*
NÃO
SIM
C1
Enviar USB
Comportamento
Agressivo
SIM
NÃO
Enviar
USB
Ideação
suicida?
NÃO
SIM
Enviar
USB
Agitação Não
Agressiva
SIM
NÃO
Enviar
USB
C1
* Nível Grave
•Biológico: agitação psicomotora intensa; sudorese
profusa; convulsão.
•Psicológico: desorientadação temporoespacial; história
de violência auto ou heterodirigida; pensamento
descontínuo, rápido e de conteúdo desagradável e
delirante; alucinações auditivas, táteis ou visuais
(FORTALEZA, 2011)
45
emergências psiquiátricas, fato que permite que a rede de saúde mental valorize o hospital
psiquiátrico, pois esta não apresenta recursos substitutivos e profissionais habilitados na
atenção à situação da crise psiquiátrica.
Torna-se comum observar redes de atenção à saúde mental reféns de emergências
psiquiátricas, por não terem em suas estruturas órgãos de maior complexidade na atenção a
estas crises, fortalecendo, assim, o fluxo de internamentos, sem terem controle desta porta de
entrada, pondo em risco os preceitos da Reforma Psiquiátrica (JARDIM; DIMENSTEIN,
2007).
A RASMF pode ser considerada uma dessas reféns, pois a porta de entrada das
internações encontra-se centrada na única emergência psiquiátrica do Estado, HSMM.
Segundo Bastos (2009) isso acontece porque o grupo conservador elabora estratégias para
manutenção do sistema hospitalocêntrico, muitas vezes, não enfrentando o grupo
transformador, mas, se utilizando do poder cedido pelo município de Fortaleza – controle da
porta de entrada para o sistema através de internações psiquiátricas – para consolidação de
prática reprodutora.
Porém, é facilmente observada, na rede de atenção à saúde mental de Fortaleza, a
lógica seletiva de organização de serviços, em que constantemente os serviços (Atenção
Básica, Hospitais Gerais e CAPS) lançam mãos, por conta própria, dos reenvio da demanda a
outras estruturas assistenciais, desresponsabilizando-se e abandonando as situações e os
usuários considerados graves (NICÁCIO; CAMPOS, 2004).
Souza, Sales e Gomes (2011) referem que a sobrecarga de chamadas é facilmente
encontrada em relatório diário do SAMU de Fortaleza e que o aglomerado encontrado no
início de cada plantão se constituí em fator estressor aos profissionais da unidade. As tensões
diárias dessa atividade, os riscos físicos e psicológicos que provoca e os baixos salários
ofertados pela área, somam-se para contribuir com o déficit de profissionais disponíveis a
trabalhar nessa atividade.
Ressalta-se que o processo de trabalho em saúde, no campo dos transtornos
mentais, apresenta potencial risco de periculosidade e insalubridade e, mesmo expostos a
esses riscos, os profissionais do SAMU de Fortaleza que trabalham com o sujeito em
sofrimento psíquico não contam com gratificações adicionais. Outro fato constado pelo estudo
foi a ausência de integralidade nos serviços de saúde, este relato caracteriza a desintegração
da rede de assistência, além de sinalizar a sobrecarga e a dificuldade no desenvolvimento das
atividades devido à ausência e diminuição dos leitos psiquiátricos (SOUZA et al., 2011).
46
O estudo, ainda, evidenciou a necessidade de estabelecer maior vínculo entre a
equipe do SAMU e a RASM, proporcionando ampliação deste serviço de resgate e transporte
dos sujeitos em sofrimento psíquico. No entanto, a reflexão extraída deste trabalho aludiu ao
fato de que o sujeito em sofrimento psíquico continua segregado e excluído da rede de
atenção à saúde, necessitando recorrer aos hospitais psiquiátricos para suprir angústias
(SOUZA et al., 2011).
A restrição e ausência de respostas aos problemas e sofrimentos dos sujeitos em
situação de crise fazem com que as situações de crise produzam a prova de realidade que o
psiquiatra precisa para funcionar enquanto médico, constituindo em doença mental a demanda
que chega a ele, conduzindo e autorizando internamento (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007).
Enquanto a RASMF não implantar no seu atual cenário de Reforma Psiquiátrica
novas composições e conexões entre os diferentes programas, ações e serviços das redes
substitutivas que sejam capazes de absorverem o sofrimento físico, psíquico e sociocultural
dos usuários envolvidos nesta rede, não conseguirão produzir respostas às situações de crise
que possibilitem a superação da demanda de internação no hospital psiquiátrico (NICÁCIO;
CAMPOS, 2004). Para isso, é preciso distanciar-se do discurso do fechamento do hospital
psiquiátrico e partir para a implantação de dispositivos, como o CAPS tipo III e a emergência
psiquiátrica do município, estruturas que ocuparão lugar estratégico nesse itinerário.
Não se pode admitir a aflição do sujeito em sofrimento psíquico, os preceitos da
reforma transformaram os modos de tratamento deste sujeito, cuja doença cede lugar ao
cuidar do sofrimento do indivíduo e sua relação com o corpo social (CAVALHERI, 2010).
Este foco pressiona os serviços a modificarem sua forma tradicional de atender o sujeito, não
se admitindo mais sua “redução à condição de objetos, ou de algo muito mais próximo ao
estado de coisa do que de sujeito” (CAMPOS, 1997, p. 243).
A precariedade na atenção ao sujeito em sofrimento psíquico, no momento das
crises, gera tensões nos integrantes do núcleo familiar. Isso faz a instituição familiar não se
mostrar favorável ao processo de desisntitucionalização, principalmente por não identificar
aparato capaz de substituir os hospitais psiquiátricos, no momento das situações de crise dos
entes.
Diante dessa situação, a rede de atenção à saúde mental deve proporcionar
resolubilidade a esse problema, centrando a atenção na integração do sistema de redes
assistenciais. A instabilidade produzida pela rede extra-hospitalar no momento da crise,
resultante de despreparo institucional e profissional, motiva o abandono do tratamento desses
47
sujeitos, bem como a rápida cronicização das estruturas alternativas (DESVIAT, 1999).
Todavia, pesquisas demonstram o reconhecimento valorativo da assistência extra-hospitalar.
... foi bom para a pessoa adoecida, mas não necessariamente para eles. Além disso,
apontam que, em muitos momentos se sentem solitários, desamparados, e sem ter a
quem recorrer, pois, embora o serviço passe a ser referência para o sujeito e
funcione ininterruptamente, não conta com todos os técnicos, em especial com o
médico, durante 24 horas e nem em finais de semana e feriados (CAVALHERI,
2010, p. 55).
Evidenciam, também, a insegurança e a incerteza enfrentadas por familiares no
momento que requerem atenção mais próxima, o que faz com que a figura do hospital
psiquiátrico não se apague da memória.
A família, primordialmente o cuidador, associa a extinção do hospital psiquiátrico
à transferência de responsabilidade, ordem, controle e verdade sobre a doença do familiar para
si. Produzindo, assim, o enclausuramente deste ser, processo que se mostra calamitoso para
quem cuida, pois o destitui de sua vida própria, o conduzindo ao padecer conjunto
(CAVALHERI, 2010).
Portanto, a transformação tão esperada pela Reforma Psiquiátrica se concretizará
no momento em que for garantida, ao familiar, que o doente terá retaguarda assistencial no
momento da crise psíquica e que os serviços extra-hospitalares se estruturarem para atenção
do sujeito em crise ou cronificado. E, para isso, é preciso coragem, competência, audácia e
ciência. É preciso arte, interdisciplinaridade e espírito de união para enfrentar o cuidado ao
doente mental e à cuidadora (GONÇALVES; SENA, 2001).
48
4 PERCURSO METODOLÓGICO
4.1 Marco conceitual da hermenêutica de Paul Ricoeur
Paul Ricoeur foi um dos grandes filósofos e pensadores francês, nasceu em 27 de
fevereiro de 1913 e faleceu em 20 de maio de 2005. É através do método hermenêutico, que
Ele inicia sua transição de pensamento, que o conduzira para transformação da fenomenologia
pura em fenomenologia hermenêutica, tendo como marco as concepções de símbolo e
interpretação. O símbolo é a mediação universal do espirito entre nós e o real; ele pretende
exprimir antes de tudo a não imediatidade de nossa apreensão da realidade (RICOEUR,
1977, p. 21).
No que concerne ao distanciamento, Barreto (1999, p. 110), alerta que à medida
que se interpreta, mais evidente se torna a necessidade de um maior distanciamento para
uma compreensão mais ampla e maior aproximação da essência do texto interpretado. Pois,
o distanciamento conserva a subjetividade do texto, mas, confirma a finitude do existir.
O distanciamento não é uma imposição metodológica; ao contrário, é a
possibilidade de o homem se conhecer e enfrentar ilusões em uma dialética de distanciamento
da apropriação. À medida que se distancia, sai do acidental, chega ao essencial (BARRETO,
1999). A apropriação ocorre quando o intérprete apodera-se do significado de um texto, em
que busca se apropriar das propostas de sentido, compreendendo e explicando o sentindo
contido no texto (BONA, 2010).
Quanto à explicação e compreensão, Ricoeur (1989, p. 182), explica que:
A compreensão é, antes, o momento não metódico que, nas ciências da
interpretação, se forma com o momento metódico da explicação. Este momento
precede, acompanha, limita e também envolve a explicação. Em contrapartida, a
explicação desenvolve, analiticamente a compreensão.
A explicação e a compreensão provocarão a oposição da obra de Ricoeur, a saber,
a oposição entre explicação da natureza e a compreensão do espírito (BONA, 2010). Neste
contexto, entende-se que não se objetiva compreender o discurso, mas sua significação, o seu
sentindo, assim o discurso (...) é realizado como acontecimento, mas compreendido como
sentido (RICOEUR, 1989, p. 116).
O texto é um discurso fixado pela escrita (RICOEUR, 1989, p. 141). Para
Ricoeur, não existe diálogo no texto, não há troca, o leitor não responde para o autor e nem
vice-versa. Porque o texto é o discurso fixado pela escrita (RICOEUR, 1989, p.142) e para
49
compreendê-lo, é preciso se colocar sob as leis da compreensão do outro que se manifesta no
texto, pois, a interpretação não está no que foi dito no texto, mas, na compreensão do outro
que nele se expressa (RICOEUR, 1988).
Para que se alcance a essência desta compreensão, é preciso que se distancie do
texto e, assim, possa determinar a objetividade do sentido que nele está contido. Logo, o
homem somente consegue se conhecer “a si mesmo através das suas expressões e só pode
enfrentar as suas ilusões numa dialética de distanciamento e apropriação” (BARRETO, 1999,
p. 98).
É a distanciação que a ficção introduzirá como forma de apreendemos a realidade.
Esta distanciação proporcionará relação entre o afastamento à aproximação desta realidade.
Neste distanciamento proposto por Ricoeur (1989), o sujeito distancia-se do texto, libertando-
se de ilusões e conceitos pré-definidos, conseguindo, assim, novas formas de compreender os
objetivos do texto.
4.2 Trajetória da pesquisa e procedimentos
4.2.1 Cenário da pesquisa
O estudo foi realizado no município de Fortaleza-CE, centrado na Rede de
Atenção em Saúde Mental (RASM), tendo como foco de produção dos dados o Sistema de
Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).
O município de Fortaleza foi criado em 1725, através de Carta Régia, e tem a
denominação toponímia proveniente da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção. Encontra-se
localizado no nordeste do Estado, apresenta clima tropical quente subúmido, com
temperaturas em torno de 26º a 28º. A economia do município gira em torno da atividade de
serviços, comércio, indústria e, nos últimos anos, do turismo. A cidade tornou-se um grande
polo turístico, apresentando média de acréscimo no fluxo turístico de 16,5% ao ano entre
1995 e 2000 e tornando-se destinos turísticos mais procurados do Brasil, nos anos de 2004 e
2005, segundo a Associação Brasileira de Agentes de Viagem (ABRAV) (CEARÁ, 2010).
A sede do município segue divisão regionalizada realizada por meio da reforma
administrativa promovida pela Lei 8.000, de 1º de janeiro de 1997, que modificou a
distribuição das atribuições e da administração pública municipal. Hoje, existem seis
Secretarias Executivas Regionais (SER), que congregam 116 ou 117 bairros onde residem
2.447.409 habitantes (OLIVEIRA, 2011).
50
Figura 4 - Distribuição geográfica do município de Fortaleza-CE por SER.
Na área da saúde, o município encontra-se habilitado na Gestão Plena do Sistema
Municipal de Saúde (GPSMS), pela Portaria nº1452/GM, de 13 de agosto de 2002, e é sede da
Macrorregião Estadual de Saúde, sendo referência para diversos municípios da região
metropolitana e do restante do Estado.
O sistema de saúde de Fortaleza é composto de 4.156 unidades, destas, 823
(18,8%) clínicas especializadas, 104 (2,4%) unidades básicas de saúde e 47 (1,1%) hospitais
especializados, destes últimos, cinco especializados em tratamentos psiquiátricos (Tabela 1).
51
Tabela 1 - Tipos de Estabelecimentos de Saúde do município de Fortaleza cadastrados no
CNES, em fevereiro/2013*. Fortaleza, CE, Brasil, 2012
Descrição Total %
Centro de Saúde/Unidade Básica 104 2,4
Policlínica 7 0,2
Hospital Geral 37 0,8
Hospital Especializado 47 1,1
Pronto Socorro Geral 4 0,1
Pronto Socorro Especializado 11 0,3
Consultório Isolado 3.167 72,4
Clínica especializada/Ambulatório de especialidade 823 18,8
Unidade de Apoio Diagnose eTerapia (sadt isolado) 85 1,9
Unidade Móvel de Nível Pré-Hosp - Urgência/emergência 30 0,7
Farmácia 2 0,0
Unidade de Vigilância em Saúde 7 0,2
Cooperativa 20 0,5
Hospital Dia - isolado 11 0,3
Central de Regulação de Serviços de Saúde 1 0,0
Laboratório Central de Saúde Pública Lacen 1 0,0
Secretaria de Saúde 3 0,1
Centro de Atenção Hemoterapia e ou Hematológica 2 0,0
Unidade de Home Care 1 0,0
Centro de Atenção Psicossocial 14 0,3
Total 4.156 100 Fonte: Ministério da Saúde – Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil
* Atualizado em: 18/02/2013
Como exposto, a Rede de Atenção em Saúde Mental do município encontra-se
integrada ao Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza e conta com os seguintes aparatos
assistenciais:
a) Catorze Centros de Atenção Psicossocial – serviços voltados ao atendimento da
população com transtornos mentais do município. É distribuído pelas seis regionais
administrativas da cidade, um CAPS geral e um CAPS ad por SER e ainda dois CAPS
infantis que dividem o atendimento da cidade em dois grandes blocos;
b) Duas Residências Terapêuticas – espaços de moradia para oito pessoas que perderam
ou não possuem mais vínculo familiar. Hoje, a RT tem possibilitado processo de
ressocialização e de resgate da cidadania;
c) Uma Emergência Psiquiátrica Especializada – no Hospital Estadual (HSMM), que
funcionam como porta de entrada das crises psiquiátricas;
52
d) Cinco Hospitais Psiquiátricos – ofertam a internação hospitalar em seus 1095 leitos,
sendo 885 integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e 196 não SUS;
e) Nove Emergências Clínicas – em funcionamento nos Hospitais Gerais do município;
f) Três Ocas Comunitárias – serviço que objetiva discutir e realizar, na comunidade,
trabalho de saúde mental preventiva e curativa, contando com massoterapia, argiloterapia e
Ofurô. Encontram-se instaladas nos bairros do Bom Jardim (SER V), Pirambu (SER I) e
Conjunto São Cristovão (SER VI);
g) Dezesseis equipes de Apoio Matricial em Saúde Mental – serviço estruturado que
objetiva assegurar retaguarda especializada a equipes de referência da atenção básica, de
forma dinâmica e interativa;
h) Uma unidade básica do serviço móvel de atendimento às urgências e emergências
(SAMU) em saúde mental - serviço que oferta atendimento as crise psíquicas da comunidade
fortalezense (FORTALEZA, 2010; BRASIL, 2011).
É importante ressaltar que a RASM de Fortaleza é ampla e diversificada. No
entanto, a coleta de dados se concentrou no serviço móvel de urgência, por considerá-lo
absorvedor dos potenciais participantes do estudo. Porém, não se anulou os demais serviços
como potenciais fornecedores de sujeitos da pesquisa.
4.2.2 Amostra intencional e sujeitos investigados
Os sujeitos da pesquisa (sete entrevistados) constituem uma amostra intencional
que foi identificada e selecionada tendo como fonte de referência principal a demanda
daqueles usuários do sistema público de saúde em crise psíquica que utilizaram os serviços de
urgência psiquiátrica do SAMU do Município de Fortaleza (seis sujeitos), embora, em alguns
casos específicos, tenham sido usados alguns espaços diferentes (dois sujeitos), conforme as
redes esquematizadas.
53
r
Figura 5 - Esquema de captação dos entrevistados.
Na formação dos dois grupos de entrevistados foram utilizados os seguintes
critérios de inclusão e exclusão.
Quadro 1 - Critérios de inclusão e exclusão.
Critério de inclusão Critério de exclusão
Familiar ou responsável pelo tratamento
do sujeito em situação de crise, residente
em Fortaleza.
Sujeito com sofrimento psíquico residente
em Fortaleza.
Sujeito sem condições emocionais e
cognitivas de responder às questões da
entrevista.
Para organização dos critérios de inclusão, foram priorizados os familiares de
sujeito com sofrimento psíquico que passaram por situações recentes de crise com o familiar,
o que facilitou a narrativa do fato. Em relação ao sujeito de sofrimento psíquico, a prioridade
foi para aqueles que receberam cuidados de saúde mental e que os familiares participaram do
estudo. Isto facilitou o contato, pois havia sido estabelecido vínculo com o familiar.
4.2.3 Técnicas e questões norteadoras para busca das narrativas
Em busca da melhor forma de reconstituir as histórias de crise vivenciadas pelos
sujeitos da pesquisa e de obter amplas narrativas destes momentos, optamos pelo referencial
teórico-metodológico estruturado na história oral temática que, consoante Meihy e Holanda
AUDIÊNCIA
PUBLICA GEIA
SAMU
ORFEU
IRIS
AFRODITE
HESTIA
HERA ATENA
Familiar Sujeito
54
(2010), consistem em práticas de apreensão de narrativas realizadas por meio do uso de
recursos eletrônicos e destinadas a recolher testemunhos, promover análise de processos
sociais do presente e facilitar o conhecimento. História Oral, como metodologia, divide-se em
três ramos: a história oral de vida, a tradição oral e a história oral temática (MEIHY;
HOLANDA, 2010).
História Oral de Vida (HOV) foi idealizada por W.O. Thomas e F. Zananiecki, em
1927, na Escola de Sociologia de Chicago. Trata-se de narrativas dos fatos da vida que
dependem da memória, dos ajeites, dos contornos, das derivações, imprecisões e até das
contradições naturais da fala (MEIHY; HOLANDA, 2010). Para isso, a HOV estabelece o
propósito de fidelidade de experiências e interpretações do sujeito sobre seu mundo; o
entrevistador, como captador destas experiências, deve estabelecer medidas para assegurar
que o narrador relate informações necessárias, sem que fatos sejam omitidos e que estes sejam
checados e confirmados através de documentos ou informações de outros sujeitos
(HAGUETE, 2003).
Com objetivo de captar o relato mais fidedigno do narrador, o entrevistador deve
proceder como estimulador ao depoente, deixando-o em total liberdade de expressão para que
possa relatar a experiência pessoal vivenciada. Agindo desta forma, o entrevistador
conseguirá recuperar informações não registradas de outra forma e constituir visão do todo;
esta totalização pode ser obtida de forma única, através do confronto entre a experiência
vivida e os questionamentos do entrevistador (HAGUETTE, 2003).
É importante evidenciar que o entrevistador oral é algo mais que um coletador de
gravações. Geralmente, assumir papel ativo na pesquisa. Este tipo de ação pode ser
demonstrado na tradição oral, que estabelece como forma de captação o viver junto aos
informantes-chave, estabelecendo condições de apreensão dos fenômenos, de maneira a
favorecer o conhecimento do universo dos pesquisados, apresentando como complexidade o
reconhecimento do outro nos detalhes autoexplicativos (MEIHY; HOLANDA, 2010).
O adentrar na realidade do sujeito torna a tradição oral difícil, intrigante, mas bela,
pois não se limita a encontrar o sujeito e aplica-lhe a entrevista, mas busca conviver com o
grupo de entrevistados, “estabelecendo condições de apreensão dos fenômenos de maneira a
favorecer a melhor tradução possível do universo mítico do segmento” (MEIHY;
HOLANDA, 2010, p. 40).
Por esse motivo, a tradição oral toma mais tempo do entrevistador, além de exigir
conhecimento aprofundado do objeto de pesquisa, estabelecendo a necessidade de
compreender a conjuntura cultural do espaço da pesquisa. Portanto, a complexidade da
55
tradição oral estabelece-se no reconhecimento do outro e em seus detalhes autoexplicativos de
sua cultura. Ricoeur (1989) afirma que a narrativa pode ser mediadora entre a experiência
vivida e o discurso proferido, superando, assim, o distanciamento entre o explicar e
compreender.
Os relatos orais englobam explicitamente a experiência subjetiva do narrador,
podendo repousar em testemunhos oculares, boatos ou em uma nova criação a partir da
diversidade de textos orais existentes. Este fato foi considerado limitação deste método, mas,
atualmente, estas histórias são reconhecidas como virtude da história oral, já que para
entender o passado, é necessário construir, processar e integrar à vida dos indivíduos
(FERREIRA; AMADO, 2006; ZERBO, 2010).
A individualização dos relatos orais conduz à terceira metodologia da história
oral, a história oral temática, que se apresenta com caráter social e conceitual, centrado no
testemunho e na abordagem de um recorte temático, admitindo e utilizando questionários que
promovam as discussões específicas sobre um assunto (MEIHY; HOLANDA, 2010).
A possibilidade de gerar políticas públicas inovadoras e a necessidade de trilhar
um percurso metodológico que proporcione contemplar a relevância social da temática em
estudo reconhece na história oral temática o método ideal para este estudo. Para isso, alguns
pontos nortearam a escolha da história oral temática como metodologia. Inicialmente, a
possibilidade de fornecer voz a pessoas e/ou setores desprezados, seguido da proposta de
relevância social, a qual define a situação de um grupo em determinado local e em um
acurado tempo (MEIHY; HOLANDA, 2010). E, finalmente, por acreditar que a narrativa
histórica de uma patologia envolve pluralidade de ações, fatos e acontecimentos marcantes na
vida do indivíduo e familiar que a vivencia.
O caráter eminentemente social, desenvolvido pela história oral temática,
possibilitou o confronto das narrativas dos sujeitos da pesquisa com as políticas públicas
implantadas pela Rede de Atenção em Saúde Mental (RASM) de Fortaleza para atenção ao
sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise. A centralização em um único foco, no
caso, a situação de crise, concorreu para obtenção de um esclarecimento deste ou forneceu
suporte para identificar o sofrimento psíquico enfrentado por usuário e família na busca por
um cuidado à situação de crise.
A narrativa dessa peregrinação, através da historia oral, conduziu ao âmbito
subjetivo da experiência humana, parte central desse método, possibilitando esclarecer as
nuanças da vida de sujeito em sofrimento psíquico, em situação de crise, e de familiares,
56
identificando as limitações produzidas pela doença e as dificuldades encontradas na busca
pelo tratamento (FERREIRA; AMADO, 2006).
A entrevista, como ferramenta da historia oral, foi a estratégia escolhida para
apreender as narrativas dos sujeitos. As entrevistas junto ao corpus, formado por familiares e
sujeitos em sofrimento psíquicos, constituíram a documentação oral desta pesquisa (MEIHY;
HOLANDA, 2010; FERREIRA; AMADO, 2006).
Ferreira e Amado (2006) definem corpus como um grupo de pessoas que se
dispõem a depor sobre um determinado tema. Para constituição do corpus foi preciso o
estabelecimento de relações de confiança entre o narrador e o pesquisador. Nesta pesquisa, o
processo dialógico se colocou como fundamental para o estabelecimento da confiabilidade
entre os sujeitos, facilitando, assim, a coleta das informações.
As entrevistas, como estratégia da história oral, foram gravadas, sendo solicitado
o consentimento para utilização do meio eletrônico (gravador). Para constituir as entrevistas,
tivemos dois roteiros de perguntas semiestruturadas (Apêndice A e B). Foi lido e explicado
aos sujeitos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi assinado,
como forma de assegurá-los da confidencialidade e privacidade das informações. Utilizamos
os codinomes Gregos - Geia, Orfeu, Iris, Hera, Hestia, Afrodite e Atena - como forma de
preservar o anonimato dos sujeitos.
As gravações tornaram-se o ápice desta pesquisa, pois materializaram a
informação, mas a apreensão da narrativa conseguida no estudo somente foi possível devido à
escolha do corpus, pois o caráter testemunhal definiu a qualidade do dossiê documental que
obtive. A partir desta qualidade, é possível compreender a conjuntura da vida social dos
sujeitos em sofrimento psíquico em situação de crise (ONOCKO; CAMPOS; MIRANDA,
2008; STRAUSS, 2008).
4.2.4 Análise e interpretação das experiências
Neste estudo, a compreensão das experiências ocorreu a partir do referencial
metodológico de Ricoeur (1989), que considera a compreensão como ordenação do enunciado
narrativo e quando esta estrutura organizacional não se estabelece, não é possível
compreender a narrativa, requerendo explicação. Assim, deve-se ter um olhar desde a
explicação à compreensão, isto é, quando não compreendo espontaneamente, solicito
explicação.
57
Com o propósito de proporcionar a compreensão do contexto narrativo, a análise,
como compreensão ingênua, torna-se compreensão esclarecida, através da explicação
(RICOUER, 1989). A explicação, no campo do sofrimento psíquico, é mais subjetiva do que
nos demais campos de pesquisa. Geralmente, estudos neste campo vão além do compreender,
pois, intentam transformar realidades.
De posse das narrativas, optamos por utilizá-las em sua totalidade, pois
consideramos que, desta forma, contribuiria para refletir a realidade dos relatos. Antes,
realizamos a transcrição literal das narrativas tais como foram gravadas. Na segunda etapa,
realizamos o que Meihy (1998) denomina de textualização, organizando a narrativa,
suprimindo as perguntas e dando-lhe sentindo a partir de uma frase de destaque surgida
durante a entrevista. Na terceira etapa, realizamos a transcriação, redigimos as narrativas com
pequenas interferências do autor como forma de organizar um sentido ao texto.
Os dados de identificação e as impressões sobre a condição da entrevista que
constam no início de cada narrativa foram resultantes das anotações realizadas no diário de
campo, registro procedido antes de iniciar a entrevista e logo após terminá-la. Hesitamos em
categorizar os resultados obtidos nas narrativas desde o início da análise dos resultados,
contudo era necessário permitir que as narrativas falassem por si, em vez de aplicar sobre os
dados um conjunto de conceitos ou categorias predeterminadas (TERTO JÚNIOR, 2000). A
partir desta conjuntura, resolvemos correlacionar às narrativas coletadas e traçar dimensões
comuns na problemática da situação de crise psíquica, capazes de fornecer suporte à
problematização proposta pelo estudo.
A compreensão profunda das experiências desvelou os núcleos de sentidos que
foram utilizados na organização dos resultados da investigação apresentados posteriormente,
quais sejam: itinerário terapêutico e suas diversidades; o cuidado e suas dimensões na
perspectiva da família em relação à rede assistencial; o porvir: a visão do familiar e do sujeito
em crise.
4.2.5 Textualização e transcriação das entrevistas
Inicialmente, procuramos efetivar o processo de textualização e transcriação das
narrativas dos sete entrevistados desta pesquisa, objetivando contextualizar descritivamente o
fenômeno estudado através das percepções dos próprios sujeitos entrevistados. Esta
apresentação se encontra disposta em duas partes: na primeira parte consta o nome fictício
que identifica o narrador, seguido de dados gerais elaborados a partir da entrevista e das notas
58
de campo. Procuramos, de forma sucinta, relatar as impressões marcantes que ocorreram
durante o encontro, na tentativa de situar o leitor.
A segunda parte caracteriza-se pela utilização de uma frase que caracteriza de
alguma forma o narrador ou a situação por ele vivenciada, seguida da entrevista transcriada na
íntegra. Buscamos conservar termos e características linguísticas típicas da região para não
perder a originalidade.
5.1 A história de Geia9
5.1.1 Contexto e caracterização
Geia, 37 anos, nascida em Fortaleza, casada, dois filhos, formada em História pela
Universidade Federal do Ceará (UFC), tem como ocupação os afazeres do lar e vive com
renda média de dois salários mínimos. Residente no bairro Jockey Clube, que compõe a
Secretaria Executiva Regional III. O filho encontrava-se doente há seis anos, tinha 14 anos.
No contexto da doença, foram seis internações e diversas situações de crises psíquicas.
A entrevista foi realizada em duas seções, com média de 50 minutos cada. O
primeiro contato com Geia ocorreu na câmara municipal de Fortaleza durante audiência
pública que debatia a situação da rede de saúde mental de Fortaleza. Geia, neste dia, dirigiu-se
à tribuna e fez um relato emocionante do seu sofrimento com as situações de crise vivenciadas
com o filho. Após sua fala, aproximei-me e mantive o primeiro contato e convidei-a a
participar da pesquisa. De pronto, ela se colocou à disposição.
A primeira entrevista ocorreu no Centro de Atenção Psicossocial infantil da SER
III, local onde o filho fazia terapia. Na narrativa, Geia tomou a iniciativa de relatar sua
história, então, somente me restou ligar o gravador e escutá-la. Esta narrativa foi a mais longa
dos dois encontros que tivemos, quando ela iniciou com sua identificação e relatou sua
história de vida. Este relato, em alguns momentos, foi carregado de emoções. A entrevistada
não apresentou dificuldade alguma de relatar sua história, ao contrário, foi um relato rico de
detalhes. Neste dia, a entrevista foi encerrada pelo retorno do filho da terapia. Tive a
oportunidade de constatar a dificuldade que Geia tem em contê-lo, colocando-me à disposição
para levá-los até a parada de ônibus, o que enriqueceu minhas observações.
Mesmo dispondo de muitos relatos, percebi a necessidade de um segundo contato,
o qual foi marcado com a mesma receptividade e ocorreu no hall de um hospital psiquiátrico
9 Deusa da terra, a mãe terra. Mãe geradora de todos os deuses. Aqui representa uma mãe que deseja ver
seu filho bem e ter uma vida normal (GRAVES, 2008).
59
de Fortaleza, pois o filho havia apresentado mais uma crise psíquica que o levou a
hospitalização. Neste dia, Geia se apresentou sofrida e cansada; como na primeira entrevista,
ela foi logo relatando todo o sofrimento vivenciado na última situação de crise. Porém, nesta
entrevista intervi mais do que na primeira, devido à situação que se apresentava. Mas, as
intervenções não foram prejudiciais à coleta da narrativa, pelo contrário, foram estimuladoras
de relatos ainda inéditos.
5.1.2 A narrativa
Meu filho nunca precisou ser contido por eles, porque quando eles chegam à crise
já passou.
Assim que soube que estava grávida... eu namorava o pai dele... nós não
vivíamos juntos.... Ele tinha terminado o namoro, então eu fui contar e ele aceitou muito mal,
ele me tratou mal, não quis assumir, não quis reatar o namoro... então naquele momento foi
um momento de crise para mim.
O rompimento não veio da gravidez, veio por outros motivos, mas eu não sabia
que estava grávida. Eu comecei a perceber nele atitudes muito esquisitas, ele era uma pessoa
que tinha ideias meio nazistas... assim, tipo, para acabar o sofrimento dos africanos é preciso
exterminá-los... eles vão morrer e não vão mais ficar sofrendo. De início, quando eu ouvia
isso, eu achei que era brincadeira, não levava a sério de forma nenhuma.... era universitário,
fazia mestrado e gostava de beber, só pode está bêbado para dizer uma coisa dessas, mas em
outras ocasiões, ele dizia outras coisas também. Por exemplo, que era fã de Friedrich
Nietzsche, o filósofo... ele estava certo, os fortes tinham que dominar os fracos, haveria que
ter uma supremacia de uma raça superior... eu comecei... esse cara é maluco, eu acho que eu
vou terminar esse namoro.
Eu não sabia como dar esta notícia para os meus pais, porque eu tinha vinte
anos, filha única e isso gerou em mim um desespero. Então, eu acho que todo este desespero
passou para o feto. Foi um dia muito difícil na minha vida... neste dia, eu tomei um grande
porre, quase entro em coma alcoólico, desmaiei, fiquei vendo tudo preto, escuro, baixou a
glicose, baixei a pressão, eu fiquei muito fria, muito gelada... no dia que contei para ele que eu
estava grávida. Eu já deveria estar perto de um mês de gravidez. Depois desse primeiro
momento difícil, eu fiquei em casa, os meus pais me aceitaram, não me colocaram para fora
de jeito nenhum, eles me amavam... só que eu entrei em depressão, não tinha vontade de
comer, eu vomitava muito, já por conta da gravidez. Não tinha vontade de fazer nada, eu só
queria dormir, eu não queria sair, eu não queria que as pessoas me vissem, eu não queria
60
conversar com ninguém. Algumas vezes passou pela minha cabeça algumas ideias suicidas...
assim tipo enfiar uma coisa, um prego dentro de uma tomada.
Mas, ao mesmo tempo, a minha mãe estava perto de mim, me apoiava. Mas eu
não tomei nenhum tipo de remédio... no pré-natal, ela contou para a médica sobre a minha
depressão e a médica disse que não acharia conveniente eu tomar antidepressivo na gravidez...
então eu tive que suportar os seis meses de gravidez com depressão... por mais que eu
quisesse reagir era difícil, eu não conseguia dormir direito, tinha pesadelos. Só aceitei meu
filho depois de três meses de nascido...tinha que amar esse filho que tinha nascido. A minha
família fez um chá de bebê para mim, para me animar.
No dia do nascimento... eu não estava sentindo uma dor na unha... o médico
tinha feito um ultrassom no dia anterior, numa sexta-feira, era um médico de confiança da
minha mãe e ele disse assim: olha, vamos fazer logo esse parto, porque ela já está uns dez dias
antes, isso era dia 11 de agosto e estava previsto para 18 de agosto, vamos fazer logo esse
parto, é um sofrimento sem necessidade... porque eu estava urinando muito, a bexiga baixa,
dor nas costas e a barriga muito grande para meu tamanho. No dia seguinte, eu fui sem sentir
nada, ele fez um parto induzido, mas normal e foi o que me prejudicou, porque era para ele ter
feito cesariana... ele botou o soro que eu ia sentir contração, então, quando deu meio-dia,
antes da hora que ele foi almoçar, ele estourou a bolsa e disse que quando ele chegasse do
almoço, eu já estava próxima de ter o nenê... só que eu não estava próxima, eu fui até 17:15,
eu fiquei sem a água na bolsa, sentindo contrações e sangrando, sentindo muita dor... um
assistente dele fez o meu parto.
Meu filho foi crescendo e aprendeu a mamar, ele mamava bem, ele se alimentou
bem, ele pegou logo peso, ele ficou bem gordinho. Mas ele era assim... ele não era igual aos
outros porque ele era muito calmo... quando ele tinha assim uns sete meses, por exemplo, ele
começou a assistir televisão... a gente o botava no carrinho de frente para televisão e ele
ficava olhando para televisão, e ele não reclamava de ficar olhando a televisão...não queria
sair ou ir para o meu braço ou para o braço da avó... e a vizinha achou isso estranho. O tempo
foi passando e ele não falava... ele andou com um ano normal, andou... mas ele não falava, ele
fez dois anos e ele não falava... ele dizia cinco palavras, ele dizia tudo com bobo, bobó, que
era vovô e vovó.
Não me chamava de mãe, não chamava mamãe, às vezes ele esboçava alguma
coisa chamando... era baú, que era mingau... aba que era água ...e eu acho que ele me
chamava de nenê ...eu ficava dizendo... mas esse menino já esta andando, correndo, e ele não
fala, ele só fala cinco palavras... tem menino de dois anos que já está contando uma história...
61
mas as pessoas falavam assim, ele vai falar, não se preocupe. Passou um ano, ele fez três
anos, eu resolvi botar ele no maternal... ele já falava mais um pouco, mas não muita coisa...
ele não dizia uma frase, ele dizia só as palavras que ele queria dizer, ele dizia coca-cola, bife,
me dá, eu quero... com três anos, ele não dizia uma frase, dizia uma palavra por vez... levamos
para o maternal, escolinha particular... na primeira semana, a diretora me chamou, ela disse:
olha mãezinha a sua criança é um pouco diferente dos outros...primeiro que ele não fica na
salinha do maternal, ele sai correndo, ele não quer brincar com as outras crianças, ele vai para
um canto e fica com um brinquedo só para ele...e ele não esta fazendo nenhuma atividade, de
pintar, de usar a massa de modelar, nada.
Disseram que eu o levasse na neuropediatra... quando eu o levei para essa
primeira consulta, ele era muito inquieto, muito hiperativo, ele não ficava no meu colo ... ao
contrário de quando ele era bebê, depois de dois anos, ele ficou o oposto de quando ele era
bebê, ele ficou super agitado... ele não dormia de noite, a gente revessava eu e a minha mãe
para ver se ele dormia, ele tinha insônia, ele queria passar a noite brincando ou cantando,
fazendo barulhos, menos dormir. A gente, então, fazia chá de camomila, chá de erva doce,
suco de maracujá, e não sabia o que fazer para o menino dormir direito. Falei com a médica,
mas como ele só fazia quatro anos em agosto, ela disse... vai remarcar essa consulta e me
indicou o Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) para fonoaudiologia... eu fui e
comecei a fazer o tratamento dele de fala ... e quando ele fez quatro anos eu retornei na
médica e ela passou ritalina10
, meio comprimido por dia e pronto. Tomando meio comprimido
por dia ele ficou estranho... ele ficava babando, ele não falava direito, a minha mãe dizia que
ele estava grog... a gente usou ainda umas quatro caixas até voltarmos na doutora e dissemos
que ele tinha ficado um pouco mais quieto, mas que a gente não estava satisfeito com a
maneira que ele estava... a doutora disse: mas o remédio para a hiperatividade é esse, se vocês
não estão satisfeitas, então vocês procurem outro profissional... nós procuramos, começamos
a ir no Albert Sabin, ele começou a ser consultado lá... eles tiraram a ritalina e ele passou a
tomar benerim em gotas. Coloquei no jardim I depois, mas foi a mesma coisa, as mesmas
reclamações na escola... que ele não interagia com os meninos, de que ele deu chute na caixa
de som que estava para as crianças ouvirem música, de que ele mexia no som onde as crianças
ouviam cd infantil...que ele era um transtorno para a escola toda, de que ele subia escada e
10
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH): O TDAH era anteriormente conhecido como
distúrbio de déficit de atenção ou disfunção cerebral mínima. Ritalina é indicado como parte de um programa de
tratamento amplo que tipicamente inclui medidas psicológicas, educacionais e sociais, direcionadas a crianças
estáveis com uma síndrome comportamental caracterizada por distratibilidade moderada a grave, déficit de
atenção, hiperatividade, labilidade emocional e impulsividade. O diagnóstico deve ser feito de acordo com o
critério DSM-IV ou com as normas na CID-10 (BRASIL, 2010).
62
não tinha quem segurasse ele... eu resolvi tirar ele da escola regular e botei no recanto
psicopedagógico com cinco anos... aí ele ficou dos cinco aos seis anos no recanto
pedagógico... eu comecei a ver uma melhora significativa na fala, ele aprendeu a falar tudo,
ele falava muito bem, ele aprendeu a ler.
Quando meu filho fez seis anos, minha mãe morreu e ele teve uma regressão
enorme... ele queria a minha mãe todo dia e não chorava, não chorava, mas demonstrava que
alguma coisa muito ruim estava acontecendo... então ele pegava às vezes um garfo e pinicava
a parede para ver se caia o reboco... ficou mais hiperativo ainda, ficou mais difícil ainda de
lidar com ele... uma vez ele pegou uma faca e fez assim, apontou a faca para mim, a faca da
cozinha desse tamanho, aí meu pai tomou logo dele... ele dizia olha isso aqui não é brinquedo,
isso aqui é perigoso, corta o dedo sai sangue. Foi difícil para ele aceitar que a minha mãe
tinha morrido... eu dizia que estava no céu... ele queria subir na árvore, na goiabeira, porque
eu acho que na cabeça dele ele queria chegar perto do céu... e eu tinha medo que ele caísse...
então a vida ficou muito difícil.
Nesse período, eu tinha passado no vestibular e então, o coloquei em uma escola
próxima da Universidade Federal do Ceará (UFC). Nessa mesma escola que ele estuda hoje, o
Centro de Defesa da Criança e Adolescente (CEDECA), assim eu ia para UFC e ele ia para
escola e a gente estava no mesmo horário. Lá ele desenvolveu uma escrita que dava para
entender, uma escrita de letra de forma, mas que dava para entender, ele fazia as tarefas... de
vez em quando é que ele enlouquecia, como por exemplo, um dia que choveu ... ele tirou a
farda e ficou pulando no meio da chuva. Ele não quis obedecer à professora de jeito nenhum,
a pessoa se agarrava com ele para vestir o calção dele, mas ele empurrava, entendeu... tinha
força, ele já tinha uns sete para oito anos... quando eu cheguei lá, ele estava encharcado. Ela
disse: olha, foi muito difícil hoje, ele não quis sair da chuva de jeito nenhum, não quis vestir o
calção de jeito nenhum, empurrou as professoras, e se agarrou com a gente, e deu chute na
canela, e aí está ele molhado.
Então resolvi pagar uma consulta numa psiquiatra, uma psiquiatra infantil ... ela
fez uma anamnese bem feita, uma consulta de uma hora quase... ela ficou primeiro comigo,
depois ficou mais de meia hora sozinha com ele... propôs várias coisas... desenhos, um monte
de teste... e ela disse que ele era autista com toda certeza, sem sombra de dúvidas, ele era
autista, por tudo que eu contei. No primeiro momento, eu fiquei triste, mas fiquei feliz por já
ter certeza do que ele tinha. Ela disse que uma vida normal... normal não, mas ele poderia ter
uma vida próxima do normal, ele poderia até quem sabe terminar os estudos... ela disse que
existiam autistas que conseguiam terminar os estudos, e que existiam autistas que conseguiam
63
trabalhar, desde que fosse um trabalho bem focado. Ela me deu essa esperança... eu saí de lá
meio triste, arrasada, ... ela disse que é a genética, a pessoa já nascia assim, como poderia
reverter uma doença que já vinha nos cromossomos.
Depois desse quadro da infância, ele começou a piorar, ele começou a ficar
agressivo... por volta dos 10 anos, ele batia no meu pai... ele pegava o cabo de vassoura e
batia no meu pai e saia até sangue às vezes. O meu pai batia nele de cinturão, eu batia nele de
cinturão para ele entender que ele tinha que ter limites, para ele entender que não podia fazer
isso com o vovô e que ele tinha que respeitar o vovô e a mamãe... mas só que ele ficava mais
agressivo ainda, entendeu. Então ele começou a quebrar as coisas dentro de casa... ele
quebrou uma cadeira de plástico, arremessou a cadeira contra um muro, ele quebrou um
som... eu lembro que ele, nessa época tinha 10 anos... era um som portátil que ele quebrou.
O meu pai ficou muito preocupado, porque ...como é que vai ser daqui para a
frente... esse menino tem 11 anos, esse menino já tem a força de quebrar uma televisão de 14
polegadas, esse menino arranca a borracha da geladeira, quebra a porta do armário, quebra a
maçaneta da outra porta, dá chute nas portas ... e quando ele ficar adolescente, quando ele
ficar maior como vamos contê-lo? Neste período, ele estava tomando a medicação
Risperidona11
e frequentava a Casa da Esperança12
.
Meu pai morreu em 2007... ele tinha feito 12 anos... então ele piorou ainda mais,
apresentando uma crise mesmo fenomenal... quando ele voltou do velório do meu pai, ele
quebrou tudo, ele pegou um armário, ele tacou no chão, tinha vidros... ele pegou um balcão
maior que era mesa, arrastou e começou a tirar os compensados... eu nunca tinha visto ele
assim, eu chamei os vizinhos e eles seguraram ele. Mas, eles também ficaram assustados,
porque a gente sabia que ele era um menino que quebrava as coisas, mas não nesse sentido de
destruição total.
11
Risperdal é indicado no tratamento de uma ampla gama de pacientes esquizofrênicos incluindo: - a primeira
manifestação da psicose - exacerbações esquizofrênicas agudas - psicoses esquizofrênicas agudas e crônicas e
outros transtornos psicóticos nos quais os sintomas positivos (tais como alucinações, delírios, distúrbios do
pensamento, hostilidade, desconfiança), e/ou negativos (tais como embotamento afetivo, isolamento emocional e
social, pobreza de discurso) são proeminentes. - alívio de outros sintomas afetivos associados à esquizofrenia
(tais como depressão, sentimentos de culpa, ansiedade). - tratamento de longa duração para a prevenção da
recaída (exacerbações agudas) nos pacientes esquizofrênicos crônicos. Risperdal é indicado para o tratamento de
curto prazo para a mania aguda ou episódios mistos associados com transtorno bipolar I. Risperdal é indicado
para o tratamento de transtornos do comportamento em pacientes com demência nos quais os sintomas tais como
agressividade (explosão verbal, violência física), transtornos psicomotores (agitação, vagar) ou sintomas
psicóticos são proeminentes. Risperdal também pode ser usado para o tratamento de irritabilidade associada ao
transtorno autista, em crianças e adolescentes, incluindo sintomas de agressão a outros, auto agressão deliberada,
crises de raiva e angústia e mudança rápida de humor (BRASIL, 2010). 12
A Casa da Esperança é uma fundação que atua no atendimento integral e na defesa dos direitos de pessoas
com transtornos do espectro autista. Nosso trabalho é reconhecido nacionalmente, e já colaborou com centros
internacionais de pesquisa e atendimento (DOURADO, 2013).
64
Eu o tranquei no quarto e ele ficou chutando a porta do quarto, chutando,
chutando, chutando... então foi um dia dificílimo para mim. No dia seguinte, eu abri o quarto
de novo porque eu queria pelo menos varrer, tirar os bagulhos... enquanto existia uma coisa
que lembrasse meu pai, ele não parou de destruir, ele só parou quando não tinha mais nada, só
a parede e a janela... o quarto ficou com dois armadores, a parede a janela e as telhas. As
lembranças que tinha, ele destruiu tudo... televisão ele quebrou quatro televisores, toda hora,
de repente do nada, ele rebolava a televisão no chão, quebrava a televisão... eu não tinha uma
grade para botar...hoje eu tenho... isso ocorreu durante o ano de 2008.
Não o internei... eu achava que ele era muito novinho, tinha 12 anos, quando ele
teve essa crise. Eu o levei até a médica, ela prescreveu três novos medicamentos: Risperidom,
três vezes ao dia, e 40 gotas de Neozine13
de manhã, 40 gotas de Neozin de tarde e noite. Mas
não tinha jeito... continuaram as crises... e foi a primeira vez que eu chamei uma ambulância
para ele tomar uma injeção... porque estava de uma maneira destruindo tudo...ele estava
tentando arrancar a porta do banheiro.... ele já tinha 13 anos... ele conseguiu arrancar uma
porta, deixar só os pedaços entendeu... então estava de uma maneira assim impressionante.
Ele subia em cima de uma pia e pulava, sabe, para ver se a pia desabava no chão. Quando o
SAMU chegou lá, ele não estava mais quebrando, porque estava suado e exausto. Ele fez
muita força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais força... ele já estava sentado no
chão suado, sujo, nu e comendo as coisas que tinha dentro da geladeira... ele estava quieto,
estava exaurido... quando cheguei lá, eu apenas banhei ele, vesti e levei-o... não deu trabalho
nenhum para entrar na ambulância... aí a gente o levou ao hospital de Messejana, foi A
primeira vez que eu pisei no hospital de Messejana para dar uma injeção. Nesse dia, eu estava
chorando, aflita, sem saber o que fazer, porque eu nunca imaginei que ele chegasse a tanto...aí
ele tomou uma injeção e foi para o Mira y Lopes e ficou na intercorrência clínica... com 13
anos.
A maior dificuldade em cuidar dele é porque ele já é um adolescente e quando
está em crise é muito forte... ele é pesado, é alto e eu sempre necessito da presença do meu
esposo na hora da crise. Eu não posso contar com a presença dele o tempo inteiro. Então, ele
faz coisa arriscada, põe a vida dele em risco... ele corre, atravessa em frente de carro, de
ônibus, ele foge de casa, ele me agride fisicamente. Ele rasga as coisas, destrói móveis. Faz
várias coisas perigosas. A dificuldade é contê-lo, segurá-lo para ele não se machucar, não
machucar a mim. Como conter se ele é um rapaz e eu ainda sou uma pessoa frágil, pequena,
13
Apresenta um vasto campo de aplicação terapêutica. Está indicado nos casos em que haja necessidade de uma
ação neuroléptica, sedativa ou antálgica (BRASIL, 2010).
65
eu não consigo. Então, já pensou se o estado pagasse, para essas determinadas pessoas, um
cuidador, para que você pudesse ter mais esse suporte domiciliar. Seria muito melhor, a gente
não precisaria estar internando a pessoa o tempo todo, a gente poderia cuidar da pessoa em
casa... se houvesse um cuidador, alguém que fosse... ficasse na sua casa, por um determinado
período, te ajudando. Na hora de uma crise, o rapaz o conteria, o segurava. A última crise
começou... ele já vinha há vários dias fazendo coisa que não deveria... ele, na segunda feira...
vou fazer um retrospecto... na segunda feira, ele chegou da Casa da Esperança e ele saiu
correndo, atravessou Avenida Lineu Machado... que já é um risco muito grande e foi correndo
até a casa de um amigo meu... que ele sabe que lá tem palmeirinha que ele gosta. Ele invadiu
a casa e destruiu o jardim inteiro da pessoa. A esposa do meu amigo estava lá, ele trabalha na
Casa da Esperança, por sorte ele sabe. Ele não ficou chateado, mas se fosse um estranho, ele
teria chamado o ronda... porque ele quebrou um jarro de cimento enorme, ele destruiu todas as
plantas, ele arrancou tudo com os dentes, as mãos. E eu não sabia como fazer para ele parar...
então, consegui, com muito custo e com a ajuda da esposa (do dono da casa), que ele saísse e
levei-o para casa. Na terça feira, ele também tentou fugir de casa e destruiu alguns objetos em
casa. Rasgou roupa... rasgando a camisa de malha dele e tudo mais... mesmo assim a gente
ainda conseguiu que ele fosse para Casa da Esperança. Na terça feira, ele chegou a rasgar o
banco do transporte escolar com uma mordida... na quarta-feira, eu fui com ele para evitar
isso, fui e voltei com ele no transporte escolar. Assim que o rapaz o desceu de dentro do
carro... que eu abro a casa e coloco a bolsa dentro... ele saiu novamente pelo portão...
atravessou avenida e foi novamente quebrar todos os galhos, árvores que ele encontrou na rua
Goiânia ... que é a minha rua... aí eu peço ajuda a um amigo na rua... ele me dá uma corda...
então eu amarro as pernas dele para ele não correr e também amarro a mão dele com a camisa
dele. Você vê... é muito constrangedor, você ter que amarrar seu próprio filho e sair amarrado
com ele pela rua. Só assim consegui chegar a casa com ele.
Quando cheguei a casa com ele, ele foi arrancar um galho e bateu na minha mão
aqui... que arrancou um pouco a pele do meu braço... ele chegou em casa muito agressivo, ele
me chutou, chutou meu joelho, ficou arrancando meu cabelo, puxando meu cabelo... ai eu
resolvi desistir, desistir de ficar perto dele, porque eu vi que ele ia me machucar... eu desço as
escadas... aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômoda escada abaixo, para ver se a
cômoda pegava em mim. Chamo a ambulância, chamei o SAMU. O SAMU demora muito...
demorou quatro horas. Como é apenas uma ambulância... que é um caso até de denuncia...
então não pode uma cidade como Fortaleza com mais de dois milhões de habitantes ter apenas
uma ambulância psiquiátrica... então a espera é enorme. Se um sujeito em crise matar uma
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pessoa, quando a ambulância chegar vai estar só o cadáver, não vai mais dar tempo de fazer
nada... porque eu chamei a ambulância uma hora e eles chegaram às quatro e meia da tarde,
quatro horas depois que eu chamei. Quando eles chegam... meu filho nunca precisou ser
contido por eles, porque quando eles chegam a crise já passou. Aí ele entra bem, é bem
atendido pelos rapazes lá da ambulância e tal... até eles conversam comigo e tal, já me
conhecem... mas se houvesse mais ambulâncias teria um atendimento melhor porque não é
possível uma pessoa esperar quatro, cinco, seis horas por um atendimento. O atendimento é
prejudicado pela falta de ambulância.
Nós fomos com ele para Messejana... é mais outra espera grande... que eu tive que
dormir no chão, muita humilhação, as pessoas têm que dormir no chão... inclusive uma pessoa
lá dos funcionários molhou o chão sabendo que as pessoas estavam dormindo no chão. Eles
não têm respeito pelas pessoas... as pessoas estão ali humilhadas, realmente necessitando
daquele atendimento... se submetem a essa coisa degradante, de ficar no frio, no chão sujo...
tem que se submeter ou então ficar a noite inteira sentada numa cadeira até de manhã.
Eu acho que os fatores que dificultam os atendimentos na própria Casa da
Esperança... ou no CAPS quando ele fazia... ele precisa muito desenvolver a comunicação, ele
precisa de um atendimento “fonoaudiólogico” ... bom, e ele não tem. Se ele conseguisse
expressar mais o que ele quer, o que ele deseja, ele diminuiria as crises. Como ele não
consegue dizer o que ele quer, ele fica nervoso. Isso também faz com que ele fique nervoso...
então se ele tivesse um atendimento... ele precisava fazer uma hora de fono praticamente
todos os dias para ele conseguir se comunicar... era o primeiro passo... porque, antes quando
ele era pequeno, ele conseguia falar direito e a gente conseguia entender o que ele queria... a
partir de uns dois anos para cá vem perdendo a condição de dizer as palavras... ele não abre
direito mais a boca, ele fala entre os dentes, muito difícil. Como eu não consigo
compreender... eu tento compreender... mas às vezes nem eu consigo, que sou a mãe, imagina
os outros... aí ele surta... também quer falar e não consegue ser ouvido.
É tudo muito deficiente, porque não há, por parte de nenhum desses lugares,
empenho... não quero ver esse sujeito melhor, eu quero ver ele se desenvolvendo. O que eu
tenho de crítica em relação... por exemplo... a Casa da Esperança onde ele está agora, eles têm
muito mais empenho com as crianças pequenas... eu acho que dá até para entender... a criança
pequena tem mais progresso, eu entendo isso. Então ele que já tem 16 anos... eles não se
empenham tanto... então tem um empenho maior em cuidar dos pequenininhos, dar mais
assistência aos pequenos...e naqueles meninos que mostram que tem a capacidade de
escolarização é feito um trabalho melhor com eles. O meu filho aprendeu a ler e escrever com
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quatro anos, hoje em dia ele está regredindo nesses processos porque ele não está tendo uma
ajuda... eu tento, me esforço, eu até tentei matricular ele numa escola regular para ver se lá ele
melhorava, mas como ele sempre está em crise, fica difícil levar ele...a escola não vai
compreender o problema dele.
A escola não aceita um aluno especial. É lei, mas eles, também, não vão conseguir
conter ele numa crise. Aqui por exemplo, aqui nem se fala, aqui o pessoal tem que se virar
sozinho (hospital). O sujeito que não tem um acompanhante... ele está meio que jogado à
própria sorte... claro, tem a alimentação garantida e tal, o banho e tudo mais... mas assim, a
gente não vê um trabalho de terapia ocupacional regular com eles. A gente não vê... é a sexta
vez que eu estou no hospital, eu sei como é que é. A gente não vê um empenho de uma
psicóloga querendo saber a história deles, para ver se dá um jeito de melhorar eles. O que a
gente vê é que aqueles sujeitos que tem família próxima têm mais um cuidado, mas aqueles
que não têm família, são abandonados.
Minha opinião é que precisa de uma série de coisas para melhorar. Primeiro, o
CAPS deveria funcionar para esses sujeitos o dia inteiro... era um CAPS que deveria ter
tempo integral, que eles pudessem ser atendidos por vários profissionais... psicólogo,
terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo... e ter um médico, claro, um médico é importantíssimo
também para acompanhar a medicação. Que eles pudessem chegar oito horas da manhã e vir
para casa às cinco horas da tarde... era o ideal, eles almoçariam no CAPS entendeu? Teriam
reuniões regulares com os familiares para explicar como lidar com eles em casa. E nesses
casos que o sujeito tivesse apresentando um quadro muito difícil, ter um cuidador que pudesse
ir até a casa da pessoa quando ele não pudesse ir... eu não posso levá-lo de ônibus quando ele
está assim. Ele faz uma loucura dentro do ônibus também, dentro de qualquer lugar ele pode
fazer. Então, nesses casos que eu não posso levar... ter uma pessoa que fosse até a minha casa,
ter um terapeuta ocupacional que fosse até a minha casa atendê-lo. Ai quando ele estivesse
melhor, voltaria para essa rotina dele. A Casa da Esperança disponibiliza o serviço de tempo
integral, mas tem que ser pago e é caro... é um salário mínimo para cima e nem todo mundo
pode. Eu já pago trezentos reais de transporte escolar, porque o estado não disponibiliza... por
exemplo, o transporte escolar para as pessoas que não têm condições de ficar pagando o
transporte para levar para o tratamento. Se você não pode pagar ou levar de ônibus, você não
leva, você fica em casa.
Então, seria isso, uma atenção maior, um cuidado maior, junto com a família. Não
dá para você dizer que uma pessoa vai melhorar se ficar uma hora, uma vez por semana... ela
não vai melhorar, ela vai continuar do mesmo jeito. E no hospital, contratar mais pessoal para
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atender... porque são muitos e eles não têm uma equipe que dê para atender tantos. Não dá
para fazer uma coisa personalizada porque são muitos sujeitos... e no hospital, para ter um
maior cuidado, uma maior atenção... para saber a história deles, para ver se existe uma
recuperação... porque é só dar remédio, comida e ele ir pra casa.
A gente vê muita reincidência... ele vai, vai para casa, está mais estabilizado,
daqui a um mês ou dois ele volta... então fica nesse vai e volta o tempo inteiro. Não seria
melhor fazer um trabalho para que ele ficasse muito mais tempo em casa e poucas vezes no
hospital, o hospital ser realmente uma emergência. Para certas pessoas, o hospital é a casa
deles porque eles passam muito mais tempo no hospital do que em casa... às vezes, a família
nem quer mais eles em casa. Eu conheço uma mãe... claro que não vou dizer quem é... que o
filho dela está aqui... ela interna o filho dela desde os 12 anos de idade... ele tem trinta e
tantos... naquela época não existia estatuto da criança e do adolescente, podia fazer isso... ela
interna o filho dela desde criança, praticamente, porque ela não pode, não tem condições de
cuidar... ele já não tem mais como ficar em casa, ele já não se habitua a ficar mais em casa.
Então existe uma série de coisas que tem que mudar... mais ambulâncias, pelo menos umas
quatro, para fazer esse transporte para levar para Messejana...e em Messejana, as pessoas não
terem mais que dormir no chão, que é absurdo a família ter que passar por isso... mais vagas,
mais leitos hospitalares, e mais cuidados mesmo... ver eles como seres humanos e não como
uma subpopulação... eu vejo alguns aqui de uma forma tão massacrada, doente, magro, que eu
comparo eles com aqueles judeus no campo de concentração, sabe... a aparência física deles, é
tão maltratado de uma maneira que você pensa... não é possível, eles não são tratados feito
gente.
Olha, sinceramente, é triste eu dizer isso, mas eu acho que é uma esperança em
Deus... porque eu não vejo nesse tratamento uma melhora nele não, do jeito que está hoje eu
não vejo. É triste dizer isso porque eu queria muito viver numa casa com meus móveis, minha
cama direitinho, com tudo direitinho, sabe... eu queria ver meu filho bem... eu queria ter uma
vida digamos quase normal, porque é difícil você dizer vida normal com uma pessoa com
transtorno, é muito difícil, mas uma vida próxima à vida que as outras pessoas têm... eu não
tenho essa vida, eu durmo no chão porque ele não deixa eu ter uma cama. Então eu vejo
pouca esperança, do jeito que está hoje, eu não vejo muito jeito não, sabe? Eu tenho pena de
dizer que eu agora posso estar com ele no hospital, porque ele é menor de idade... e quando
ele ficar de maior, eu vou ser obrigada a deixar ele sozinho...vou ser obrigada a vê-lo apanhar
dos outros, acontecer uma coisa de ruim com ele, até um estupro de um sujeito com outro, que
acontece isso, infelizmente. Eu vou ver meu filho nesse estado... eu não queria ver ele nesse
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estado, eu queria ver tudo diferente... por isso que eu estou no movimento Crítica Radical
porque eu acredito que um dia, não agora, mas haverá a sociedade de emancipação humana...
se a gente não conseguir lutar por ela hoje, a gente não vai vê-la construída daqui a 20, 30
anos. Então eu já estou lutando por isso hoje, fazendo minha parte... e só tem um jeito mesmo,
é acabar com o sistema capitalista porque do jeito que está, não tem como ficar.”
5.2 A história de Iris14
5.2.1 Contexto e caracterização
Iris, 57 anos, casada, dois filhos, ensino médio completo, do lar, com renda média
de um salário mínimo. Residente no bairro Colônia, que compõe a Secretaria Executiva
Regional I. É responsável pela sua irmã há 25 anos, mesmo tempo de sua doença. Durante
este período da doença, foram mais de 15 internações, sendo uma por ano.
Iris foi identificada através das chamadas do Serviço Móvel de Urgência e
Emergência (SAMU) e sua escolha ocorreu pela quantidade de chamadas realizadas a este
serviço. Mantive contato com Iris via telefone, quando ela iniciou, ainda por esse meio do
telefone, a relatar suas angústias. De forma delicada, consegui marcar um encontro
pessoalmente e desligar a chamada, mas no dia agendado, não consegui comparecer. Mantive
contato com Iris, novamente, e ela me informou que sua irmã encontrava-se em crise e que
ainda não havia conseguido ambulância.
Nesse dia, comentei que trabalhava na Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza
(SMS) e ela solicitou que eu fosse para ajudá-la. Na semana seguinte, liguei para Iris e
agendei a realização da entrevista. Neste dia, compareci e tive dificuldade em identificar a
residência da entrevistada. Depois de um tempo, encontrei-a e vale este relato, porque, no
contexto da narrativa, esta localização terá muito influência no relacionamento das redes
sociais que Iris tem. A casa fica atrás de outra residência, como fosse o quintal da casa da
frente.
A recepção não foi das mais calorosas, percebi que Iris estava com um tom
agressivo e grosseiro. Ela relatou logo de cara que o sistema de saúde não era eficiente e que
trazia muitos transtornos. Depois de conversamos por alguns minutos, ela concordou em
gravar a narrativa.
14
Iris, a deusa mensageira, sempre pronta para transmitir mensagens dos deuses aos mortais. Descia suavemente
através do arco íris que ligava o céu a terra. Representa na tese a irmã revoltada e mensageira de um serviço sem
resolutividade. As ambulâncias são mostradas, mas quando a gente precisa é dificuldade toda. Eu não tenho
nada a dizer por isso, porque não adianta...(GRAVES, 2008).
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Quando iniciei a gravação, apareceu um senhor de idade mediana, que me pareceu
sob efeito de álcool e começou a criticar o procedimento. Referiu que não passava de
enrolação e que era coisa política - infelizmente, o período político eleitoral encontrava-se em
pleno desenvolvimento. Depois destas intercorrências, consegui iniciar as entrevistas.
Iris relatou com facilidade o quadro psíquico de sua irmã, mas, por mais de uma
vez, a entrevista foi interrompida pelos filhos e neto. Como a entrevista foi realizada na casa
de Iris, isso atrapalhou bastante, mas foi possível perceber como a família sofre a influência
da doença do ente querido.
5.2.2 A Narrativa
O que eu queria saber, já até perguntei para o médico, doutor, porque ela tomando
o remédio ela entra em crise?
Bom, no começo não era muito ruim cuidar dela porque ela me obedecia. Eu dizia
faça isso, vá dormir, vá tomar banho e ela ia. Mas, agora, ultimamente, de uns quatro para
cinco anos, ela não me atende mais... ela está agressiva comigo, ela salta na minha cara. Um
dia desses, ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz... que eu mudei até os óculos.
Ficou isso aqui meu todo dolorido. Por esse motivo, eu a deixo passar a semana sem tomar
banho, porque não posso obrigar, ela me agride. É muito difícil, muito difícil mesmo. Tem
hora que a gente pensa até em abandonar, mas, como vai abandonar... vou deixar esta criatura
morrer no meio da rua? Não tenho coragem, tenho que enfrentar e aguentar até o dia que Deus
quiser.
Eu cuido dela há uns 20 anos. No começo, ela sempre ia passar o final de semana
na casa dos irmãos, mas, ultimamente, ela estava se perdendo e não acertava voltar. Então, eu
insisti e ela aprendeu meu endereço. Quando ela se perdia, ela chegava para as pessoas e dizia
que estava perdida, queria voltar para casa, que morava na colônia, na Rua Francisco Colaça,
o povo dava dinheiro para ela pegar o ônibus, a botava no ônibus e mandava ela descer na
igrejinha. Mas da última vez, ela se perdeu, ela não conseguiu voltar, passou quatro dias fora.
Andei procurando tudo, fui aos CAPS, liguei para Messejana, já estava certa de ir até lá e dar
uma busca. No hospital de Messejana, a assistente social que me atendeu disse: “...a senhora
vem amanhã que vamos resolver este problema”. Quando foi no outro dia, ela apareceu, sem
nada mais apareceu ali. Tinha sofrido um acidente, mas ela não me contou como foi o
acidente. Ela disse que fumou um cigarro, segundo ela um baseado e passou mal, acharam ela
para as bandas de Maracanaú. Por lá levaram ela no hospital e não fizeram nada, só deram o
remédio para dor, ela disse que estava com dor de cabeça.
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Eu sei que a bichinha chegou com as costas toda arranhada, o braço arranhado,
arrancado o pedaço, o tornozelo, sabe, toda ferida. Eu perguntei, ligamos para lá, minha filha
foi lá, conversou com eles lá, eles disseram que aparentemente, ela estava bem. Ninguém fez
nada não, só fez dar um remedinho para dor e deixaram ela repousando. Vieram deixar em
casa, quando foi com dois dias, ela começou a sentir dor de cabeça, chorava com dor de
cabeça. Eu levei para o Frotão, deixei chegar o dia de levá-la ao Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), porque ela faz um tratamento lá e tinha que levar ela lá, se não ela
perdia a consulta. No dia que eu levei ela para o CAPS, eu peguei um táxi e levei-a até o
Frotão. Cheguei lá, deu traumatismo crânio encefálico (TCE). Ela estava com o olho todo
roxo, ela ficou uma semana internada, passou três dias lá e veio terminar o tratamento aqui no
Fernandes Távora, porque o médico neurologista trabalhava aqui e era pertinho da minha
casa. Ela passou uma semana lá e ficou boa. Graças a Deus!
Nesta última crise, eu a internei ontem. Deste problema que ela teve, ela nunca
mais ficou boa. Só que as crises dela sempre eram assim, mas, desta vez, foi pior e eu internei.
Saí na segunda feira de madrugada, porque os vizinhos chamaram a polícia, porque ela estava
desesperadamente gritando, ultimamente ela só faz gritar, ela não chora. É tipo chorando, mas
não sai uma lagrima, é só grito e falando que os tarados tão transando com ela e começa a
gritar. Ela começou a gritar, o vizinho chamou a polícia, quando eles chegaram conversaram
comigo. Contei a história, que já tinha tentado a ambulância e não tinha conseguido, disseram
que estava na fila de espera. Eu ligava para lá e ela me dizia que tinha vários na minha frente,
eu fiquei esperando, até o dia de chegar minha vez. Só que neste dia, ela foi demais, ela gritou
dia e noite, o vizinho foi e chamou a polícia. Não foi por maldade não, chamou para ver se
eles resolviam como de fato, graças a Deus, resolveu.
Chegaram, conversaram comigo, eu contei a história, eles ligaram para a
ambulância, num instante a ambulância veio, duas horas da madrugada. Passei o resto da
manhã todinha lá em Messejana... quando no dia seguinte, às 11 horas da noite, ela foi
internada. A gente vai para Messejana porque lá é tipo um anexo, vai e fica aguardando a
vaga, aí eu fiquei aguardando esta vaga de madrugada, o dia todinho e quando deu dez horas
da noite ela saiu de lá, eu sei que o internamento dela foi feito mais de onze e meia, terminado
lá vou eu saindo para pegar ônibus no meio da rua, sozinha. Eu estava na João Pessoa, que é
ali no São Vicente de Paulo, sem conhecer nada. Ela foi para lá de Kombi, que foi cheia de
sujeito.
Antes de interná-la, eu fui falar com a assistência social para conseguir uma vaga
para falar com o médico, eu fui à médica dela lá do posto que era aqui na Álvaro de Lima,
72
mas, agora mudou lá para o Carlito. Falei com a doutora, contei todo o problema dela, ela
mudou o remédio. Mudou para Risperidona, começou a tomar Risperidona e não deu certo,
ela continuo do mesmo jeito, ela tomou quatro meses: janeiro, fevereiro, março, abril. Quando
foi agora, no começo do mês, no mês passado, fim do mês passado de julho de 2012, eu fui de
novo porque tinha um médico lá, botaram um médico plantonista. Este médico é para atender
estas pessoas, graças a Deus. Muito bom o médico, muito bom mesmo, eu falei com ele,
contei o problema todinho e ele mudou o remédio dela para um Olanzapina15
, pronto, mas
também não deu certo. Então, comecei a ligar para ambulância, porque eu não queria levá-la
para internar, porque eu sei o sofrimento, eu sei como é. Só levo quando ela fica sem comer e
sem tomar o remédio. Como ela estava... eu estava aguentando os gritos delas, os estresses
dela, porque eu sabia que era da doença. Mas, mesmo assim não consegui. Por fim, ela já não
estava mais comendo, dizia que eu colocava comida para ela em um prato de defunto. Não
estava mais tomando banho, porque a roupa também era do meu irmão que morreu e eu dei
para ela. Tudo coisa da cabeça dela, aí foi o jeito internar. Mas eu só interno no último caso.
Liguei para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Ficou a
dificuldade para conseguir esta ambulância. Acho que demorou uns quinze dias. Uns 15 dias
da primeira vez que eu liguei. Porque é tipo assim... ela queria que a gente ligasse todo dia. Só
que é aquela coisa que às vezes você fica com abuso, que dá é desgosto, a gente pensar que
vai ouvir a mesma coisa. Olhe, ligava de manhã, eles diziam assim: ligue à tarde, quando eles
mandavam ligar à tarde, eu não ligava, ligava no outro dia, entendeu. Eles diziam: ligue à
noite... eu ficava comigo... se ligam de dia eles não vem, a noite é que eles não vêm mesmo.
Eu desistia de ligar, eu nunca liguei à noite, eu já tenho levado ela à noite, mas sabe como eu
levo? Tinha um rapaz que é primo do meu marido que trabalha no SAMU, ele é motorista e
ele conseguia, falava com o médico lá e conseguia a ambulância. Era assim.
Mas, eles mesmos não mandavam o socorrista não. Vinha o motorista. Uma vez
veio o motorista e uma enfermeira, eles me deram aquela... aquele bichinho para conter o
sujeito. Eles ficaram olhando, eu pedi, me ensinem pelo menos como é que a gente faz. Ela
estava lá na rua, não a deixei nem entrar no portão, para exatamente facilitar para eles... uma
criatura, ela é magrinha, ela não mete medo em ninguém. Ela só é estressada com a gente,
porque é da família. Ela não agride ninguém de fora não, aliás agride, mas com palavras, ela
só agride a gente. Deram-me estas ataduras para colocar nela, mas eu não consegui... começou
a me agredir, tive ajuda da minha sobrinha, minha cunhada, um policial que mora aqui e meu
15
Esquizofrenia e outras psicoses que apresentem delírios, alucinações, hostilidade e isolamento emociona
(MOMENTO TERAPÊUTICO).
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filho para poder conter ela... e eles olhando lá, porque se eles tivessem chegado, conversando
direitinho, ela tinha ido. Esta foi a penúltima crise dela.
Nessa última foi numa boa. A polícia veio, falou comigo, eu contei a história,
contei todinha, aí eles solicitaram o SAMU. O SAMU veio rapidinho, disse que tinha três
ocorrências, mas não deu para ele atender três ocorrências não, porque deu meia hora, eles
chegaram. O rapaz ligou, eu acho que era uma hora, antes das duas horas chegaram. Ela
estava do lado de fora, porque quando ela começa a se estressar, ela abre a porta, pode ser a
hora que for, de madrugada, duas, três horas. Ela abre a porta e fica rodando os quintais, por
isso incomoda os vizinhos. Ela abre a porta e fica gritando no quintal, eu fecho tudo para ela
não entrar e não se esconder debaixo das coisas, porque a menina já tinha ligado para
ambulância, só que ela não tinha ligado para ambulância, tinha ligado para polícia. Eu a
deixei no quintal e fui lá falar com a polícia, eles ligaram e ambulância veio.
Quando eles chegaram, quando a moça chegou, eles ficaram com medo. A gente
vê mesmo na televisão que eles sofrem atentado, os sujeitos os agridem e eles ficam com
medo. Mas eu disse que eles poderiam ir que ela não fazia nada. Só que ela estava atrás das
pedras, tinham umas pedras ali atrás. “Vixe, mas junto com as pedras?” Não, podem ir que eu
garanto que não faz nada não. Ela faz comigo, mas com vocês ela não faz não, mas eles
tiveram medo. Eu disse: deem-me uma lanterninha porque lá é escuro, a gente vai e fui na
frente, cheguei lá, ela quis me agredir e eu disse: calma ninguém vai fazer nada com você,
tenha calma, saia daqui... ela começou a me esculhambar, querendo pegar em um pau, sabe.
Mas, se a gente ficar com medo é pior, eu não tenho medo dela, eu não tenho, porque eu sei
que ela não vai fazer nada comigo, mas a gente nunca sabe, mas eu tenho confiança. Aí,
quando eles viram que ela não era tão agressiva, eles chegaram, se aproximaram e disseram,
vamos. Ela disse: vou não, vou não, podem ir embora que eu não vou. Vamos, não vamos
fazer nada com você, vamos para o médico. Pegaram na mãozinha dela e ela foi numa boa,
amarraram as ataduras e foi tudo numa boa mesmo.
A família é meio incompreensiva, eles se estressam, reclamam, não dão muita
atenção a ela. Ela não aceita que ninguém converse com ela, a gente vai conversar com ela:
“O que foi tia?” Meu filho vai perguntar, ela responde: “não quero conversar contigo” e
começa a chamar palavrão, a gente tem de sair de perto e isolar ela, entendeu? Se a gente
tenta conversar, ela acha ruim e chama palavrão com a gente, esculhamba a gente e se a gente
não conversa, ela reclama: “vocês não ligam nem para mim. Não prestam nem atenção
quando eu estou chorando”. Se a gente comentar que ela esculhamba, a situação piora. A
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gente tenta isolar porque é isso que é melhor para ela e para a gente. Pode não ser para ela,
mas para a gente é o melhor.
As meninas do CAPS vêm aqui e lá no CAPS ela é bem tratada. Não tenho o que
reclamar do CAPS. As meninas todo mês vêm dar uma injeção nela, a enfermeira veio, eu
marquei uma consulta com este médico que chegou lá. Elas vieram buscar ela na Kombi, ela é
bem tratada lá, ela é que não gosta de ir, não gosta de fazer a terapia, não gosta nada disso. O
que eu queria saber, já até perguntei para o médico: “doutor, porque ela tomando o remédio e
entra em crise?” Mas ninguém me responde e nem eu sei o porquê. Porque ela toma, eu sou
consciente que eu dou o remédio, eu a vejo tomando e ela entra em crise. Eu não sei por que.
Só que depois que ela entra em crise, ela só fica boa se ela se internar. Não fica boa as minhas
custas, quer dizer, eu ajudando aqui em casa, só se for ao hospital.
Uma coisa importante que eu vejo atualmente são as formas de assistência dos
hospitais, quando o sujeito melhora um pouco, eles jogam para casa, teve uma vez que
fizeram isso com ela, ela melhorou um pouquinho e botaram para casa. Passou foi tempo para
ela ficar boa. Não sei o que poderia ser feito, mas isso aí eu acho um ponto muito negativo,
porque, às vezes, a pessoa não está completamente boa. Ontem mesmo eu vi uma menina lá
que estava de alta, a menina toda impregnada, de olho duro, eu pensei que ela estivesse se
internando, ela estava saindo. Inclusive ela morava até no interior, estava tentando fazer uma
ligação para conseguir chamar o carro de lá, foi a maior burocracia. Do CAPS eu não tenho
muito que reclamar, porque o CAPS é que está me ajudando da maneira que eles podem. O
difícil é porque tem muita gente, mas sinceramente, eu não tenho o que reclamar do CAPS. O
médico custa muito a ver o sujeito, a última consulta dela foi marcada com oito meses, quer
dizer, vai ser em dezembro ainda, mas na hora que a gente precisar do remédio, a gente vai
falar com o outro médico, só que o outro médico não pode fazer nada. Para a gente conseguir
falar com o médico da pessoa, a gente tem que marcar uma consulta extra. Para isso, você
marcar uma consulta com a assistente social, vai dizer tal dia, vai lá fala com a doutora,
quando é que a senhora pode atender, ela marca para tal dia. Eu acho as consultas de lá e os
retornos muito prolongados. Se o sujeito tiver em crise, amanhã e a gente chamar vamos ao
médico? Eu não posso fazer isso, entendeu? Eu vou receber o remédio, é um remédio que
passa com a assinatura dele, mas ele não pode mudar nada. Nem o horário do medicamento
eles podem mudar. Só quem pode é o médico do sujeito e isso está certo. Só que eu acho que,
como eu lhe disse, o retorno é muito demorado.
Última consulta dela foi trinta de três e o retorno está marcado para dezessete do
doze. No dia trinta tem uma consulta extra que eu pedi e depois só em dezembro. Fazendo as
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contas do mês de abril são oito meses. Não tem condições! Não era assim, o máximo entre as
consultas eram de três meses. Aí passou para quatro, passou para cinco e está assim agora. Ela
tentou fazer terapia, mas ela não quer, foi uma única vez e não quis mais ir. Ela diz: “não vou,
eu não sei de nada, eu sou burra”. Eu digo: “não, mulher, mas vamos ao menos para se
divertir. Tu fica lá e eu fico contigo”. Só uma vez que ela foi. Está aqui o remédio que ela está
tomando olonzampina, quinze miligramas não, alguém deve ter botado errado, porque ela
recebe uma caixa com dez miligramas. Estou com a receita aqui, mas ela recebe outra caixa
com cinco miligramas, são quinze no total. Ela toma dez miligramas durante a manhã e cinco
à noite e à noite toma mais dois Haldol de cinco miligramas, não serve de nada, é mesmo que
tomar um copo d’água. Não dorme um cochilo ontem ela passou o dia todinho em pé lá no
hospital, passou a manhã, a madrugada e o dia em pé, eu não sei como é que ela aguenta.
No hospital, a assistente social pega os dados, faz algumas perguntas e anota lá,
depois a gente vai para o médico. Fui bem tratada e ela tomou uma injeção e logo ela
melhorou comigo, ela se acalmou, ficou minha amiga, conversou comigo. Mas, o estresse
dela com esse negócio de gritar, de chorar não passaram, ontem até a hora dela se internar não
tinha passado. Comigo ela já esta numa boa, já tinha passado a raiva de mim.
Eu acho o seguinte: que mesmo que eu tenha alguma coisa a dizer, não vai
adiantar nada. Porque nós não somos maioria e a gente fala, fala, porque o que a gente vê na
televisão são as ambulâncias sendo mostradas e os anjos da noite socorrendo não sei quem. E
quando a gente precisa é uma dificuldade toda, eu não tenho nada a dizer por isso, porque não
adianta nada. Bem que eu teria, mas eu não vou dizer, porque não vai adiantar, não vai
adiantar o meu pedido, bem que eu queria dizer “faça isso, eu gostaria que fizesse assim”,
porque não adianta. Inclusive eu até me estressei com o senhor, mas é porque faz raiva
mesmo, a gente está precisando de uma coisa e não ser atendido. Eu teria bem o que dizer
mesmo, mas deixe para lá, não adianta, não vou reclamar porque não adianta.
5.3 A história de Orfeu16
5.3.1 Contexto e caracterização
Orfeu, 31a, solteiro, graduado em Letras, fala quatro idiomas, é professor de
línguas. Tem uma renda média de quatro salários mínimos, reside sozinho no bairro Damas,
16
Orfeu, poeta e médico. Era o poeta mais talentoso que já viveu. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam
de voar para escutar e os animais selvagens perdiam o medo (GRAVES, 2008). O entrevistado era um sujeito
estudioso, graduado em Letras, poliglota e professor de línguas.
76
Secretaria Executiva Regional IV. É responsável pela irmã que apresenta transtorno bipolar e
vem apresentando crise constante há quatro anos.
O contato com Orfeu foi através do relatório do SAMU e a sua receptividade à
pesquisa nos facilitou coletar sua narrativa. No momento do contato, sua história mereceu
atenção, pois relatou que não era uma única irmã e sim duas. Comentou que as duas irmãs
moravam sozinhas e que uma cuidava da outra.
Retornei à ligação e agendei a entrevista que ficou marcada para uma tarde,
lembro que Orfeu relatou que deveria ser na hora exata, pois seria no intervalo de suas aulas e
que teríamos duas horas para a conversa. A primeira dificuldade encontrada foi na localização
da residência de Orfeu. Ao chegar, fui bem recebido, preparei tudo para começar e iniciei a
coleta da narrativa.
Orfeu, como professor e estudioso, colocou-se à disposição para relatar tudo
novamente, pois não consegui captar os detalhes relatados no primeiro momento. Tudo
transcorreu normalmente e como Orfeu foi bem disponível, solicitei que fizesse o contato com
sua irmã para que eu coletasse a narrativa da mesma e tudo ocorreu bem.
5.3.2 A narrativa
Eu prefiro acreditar não numa cura completa... mas no tratamento com a família.
Eu lembro que desde pequena, entre cinco e dez anos, ela já apresentava algumas
anomalias em termos de comportamento. Ela nunca foi uma criança totalmente carinhosa ou
afetuosa, quando a gente levava à escola, ela não admitia de forma alguma que ninguém
pegasse na mão dela para atravessar a rua ou para caminhar nas avenidas mais perigosas. Ela
sempre demonstrava ter uma aversão, nojo, dos irmãos ou da mãe, não queria que ninguém
pegasse na mão dela ou tocasse nela. Até mesmo quando minha mãe demonstrava um
carinho, pegava no cabelo dela, ela sentia nojo, corria onde houvesse água para se lavar e isso
foi ficando cada vez mais comum.
Quando maiorzinha, entre 12 e 14 anos, ela começou a demonstrar que era
intolerante a qualquer tipo de ruído ou conversa, não suportava escutar a voz de algumas
pessoas da família, ela se incomodava. Quando ela estava no quarto dela e tinha alguém
conversando na sala, ela começava a bater na parede com o pé, com a mão, seja com o que
fosse, para que parasse de falar. Neste mesmo período, ela desenvolveu um problema na
coluna vertebral, apresentou um desvio formando tipo um `S´ e uma das minhas irmãs, que
hoje mora fora, foi quem fez o acompanhamento de todo o tratamento dela sobre esta questão.
77
Ela tinha muita vergonha deste problema, porque era algo que a gente percebia. Ela já tinha
consciência que não haveria solução, poderia melhorar um pouco, mas não tinha solução e
que ela ficaria com o tronco um pouco atrofiado. E isso a deixava com uma vergonha muito
grande. É tanto que quando o médico falou que o problema dela era quase sem solução, ela
ficou insistindo para fazer uma cirurgia. Ele disse que era possível, mas era de muito risco e
que talvez, mesmo com a cirurgia, ela não ficasse totalmente recuperada, totalmente perfeita.
Mas, ela insistia e o problema se agravou porque ela conseguiu uns três aparelhos para usar,
mas nunca usou o aparelho de forma correta. Isso era uma coisa que me incomodava muito,
ela terminava de tomar banho, se vestia e não botava o aparelho. Ela queria brincar, correr,
como toda criança, queria se divertir, queria brincar, andar de bicicleta, subir no muro, pular,
mas ela não podia, ela tinha que ter todo esse acompanhamento. Precisava usar o aparelho
direto, mas ela nunca usou nenhum dos três que ela conseguiu então, o problema dela se
agravou muito. Hoje, ela tem o tronco muito atrofiado, devido à questão da coluna.
O desenvolvimento do problema dela atual ocorreu depois dos 16 anos de idade,
quando ela já era uma mocinha mesmo e tinha esse problema, eu acredito que esse problema
da coluna afetou muito também. Apesar de outros problemas, para mim é como se fosse um
somatório de problemas que foram se acumulando e teve um estopim. A primeira crise
ocorreu com 16 anos, nesta época, a minha mãe e minha irmã a levaram para a igreja,
apelaram primeiro para a questão da religião. Ela desde a primeira crise é uma sujeito que
tinha alguns momentos de violência, sendo necessário levá-la ao hospital, mas ela não passou
por internamento na primeira crise, foi só medicada.
Nas últimas crises, as características apresentadas foram bem semelhantes, sendo
que nas duas últimas, ela não foi tão violenta como as do meio do processo. Como a família é
grande, cada um acredita numa forma de tratar particular, uns acreditam mais na questão da
religiosidade, apelaram para fé e para o exorcismo, outros acreditavam mais no tratamento da
saúde, através da medicação, acompanhamento e internamento. Já no meu caso, eu prefiro
acreditar não numa cura completa, até porque eu acredito que o problema também seja
genético pelo fato de ter uma avó e um primo que tem o mesmo problema. Mas, eu acredito
no tratamento com a família. No momento de crise de violência, acredito que seja necessário
tomar uma medicação para se acalmar, mas eu não acredito na questão da recuperação
completa e, também, não acredito no tratamento com internação, no isolamento.
Ela já fez um tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mas
resolveu abandonar o tratamento. Como minha mãe deixou a casa, não conseguiu mais lidar
com a situação, porque ela já é uma pessoa de idade, ela ficou morando com minha irmã, que
78
também tem problema, mas, resolveu não tomar mais nenhum medicamento. Ela fazia o
acompanhamento, mas, resolveu desistir por conta própria. Ela é uma que inicia muitas coisas
e não termina, como: curso de idiomas, pré-vestibular, até mesmo trabalho, ela já trabalhou.
Ela trabalhou em uma empresa grande como a Norsa (indústria de bebidas), representante da
Coca-Cola no Ceará, mas, não passou muito tempo. Ela ficou cerca de dois meses, nesse
período, ela chegou até morar comigo, dividindo aluguel, mas, é uma pessoa muito difícil
para conviver, porque ela é muita cabeça dura mesmo, as coisas dela são do jeito dela. Ela
chegou a alugar uma casa para ficar aqui perto mesmo e trabalhava durante a semana, de sete
às dezessete horas e passava o resto do dia dormindo, o final de semana todo dormindo. E
retomava as atividades na semana seguinte, nesse período, ela trabalhava e fazia o curso de
inglês aos sábados. Logo após sair do trabalho, mais ou menos duas ou três semanas após, ela
entrou em crise.
De fato, eu não confio no tratamento com isolamento, internação. Os CAPS, eu
aprovo, até o ponto em que eles tenham espaço para se ocupar com alguma atividade, para ter
um acompanhamento com psicólogo, com psiquiatra, com a questão da medicação, e reprovo
no sentido de misturar os sujeitos que são dependentes químicos, usuários de drogas, com
sujeitos que têm apenas crises de sofrimento psíquico. Eu, particularmente, não acredito numa
cura total, mas, na amenização do problema a partir do tratamento adequado que, para mim,
seria um acompanhamento com a família. A família tem que ser muito bem esclarecida para
lidar da forma mais correta possível com o problema. Compreender o sujeito, controlar,
porque em alguns momentos a gente chega a ter raiva, outros momentos a gente chega a ter
pena. Controlar esses sentimentos, visto que a gente se considera pessoa normal diante deles
que têm um problema que consideramos anormais. Então, a gente tem que se comportar -
diante de uma crise – de uma forma adequada, mais adequada possível para não magoar o
sujeito, nem de forma física e nem psíquica.
Eu não concordo com a questão dos hospitais, que fazem tratamento com
internação, porque, pela experiência que eu tenho visto, eles não estão realmente em condição
de tratar. As estruturas físicas, no meu ponto de vista, não são adequadas para tratar um
sujeito desse tipo, falta alimentação de qualidade, terapeutas ocupacionais, recurso material,
para criar atividades que envolvam esses sujeitos e profissionais mais qualificados, porque
alguns dos funcionários deixam muito a desejar. Funcionários que não tratam o interno com
amor, que chegam a “xingar” com palavrões, que eu cheguei a ver, funcionários que negam
água.
79
5.4 A história de Hestia17
5.4.1 Contexto e caracterização
Hestia, 24a, solteira, universitária, tendo como única ocupação o estudo. Renda
média de um salário mínimo, residia com sua irmã que apresentava transtorno bipolar há 12
anos, no bairro Messejana, Secretaria Executiva Regional VI. O contato com Hestia se deu
através de seu irmão Orfeu e nosso objetivo inicial era coletar a narrativa da irmã que
apresentou a situação de crise psíquica.
Ao chegar à casa de Hestia, esta iniciou o seu relato de vida sem solicitação, como
todas as pessoas que convive com alguém em sofrimento psíquico, a mesma encontrava-se
ansiosa para descarregar seu sofrimento.
Constatei logo no início que Hestia também apresentava algum sofrimento
psíquico, durante sua narrativa revelou que sofria de síndrome do pânico e que já havia sido
internada no Hospital Mira y Lopes. Mas, procurou logo registrar que estava curada e agora
só dedicava-se a cuidar da irmã. Mesmo na ânsia de relatar seu sofrimento, Hestia não foi
descuidada, no momento de assinar o Termo de Consentimento, solicitou para não colocar o
número completo de seu documento.
5.4.2 A narrativa
No meu caso é diferente, porque eu sei o que eu faço, eu sei o que eu estou fazendo
e ela esquece que ela está em si e ela não faz as coisas certas.
Eu lembro que ela fala que foi pela perda do meu irmão que cometeu o suicidou.
Ela fala que não aceitou, a gente era criança e ela mal falava. Ela se fechava, não queria falar
com ninguém. Última crise dela foi no mês passado, ela chegou aqui não queria comer e ficou
alterada, querendo bater. Eu terminei chamando a polícia para ela, porque ela estava muito
agressiva.
Geralmente, nas situações de crise, eu chamo a ambulância, mas não vem. Às
vezes preciso chamar duas, três vezes, mas sempre não vem. Neste último caso, chamei a
polícia porque ela estava muito agressiva, foi o jeito chamar. Nas situações de crise, eu já
chamei bombeiros, foi quando ela estava trancada não queria abrir a porta. Neste dia, eu
17
É a deusa grega dos laços familiares, simbolizada pelo fogo da lareira (GRAVES, 2008). Representa aqui a
irmã dedicada que cuida da irmã e quando ela está iniciando a crise “eu corro faço um suco de maracujá, eu vou
procurar um erva para fazer alguma coisa para a calma ela”.
80
fiquei assustada, a gente fica assustada de qualquer forma, mas a mulher me disse que não
tinha como conter.
Eu já estou bem acostumada a lidar com este tipo de situação, porque minha avó
tinha problemas mentais, a gente sabe que a pessoa fica nervosa e tudo, mas, a gente fica
assustada. Vê que a pessoa não esta fazendo a coisa certa, a gente pede para a pessoa fazer
uma coisa e ela faz o contrário. Aí, a gente ver que não é uma atitude de pessoa normal.
Inclusive eu já tive muito nervosa, que fiquei assim muito assustada, muita alterada e isso
acontece com todo mundo. No meu caso, é diferente, porque eu sei o que eu faço, eu sei o que
eu estou fazendo e ela esquece que ela está em si e ela não faz as coisas certas. A gente diz
faça isso, ela faz o, tipo não sei, coisa paranormal, não sei.
Ela até fazia um tratamento no CAPS geral da Secretaria Executiva Regional
(SER VI), eu sempre disse para ela, tem que se tratar, não pode passar a noite toda acordada.
A gente quer dormir, os vizinhos querem dormir e ela passa a noite acordada. Isso incomoda,
com certeza, tanto a mim, que estou aqui dentro de casa, quantos aos vizinhos que tem
criança, tem pessoas idosas. Quando ela está assim, ela fala muito alto, chega a incomodar,
isso é chato. Quando percebo o quadro dela alterando, eu corro faço um suco de maracujá, eu
vou procurar uma erva para fazer alguma coisa para acalmá-la. Graças a Deus, tem dado
certo, pois quando eu vejo que ela esta alterada, vou ali fazer uma coisa com alface, ou alface
e mel para acalmá-la. Ela toma e é instantâneo, ela já fica calada, calma.
Atualmente, ela não toma nenhum medicamento. Na última crise que ela foi para
o hospital eu não sei, porque das vezes que levaram para medicá-la, eu não fui. Às vezes, a
gente não está com condições de ficar com a pessoa em casa, ela fica muito assim, elétrica,
não para, não sei explicar, só sei que é difícil. Não sei porque ela deixou o tratamento no
CAPS, aquele ambiente é pesado e eu não gosto de está ali, não sei. Não gosto de está em um
ambiente daquele. As psicólogas já vieram aqui falar com ela, mas, é uma coisa que não
depende só do CAPS, depende muito dela. Porque para a pessoa se tratar, a pessoa tem que
querer, depende primeiro da pessoa, mas, quando a pessoa não quer o tratamento, fica difícil.
O hospital deixa a desejar, não sei se é falta de profissionais. Assim, quando a
pessoa esta precisando de um tipo de assistência, a gente quer uma ajuda de uma pessoa para
orientar, o que devo fazer quando ela está assim? E não tem, fica a desejar. Tem o problema
da alimentação, a alimentação de lá não é legal. É um local que têm pessoas delinquentes,
pessoa que já mataram, já praticaram muitos erros na vida. E, quando a gente vai e fica perto
dessas pessoas, é estranho. Porque o comportamento delas é diferente, quando você fica perto
delas e olha para elas, a gente ver que não é um olhar normal. É um olhar assim querendo
81
agredir você, agridem a gente com o olhar, é ruim esse ambiente. Se eu tivesse em casa seria
melhor, porque a gente não consegue dormir, não consegue fazer nada que a gente gosta, não
é um ambiente sadio.
Eu lembro que fiquei alterada, fiquei nervosa e fui tomar uma medicação, depois
dormir. Bem, o que eu lembro que foi o estresse do dia a dia, eu ainda não cuidava
diretamente da minha irmã, mas eu auxiliava em alguma coisa. A gente fica assim, pelas
raízes familiares, árvore genealógica e tudo. O hospital é ruim porque é um ambiente com um
monte de pessoa, sei lá, eu acho até que seja um preconceito, que eu tenha preconceito com
esse tipo de pessoa. Porque uma pessoa que se comporta normal, como qualquer outra pessoa,
está no meio daquele tipo de pessoas, é ruim.
Eu percebo a pessoa que está com uma boa intenção e qual a pessoa que já está
querendo uma ajuda, mas, daquele tipo de ajuda que a gente fica sempre com o pé atrás, com
a intenção da pessoa. A minha mãe foi uma pessoa que me ajudou, eu fui levada pela família,
fizeram uma triagem, todo aquele processo. Fizeram um monte de pergunta e eu respondi,
eles ficam fazendo muitas perguntas, eu acho até chato. Que tem pergunta que não precisava
nem fazer, porque ele está vendo a situação. Quando eu estava lá, a minha mãe me visitava,
outra vez foi o meu irmão, meu pai. Mas, a pessoa que eu mais gostava quando me visitava
era a minha mãe e foi também uma vizinha, que já chegou até a falecer.
Hoje, isso já passou, não significa mais nada, porque o que passou, passou. Não
vai alterar nada, porque o que eu estou vivendo hoje é uma coisa diferente e o passado não vai
me afetar em nada. Porque o passado já passou. A perspectiva de vida é com certeza crescer é
“galgar” meu caminho. Eu não preciso ficar me martirizando, porque eu vivi isso, porque
minha família fez isso comigo, e sim criatura tu vai ficar nessa até quando? Sim, tu não vai
tirar proveito de nada deste fato para sua experiência de vida?
5.5 A história de Afrodite18
5.5.1 Contexto e caracterização
Afrodite, 33a, solteira, ensino médio completo, vendedora ambulante. Renda
média de um salário mínimo, residia com sua irmã no bairro Messejana, Secretaria Executiva
Regional VI. Doente há 12 anos, com histórico de várias crises psíquica e três internações
psiquiátricas.
18
É a deusa do amor, da beleza e da sexualidade na mitologia grega (GRAVES, 2008). Representa a
entrevistada, pois ela se referia muito ao amor.
82
Após entrevistar Hestia, solicitei a permissão para falar com sua irmã e o primeiro
contato foi meio receoso, tanto de minha parte como de Afrodite. Ao chegar à sala, Afrodite
perguntou a sua irmã se eu era da saúde e após explicar meus objetivos, ela sentou e
concordou em conversar. Como vinha da minha atividade profissional, encontrava-me com
uma blusa que tinha escrito enfermagem e ela comentou que enfermagem era da saúde.
Depois de realizado os trâmites burocráticos, iniciei a coleta da narrativa que no
caso dela, tornou-se quase uma entrevista, pois a mesma apresentava resposta sucinta,
necessitando ser estimulada a aprofundar a narrativa. Depois de coletados todos os seus
relatos marcados, principalmente, pela preocupação do sujeito com a mãe, ela foi até o quarto
e voltou com seu artesanato e me deu de presente. Tentei pagar pela sua arte e ela não aceitou
e ainda me deu uma foto sua, segundo ela só poderíamos ser amigos se eu tivesse uma foto
dela. Insistir que me tonaria seu amigo mesmo sem a foto, mas, a mesma não aceitou e tive
que trazer a foto que está guardada junto com os Termos de Consentimento.
5.5.2 A narrativa
Eu tenho 34 anos e tenho o diagnóstico de transtorno bipolar...
Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Eu fiquei
perturbada. Todos nós aqui somos da igreja Batista e vamos sempre à igreja, sempre buscar a
Deus. Desde este dia em diante, fiquei perturbada, perturbou meu humor, eu fiquei assim. A
minha mãe teve que tomar diazepam19
também, ela passou apresentar um batimento forte,
porque ela trabalhava muito e fazia calo, assim como eu. Quando eu começo a trabalhar,
começa a dá calo nos meus pés, eu fui criada trabalhando igual a minha avó. A minha avó saia
vendendo as coisinhas dela, chiclete, bombons, essas coisas. Eu fui criada trabalhando e não
me canso não. Eu tenho 34 anos e tenho o diagnóstico de transtorno bipolar, tem vezes que eu
fico só chorando, porque eu não sou uma pessoa violenta, eu sei me comportar, eu sei entrar,
eu sei sair. Eu só sou nervosa.
Última crise? Lembro não. Eu só sei que fico lembrando-me das coisas ruins que
acontecem, das coisas ruins que eu vejo. Assim como se alguém estivesse me perseguindo. Eu
fico com a cabeça toda baratinada, tem vez que eu saio para vender as coisas e fico com uma
tontura. O povo diz “minha filha, quando você tiver com estas tonturas não saia para vender”.
Às vezes eu vejo as coisas, as coisas ruins e as coisas boas que acontece, eu já ouvi vozes.
19
O diazepam é usado no tratamento de estados de excitação associados à ansiedade aguda e pânico, assim como
na agitação motora e no delirium tremens (MOMENTO TERAPÊUTICO).
83
Quando eu estou assim, quem cuida de mim? É Deus! Aqui na terra é a família, a
família que gosta da gente. É a minha irmã quando está em casa, que cuida é quem está em
casa. Eu sei que não preciso ir para nem um local, porque aqui é meu lugar, o lugar certo. Eu
não estou fazendo nenhuma coisa errada, não estou maltratando ninguém. Eu me controlo, eu
sei me controlar. Eu tomo um chá de erva doce e eu consigo dormir, eu não atrapalho a vida
de ninguém. Eu concordo com o pessoal da saúde, mas não concordo em tomar estes
remédios velhos, eu tomava sete tipos de remédios e ficava toda impregnada assim [fez a
forma].
Eu não preciso dos remédios, eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida
vou precisar, porque pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a
Deus, não preciso mais. Eu continuo fazendo o tratamento no CAPS, só que vou quando eu
estou precisando mesmo, quando eu estou precisando conversar eu vou lá. Nesse mês, eu
ainda não fui nem uma vez. Eu já me desintoxiquei dos remédios porque eu só dormia com
eles, vivia com a cabeça inchada feita um bicho, toda suja, sete remédios: clorpromazina20
,
diazepam, menino era tanto remédio do cão que eu não tomo mais não. Eu só tomo chá de
erva doce e consigo dormir. Depois de deixar os medicamentos, só tive uma crise, depois do
medicamento, foi só uma crise grave. Eu durmo, mas eu fico assim só chorando, só pensando.
Os pensamentos negativos vêm porque todo mundo pensa ruim, mas eu tento controlar para
não fazer mal A ninguém e nem a mim mesmo, porque eu fico só chorando pensando nas
coisas ruins.
A minha mãe é a mãe que mais cuida da gente. A mamãe se preocupa tanto que
entra em choque, ela se esquece de comer, ela passa cinco dias sem dormir. Isso também me
abala. Oh! Meu Deus, a mãe não merece isso, nem uma pessoa no mundo merece sofrer tanto.
Ela sofre. Eu já tentei me aposentar três vezes, mas não consegui, por causa deste engancho
de ter que morar só. Eu preciso, eu necessito porque quando eu tiver velha, coroca...kkkk.
Quem vai cuidar de mim, imagino isso para o futuro, porque vendedora autônoma, as vendas
tem dia que não vende dez reais, dá para fazer o que com dez reais? Fico preocupada, isso fica
assim preocupando minha cabeça. Às vezes eu fico desorientadinha, sem saber o que fazer.
Eu estava vendendo as coisas e o meu sobrinho disse que eu coloquei o dinheiro no aparelho e
dei a descarga, eu estava tão perturbada do juízo de um jeito que fiz isso. Eu não sei o que eu
fiz, ele disse que eu tinha botado o dinheiro no aparelho, não fui eu, foi uma força.
20
Clorpromazina está indicado no controle de manifestações de desordens psicóticas; no controle de náusea e
vômitos; no alívio da agitação e apreensão antes de cirurgias; na porfiria aguda intermitente; como adjuvante no
tratamento de tétano (MOMENTO TERAPÊUTICO).
84
Quando eu estou em crise, eu peço muita força a Deus, eu não sou violenta, nunca
na minha vida eu encostei a mão em ninguém. Graça a Deus! Eu só fico me tremendo assim,
somente o nervosismo, assim cansada. Eu não gosto de ver as coisas que eu vejo de errado no
mundo, ai isso me preocupa. A gente ver que ninguém vem assim para ajudar, por exemplo,
minha senhora, está com peso, posso ajudar? Porque hoje em dia não existe mais
hospitalidade, eu sofro com isso. Porque eu não gosto de ver isso, isso é horrível. Não chega
ninguém, chega para beber seu sangue, tomar café. Cadê a merenda? Testemunha de vista,
meu avó que morreu, ele dizia testemunha de vista é a pior coisa que existe em sua casa.
Você está na sua casa, passa o dia trabalhando, vai fazer sua comida, quer ter um
sossego, paz, chega gente. O que tem para comer? Abre a geladeira. Testemunha de vida é
isso, entendeu? O que você comprou? [murmurou] ela foi para onde? Quantas sacolas ela vem
na mão? Fica assim, isso me perturba muito. Eu só sou nervosa, o meu problema é só
nervosismo.
5.6 A história de Hera21
5.6.1 Contexto e caracterização
Hera, 54a, casada, ensino fundamental incompleto, do lar. Vivia com uma renda
familiar de um salário mínimo, residia com o marido na Granja Portugal, Secretaria Executiva
Regional V.
Mesmo agendando a visita com Hera, quando cheguei à sua residência, ela estava
chegando com uma filha e ficou surpresa com minha chegada. Solicitou-me um tempo para
um rápido descanso para que pudéssemos iniciar a conversa. O contato com Hera foi mediada
pelo genro, já que foi ele que fez o contato com o SAMU e seu relato me marcou por dois
motivos: primeiro por ser a primeira crise e o segundo pela violência que marcou a situação.
Hera organizou umas cadeiras na garagem e ficamos conversando por uns quinze
minutos antes de iniciar a coleta. Iniciei a coleta e logo ela se emocionou, vale ressaltar que
durante a conversa informal, a filha de Hera estava presente e no início da gravação da
narrativa, ela se ausentou e acredito que isso fez com que Hera ficasse à vontade para se
21
É a deusa do casamento, esposa de Zeus, rei dos deuses, e rege a fidelidade conjugal (GRAVES, 2008).
Retrata aqui a mulher dedicada que não quer ver seu marido sendo maltratado.
85
expressar. Durante alguns momentos da entrevista, Hera se emocionou e parou por alguns
momentos, mas não ocorreu choro.
5.6.2 A narrativa
Mais como eu digo, não quero que ninguém o maltrate, ele fez o que fez, mas eu não
quero que ninguém maltrate...
Tudo começou quando viajamos para Canindé. Daí para cá, foi muito sofrimento
para mim. Sofri muito lá no Canindé, porque foi nesse dia que nós nos separamos, lá na
rodoviária do Canindé. Porque ele quis me matar, ele bateu em muita gente lá. A morte que
ele diz ter feito, ele não fez, ele diz para todo mundo, mas ele não matou ninguém, porque eu
já fui lá me informar e não tem essa morte, mas bater em muita gente lá, ele bateu. Daí para
cá, ele vem assim violento, os filhos tiveram que se esconder porque ele queria matar todos.
Meu menino mais novo teve que sair daqui por causa dele, porque queria matar ele, a mulher
e o menino, desde esse dia, ele ficou desse jeito.
Agora recentemente, meu menino conseguiu pegar ele e levar para internar, mas
ele está marcando o menino, disse que o menino está jurado para morrer. Eu não sei como vai
ficar o caso dele, porque os médicos não dizem, quando se pergunta, um diz que ele não tem
nada, outros diz que tão cedo ele não vai sair. Porque tem que fazer estes exames,
eletroencefalograma (EEG), para saber como vai ficar. Ele é muito revoltado com as pessoas,
principalmente com minha filha, ele não era assim, ele ficou nessa situação agora, ele era uma
pessoa boa, uma pessoa normal, ele ajudava as pessoas. De repente aconteceu isso.
O motivo é o seguinte: ele tem um filho que ele não se une desde os dez anos de
idade, que não se une um com ele. Quando chegamos ao Canindé, na casa da madrasta dele,
ele ficou 12h em ponto em cima de uma pedra gritando pelo nome do menino. Onde você
está? O que você está fazendo? Ele não quer que ninguém fale o nome deste filho, mas nesse
dia aconteceu isso, dai para cá, ele passou fazer as coisas que o filho fazia, ele passou fazer
idêntico ao filho, ele detestava pessoa com a faca na mão, ele só estava querendo andar
armado, do jeito que meu filho colocava a faca no coes, ele estava botando. Nos lugares onde
meu menino perdia dinheiro emprestado, que era para me visitar no interior, porque eu estava
muito mal, ele passou em todos os cantos pedindo dinheiro, dizia tudo que meu menino dizia,
as coisas ruins que meu menino dizia ele estava dizendo.
Por esse motivo, a gente está achando que o meu filho não existe mais. Inclusive
nesta semana, a gente vai andar nos hospitais, no Instituto Médico Legal (IML), para ver se a
gente encontra alguma coisa sobre ele. Porque o meu marido foi naquela igreja universal do
86
centro e eles disseram para ele que ele estava com um encosto de um jovem que perseguia ele,
então, esse jovem para nós é ele. Está com mais de um mês que um amigo meu viu meu filho
e ele disse que ele estava falando bem arrastado, só os ossos, ele disse para este meu amigo
que só ia sossegar quando tirasse a vida do pai dele. Diz que ele não fala em outra coisa,
somente isso.
O pai dele expulsou porque ele queria tirar as coisas da gente para gastar, ele
queria obrigar a gente ficar dando dinheiro a ele para ele usar drogas e a gente nunca aceitou
esse tipo de coisa. A polícia não faltava na minha porta, quando não era a polícia era a gangue
fazendo quebradeira na minha casa atrás de matá-lo, eu não vou encobrir isso, eu tenho que
dizer. Então o pai teve que se obrigar a dizer que não queria mais ele na casa, a gente
arranjava emprego para ele, a gente botava nos cantos bons, a gente só arranjava canto bom
para colocá-lo e ele só fazia desordem. Por último, foi arranjada uma casa da igreja aqui, a do
irmão A. Ele estava bem gordinho, bem limpinho o irmão cuidava dele direito. Sabe o que ele
fez? Aproveitou a ausência do irmão, escolheu os aparelhos mais caros que tinha na Igreja e
tirou para usar as coisas dele lá, desta época para cá, ele sumiu.
A gente ouvia o povo, ele esta em tal parte, mas quando foi hoje, este rapaz disse
que a última vez que o viu faz mais de mês, só a casca. Ele disse que ele estava pedindo ajuda.
Eu disse para ele que se visse ele em algum canto, ele voltasse e viesse me dá as dicas onde
ele estava para tomarmos as providências. Mas sem o pai dele saber, porque o pai dele não
quer ver e nem ouvir o nome dele, só neste dia que ele chamou por ele, eu não sei como vou
reagir com tanta coisa. Alias, só eu venho dominando ele 24h, porque eu não queria que
ninguém o maltratasse, ele não queria ir para o hospital e ficava falando não me leve a força e
eu dizia eu não vou levar a força o que der para fazer por você, eu faço. E eu disse a ele: “o
que puder fazer por você eu faço” e tudo que ele pediu, eu fiz por ele.
Quando eu fazia algo ele dizia assim: “não está prestando, você não fez direito”.
Eu dizia “está bem, está certo”, eu não o agitava, eu combinava tudo, tudo que ele pedia, eu
fazia. Neste momento, era só eu, porque os outros da família não encostaram e os meus filhos
como estavam jurados, só faziam entrar em contato através do telefone escondido, para que
eles não se apresentavam para não complicarem mais. Quando eu queria falar com eles, eu
vinha aqui para dentro de casa, eu entrava no banheiro e comunicava com os meninos: “está
assim” e eles diziam: “pois mãe, qualquer coisa, a mãe entra em contato que a gente chega por
aí, a gente ver como está, a gente chama uma ambulância”. Mas, tudo eu fazia, uma polpa de
maracujá e dava a ele, botava um remédio dentro, tranquilizava-o e eu ia vencendo, mas
chegou o momento que não teve mais jeito, não tive condição de controlar mais.
87
Mas, como eu digo, não quero que ninguém o maltrate, ele fez o que fez, mas não
quero que ninguém maltrate, porque o que eu puder fazer por ele, eu faço e um dia, eu estarei
vivendo em nossa casa de novo igual nós vivíamos. Deus vai nos ajudar, as pessoas que
podem nos ajudar a controlar isso, as pessoas dizem porque é que tu tens tanta força? Porque
eu peço ajuda a Deus e eu já passei pelo CAPS, eu já vi muito sofrimento das pessoas lá e eu
já sei como é que é, já assisti muitas reuniões no CAPS e então, eu tenho que seguir do jeito
que elas passaram na reunião. E, assim, vou levando ele, meu menino é que diz, “mãe você
tem muita paciência”. É porque eu ouvi no CAPS, nas reuniões, elas explicam como a gente
deve lutar com as pessoas assim, portanto eu vou lutar até quando Deus quiser.
Ontem, eu fui vê-lo, eu não tinha mais visto ele. Porque a gente entrou em contato
com o meu menino que mora lá na Messejana, a minha menina se comunicou com a vizinha
que está com o filho dela internado também e ela disse: “olhe chame a ambulância ao chegar,
aqui entra um na frente, fica conversando com ele, o rapaz da ambulância vai conversar com
ele e assim a gente fez”. Quando meu menino entrou, ele estava lavando esta área, o meu
menino entrou, conversou e ele disse e esta ambulância? Pai, essa ambulância é do amigo aqui
da dona S. O rapaz ficou escutando ali fora, o rapaz se apresentou, entrou falou com ele. Sr.
F., o senhor vai agora ao hospital comigo, e ele disse, não, eu não vou para o hospital, não
estou sentindo nada. O rapaz disse: “o senhor vai se consultar porque o senhor não está bem”.
Quando ele quis se alterar, o rapaz disse: “Como é que é? O Senhor quer ir numa
boa ou quer ir amarrado?” “Não, amarrado não, eu vou numa boa. Não sei o que vocês vão
fazer comigo, mas vou numa boa”. E entrou na ambulância e foi normalmente e se internou.
Meu filho foi com ele, eu não me apresentei neste momento, eu estava na casa da minha irmã.
Meu menino mais velho foi quem foi assinou um termo para ele entrar e ele só sair se meu
filho assinar o termo para ele sair. A médica que atendeu falou: “teu pai só sai daqui se tu
vieres assinar, enquanto tu não assinar para ele sair, nós não deixaremos sair”. Está nesta
situação, ele só sai se o meu menino for assinar para ele sair. Quando ele estiver de alta tudo
bem, quando elas derem alta a gente vai trazer ele. O meu menino não assina para ele sair, ele
disse: “mãe só vou assinar para o pai sair quando ele ficar bom, quando vermos que o pai tem
condições de vir para casa, enquanto não, nós não vamos levar o pai”.
Meu filho está sendo bem atendido, ele está sendo bem cuidado, a gente leva as
coisas para ele. Lá ele está em local reservado porque ele tem problema de diabetes,
hipertensão, os rapazes disseram que eles estão tendo muito cuidado com ele lá, porque estas
pessoas com estes problemas devem ter vários cuidados para que não tenham complicações,
mas o problema dele é o peso. Porque está perdendo peso rápido demais, da doença para cá,
88
ele perdeu 22 quilos, vou ter quer ir ao centro de diabetes marcar a consulta dele, porque é
duas consulta por ano. Neste período, era para eu ter marcado, mas com este problema todo,
eu não consegui ir, nesta semana eu vou ao centro de diabetes, eu vou falar com a médica dele
para ver como vai ficar esta situação. Vou contar como ele está, falar que o peso dele está
caindo rapidamente, porque não é para está perdendo deste jeito, era para perder os poucos,
mas ele está perdendo muito, tá ficando magro, ele está tomando medicação para inchaço,
para o coração, porque ele tem problema de coração crescido e para diabetes e hipertensão.
Quando ele chegou lá, teve que tomar as medicações psicotrópicas, para ir
controlando. Não estou me sentindo muito bem não, porque nós nunca nos separamos desta
forma, 36 anos nós nunca nos separamos. Assim, nos deixamos por um momento, mas foi
besteira de casal, como o senhor sabe. Mas, desta forma, assim, nós nunca tínhamos nos
separado e toda vida eu cuidei muito bem dele, porque ele sempre foi uma pessoa muito legal,
nunca deixou eu ficar com as minhas coisas na cabeça, sem ter condições. Graças a Deus, isso
nunca aconteceu, sempre foi uma pessoa que nunca deixou faltar nada dentro de casa. Eu
estou sofrendo, porque eu não posso ficar direto na minha casa, eu venho cuido de alguma
coisa, do uma geral e vou para casa da minha menina, para casa do meu menino, vou para
casa da minha irmã, fico neste jogo, eu não me sinto bem, eu me sinto bem na minha casa.
Eles cuidam bem, é todo tempo com cuidado em mim, mas eu não me sinto bem
como no meu canto. A família da parte dele, não procura ele, só a da minha parte está
assumindo. Da parte dele tem irmão, irmã, mas ninguém quer ouvir a voz dele por causa
destes problemas, mas eles podiam colocar na realidade que não foi o primeiro. Ele está
abandonado pela família dele, só é eu e os meus filhos tomando conta dele e eu digo vocês
têm que visitar ele, vocês tem que entrar em contato com ele, porque são irmãos e eles querem
que eu vá à visita e avisem como ele está para poderem ir visitar. Hoje, eu vou ver se dá
tempo de ligar para eles, porque eu tenho muita coisa para resolver, eu estou me sentindo só,
coisas que eu não resolvia agora, eu tenho que resolver.
Ele disse lá no hospital que eu estou sofrendo muito, eu não estou me alimentando
direito, ele já sabe quem sou eu, eu não tenho é força de vencer a batalha. Ele fica colocando
aquilo na cabeça que eu não estou me alimentando, que eu estou sofrendo, que eu não gosto
disso, eu não gosto daquilo e ele sabe tudo, ele está internado, mas ele está sentindo o que eu
estou passando, eu só sei que farei o que puder fazer por ele, eu vou fazer até o fim. Se for
problema da cabeça, eles podem resolver, mas se tiver outras coisas pelo meio, já não é
problema deles, porque lá por essa igreja disseram que ele estava com espírito, até orientaram
ele procurar um centro espírita porque era para tirar, mas ele disse que não. Ele chegou a se
89
zangar até com uma mulher lá no Canindé porque a mulher falou isso para ele, ele não gosta
que fale este nome para ele.
Eu não sei depois que baterem este eletro da cabeça, a gente pode saber a
realidade, se ele tem alguma coisa na cabeça, se aconteceu alguma coisa, porque as pessoas
dizem que Acidente Vascular Cerebral (AVC) dá de vários tipos e ele já teve começou de
infarto, foi só um começo, mas todo eletro que ele tira do coração acusa que ele teve e a
médica disse tenha cuidado, porque de uma hora para outra você pode ter uma coisa mais
forte. Por isso, eu fiquei com medo neste período agora, porque ele esta fraco, não quer se
alimentar, o negócio dele é só água, para ele tomar um copo de sopa, um suco era um
sacrifício, tudo tinha mau cheiro.
Eu estou com esperança que vão resolver o problema dele e ele vai se recuperar
para a gente viver a vida da gente, resolvendo as coisas, porque desse jeito, ele lá e eu cá, não
dá certo, é muito complicado, eu quero é que ele se recupere. Minhas irmãs dizem assim, “não
se ele ficar bom e vocês ainda voltarem, nós não somos mais suas irmãs”, mas elas deviam
entender, elas não vivem mais com os maridos dela porque Deus já levou. Mas eu tenho que
fazer minha parte, porque eu não posso viver toda vida no poder dos filhos e de irmã. Eu
tenho que viver no meu canto, até quando Deus quiser. O pior não é o que eu estou passando,
porque ele está lá se tratando, está lá guardado. O pior eu estava passando vendo a hora
acontecer algo com ele, porque ele chibatava todo mundo, ele parava todos os carros e perdia
para os carros matarem ele, esculhambava todo mundo. Disse “pronto aqueles mendigos no
meio da rua”, um policial fez foi dizer, “senhora tenha cuidado, porque o seu marido insulta
todo mundo, principalmente estes mendigos, estes mendigos não tem nada a perder, uma hora
podem pegar ele sozinho, podem fazer alguma coisa com ele”. Eu não posso fazer nada, tem
que internar, mas ele respondia que não podia levar ele a força não, quando ele ficava batendo
nas pessoas, a polícia vinha.
Um dia ele falou com a polícia da farda verde lá de Canindé, eles olharam assim e
disseram não podiam fazer nada, vocês não podem fazer nada não, porque os mendigos
estavam insultando com ele, eu vou mostrar como eu vou fazer. Pegou o sujeito e meteu a
porrada, quando ele estava chibatando o criatura, eles deram a volta pelo outro lado e foram
assistir e ainda disseram rapaz porque você fez isso, ele respondeu: “eu pedi a ajuda de vocês
e vocês não fizeram nada e ficou por isso”. Na praça azul, ele chibatou um homem que estava
atrás de roubar, chamou o ronda, não posso fazer nada não, quando o ronda saiu, ele pegou o
sujeito e meteu a pancada, porque ele estava querendo roubar a mercadoria lá e ficava por
isso.
90
5.7 A história de Atena22
5.7.1 Contexto e caracterização
Atena, 54a, viúva, ensino fundamental completo, costureira, com renda familiar
de um salário mínimo e meio. Residia com os filhos e uma neta na Granja Portugal, Secretaria
Executiva Regional V.
A entrada de Atena na pesquisa foi interessante, após coletar a narrativa de Hera,
entrei no meu carro e antes de sair fui abordado por Atena, ela me perguntou se eu era do
SAMU e eu perguntei o porquê. Ela respondeu que tinha um filho internado e que a última
crise dele tinha sido gravíssima. Parei o carro e prontifiquei a ouvi-la, logo no início de seu
relato, Atena começou a chorar, precisando interromper um pouco a coleta dos dados. Após se
recompor, Atena relatou seu sofrimento com riqueza de detalhes.
O jovem que apresenta as crises psíquicas era um filho adotivo, mas que Atena
preocupou-se logo em justificar que não havia diferença. Retornou sua narrativa que somente
foi interrompida pela neta, filha deste jovem internado. A coleta da narrativa de Atena ficou
um pouco prejudicada por ter sido realizada na calçada e sofrida influência do ambiente
externo. O que marcou esta narrativa foi a forma como foi captada a narradora.
5.7.2 A narrativa
É difícil, só quem conviver com louco é que sabe do tamanho do perigo que está
correndo.
A minha situação é muito difícil, porque é complicada, às vezes a gente está
sozinha em casa, ele quebra as coisas dentro de casa. Ele, aqui em casa, eu não tenho mais
nada, porque ele quebra tudo. Quebrou a televisão, o som, a porta. Esse portão aqui já é o
terceiro portão que eu boto e ele quebra, estraga tudo. Então, é difícil, muito difícil, ainda
mais que esses hospitais estão fechando, estão querendo fechar os hospitais de louco. Já tem é
muito fechado e vai fica mais difícil, porque esses CAPS não adiantam, porque não tem como
a gente se socorrer no CAPS. Nos CAPS não tem médico, se tem médico, mas esta em crise,
não fica lá, manda para os hospitais, então é difícil, complicado. A gente que trabalhar com
pessoas especiais porque as pessoas assim são especiais.
22
Deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade (GRAVES,
2008). Representa uma mãe que busca cuidar de seu filho adotivo que apresenta sofrimentos psíquicos graves.
91
É muito difícil porque têm uns familiares que entende e tem outros que não
entende. Uns diz que é “sem-vergonhice”, outros diz que eu só “puno” por ele. É porque a
gente vê a necessidade, porque a pessoa que é doente mental, a gente conhece só no
conversar. E quando ele está em crise, ele fica muito revoltado, tudo ele fala, tudo ele
reclama. Por exemplo, a minha filha, ele não gosta da filha da minha filha, ele não gosta do
esposo da minha filha, então ele fica rejeitando as pessoas, fica difícil a convivência em casa.
Quando ele está em crise, quebrando tudo, eu tenho que chamar a ambulância.
Então, o amarram e colocam dentro do carro e leva ele para tomar medicamento. Muitas vezes
não tem carro e muitas vezes não vão porque tem medo dele virar o carro, porque fica
pulando dentro do carro fica fazendo coisas, “estrebuchando”, fica difícil, é complicado. A
ambulância é muito difícil para conseguir para ele agora, tive que recorrer a um amigo pastor,
porque ele fez muita ligação, eu fiz muita, mas só diziam que não tinha ambulância, que não
tinha ambulância. Mas, eu conheço um pastor que trabalha nessas ambulâncias, foi que eu
liguei para ele e ele veio aqui e levou-o. Ele veio com a turma dos bombeiros, e amarraram-no
e levaram.
Eles o amarraram e ainda passou dois dias amarrado no hospital. Porque não tinha
como ele ficar solto porque ele queria quebrar tudo. Dizia que ia bater até nos médicos, é
difícil. Aqui ninguém dorme de noite, porque ele passa a noite todinha querendo derrubar as
coisas, quebrando as coisas, tendo visões, ouvindo vozes. Faca, garfo é tudo escondido, nada
aqui de arma a gente deixa assim, pau, ninguém pode deixar por perto, nem nada, porque é
perigoso.
Ele é meu filho adotivo, eu o crio desde um mês. Nasceu e botaram na minha
porta. Depois, com dois ou foi três anos, a mãe dele apareceu, mas ela não queria saber dele e
eu já gostava dele, já o amava como meu filho. Só Deus sabe quanto eu o amo! [choro]. Sei
que é difícil, muito difícil. Em 2006, na primeira crise dele, foi porque ele estava bebendo na
pracinha, então um cara roubou um depósito e veio com um “bocado” de papel, com vários
contracheques, não sei o que mais e botaram em cima dele. E quando ele entra em crises, ele
anda com os papéis para cima e para baixo, entendeu. Quando a pessoa está normal, não faz
um negócio desses.
Então, a polícia veio e prendeu-o, como ladrão, foi que ele enlouqueceu mesmo,
ele pirou de uma vez, que não teve mais cura. Só sei que ele se internou, passou mais de um
mês internado e pronto, daí para cá, ele ficou nas crises direto. Pegaram o ladrão, esta com
seis, sete meses que chegou um papel do fórum, informando que ele está com a ficha limpa.
Tiraram o nome dele, não tinha prova que tinha sido ele, outra coisa, ele não fez mais isso.
92
Porque isso não foi ele, porque a mãe conhece o filho, a mãe conhece porque eles começam a
roubar dentro de casa. E, aqui em casa, ele nunca tirou nada, não é porque eu quero punir por
ele não, isso aqui o deixou com a ficha limpa. Mas, quando foi agora que fomos internar ele,
puxaram a ficha dele e disse que ele tinha um problema na Coordenadoria Integrada de
Operações de Segurança (CIOPS), um negócio aberto para ele, só que eu não sei o que é. Se
ele fez alguma coisa por aí, eu não sei, porque quando ele está assim, ele anda muito, ele anda
sem destino, ele não para quieto em canto nenhum, mas se tivesse, já tinha vindo à minha
porta, tem meu endereço, eu estou com os papéis do fórum aqui.
Eu tenho que até resolver este negócio para poder tirar os documentos dele,
porque ele não tem nenhum documento, ele rasga, quando ele está assim em crise, ele rasga
tudo. Antes dele vim para o hospital, ele rasgou a roupa dele todinha, ele não tem uma roupa
mais, ele só está com a roupa do corpo lá, ainda bem que lá não precisa levar roupa porque
dão, mas eu tenho que comprar roupa para ele porque quando ele vier, ele tem que ter roupas.
É por tudo isso que eu digo que é muito difícil, é muito difícil a situação, lutar com uma
pessoa doente mental, muito difícil. E eu acho isso revoltante, este governo meu irmão querer
fechar estes hospitais, que na hora da necessidade, só quem nos acolhe é eles.
Porque dentro de casa não dá para cuidar de louco não, essa crise que ele teve
agora, o médico disse para mim: “minha filha, faça um quarto lá no fundo do quintal e bote
ele dentro, a senhora bote grade”. E eu disse: “o senhor vai preso no meu lugar? Porque se eu
fizer isso eu vou presa, então, onde tem que ficar é nos hospitais, não é dentro de casa preso
não, porque preso dentro de casa não tem vaga não”. Eu só sei que neste dia ele não quis
internar porque tinha que esperar não sabe quanto tempo, era lá em Messejana, onde a gente
fica lá fora no chão deitado com esses doidos, dão medicamento a eles lá no chão. Eu passei
dois dias com ele lá, foi que graças a Deus abriu uma porta e surgiu uma vaga no São Vicente
de Paulo e o botei ele lá. Eu que acompanho, desta vez foi eu e minha filha, porque não dava
para ficar só, porque fiquei tão nervosa que passei mal. Eu já estou tomando remédio
controlado para poder aguentar o barco da doença dele.
Os CAPS não resolvem, não resolvem porque o sujeito só vai quando ele quer e o
meu não vai, não tem nem perigo dele ir. Para dizer que ele nunca foi neste tempo todinho, ele
foi umas três vezes, ele não vai, ele diz: “eu não vou, eu não vou” e bate o pé e não vai... Eles
não dão receita sem ver o sujeito, porque é obrigação deles quando estava tendo uma reunião
lá, eu sempre vou para as reuniões, que era obrigação do pessoal dos CAPS virem na casa da
gente ver o sujeito, já que o sujeito não vai, eles têm como vir em casa e eles não vem. Ele
estava este tempo todinho sem ir ao CAPS que fica aqui no Bom Jardim, eles me disseram
93
que tinha que fazer uma triagem, ia marcar um dia de uma triagem para eu levá-lo para poder
fazer. Eu disse: “minha irmã, se ele não vem sem triagem, imagina com triagem, aí é que ele
não vem mesmo”. Quando eu falei para ele, ele enlouqueceu e não foi ele já estava nas crises.
No dia que eu estava lá no hospital tinha um rapazinho, um jovem de 17 anos,
bem bonitinho, o bichinho fazia era pena, louco, louco e vinha do CAPS, porque no CAPS
não tinha como ficar lá. Estes CAPS não eram para existir não, era para existir hospitais, abrir
estes hospitais que estão todos fechados, abrir para colocar este pessoal para dá sossego a
gente, porque a gente não tem sossego. Quem convive com louco não tem paz, porque muitas
vezes eu não como, porque não dá para comer. A gente não se alimenta direito, não dorme
direito, não tem sossego, principalmente no final de semana que tem bebedeira e o pessoal
dão bebida para louco. O pessoal sabe, conhece, mas ainda dão, porque o meu toma porque o
pessoal fornece e assim fica mais difícil lutar com louco e com bebida, quando juntam as duas
coisas e o remédio que ele toma o caboclo fica mais doido. Assim, ele adoece todo muito,
todo mundo fica nervoso, é muito difícil. Eu chamei muitas vezes, já passei dois dias aqui
chamando direto, mas direto, pense e eles só diziam que não tinha ambulância hoje não, para
essa área não tem ambulância, só consegui através deste pastor. Eu ligava de 10 em 10 min e
fui conseguir através deste pastor, porque ele estava trabalhando e eu liguei para ele e ele
trouxe a ambulância. Mas, o SAMU, não traz a ambulância de jeito nenhum.
Quando teve a reunião lá no hospital disseram que era bom que as mães e os pais
se reunissem e fossem lutar para que os hospitais não fechem, mas se uma vai duas não vão e
assim fica difícil uma andorinha só não faz verão. Eu disse lá, se reunir um grupo, eu garanto
ir com vocês, mas uma pessoa só não adianta, porque se eu for sozinho, o que eu vou fazer lá,
porque não adiantar eu só falar, tem que ter multidão, para sermos ouvido temos que ter
multidão.
Esta aqui é a filhinha dele, é linda! Ele é um rapaz novo, bonito, trabalhador. Mas
é assim mesmo a vida da gente, mas um dia melhora, tudo é prova que Deus nos dá para ver
se a gente aguenta a luta. Eu creio que Deus vai transformar aquela vida, ele pode curar, ele
tem todo o poder de curar e libertar, porque Deus tem o poder, nós não podemos nada, mas
ele pode, porque ele é o médico dos médicos. Eu creio que um dia ele vai fazer a obra, porque
para mim é mais difícil porque eu não tenho marido, porque se eu tivesse um homem que me
ajudasse nesta caminhada, um marido, um esposo, mas não tenho. O pai dele e nada é a
mesma coisa, é um pai que não tem amor por ele, me manda botar ele no meio da rua isso é
coisa de pai. Lugar de doido é no hospital, o que ele diz é isso com o filho, no lugar de ajudar,
só atrapalha cada vez mais, porque ele o vê dizendo isso, ele coloca na cabeça, mesmo assim
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ele é louco pelo pai. Quando fui visitá-lo ontem, ele foi logo perguntando, “mãe cadê o pai?
Não vem me ver não?” “Meu filho, não se preocupe com seu pai, quando ele tiver tempo ele
vem”. “Vem não mãe, vem não”.
Quando ele está em crise, eu percorro os seguintes caminhos, primeiramente, a
Deus, porque se não fosse Deus a gente não vencia esta batalha e segundo é procurar
hospitais, procurar a medicina para vê se a gente tem um pouco de paz, é aonde eu vou.
Primeiro a Deus, sem Deus a gente não tem força, se eu não tivesse fé em Deus eu não estava
nem viva, porque ele já quis me matar, ele disse que viu um velho com um olho que entrava e
saia e que este velho queria me matar, então ele agarrou na minha garganta dizendo que era a
garganta do velho. É difícil, só quem conviver com louco é que sabe do tamanho do perigo
que está correndo com aquela pessoa, principalmente ele, porque ele muda de repente, ele está
aqui bonzinho e de repente ele dá aquele surto. Tem que acompanhar 24h, porque é perigoso.
Este rapaz que está entrando aí, ele já quis matá-lo. Nós estávamos aqui e de repente lá vem
ele correndo lá de dentro com a faca na mão, eu vou matar ele, vou matar ele, é um perigo, é
muito perigoso. Tem que está tudo escondido, se ele pegar uma faca e der um surto nele ali
mesmo, ele mata um, porque ele não sabe nem o que está fazendo, porque é de repente, a
mente dele muda. Eu sei que é complicado, mas eu creio que Deus tenha solução para tudo.
4.2.6 Questões éticas
O projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal do Ceará (UFC), e aprovado conforme parecer nº 111/11. Os sujeitos
que aceitarem participar da pesquisa assinaram voluntariamente o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE) (Apêndice C) que contém justificativa, objetivos, metodologia,
riscos e benefícios do estudo.
95
5. RESULTADOS: CATEGORIAS EMPÍRICAS
5.1 Explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo
As narrativas apresentam um complexo diversificado de causalidade atribuídas
pelos sujeitos como originárias do desenvolvimento do problema psíquico, variando desde
causas mais concretas até fatores abstratos, como rituais e perseguições espíritas. Entre as
causas concretas estão a finitude da vida e as consequentes perdas dos entes familiares de alto
grau de relação afetiva, como avô, avó e irmão. Essa concepção multicausal vem estabelecer a
dimensão coletiva para o fenômeno saúde-doença mental.
Podemos perceber a presença da multicausalidade no trecho da narrativa:
O desenvolvimento do problema dela atual ocorreu depois dos 16 anos de idade,
quando ela já era uma mocinha mesmo e tinha esse problema, eu acredito que esse
problema da coluna afetou muito também. Apesar de outros problemas, para mim é
como se fosse um somatório de problemas que foram se acumulando e teve um
estopim (Orfeu) [grifos nossos].
A multicausalidade é representada a partir de fatores mais concretos. É possível
perceber que esses fatos foram marcantes no sentido de isolar, embotar e perturbar os
sujeitos, levando-os a vivenciarem seus mundos na via do sofrimento psíquico.
Observamos que se estabelece uma fronteira entre o normal e o patológico a partir das
crenças e dos rituais. Mesmo após séculos de descoberta do processo saúde-doença e como
este se estabelece, o processo de adoecimento permanece marcado por uma visão não
natural no desenvolvimento dos sofrimentos mentais.
A interpretação do processo de instalação do sofrimento psíquico é marcada por
essa multicausalidade durante a vida. Desta forma, o processo saúde-doença está atrelado à
forma como o ser humano lida com suas amarguras, angústias e temores.
Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Ai eu fiquei
perturbada. Todos nós aqui somos da igreja Batista e vamos sempre à igreja, sempre
buscar a Deus. Desde este dia em diante eu fiquei perturbada, perturbou meu humor,
ai eu fiquei assim. A minha mãe teve que tomar diazepam também, ela passou
apresentar um batimento forte [...] (Afrodite).
Eu lembro que ela fala que foi pela perda do meu irmão, que se suicidou. Ela fala
que não aceitou, a gente era criança e ela mal falava. Ela se fechava não queria falar
com ninguém (Héstia) [relato sobre Afrodite].
Ele é meu filho adotivo, eu o crio desde um mês. Nasceu e botaram na minha porta.
Depois, com dois ou foi três anos a mãe dele apareceu, mas ela não queria saber dele
96
e eu já gostava dele, já o amava como meu filho. Só Deus sabe quanto eu o amo!
(choro). Sei que é difícil muito difícil. Em 2006, na primeira crise dele foi porque
ele estava bebendo na pracinha, então um cara roubou um depósito e veio com um
bocado de papel, com vários contracheques, não sei o que mais e botaram em cima
dele. E quando ele entra em crises ele anda com os papeis para cima e para baixo,
entendeu. Quando a pessoa esta normal não faz um negócio desses. Então a polícia
veio e prendeu-o, como ladrão, foi que ele enlouqueceu mesmo, ele pirou de uma
vez, que não teve mais cura. Só sei que ele se internou, passou mais de um mês
internado e pronto, daí para cá, ele ficou nas crises direto (Atena) [grifos nossos].
Tudo começou quando viajamos para Canindé. Dai para cá foi muito sofrimento
para mim. Sofri muito lá no Canindé, porque foi nesse dia que nós nos separamos, lá
na rodoviária do Canindé. [...]. Ele tem um filho que ele não se une desde os dez
anos de idade, que não se une um com ele. Quando chegamos ao Canindé lá na casa
da madrasta dele, ele ficou 12h em ponto em cima de uma pedra gritando pelo nome
do menino (filho dele). “Onde você está? O que você está fazendo?” Ele não quer
que ninguém fale o nome deste filho, mas nesse dia aconteceu isso, dai para cá ele
passou fazer as coisa que o filho fazia, ele passou fazer idêntico ao filho, ele
detestava pessoa com a faca na mão, ele só estava querendo anda armado, do jeito
que meu filho colocava a faca no coes ele estava botando. Nos lugares onde meu
menino perdia dinheiro emprestado, que era para me visitar no interior, porque eu
estava muito mal, ele passou em todos os cantos pedindo dinheiro, dizia tudo que
meu menino dizia, as coisas ruins que meu menino dizia ele estava dizendo (Hera)
[grifos nossos].
Além disso, há busca pela compreensão do fenômeno adoecimento na religião.
Portanto, podemos atribuir dois sentidos: 1) ele acreditava naquela igreja ou 2) ele queria
parar de sofrer. Pois cabe lembrar que o slogan da igreja que o esposo de Hera procurou é
“Pare de Sofrer!”. Nesse caso, a doença assume o significado de “um encosto”.
Porque o meu marido foi naquela igreja universal do centro e eles disseram para ele
que ele estava com um encosto de um jovem que perseguia ele, então, esse jovem
para nós é ele (filho). Está com mais de um mês que um amigo meu viu meu filho e
ele disse que ele estava falando bem arrasto, só os ossos, ele disse para este meu
amigo que só ia sossegar quando tirasse a vida do pai dele. Diz que ele não fala em
outra coisa, somente isso (Hera) [grifos nossos].
Outro aspecto importante é o contexto onde se manifestam as causas de forma que
a conjuntura do meio influencia no estabelecimento das causas da doença.
Eu lembro que desde pequena, entre cinco e dez anos, ela já apresentava algumas
anomalias em termos de comportamento. Ela nunca foi uma criança totalmente
carinhosa ou afetuosa, quando a gente levava a escola ela não admitia de forma
alguma que ninguém pegasse na mão dela para atravessar a rua ou para caminhar
nas avenidas mais perigosas. Ela sempre demonstrava ter uma aversão, nojo, dos
irmãos ou da mãe, não queria que ninguém pegasse na mão dela ou tocasse nela. Até
mesmo quando minha mãe demonstrava um carinho, pegava no cabelo dela, ela
sentia nojo, corria onde houvesse água para se lavar e isso foi ficando cada vez mais
comum (Orfeu).
97
Eu iniciei o problema com 12 anos, quando meu irmão tirou a vida dele. Ai eu fiquei
perturbada (Afrodite) [grifos nossos].
Quando maiorzinha, entre 12 e 14 anos, ela começou a demonstrar que era
intolerante a qualquer tipo de ruído ou conversa, não suportava escutar a voz de
algumas pessoas da família... ela se incomodava. Quando ela estava no quarto dela e
tinha alguém conversando na sala, ela começava a bater na parede com o pé, com a
mão, seja com o que fosse, para que parasse de falar. Neste mesmo período ela
desenvolveu um problema na coluna vertebral, apresentou um desvio formando tipo
um `S´ e uma das minhas irmãs, que hoje mora fora, foi quem fez o
acompanhamento de todo o tratamento dela para esta questão. Ela tinha muita
vergonha deste problema, porque era algo que a gente percebia. Ela já tinha
consciência que não haveria solução, podia melhorar um pouco, mas não tinha
solução e que ela ficaria com o tronco um pouco atrofiado. E isso a deixava com
uma vergonha muito grande (Orfeu). [grifos nossos].
Um aspecto importante é que o processo de sofrimento psíquico não se instala de
repente, mesmo que ele apresente fator desencadeador do processo. Mas, a história de vida do
indivíduo acometido apresentará fatos e causas que se somarão e serão fundamentais para o
desenvolvimento da patologia.
Fatos esses marcados pela interface existente entre os sofrimentos psíquicos e os
fatores comportamentais, sociais, culturais e ambientais. Quando estas interfaces são
desconsideradas e não há valorização na identificação das causas envolvidas e na forma como
participam no processo da doença, o indivíduo fica vulnerável à influência do meio, fato que
pode comprometer seu estado de saúde e levá-lo a desenvolver uma patologia.
A representação sintomatológica advém no próprio estado patológico, em que a
mesma tem dificuldade de controlar os seus pensamentos em coisas negativas.
[...] Eu dormia, mas eu ficava assim só chorando, só pensando [...] Quando os
pensamentos negativos vêm, porque todo mundo pensa ruim. Mas eu tento controlar
para não fazer mal a ninguém e nem a mim mesmo, porque eu fico só chorando
pensando nas coisas ruim [....] (Afrodite).
Estes pensamentos são resultantes da instalação da doença e são consequência da
alteração do quadro psíquico e da transformação ocorrida no bem-estar pessoal da informante.
Eu só sei que fico lembrando-me das coisas ruins que acontecem das coisas ruins
que eu vejo. Assim como se alguém estivesse me perseguindo. Eu fico com a cabeça
toda baratinada, tem vez que eu saio para vender as coisas e fico com uma tontura
assim. O povo diz minha filha, quando você tiver com estas tonturas não saia para
vender não. Às vezes eu vejo as coisas, as coisas ruins e as coisas boas que acontece,
eu já ouvi vozes (Afrodite).
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No caso do sofrimento psíquico, diversos fatores podem ocasionar a instalação do
estado patológico e o não acompanhamento correto deste estado resulta em um processo de
desequilíbrio, que não ocorre instantaneamente, mas é resultante da somatória de momentos
difíceis não solucionados, de frustrações, de desencantos e desesperança. Às vezes, o estado
de crise é resultante de conflitos existentes no contexto familiar, motivado pela imposição da
família em controlar o sujeito, por acreditar que ele não tenha condições de gerir sua própria
vida ou pelas exigências e caprichos deste sujeito.
Bom, no começo não era muito ruim cuidar dela porque ela me obedecia. Eu dizia
faça isso, vá dormir, vá tomar banho e ela ia. Mas agora, ultimamente, de uns quatro
para cinco anos, ela não me atende mais... ela está agressiva comigo, ela salta na
minha cara. Um dia desses, ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz...
que eu mudei até os óculos. Ficou isso aqui meu todo dolorido. Por esse motivo eu a
deixo passar a semana sem tomar banho, porque não posso obrigar, ela me agride
(Iris).
...as coisas dela são do jeito dela e aí ela chegou a alugar uma casa para ficar aqui
perto e trabalhava durante a semana, de 7h às 17h da tarde, e passava o resto do dia
dormindo, o final de semana todo dormindo (Orfeu).
Para a família do sujeito em sofrimento psíquico, ele tem que se comportar de
acordo com as regras estabelecidas por ela e quando estas regras são rompidas, instalam-se os
conflitos. O sujeito, geralmente, é tratado como incapaz e incompetente na execução de seus
afazeres e os familiares tendem a definir por este o que devem fazer. Estas definições
desencadeiam os conflitos entre os sujeitos e seus familiares e se instalam as situações de
crise. A família tem a intenção de definir a forma de viver do seu ente.
É necessário que a família compreenda que cada indivíduo tem seu estilo e sua
forma de viver e procurar perceber que algumas condições consideradas inadequadas à vida
não podem ser motivo de culpabilidade deste indivíduo. As imposições de um modo de vida
aos sujeitos em sofrimento psíquico, estabelecido por suas famílias, podem resultar em
situações de crise severas.
É muito difícil... tem hora a gente pensa até em abandonar, mas como vai
abandonar? Vou deixar esta criatura morrer no meio da rua? Não tenho coragem,
tenho que enfrentar e aguentar até o dia que Deus quiser. Para a família é meio
compreensivo, eles se estressam...não dão...atenção para ela...ela não aceita que
ninguém converse com ela...o que foi tia? Meu filho vai perguntar. Não quero
conversar contigo não... começa a chamar palavrão...[então ele] sai de perto e isola
ela...se a gente tenta conversar ela acha ruim e chama palavrão...esculhamba...e
se...não conversa ela reclama, vocês não ligam nem pra mim...não prestam nem
atenção quando eu estou chorando...se...for falar...a gente não olha porque tu
esculhamba...é pior...a gente tenta isolar porque é isso que é melhor para ela... e para
a gente. Pode não ser pra ela, mas para gente é o melhor [...] (Iris).
99
É uma pessoa muito difícil convivência, porque ela é muito cabeça dura ...as coisas
dela é do jeito dela e aí ela chegou a alugar uma casa para ficar aqui perto e
trabalhava durante a semana, de 7h às 17h da tarde, e passava o resto do dia
dormindo, o final de semana todo dormindo. E retomava as atividades na semana
seguinte... nesse período, ela trabalhou e fazia o curso de inglês aos sábados. Logo
após saiu do trabalho, mais ou menos duas a três semanas após ela teve a [primeira
crise] (Orfeu) [grifos nossos].
O conflito está presente em todos os relacionamentos humanos. No contexto
familiar, estes conflitos são mais complexos, pois cada indivíduo é singular na sua história,
temperamento, idade, composição genética etc. Entretanto, na família que existe um sujeito
em sofrimento psíquico, estes conflitos ficam mais proeminentes, pois cada pessoa formar sua
própria percepção com relação ao problema de saúde que seu ente apresenta.
É muito difícil porque têm uns familiares que entende e têm outros que não entende.
Uns diz que é “sem-vergonhice”, outros diz que eu só “puno” por ele. É porque a
gente vê a necessidade, porque a pessoa que é doente mental, a gente conhece só no
conversar. E quando ele esta em crise ele fica muito revoltado, tudo ele fala, tudo ele
reclama. Por exemplo, a minha filha, ele não gosta da filha da minha filha, ele não
gosta do esposo da minha filha, então ele fica rejeitando as pessoas, fica difícil a
convivência em casa (Atena).
Observamos que a “super proteção” tende a ampliar os conflitos entre familiares e
potencializar os desejos do filho com sofrimento psíquico, que passa a exigir com mais vigor
e revolta que seus desejos sejam atendidos.
Quando ele está em crise quebrando tudo [...] (Atena).
Ao não gerenciar os focos de conflito e a não imposição de limites aos desejos do
sujeito com sofrimento psíquico faz com que se instale o estado de crise que geralmente é
marcado por atos violentos e por fatos que põem em risco de vida o sujeito e seus familiares.
[...] ele destruiu tudo... televisão ele quebrou quatro televisores, toda hora, de
repente do nada, ele rebolava a televisão no chão, quebrava a televisão... eu não
tinha uma grade para botar[...]hoje eu tenho..[...] estava de uma maneira destruindo
tudo[...]ele conseguiu arrancar uma porta, deixar só os pedaços entendeu... então
estava de uma maneira assim impressionante. Ele subia em cima de uma pia e
pulava, sabe, para ver se a pia desabava no chão [...] (Geia).
Quando cheguei em casa com ele, ele foi arrancar um galho e bateu na minha mão
aqui [...] que arrancou um pouco a pele do meu braço... ele chegou em casa muito
agressivo, ele me chutou, chutou meu joelho, ficou arrancando meu cabelo, puxando
meu cabelo... ai eu resolvi desistir, desisti de ficar perto dele, porque eu vi que ele ia
me machucar... eu desço as escadas... aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a
cômoda escada abaixo, para ver se a cômoda pegava em mim (Geia).
100
Um dia desses, ela tacou a bacia na minha cara, quebrou meu nariz [...] que eu
mudei até os óculos. Ficou isso aqui meu todo dolorido (Iris).
[...] ele quebra as coisas dentro de casa. Ele, aqui em casa, eu não tenho mais nada,
porque ele quebra tudo. Quebrou a televisão, quebrou som, quebrou porta. Esse
portão aqui já é o terceiro portão que eu boto e ele quebra, estraga tudo (Atena).
[...] não tem nenhum documento porque ele rasga, quando ele está assim ele rasga
tudo. Antes dele vim para o hospital ele rasgou a roupa dele todinha, ele não tem
uma roupa [...] (Atena).
5.2 Do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos.
Compreender a forma como se manifestou o adoecer e como tem se dado o
itinerário da assistência após a instalação do sofrimento mental em cada indivíduo, ajuda a
reconstituir os descaminho de desassistência e o sofrimento gerado ou ampliado nesse
percurso. Neste sentido, itinerário terapêutico será compreendido como:
... um determinado curso de ações, uma ação realizada ou um estado de coisas
provocado por elas (...) é um nome que designa um conjunto de planos, estratégias e
projetos voltados para um objetivo preconcebido: o tratamento da aflição
(RABELO; ALVES; SOUZA, 1999, p. 133).
A maior dificuldade em cuidar dele é porque ele já é um adolescente e quando está
em crise é muito forte... ele é pesado, é alto e eu sempre necessito da presença do
meu esposo na hora da crise. [...]Então ele faz coisa arriscada, põe a vida dele em
risco... ele corre, atravessa em frente de carro, de ônibus, ele foge de casa, ele me
agride fisicamente. Ele rasga as coisas, destrói moveis. Faz várias coisas perigosas.
A dificuldade é contê-lo, segurá-lo para ele não se machucar, não machucar a mim.
Como conter se ele é um rapaz e eu ainda sou uma pessoa frágil, pequena, eu não
consigo (Geia).
A última crise começou... ele já vinha há vários dias fazendo coisa que não deveria...
ele na segunda feira... vou fazer um retrospecto... na segunda feira [...] ele saiu
correndo, atravessou Avenida Lineu Machado... que já é um risco muito grande e foi
correndo até a casa de um amigo meu[...]. Ele invadiu a casa e destruiu o jardim
inteiro da pessoa[...] ele quebrou um jarro de cimento enorme, ele destruiu todas as
plantas, ele arrancou tudo com os dentes, as mãos. E eu não sabia como fazer para
ele parar... então, consegui com muito custo e com a ajuda da esposa (do dono da
casa) que ele saísse e levei-o para casa. Na terça feira, ele também tentou fugir de
casa e também destruiu alguns objetos em casa. Rasgou roupa... rasgando a camisa
de malha dele e tudo mais[...] Na terça feira ele chegou a rasgar o banco do
transporte escolar de uma mordida... na quarta-feira eu fui com ele para evitar isso,
fui e voltei com ele no transporte escolar. Assim que o rapaz o desceu de dentro do
carro[...] ele saiu novamente pelo portão... atravessou avenida e foi novamente
quebrar todos os galhos, árvores que ele encontrou na [...] minha rua... aí eu peço
ajuda a um amigo na rua... ele me dá uma corda... então eu amarro as pernas dele
para ele não correr e também amarro a mão dele com a camisa dele. Você vê... é
muito constrangedor, você ter que amarrar seu próprio filho e sair amarrado com ele
pela rua. Só assim consegui chegar a casa com ele (Geia) [grifos nossos].
101
Um ponto em comum é o comportamento de destruição que se instala no
momento das crises. Infelizmente, estes atos violentos são direcionados aos familiares mais
próximos.
[...] Ela só é estressada com a gente, porque é da família. Ela não agride ninguém de
fora não, só agride, mais com palavras, ela só agride a gente da família (Iris).
Última crise dela [...], ela chegou aqui não queria comer e ficou alterada, querendo
bater. Eu terminei chamando a policia para ela porque ela estava muito agressiva.
Geralmente, nas situações de crise eu chamo a ambulância, mas não vem. Às vezes
preciso chamar duas, três vezes, mas sempre não vem. Neste ultimo caso chamei a
policia porque ela estava muito agressiva foi o jeito chamar a polícia. Nas situações
de crise eu já chamei bombeiros, foi quando ela estava trancada não queria abrir a
porta. Neste dia eu fiquei assustada, a gente fica assustada de qualquer forma, mas a
mulher me disse que não tinha como conter (Hestia).
Importante destacar que o sujeito até busca como primeira opção de apoio a
ambulância, mas como não é atendida, este tenta outros meios de ajuda e proteção para a
família. A presença destes atos violentos corrobora a ideia de que todo doente mental é
violento e agressivo, no entanto, as agressividades se manifestam após horas, dias e, até
meses, sem assistência adequada durante a instalação das crises.
Não desejamos descartar que o sujeito em sofrimento psíquico no estado de crise
não apresente um risco aumentado à violência, porém é o discurso em torno da crise psíquica
– devido ao risco de atos violento e agressivos – que despertará na sociedade o sentimento de
medo e trará para o cenário social a noção de periculosidade (WILLRICH et al., 2010).
Porém, a violência somente se instalará se nada for procedido para conter e
controlar o estado de crise que este sujeito se encontra. Quando se institui uma comunicação e
uma escuta terapêutica a este sujeito, reduzem- se os riscos de sequestro da liberdade do
mesmo.
Ela desde a primeira crise é uma sujeito que tinha alguns momentos de violência,
sendo necessário levá-la ao hospital, mas ela não passou por internamento na
primeira crise, foi só medicada (Orfeu).
O sujeito em situação de crise deve receber atendimento imediato, tendo
direcionado a ele atenção redobrada que estabeleça vínculo e diálogo terapêutico. Em alguns
casos, os atos de violência já se apresentam na primeira situação de crise, requerendo, com
isso, atendimento mais estruturado e adequado para a contenção desta situação.
102
Infelizmente, a condição mental que os sujeitos apresentam, no momento de crise
inviabiliza o discernimento entre o certo e o errado, portanto, uma assistência adequada pode
prevenir que eles se tornem objetos ou agentes de atos violentos.
A grande sobrecarga do cuidado do ente com sofrimento psíquico, geralmente,
fica a cargo das mães, por esse motivo é que as principais narrativas foram realizadas com
elas. Esta sobrecarga tende a ocasionar sofrimento físico e psíquico às mães, que
constantemente, assumem atitudes que são incompreendidas pelos demais familiares,
motivando os conflitos.
As situações de crise, quando não controladas, tendem a desenvolver situações de
emergência que se caracterizam por situações de risco significativo (vida ou injuria grave),
para o sujeito ou outros, necessitando de intervenção terapêutica imediata. A ausência, em
Fortaleza, de uma rede de assistencial deficiente ou ineficiente vem contribuindo para o
agravamento e, até mesmo, desencadeamento de situações de crise em sujeito em sofrimento
psíquico. Hoje, Fortaleza conta, apenas, com uma emergência psiquiátrica, a qual funciona no
Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMSM) e encontra-se em implantação um CAPS
tipo III, que está disponibilizando vagas para atender sujeitos em situação de crise
(FORTALEZA, 2013).
A escassez deste serviço contribui para potencializar a violência nas crises
psíquicas.
... só quem convive com louco é que sabe...do tamanho do perigo que está correndo
com aquela pessoa...principalmente ele, porque ele muda de repente, ele tá aqui
bonzinho e de repente ele dá aquele surto...tem que esta de olho 24h nele, porque é
perigoso. Este rapaz que está ai ele já quis matar ele, nós estávamos aqui lá vem ele
correndo lá de dentro com a faca na mão, eu vou matar ele, vou matar ele...é um
perigo, é muito perigoso. Tem que esta tudo escondido, se ele pegar uma faca e der
um surto nele ali mesmo ele matar um, porque ele não sabe nem o que esta fazendo,
porque é de repente... a mente dele muda de repente (Atena).
Já que a rede de saúde mental de Fortaleza disponibiliza apenas uma ambulância
voltada para atender estas situações, por esse motivo, as famílias permanecem em completa
desassistência.
Rapaz, eu acho que demorou uns quinze dias: Liguei para o serviço de atendimento
móvel de urgência (SAMU). Ficou nesta dificuldade para conseguir esta
ambulância.. Uns 15 dias da primeira vez que eu liguei (Iris).
Quando o SAMU chegou lá ele não estava mais quebrando, porque estava suado e
exausto. Ele fez muita força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais
força... ele já estava sentado no chão suado, sujo, nu e comendo as coisas que tinha
dentro da geladeira... ele estava quieto, estava exaurido... quando cheguei lá eu
103
apenas banhei ele, vesti e levei-o... não deu trabalho nenhum para entrar na
ambulância...(Geia).
... ele chegou em casa muito agressivo, ele me chutou, chutou meu joelho, ficou
arrancando meu cabelo, puxando meu cabelo... ai eu resolvi desistir, desistir de ficar
perto dele, porque eu vi que ele ia me machucar [...] aí eu chamo a ambulância,
chamei o SAMU. O SAMU demora muito [...] demorou 4 horas [...] (Geia).
Como é apenas uma ambulância... que é um caso até de denuncia... então não pode
uma cidade como Fortaleza com mais de dois milhões de habitantes terem apenas
uma ambulância psiquiátrica... então a espera é enorme. Se um sujeito em crise
matar uma pessoa, quando a ambulância chegar vai estar só o cadáver, não vai mais
dar tempo de fazer nada... porque eu chamei a ambulância uma hora e eles chegaram
às quatro e meia da tarde, quatro horas depois que eu chamei [....] mas se houvesse
mais ambulâncias aí sim teria um atendimento melhor porque não é possível uma
pessoa esperar quatro, cinco, seis horas por um atendimento. O atendimento é
prejudicado pela falta de ambulância (Geia).
Eu desistia de ligar (para ambulância), mas sabe como eu levo? eu desistia de ligar
eu nunca liguei a noite, eu já tenho levado ela a noite, mas sabe como eu levo?
Tinha um rapaz que é primo do meu marido que trabalha no SAMU ... ele é
motorista e ele conseguia, falava com o médico lá e conseguia a ambulância. Era
assim (Iris).
Acometidos por essa completa desassistência, as famílias tendem a lançar mão de
diversos recursos para tentar superar estes momentos de crise. As diversas formas de tentar
intervir na situação de crise de seus familiares são apresentadas por meio de um fluxograma
(Figura 6). O fluxograma representa sucintamente os caminhos ou meios utilizados na
tentativa de anular o estado de crise de seu familiar. Inicialmente, a família utiliza tratamentos
alternativos de seu conhecimento, geralmente, oriundos de saberes popular ou familiar.
104
Figura 6 - Fluxograma seguindo pelos familiares na busca por assistência no momento da
crise.
A tradição de utilizar plantas capazes de aliviar o sofrimento dos doentes esteve
presente neste estudo. As respostas terapêuticas conseguidas, em alguns casos, e os relatos
populares que valorizam este tipo de tratamento tendem a gerar um clima de confiança e
valorização deste tipo de tratamento.
Esgotados os recursos das terapêuticas a base de ervas, as famílias recorrem à
ajuda espiritual, encaminhando os familiares às igrejas ou outras crenças de suas confianças.
Eu tomo um chá de erva doce e eu consigo dormir, [...] Eu concordo com o pessoal
da saúde, mas não concordo em tomar estes remédios velhos. Eu tomava sete tipos
de remédios e ficava toda impregnada assim (fez a forma). Eu não preciso dos
remédios. Eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida vou precisar, porque
pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a Deus, não
preciso mais. [...] Eu já me desintoxiquei dos remédios porque eu só dormia com
eles, vivia com a cabeça inchada feita um bicho toda suja, sete remédios:
clorpromazina, diazepam. Menino era tanto remédio do cão que eu não tomo mais
não. Eu só tomo chá de erva doce e consigo dormir (Afrodite).
BANHOS (frios/
mornos)
INTERNAÇÃO
CHÁS/
SUCOS
(Calmante)
DESCARREGOS
EXORCISMO
ESTADO
AGRESSIVO
TRATAMENTO ALTERNATIVO
IGREJA
AMBULÂNCIA
HOSPITAL
CAPS
POLÍCIA
VIOLÊNCIA
MEDICALIZAÇÃO
INÍCIO DA
CRISE
(Cuidado
Familiar)
PASTOR
105
É possível observar um entrelaçar de tratamentos que se busca para tentar
conseguir a cura ou controle das doenças. Primeiramente, os tratamentos alternativos são
utilizados, em seguida inicia-se a ajuda espiritual e com isso passa a descartar os recursos
medicamentosos tradicionais porque se acredita que a cura já foi estabelecida.
Eu fazia uma polpa de maracujá e dava a ele, botava um remédio dentro,
tranquilizava-o e eu ia vencendo, mas chegou o momento que não teve mais jeito,
não tive condição de controlar mais (Hera).
A automedicação está associada aos tratamentos alternativos. Essa associação se
configura como grave problema de saúde para população. Importante destacar que não
estamos apontando os efeitos negativos das terapias complementares, sobre as quais não nos
detemos neste estudo, e sim apontamos que a associação do uso de ervas medicinal com o
tratamento medicamentoso, sem orientação de profissional, competente é um problema de
saúde que precisa ser enfrentado.
Comumente, as medicações são indicadas por vizinhos ou familiares que estão
utilizando-as em algum tratamento. A medicalização social vem apontando falsas soluções
para o sofrimento, de forma que as pessoas passam a fazer uso de analgésicos, anti-
inflamatórios, ansiolíticos, antidepressivos e antipsicóticos por conta própria. Na maioria das
vezes, conforme assinala Tesser (2010), os sujeitos que buscam a automedicação são mães
que perderam seus filhos vítimas da violência nos bairros, cidadãos em condições de trabalho
desumanas, subempregados, pessoas que migram para as capitais e perderam seus referenciais
de solidariedade e pertencimento.
A gente, então, fazia chá de camomila, chá de erva doce, suco de maracujá, e não
sabia o que fazer para esse menino dormir direito (Geia).
Quando percebo o quadro dela alterando, eu corro faço um suco de maracujá, eu vou
procurar uma erva para fazer alguma coisa para acalmá-la. Graças a Deus, tem dado
certo, pois quando eu vejo que ela está alterada, “vixe” vou ali fazer uma coisa com
alface, ou alface e mel para acalmá-la. Ai ela toma e é instantâneo, ela já fica calada,
calma (Hestia).
O contexto espiritual alcança forte conotação, seja pela busca das causas que o
levaram ao desenvolvimento do sofrimento psíquico, seja na busca por tratamento. A
religiosidade pode ser considerada suporte protetor ao sofrimento destes indivíduos, pois, a fé
e a confiança em Deus lhes darão a resignação necessária para enfrentar as fraquezas e males
ocasionados pela patologia. Vale destacar que a palavra Deus, com exceção dos nomes dos
106
deuses gregos que foram nomeados os informantes, aparece trinta vezes no conjunto das sete
narrativas. Todos os informantes buscavam Deus como ajuda ao adoecimento.
Quando ele está em crise eu percorro os seguintes caminhos, primeiramente, a Deus,
porque se não fosse Deus a gente não vencia esta batalha e segundo é procurar
hospitais, procurar a medicina para vê se a gente tem um pouco de paz, é aonde eu
vou. Primeiro a Deus, sem Deus a gente não tem força se eu não tivesse fé em Deus
eu não estava nem viva, porque ele já quis me matar, ele disse que viu um velho
com um olho que entrava e saia e que este velho queria me matar, então ele agarrou
na minha garganta dizendo que era a garganta do velho (Atena) [grifos nossos].
Porque o meu marido foi naquela igreja universal do centro e eles disseram para ele
que ele estava com um encosto de um jovem que perseguia ele, então, esse jovem
para nós é ele (Hera).
Se for problema da cabeça, eles (médicos) podem resolver, mas se tiver outras
coisas pelo meio já não é problema deles, porque lá por essa igreja (universal)
disseram que ele estava com espírito, até orientaram ele procurar um centro espírita
porque era para tirar, mas ele disse que não (Hera).
Todos nós aqui somos da igreja Batista e vamos sempre à igreja, sempre buscar a
Deus [...]. Quando eu estou assim quem cuida de mim? É Deus! [...]. Eu não preciso
dos remédios, eu já me desintoxiquei e mais nunca na minha vida vou precisar,
porque pedi minha libertação a Deus, e não foi a ninguém da terra não. Foi a Deus,
não preciso mais (Afrodite).
A primeira crise ocorreu com 16 anos, nesta época a minha mãe e minha irmã a
levaram para a igreja, apelaram primeiro para a questão da religião (Orfeu).
5.3 A rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos.
5.3.1 SAMU
Primordialmente, os familiares recorrem ao Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (SAMU), seja pelo fato de que a crise psíquica encontra-se em uma situação de
urgência ou que é essa a referência que os familiares já adquiriram em busca de uma estrutura
que possa proporcionar uma contenção desta crise.
A porta de entrada da rede de saúde mental de Fortaleza são os serviços
secundários de assistência. Desta forma, é possível observar que os serviços da rede de
assistência em saúde mental de Fortaleza não são resolutivos. Um dos aspectos que demonstra
essa situação é que a porta de entrada da rede de assistência tem sido o SAMU, ou seja, é este
o serviço que os familiares têm buscado nas situações de crises. Entretanto, observamos que
familiares e sujeitos em situações de necessidades urgentes não têm encontrado assistência
107
junto aos equipamentos e recursos institucionais da rede de saúde mental. A estrutura atual da
rede não corresponde às demandas que a população com sofrimento psíquico apresenta.
eu desço as escadas... aí ele pega a cômoda e tenta arremessar a cômoda escada
abaixo, para ver se a cômoda pegava em mim. Aí eu chamo a ambulância, chamei o
SAMU. O SAMU demorou 4 horas. Como é apenas uma ambulância... que é um
caso até de denuncia, como pode uma cidade como Fortaleza com mais de dois
milhões de habitantes ter apenas uma ambulância psiquiátrica então a espera é
enorme. Se um sujeito em crise matar uma pessoa...quando a ambulância chegar vai
esta só o cadáver, não vai mais da tempo de fazer nada, porque eu chamei a
ambulância, a ambulância uma hora e eles chegaram as quatro e meia da tarde,
quatro horas depois que eu chamei...fomos com ele para Messejana [...] (Geia).
Mas a ambulância é muito difícil vir. Porque eu consegui pra ele agora, porque foi
através de um pastor (Atena).
Quando o SAMU chegou lá ele não estava mais quebrando, porque estava suado e
exausto. Ele fez tanta força para arrancar essa porta, então ele não tinha mais força
[...] (Geia).
[...] eu acho que demorou uns quinze dias. Uns 15 dias da primeira vez que eu
liguei. Por que é tipo assim, ela queria que a gente ligasse todo dia. Só que é aquela
coisa que às vezes você fica com abuso, que dá é desgosto, a gente pensa que vai
ouvir a mesma coisa. Olhe ligavam de manhã eles dizia assim: ligue à tarde, quando
eles mandavam ligar a tarde eu não ligava, ligava no outro dia, entendeu. Eles
diziam: ligue a noite, eu ficava comigo se ligam de dia eles não vem, a noite é que
eles não vêm mesmo. Eu desistia de ligar, eu nunca liguei a noite, eu já tenho levado
ela a noite, mas sabe como eu levo? (Iris).
Eu chamo a ambulância, mas geralmente não vem... Eu chamo duas, três vezes. Mas
sempre não vem (Hestia).
A rede de saúde mental de Fortaleza que disponibiliza uma viatura exclusiva para
assistir as situações de crise psíquica ocorridas em seu território não é suficiente para
proporcionar uma assistência eficiente a esta situação. Souza et al. (2010) identificaram que a
sobrecarga de chamadas é facilmente encontrada em relatório diário do SAMU de Fortaleza,
do total de 100% de chamadas realizadas para este serviço que solicitam assistência, apenas
21% eram atendidas. Esse quadro quantitativo pode ser compreendido nas narrativas dos
sujeitos da pesquisa.
Ressaltamos também o “como” ocorre a assistência disponibilizada no momento
da abordagem dos profissionais do SAMU ao sujeito em situação de crise. A abordagem é
marcada por um completo despreparo por parte dos profissionais que atuam neste serviço: o
tom do diálogo com o sujeito em crise é impositivo, a forma de aproximação com sua
realidade é dominadora, de forma a instalar tensão e terror na relação, uma transferência de
responsabilidade a respeito da resolução da situação, ou seja, o serviço não apresenta
respostas às reais demandas da população e, ainda, é prestado sem profissionalismo.
108
O objetivo do SAMU é prestar assistência a uma situação cujo indivíduo lida com
conflitos que alteram seu estado homeostático e o põem em conflitos, mas, o que se ver é um
tensionamento e um terrorismo.
Quando ele está em crise quebrando tudo eu tenho que chamar a ambulância. Então,
o amarra e coloca dentro do carro e leva ele para tomar medicamento. Muitas vezes
não tem carro, e muitas vezes não vão porque tem medo dele virar o carro, porque
fica pulando dentro do carro fica fazendo coisa, “estrebuchando”. Aí fica difícil, é
complicado (Atena).
[...]o rapaz (profissional do SAMU) ficou escutando ali fora, ai o rapaz se
apresentou, entrou falou com ele: Sr. F. o senhor vai agora ao hospital comigo, ele
responde: não, eu não vou para o hospital, não estou sentindo nada. O rapaz disse: o
Sr. vai porque o senhor vai se consultar porque o Sr. não esta muito bem... Quando
ele quis se alterar o rapaz disse: como é que é? O Sr. quer ir numa boa ou quer ir
amarrado? Não, amarrado não. Eu vou numa boa, não sei o que vocês vão fazer
comigo mais vou numa boa. E entrou na ambulância e foi normalmente (Hera).
Quando o SAMU... conseguia [vir], [...]eles mesmos não mandavam o socorrista,
uma vez veio o motorista e uma enfermeira [...] eles me deram aquela, aquele
bichinho... é para conter o sujeito. Eles ficaram olhando... ensine pelo menos como é
que...faz. Ela estava lá na rua, não deixei ela entrar para exatamente facilitar para
eles[...]ela é magrinha, ela não mete medo em ninguém. Ela só é estressada com a
família ela não agride ninguém[...]ela não é violenta [...]me deram estas ataduras
para colocar nela, mas eu não consegui... ela... me agrediu...foi minha sobrinha,
minha cunhada, um policial que mora aqui e meu filho para poder contê-la...se eles
tivessem chegado conversando direitinho, vamos...ela tinha ido[...] (Iris).
O diálogo inicial é considerado primordial para a eficácia da terapia. Portanto, na
ausência de uma abordagem terapêutica, não é possível estabelecer um vínculo entre o sujeito
e o socorrista (do SAMU). Desta formam, não se constituem laços de confiança para
possibilitar a intervenção terapêutica. Outro fator importante é que a atenção, no primeiro
contato, deve ser direcionada ao sujeito em crise, somente em seguida, atende-se às demandas
da família (SOUZA et al., 2010).
Entretanto, percebemos que a assistência prestada pelo SAMU junto aos sujeitos em
situação de crise está repleta de contradições: seja pela necessidade de agregar conceitos de
assistência que garantam os preceitos da reforma psiquiátrica, seja pela deficiência na
operacionalização e atendimentos das chamadas ou, ainda, pelo não direcionamento de uma
assistência que considerem um protocolo de conduta, assim, como, de influências externas de
terceiros (polícia, pastor evangélico, amigos) na central de atendimento do SAMU.
[...] eu conheço... um pastor que ele, que ele, trabalha nessas ambulâncias. Aí foi que
eu liguei pra ele, e ele (pastor) veio aqui e levou ele (filho) (Atena).
109
[...] nessa ultima [crise] foi numa boa [...]a polícia solicitou o SAMU. O SAMU veio
rapidinho (Iris).
Estes fatos retratam que muitas famílias não podem considerar a sua posição nesta
lista de chamada, pois podem ser colocadas de lado ou mesmo direcionadas ao final da fila em
função da necessidade do atendimento de uma solicitação permeada por interferências
políticas e pessoais.
5.3.2 Polícia e bombeiros
A polícia e os bombeiros se colocam como segunda opção de ajuda que os
familiares buscam na situação de crise de seus entes. Estes apareceram no contexto estudado
como agentes de proteção contra os estados agressivos de seus parentes em crise psíquica. A
presença da polícia significa que as questões burocráticas de atendimento e trâmites internos
das instituições serão resolvidas com mais facilidade. A presença dos bombeiros significa
proteção para os familiares e o sujeito em crise.
Ainda que o chamado à polícia aconteça pelos vizinhos, a família com parentes
em situação de crise concorda e agradece porque percebem na polícia recurso que resolve a
situação de perigo em que muitas vezes se encontram.
A policia foi chamada contei a historia, que já tinha tentado a ambulância não tinha
conseguido, disseram que estava na fila de espera... Eu ligava pra lá e ela me dizia
que tinha não sei quantos na minha frente... ai nada, eu fiquei esperando, até o dia de
chegar minha vez... só que neste dia ela foi demais, ela gritou dia e noite... o vizinho
foi e chamou a policia. Não foi por maldade não, chamou para ver se eles resolviam
como de fato, graças a Deus, resolveram. Chegaram, conversaram comigo, eu contei
a historia, eles ligaram para ambulância, no instante a ambulância veio. Duas horas
da madrugada. Passei o resto da manhã todinha lá, passei o dia todinho ontem,
quando foi ontem (Iris).
A ambulância, em seguida, mas sempre sem resposta. Neste ultimo caso chamei a
polícia porque ela estava muito agressiva, ai foi o jeito chamar a polícia. Nas
situações de crise eu já chamei bombeiros, foi quando ela estava trancada não queria
abrir a porta (Hestia).
5.3.3 Hospital Mental de Messejana
Seguindo o fluxograma do itinerário de resolução das situações de crise, após
assistência prestada pela ambulância, o sujeito é conduzido ao Hospital Mental de Messejana,
110
em que passa pela triagem e, em seguida, é encaminhado ao médico, só neste momento que a
ambulância é liberada, isso causa atrasos e perda de tempo na assistência às demais chamadas.
A análise da assistência disponibilizada no interior dos hospitais será realizada a
partir das narrativas dos pesquisados, pois a assistência hospitalar não é objetivo deste estudo.
Não fazer menção a este fato, no entanto, é obscurecer ainda mais o sofrimento
vivenciado por familiares e sujeitos na busca por uma assistência de qualidade e resolutiva. O
hospital psiquiátrico é deficiente no processo de cuidar, pois apresenta deficiências de várias
ordens. Além disso, esse equipamento institucional é marcado pelo estigma, adquirido por
séculos, de maus-tratos, isolamento e segregação.
Eles não têm um pingo de respeito pelas pessoas, às pessoas estão ali humilhadas,
realmente necessitando daquele atendimento, se submetem a essa coisa degradante,
de ficar no frio, no chão sujo, tem que se submeter ou então ficar a noite inteira
sentada numa cadeira até de manhã (Geia).
[...] estruturas físicas não adequadas para tratar um sujeito desse tipo, falta
alimentação de qualidade, faltam terapeutas ocupacionais, recurso material, para
criar atividades que envolvam esses sujeitos e profissionais mais qualificados,
porque alguns profissionais do tipo médicos, psiquiatras, psicólogos, mas outros
tipos de funcionários realmente deixam muito a desejar (Orfeu).
5.3.4 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
O CAPS não aparece como recurso de proteção em situação de crises dos sujeitos
com sofrimento psíquico. A ausência de estrutura mínima de ordem física, de recursos
materiais, medicamentosos e de equipe preparada para lidar com a situação de crise nos CAPS
inviabiliza o acesso deste sujeito e de seus familiares a esta unidade. A orientação da gestão
municipal é que o CAPS seja a porta de entrada da rede de assistência para essas situações, no
entanto, o que observamos é que estes recursos não estão preparados para lidar com este tipo
situação.
Há algumas ações que demonstram a tentativa de manter o estado de controle dos
sujeitos psicóticos que tendem a desenvolver as situações de crise, como a aplicação mensal
em domicílio da medicação. Entretanto, no momento da situação de crise não se encontra
111
ação desenvolvida pelos CAPS junto a este sujeito. Isso faz com que os familiares não
apresentem confiança nos trabalhos desse equipamento de saúde.
[...] as meninas do CAPS vem...no CAPS ela é bem tratada...não tenho o que
reclamar do CAPS...As meninas todo mês vem dar uma injeção nela, a enfermeira
veio, eu marquei...uma ... consulta com este médico que chegou lá que eu disse. Elas
vieram buscar ela na kombi...Ela bem tratada lá. Ela é que não gosta de ir...não gosta
de fazer terapia, não gosta nada disso...Ela toma uma injeção mensal as meninas
vem dá em casa porque ela não estava mais indo para lá (Iris).
Nos CAPS num tem médico, se tem médico, se tem a crise não fica lá, manda prós
hospitais, então é difícil, complicado. Os CAPS não resolvem, não resolvem porque,
porque o sujeito só vai quando ele quer e o meu não vai, não tem nem perigo dele ir.
Para dizer que ele não foi neste tempo todinho, ele foi uma a três vezes só, ele não
vai, ele diz: eu não vou, eu não vou e bate o pé e não vai... Eles não dão receita sem
vê o sujeito, porque é obrigação deles quando estava tendo uma reunião lá, eu
sempre vou para as reuniões lá, que era obrigação do pessoal dos CAPS virem na
casa da gente ver o sujeito, já que o sujeito não vai, eles têm como vir em casa e eles
não vem. Ele estava este tempo todinho sem ir, ai a gente foi lá, eles (CAPS), fica
aqui no bom jardim, ele me disseram que tinha que fazer uma... triagem, iam marcar
um dia de uma triagem para mim levar ele para poder fazer. Então é difícil, muito
difícil, ainda mais que esses hospitais que querem fechar... tem é muito fechado e
fica mais difícil, porque esses “CAPS” num adianta não... Aí não tem como, a gente
se socorrer nos “CAPS” (Atena).
5.4 O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede
A dimensão do cuidado ganha relevante importância no contexto das situações de
crise por se constituir em uma forma de lidar e compreender os quadros instalados no
momento da crise. O cuidado se constitui de um conjunto de saberes e práticas que se instituí
por novas formas de assistir, compondo-se, assim, em um território interdisciplinar sob o
signo da multiplicidade (RINALDI; LIMA, 2006).
Esta multiplicidade implica na necessidade de uma participação ativa de todos os
atores sociais no processo de elaboração, escolha e execução do projeto terapêutico que o
sujeito se submeterá. Para isso, requer esforço intenso e consistente da equipe de saúde,
família e sujeito, na elaboração de um plano terapêutico que gere um novo processo de cuidar
(fluxograma).
112
Figura 7 - Fluxograma demonstrativo de um projeto terapêutico.
Observamos completa desintegração entre equipe de saúde e familiares, angústia
de familiares na busca por explicação quanto aos episódios de crise, em um contexto de
completo desconhecimento da situação de tratamento.
[...] eu não sei como vai ficar porque os médicos não dizem, um diz que ele não tem
nada, outros dizem que tão cedo ele não vai sair (Hera).
Era isso que eu queria saber, que eu já até perguntei para o médico: doutor, por que
ela tomando o remédio ela entra em crise? Mas, ninguém me responde e nem eu sei
por que...Eu sou consciente que eu dou o remédio...eu...vejo tomando e ela entra em
crise...depois que ela entra em crise, ela só fica boa se ela se internar....se for no
hospital (Iris).
É possível perceber que o sujeito não é considerado no contexto dos diálogos que
conduzem seus diagnósticos, uma vez que não há, nos relatos, comentários que exponham se
o sujeito chegou a ser ouvido ou examinado. Infelizmente, ocorre, simplesmente, o sequestro
da liberdade do sujeito.
[...] o médico disse para mim [mãe do sujeito]: minha filha faça um quarto lá no
fundo do quintal e bote ele lá dentro, a senhora bote grade. E eu disse o senhor vai
preso no meu lugar? Porque se eu fizer isso eu vou presa (Atena).
A rede não dispõe de estrutura que recepcione, oriente um processo de
acompanhamento nas situações de crise. Acreditamos que a instituição de protocolos e de
FAMÍLIA
PROJETO
TERAPÊUTICO
EQUIPE DE
SAÚDE
SUJEITO
113
planos terapêuticos singulares em muito contribuiriam para reduzirem as constantes situações
de crise.
O grande desafio do século XXI, com relação ao cuidado em saúde mental, é
romper com antigos paradigmas de saber, que ainda são instituídos no momento das
assistências profissionais, caso do médico citado que, equivocadamente, propõe assistência
baseada em perniciosos métodos de retrocesso das formas de coerção física, próprias do
tratamento moral. Torna-se necessário instituir um movimento que estimule a coprodução de
cuidado, tendo em vista o processo paulatino de responsabilização de atores e instâncias
sociais pelo cuidado no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, abrangendo familiares e
vizinhos de sujeitos psiquiátricos – como também pastores de igrejas locais e mesmo patrões
no ambiente de trabalho – têm sido instigados a “participar” da política pública,
principalmente no lugar de “cuidadores” e de “suporte social”, embora oficialmente
considerados “parceiros” (SILVA, 2009).
Aspecto que vale ressaltar é a confiança em uma entidade superior. A presença de
Deus, nesse aspecto não está ligada, apenas, ao exercício espiritual da fé. Na realidade, ao
buscar a Deus, em um determinado curso da doença, os sujeitos e suas famílias expressam o
desamparo e a ausência de cuidados da rede de atenção, ficando apenas presença da família.
Ou seja, o sentimento de não existir a quem recorrer, no plano material, quando as
necessidades surgem.
Quando eu estou assim quem cuida de mim? É Deus! Aqui na terra é a família, a
família que gosta da gente (Afrodite).
Eu passei dois dias com ele lá [Hospital Mental de Messejana] sabe, foi que graças a
Deus abriu uma porta e surgiu uma vaga no São Vicente de Paulo e botei ele lá
(Atena).
[...]eu creio que Deus vai transformar aquela vida, ele pode curar, ele tem todo o
poder de curar e libertar...porque Deus tem o poder. Nós não podemos nada, mas ele
pode, porque ele é o médico dos médicos (Atena).
Por outro lado, o abandono do tratamento, aparentemente como um ato consciente
do indivíduo com transtorno mental, pode representar ausência do cuidado da família. Ao
passo que, geralmente, essa ausência pode ser uma fuga do sofrimento vivenciado. Assim, o
sofrimento passa a não ser acolhido e se configura como fatalidade. A fuga dessa fatalidade é
representada pelo não cuidado da família.
Porém, o processo de cuidar não pode ser rompido pela decisão tomada pelo
sujeito. Faz-se necessária intervenção por parte de algum dos integrantes da cadeia cuidadora.
114
O ato de cuidar envolve muitas implicações. É imprescindível o compromisso
familiar e profissional nesse processo para que sejam garantidas ao sujeito em sofrimento
mental as intervenções necessárias, seja de ordem institucional (consulta, medicação, terapia
etc.), intersetorial (habitação, trabalho, esporte, cultura e etc.) ou familiar (atenção à pessoa,
escuta, carinho etc.).
Ela fez tratamento no CAPS [...] agora não. Ela resolveu abandonar o tratamento...
minha mãe deixou a casa, não conseguiu mais lidar com a situação – e ela já é uma
pessoa de idade aí minha própria irmã – que tem o problema – resolveu não tomar
mais nenhum medicamento [...] Ela fazia o acompanhamento, mas resolveu desistir
por conta própria [...] (Orfeu).
[...] porque das vezes [que] foram medica-la eu não fui[...] (Hestia).
O processo de assistência se dá, principalmente, em dois espaços institucionais: o
SAMU e o hospital psiquiátrico. Percebemos que o processo do cuidado ocorre nesses
serviços devido a desestrutura da rede substitutiva existente em Fortaleza, conforme já
discutido anteriormente. Ou seja, o espaço hospital psiquiátrico, embora muito condenado por
seus múltiplos problemas na assistência ao usuário do serviço, tem-se mantido como porta de
entrada para os casos de crise psíquica porque não há outro mecanismo de assistência ao
sujeito com necessidades de cuidados em saúde mental.
Portanto, o fluxo seguido pela família foi chamar o SAMU para que este possa
conduzir o sujeito ao hospital psiquiátrico. Todos esses fatos apresentam a ausência de uma
rede extra-hospitalar capaz de fornecer respostas às necessidades de saúde dos usuários do
serviço de saúde pública.
Ainda que os familiares saibam que o hospital não é o espaço ideal para cuidar do
seu ente em sofrimento mental, eles recorrem a esse serviço, se submetem ao caos e, ainda,
defendem a unidade hospitalar. Tudo isso porque não há outro espaço no qual os familiares
possam recorrer no momento de profundo sofrimento dos seus entes, como são as crises. O
hospital é percebido como local ideal para um processo de contenção emergencial.
A Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza implantou suporte de assistência à
situação de crise, abrindo um CAPS tipo III, no final do ano de 2012. No entanto, restringiu a
assistência disponibilizada pelo aparato a sua rede de CAPS. Desta forma, a única maneira de
adentrar neste novo serviço é estar em situação de crise em um CAPS da rede de Fortaleza,
assim, a demanda oriunda das ambulâncias do SAMU continua sem opção extra-hospitalar
para conduzir seu sujeito.
115
Estes CAPS não eram para existir não, era para existir hospitais, abrir estes hospitais
que estão todos fechados, abrir para colocar este pessoal para dá sossego a gente,
porque a gente não tem sossego não [...](Atena).
A internação involuntária, do tipo que ocorre sem o consentimento do usuário e a
pedido de terceiro foi instituída pela Lei 10.216 como forma de o indivíduo em sofrimento ter
um responsável por si e, assim, não ser abandonado e esquecido nos hospitais (BRASIL,
2010). Esta lei institui os direitos do sujeito mental e define as formas de internação do
indivíduo quando as formas de assistência extra-hospitalar estiverem esgotadas.
Mesmo que os procedimentos legais estejam sendo respeitados, não foi procurada
outra forma de assistência, sem ser o espaço hospitalar.
Meu menino mais velho foi quem foi [...]ele assinou o termo para ele entrar e ele só
sair se meu filho assinar o termo para ele sair, a Dra. ontem falou S. teu pai só sai
daqui se tu vier assinar. Enquanto tu não assinar para ele sair nós não podemos
deixar ele sair daqui, porque você tem que assinar o termo da saída dele. Ai tá nesta
situação [...] ele só sai se o meu menino for assinar para ele sair (Hera).
O cuidado que os familiares têm dado ao sujeito mental apresenta algumas
questões: a primeira é a desconfiança na assistência disponibilizada pelos serviços extra-
hospitalares, geralmente consequência de desconhecimento dos serviços disponibilizados
nestas unidades ou devido a tentativas frustradas por atendimento em situações de crise. A
segunda é o fato de a família considerar o hospital como um espaço que lhe proporcionará
sossego daquela situação vivenciada que, em um primeiro momento, parece uma coisa
horripilante e segregadora. No entanto, este sentimento surge, não como uma forma de se
livrar do familiar em situação de crise, não porque a família o considere um peso no contexto
de vida, não porque não ame, mas, simplesmente, por encontrar-se exaurida no ato de cuidar.
Cavalheri (2010) afirma que mesmo as famílias preferindo manter seus familiares em casa a
vê-los internados, expressam cansaço, exaustão e necessidade de ter um tempo para si, um
tempo livre.
É importante ressaltar que o sujeito mental está sendo entregue à família sem o
devido conhecimento das reais necessidades e condições da família, especialmente das
cuidadoras em termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes
profundamente interligados. Esta simples transferência de responsabilidade, tirando-o de
dentro dos muros hospitalares e o confinado a vida familiar, tende a ocasionar prejuízo ao
sujeito e a seus familiares (GONÇALVES; SENA, 2001).
Quando o sujeito apresenta pequena melhora é devolvido aos familiares sem que
tenha alcançado recuperação adequada. Este fato pode ser observado de duas maneiras, na
116
primeira, a devolução pode ocorrer de forma precipitada devido à rede hospitalar, que se
encontra encharcada, produzindo o efeito conhecido como porta giratória, cujo hospital
regulará a entrada e a saída dos sujeitos e assim disponibilizar mais leitos para internação e,
consequentemente, mais recursos financeiros. O segundo olhar centra no desejo da família de
manter seu familiar assistido em um hospital, possibilitando, assim, um convívio familiar
salutar.
...muito importante que eu acho os hospitais... [mas] quando a sujeito melhora um
pouco...eles joga pra casa...às vezes, a pessoa continua... fizeram isso com
ela...melhorou um pouquinho, botaram...para casa. Passou foi tempo para ela ficar
boa...isso...eu acho um ponto muito negativo...porque, às vezes, a pessoa não está
completamente boa. Ontem mesmo eu vi uma menina lá que estava de alta, a menina
toda impregnada, de olho duro... eu pensei que ela tivesse se internado, ela tinha
saído do internamento... (Iris).
A família do sujeito em sofrimento psíquico vivencia o conflito entre internar
ou não seu parente, por um lado precisa internar, pois não encontra na rede substitutiva de
Fortaleza aparato capaz de prestar assistência eficiente a este sujeito e, por outro lado, sofre
com a internação por conhecer as formas de (des) cuidado disponibilizado no interior dos
hospitais psiquiátricos.
A família conhece os procedimentos disponibilizados na rede hospitalar e que
prorroga ao máximo a internação de seu parente, somente recorrendo a este suporte quando se
esgotam os recursos disponíveis ou o sujeito encontra-se em risco de morte.
[...] eu sei o sofrimento, eu sei como é. Só levo quando ela fica sem comer e sem
tomar o remédio. Como ela estava... aguentando...mas, mesmo assim não consegui.
Por fim ela já não estava mais comendo, dizia que eu colocava comida pra ela em
um prato de defunto... (Iris).
O hospital é percebido como local ideal para um processo de contenção
emergencial. A busca de cuidado para o ente é um momento de sofrimento para a família que
tem como causa a ausência de serviços que proporcione assistência adequada a estes sujeitos
em situação de crise. Esse fato é ponto de tensão emocional na família.
[...] eu vinha dominando ele 24h porque eu não queria que ninguém o maltratasse,
ele não queria ir para o hospital... “não me leve a força” (filho). Não, eu não vou
levar a força, o que der para fazer por você eu faço... o que puder fazer por você eu
faço, tudo que dizia... e pedia que eu fizesse por ele eu fazia (Hera).
O ambiente hospitalar reflete na família e no sujeito percepção de vigilância, de
punição, estigmatização, administração sistemática do vexame, a disciplinarização, as
117
relações verticais e assimétricas, a proibição da palavra, a “privatização” do sofrimento
psíquico, a medicalização, são alguns analisadores eloquentes (KAZI, 1999).
[...] o sujeito que não tem um acompanhante, ele está meio que jogado a própria
sorte. Claro tem a alimentação garantida e tal, o banho e tudo mais, mas assim, a
gente não ver um trabalho [de] terapia ocupacional regular... É a sexta vez que eu
estou no hospital. Eu sei como é que é. A gente não vê um empenho de uma
psicóloga querendo saber a história deles para vê se dá um jeito de melhorar[...]o
que a gente vê é que aqueles sujeitos que têm família próximo tem mais um cuidado
mas, aqueles que não tem família[silêncio]são abandonados[...] (Geia).
A forma de assistir dos hospitais psiquiátricos encontra-se em decadência,
requerendo transformação emergencial e que já tarda a necessidade de implantar uma rede
que seja resolutiva à problemática da situação de crise psíquica no município de Fortaleza. O
que se tem é a existência de uma assistência à situação de crise centrada no atendimento
emergencial, fato que centra a atenção no serviço do SAMU e tem como porta de entrada os
hospitais psiquiátricos.
A deficiência encontrada nos serviços extra-hospitalares do município de
Fortaleza incha os hospitais psiquiátricos que, assim, permanecem obrigados a receber os
usuários em situações de crises psíquicas porque esses sujeitos não tem outro espaço para
buscar assistência. A ausência de um serviço de qualidade que oferte ao sujeito suporte
assistencial efetivo no momento ou na fase pré-crise, garantindo o acesso à assistência de
qualidade e na rede de serviço extras hospitalares.
[...] a última consulta dela foi marcada com oito meses(CAPS)vai ser em
dezembro...mas na hora que a gente quiser o remédio a gente vai falar com o outro
médico, mas... o outro médico não pode fazer nada...Para... falar com o médico da
pessoa...[precisa] marcar uma consulta extra...Eu acho as consultas de lá, os retornos
de lá, muito prolongado...Se o sujeito estiver em crise, amanhã vamos para o
médico? Eu não posso fazer isso, entendeu? ...a última consulta... foi...a oito meses!
Tem condição? ... e não era desse jeito. O máximo que passava era três
meses...passou para quatro, passou para cinco e...tá agora [assim] (Iris).
Transcorridos mais dez anos da implantação do primeiro CAPS no município de
Fortaleza, ainda, é possível visualizar problemas de ordem administrativa, como ausência de
estruturas físicas, de profissionais e, principalmente, de protocolo de atendimento que permita
identificar e recepcionar os sujeitos que estejam apresentando sintomas pródromos de crise
psíquica.
O intervalo entre as consultas é outro problema que pode ser considerado fator
potencializador das crises psíquicas, pois se torna inadmissível um intervalo de oito meses
118
entre uma consulta e outra de um sujeito que esteja em situação de crise. É imprescindível
realizar acompanhamento adequado da evolução deste sujeito, acompanhar as possíveis
reações medicamentosas e programar conduta terapêutica capaz de inibir a manifestação da
crise.
5.5 O porvir na visão do familiar e do sujeito em crise
Conseguir uma assistência de qualidade ao cuidado em saúde mental é,
seguramente, o primeiro problema que a família do sujeito em sofrimento psíquico busca
como perspectiva para o futuro. Infelizmente, não depende deles a estruturação de uma rede
de cuidados, todavia, são as maiores vítimas da ausência dela.
Os serviços extra-hospitalares devem assumir a posição de protagonista da
assistência ao sujeito em sofrimento psíquico e colocar-se como dispositivo de acolhimento,
de cuidado e ressocialização. Somente quando implantada uma rede de saúde mental que
garanta atenção de qualidade ao sujeito em sofrimento psíquico é que seus familiares poderão
sonhar ou vivenciar uma melhor qualidade de vida para seu familiar em sofrimento psíquico.
O porvir, na visão da família, é refletido no desejo de ter uma vida que eles
consideram normal. E o normal para eles é simplesmente “ter uma cama para dormir” ou
“comer em paz”.
É triste dizer isso porque eu queria muito viver numa casa com meus moveis, minha
cama direitinho, com tudo direitinho... ver meu filho bem, eu queria ter uma vida
digamos quase normal porque é difícil você dizer vida normal com uma pessoa com
transtorno...uma vida próximo a vida que as outras pessoas tem, eu não tenho essa
vida, eu durmo no chão porque ele não deixa eu ter uma cama...eu vejo pouca
esperança, do jeito que tá hoje... (Geia).
O sofrimento é uma realidade concreta e uma característica comum entre as
famílias do estudo. O lar desses grupos de indivíduos é claramente marcado pela ausência de
paz, vivência de experiências angustiantes e de completa falta de esperança em dias melhores,
tanto em relação à assistência em saúde, quanto à situação financeira. Pois, a rede disponível
ao tratamento não é a ideal e, em vez de estimular uma reabilitação deste sujeito, tende a
produzir mais tensões, agressões e violações de ordem física e psíquica.
Quem convive com louco não tem paz, porque muitas vezes eu não como, porque
não dá para comer. A gente não se alimenta direito, não dorme direito, não tem
119
sossego, principalmente no final de semana que tem bebedeira e o pessoal dão
bebida para louco [...] (Atena).
[...]eu agora posso tá com ele no hospital porque ele é menor de idade e quando ele
ficar de maior eu vou ser obrigada a deixá-lo sozinho...vou ser obrigada a ver ele
apanhar dos outros, acontecer uma coisa de ruim com ele, até um estupro de um
sujeito com outro que acontece isso infelizmente... (Geia).
Quando ele (filho) está em crise [...]vou procurar a medicina para vê se a gente tem
um pouco de paz, [...] (Atena).
[...] já tentei três vezes me aposentar não consegui... por causa deste engancho
de...ter que morar só para dizer que precisa... eu preciso, eu necessito porque quando
eu tiver velha, coroca (risos) quem vai cuidar de mim, imagino isso para o futuro,
[...] (Afrodite).
O sujeito mental é colocado à margem da sociedade e do mercado de trabalho e
passa a depender de benefícios para obter renda mensal que, muitas vezes, é a única renda da
família.
A ausência de intervenção terapêutica adequada expõe os sujeitos mentais a
repetidas crises, e estas, por sua vez, modificam o convívio dos membros da família: separam
os entes de forma a interferir nos laços afetivos da família; membros se destituem de suas
posições no grupo familiar; deixam de ser chefes de família, pais, esposos porque assumem
atitude de revolta e não acolhem o sofrimento de conviver com um sujeito com crises
psíquicas. Assim, redes sociais são abruptamente rompidas e novas rotinas de
responsabilidades e decisões são estabelecidas no interior das famílias.
Não estou me sentindo muito bem não, porque nós nunca nos separamos desta
forma, 36 anos nós nunca nos separamos. [...]desta forma assim nós nunca tínhamos
nos separado não e toda vida eu cuidei muito bem dele, porque ele sempre foi uma
pessoa muito legal, nunca deixou...eu ficar com as minhas coisas na cabeça, sem ter
condições. Graças a Deus isso ai nunca aconteceu ele sempre foi uma pessoa que
nunca deixou faltar nada dentro de casa... eu estou sofrendo, porque assim, eu não
posso ficar direto na minha casa... eu venho cuido de alguma coisa, do uma geral...e
vou para casa da minha menina, para casa do meu menino. Eu me sinto [só] coisas
que eu não resolvia agora eu tenho que resolver...ele disse lá que eu estou sofrendo
muito, eu não estou me alimentando direito, que ele já sabe quem sou eu...eu não
tenho é força de vencer a batalha (Hera).
É mais difícil porque eu não tenho marido, porque se eu tivesse um homem que me
ajudasse nesta caminhada, um marido, um esposo, mas não tenho. O pai dele e nada
é uma coisa só...é um pai que não tem amor por ele, manda eu botar ele no meio da
rua...isso é coisa de pai? ... Lugar de doido é no hospital, o que ele diz é isso com o
filho. No lugar de ajudar só atrapalha cada vez mais... (Atena).
O convívio com a doença mental é muito difícil, desgastante e cansativo para o
grupo familiar e agrava-se quando este cuidado centra-se em uma única pessoa, pois a torna
vulnerável a manifestações de ordem física, emocional e econômica. Outra constatação no
120
cuidar no contexto familiar é que a maioria dos cuidadores é do sexo feminino, somente na
ausência destas é que um familiar do sexo masculino assume esta atividade, conforme
assinala Cavalheri (2010).
Diante da dificuldade de assistir o sujeito em sofrimento mental em casa,
percebemos duas posturas distintas. Uma crítica e ativista, em que surgem sugestões que
representam desejos de um serviço que proporcione assistência digna a esta população, de
forma que possibilite ressocialização e a socialização de seu familiar. E uma postura de quem
se encontra vencido: passivo e sem perspectivas de mudanças do contexto contraditório que
ora se apresenta.
Na alusão ao “cuidador domiciliar” e às “visitas domiciliares”, registramos o
desejo da família de continuar cuidando de seu ente.
[...] então já pensou se o Estado...pagasse um cuidador... para que você pudesse ter
mais esse suporte domiciliar...Seria muito melhor, a gente não precisaria esta
internando a pessoa o tempo todo, a gente poderia cuidar da pessoa em casa, se
houvesse um cuidador, alguém que fosse, ficasse na sua casa, por um determinado
período... te ajudando[...] (Geia).
Eu acho o seguinte: que mesmo que eu tenha alguma coisa a dizer, não vai adiantar
nada, viu. Porque nós não somos maioria e a gente fala, fala, porque o que a gente
vê na televisão são as ambulâncias sendo mostradas e os anjos da noite socorrendo
não sei quem. E quando a gente precisa é uma dificuldade toda, eu não tenho nada a
dizer por isso, porque não adianta nada. Bem que eu teria, mas eu não vou dizer,
porque não vai adiantar, não vai adiantar o meu pedido, bem que eu queria dizer faça
isso, eu gostaria que fizesse assim, porque não adianta. Inclusive eu até me estressei
com o senhor, mas é porque faz raiva mesmo, a gente está precisando de uma coisa e
não ser atendido. Eu teria bem o que dizer mesmo, mas deixe para lá, não adianta,
não vou reclamar porque não adianta eu reclamar (Iris).
...maior atenção para saber a historia deles, para vê se existe uma recuperação,
porque... [não] é só dar remédio, comida e ele ir pra casa... a gente vê muita
reincidência...fica nesse vai e volta o tempo inteiro. Não seria melhor fazer um
trabalho para que...ficasse muito mais tempo em casa e poucas vezes no hospital, o
hospital ser realmente uma emergência[...] (Geia).
[...]ter um terapeuta ocupacional que fosse até a minha casa atende-lo lá...quando ele
estivesse melhor voltaria para essa rotina dele... ter um serviço de tempo integral[...]
(Geia).
[...] o CAPS deveria funcionar para esses sujeitos o dia inteiro...um CAPS que
deveria ter tempo integral, que eles pudessem ser atendidos por vários
profissionais... psicólogo, terapia ocupacional, fonoaudiólogo...ter um médico claro,
um médico é importantíssimo também pra acompanhar a medicação. Que eles
pudessem chegar oito horas da manhã e vim para casa cinco horas da tarde era o
ideal, eles almoçariam no CAPS... teriam reuniões regulares com os familiares para
explicar como lidar com eles em casa (Geia).
121
A base das sugestões apresentadas nesses resultados é o princípio da dignidade da
pessoa humana. Pois, antes de qualquer necessidade que o ser humano venha a apresentar, ele
é uma pessoa, portanto deve ser tratada com dignidade.
vê eles como seres humanos e não como um sei lá...subpopulação... eu... as
vezes...vejo alguns aqui de uma forma tão massacrada, doente, magro,
que...comparo eles com aqueles judeus no campo de concentração...aparência física
deles, é tão maltratado de uma maneira que você pensa, não [é] possível...não são
tratados feito gente (Geia).
Destacamos a importância do acompanhamento terapêutico do sujeito no
domicílio, uma vez que a visita domiciliaria é fundamental para aproximar sujeito, família e
instituição. A visita domiciliaria ou assistência em ambientes externos é uma forma de as
equipes dos serviços de saúde expandir suas ações e, também, a oportunidade de conhecer o
contexto familiar e a estrutura das famílias para cuidar de seu familiar. Na maioria das vezes,
essas famílias não têm estrutura física, nem psicológica para cuidar do ente com sofrimento
mental.
As unidades de saúde, no nível local, foram constituídas para ofertarem um
serviço de tempo integral, com alimentação, terapias e convívio humanizado. Contudo, a
grande demanda, agravadas pela existência de poucos serviços extra-hospitalares, inviabiliza
ofertar estes serviços a todos os frequentadores dos CAPS, sendo selecionado número
reduzido de sujeitos para receberem estes serviços. Além disso, a alimentação, nem sempre, é
constante, pois, barra na burocracia das licitações municipais.
No contexto da assistência emergencial, ressaltamos a ampliação no número de
ambulâncias, já que o município de Fortaleza dispõe apenas de uma viatura para atender a
estas chamadas e, a nível hospitalar, é requerida a contratação de recursos humanos para
proporcionar melhor assistência aos internos.
O presente estudo apresenta importantes contribuições para a gestão municipal de
saúde de Fortaleza, na área de saúde mental, de forma que medidas de caráter intervencionista
sejam implantadas em caráter de urgência.
122
6 REFLETINDO SOBRE A COMPREENSÃO DAS HISTORIAS DOS SUJEITOS DO
ESTUDO
Este estudo possibilitou adentrar no drama humano e assistencial vivenciado por
familiares e sujeitos em sofrimento psíquico, em um dos momentos mais angustiante deste
fenômeno: a crise. No contexto sócio-institucional de Fortaleza, campo empírico da
investigação, não foi possível identificar uma rede substitutiva alternativa que contemple as
necessidades do sujeito psíquico, tendo-se constatado falhas dramáticas no momento crítico
representado pela crise psíquica.
Verificamos a complacência da rede substitutiva na coexistência com a rede
hospitalocêntrica, pois o município não teve condições ou não optou por implantar uma
estrutura de serviços substitutivos que possibilite assistência a estes quadros psíquicos de
crise. Ainda que a rede municipal implantada proporcione impactos terapêuticos positivos, a
inexistência de estrutura de retaguarda aos CAPS, principalmente na situação de crise
psíquica, constitui-se ponto de estrangulamento crítico da Rede de Atenção em Saúde Mental
(RASM) municipal: os casos pesquisados lançaram mão da rede de atenção terciária
composta pela díade SAMU-Hospital Psiquiátrico para resolver as situações de crise de seus
familiares. Constatamos, também, a partir dos relatos dos entrevistados, que a rede
substitutiva não apresenta condição de prestar assistência no momento da situação de crise.
Desse modo, realizamos reflexão panorâmica sobre este problema a nível
nacional, de modo a situar o caso específico estudado neste contexto mais geral do país.
Como visto com maior detalhe e aprofundamento em capítulo anterior, o processo de
Reforma Psiquiátrica brasileira vem se consolidando no cenário nacional como movimento
histórico e revolucionário da luta antimanicomial. Tem como objetivo-estratégia fundamental
o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico, centrado
no paradigma psiquiátrico hegemônico.
Assim, procura instituir, no país, o processo de desinstitucionalização e a
concretização de uma rede substitutiva de atenção à saúde mental, que rompa com a lógica
hospitalocêntrica. As mudanças têm se referenciado em um processo de restituição da
cidadania do doente mental, visando socialização e rompimento com a dependência hospitalar
e introduzindo-o em um contexto novo de atenção, que proporcione relações interpessoais e
terapêuticas mais adequadas e humanizadas (AMARANTE, 2008).
Entretanto, na prática assistencial concreta dos serviços de saúde mental,
confluindo, paradigmaticamente, para uma situação semelhante a de Fortaleza, sérios
123
problemas assistenciais tem sido identificados e denunciados por diferentes atores sociais a
merecer reflexão crítica por parte dos gestores e defensores da Reforma Psiquiátrica.
Utilizaremos como panorama-referência (“viva”) para essas reflexões sobre o
contexto de assistência à saúde mental que vem sendo prestado no país o embate político-
conceitual recorrente nos últimos anos, na mídia nacional, sobre o tema, tendo como atores
selecionados a Associação Brasileira de Psiquiatria, supostamente defensora de interesses
privatistas no setor; o escritor-articulista Ferreira Gullar que, no caso, trata-se de um usuário
familiar (com voz midiática) do sistema de saúde e dos serviços de saúde mental, e as
entidades identificadas como defensoras da Reforma Psiquiátrica.
Os setores prestadores de serviços e os defensores das internações psiquiátricas
consideram que a concepção manicomial, associada ao tradicional hospital psiquiátrico, já
estaria superada, sendo o dispositivo hospitalar, ainda, essencial na atenção da saúde mental
em situações determinadas. Inclusive porque a rede substitutiva não se instalou por completo,
continua ineficiente no atendimento ao sujeito em crise e delega essa tarefa aos serviços de
urgência dos hospitais psiquiátricos (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007).
Nessa linha de argumentação, encontra-se a Associação Brasileira de Psiquiatria
(ABP), que teve suas contestações e críticas publicadas através de matérias e artigos
jornalísticos. A ABP utilizou do espaço de O Globo, do dia 20/07/2006, para escrever: O
grande equívoco da política de saúde mental. No artigo, a ABP, representada pelo seu
presidente [Dr. Josimar França], aduziu severas críticas ao Programa de Saúde Mental do
Ministério da Saúde:
...seu planejamento foi desenvolvido a partir de antigos preconceitos e com viés
populista, [e que] ... fugiu de critérios clínicos e foi fundamentado na percepção
equivocada, construída durante anos, de que todos os internos em unidades
psiquiátricas sofrem maus tratos. Para isso ressuscitaram o conceito de manicômio e
toda a carga pejorativa que acompanha a palavra (FRANÇA, 2009).23
É importante lembrar que os conceitos, os preconceitos e as percepções que
caracterizam os manicômios, atualmente, são oriundos de concepções historicamente fixadas
nos conceitos de loucura como doença. É a partir deste pensamento que se constitui a
periculosidade do louco e se estabelece a necessidade do isolamento (internamento), sendo
criadas as casas de repouso, em que se utilizou o poder absoluto para isolar habitantes sãos
(FOUCAULT, 2009). A adoção do manicômio como modelo de assistência aos sujeitos
alienados mentais do século XIX possibilitou a observação sistemática da loucura,
23
Disponível em: <http://www.jmpsiquiatria.com.br/edicao_24/grandeequivoco.html>. Acesso em: 26
jan. 2009.
124
considerada pelos psiquiatras da época o ideal para o tratamento ao louco (AMARANTE,
1996; OLIVEIRA, 2009).
Será que toda a herança da prática institucional manicomial está superada a ponto
de tornar o hospital psiquiátrico como espaço viável ao tratamento dos sujeitos em sofrimento
psíquico? Segundo os defensores deste espaço de tratamento, ele somente não se estabelece
porque os defensores da Reforma tendem a difundir o discurso de que a internação
psiquiátrica não é um procedimento adequado. No entanto, não foi isso que ouvimos nos
relatos dos sujeitos entrevistados nesta pesquisa: mesmo sendo o único recurso existente para
assistir o sujeito psíquico no momento de sua crise, os cuidadores resistem em internar o
familiar, procurando administrar a situação de crise até o limite possível. Finalmente, não
vislumbrando outra alternativa que consiga solucionar o problema da crise, os familiares
recorrem ao hospital psiquiátrico, o que o mantem vivo.
Porém, a ABP acredita que o descredito do hospital psiquiátrico é resultante do
processo de Reforma Psiquiátrica estabelecida no Brasil.
... numa movimentação batizada de “reforma psiquiátrica” (como se a especialidade
médica necessitasse de reforma...), fecharam leitos em hospitais públicos, vejam
bem, públicos, e posaram de “salvadores da pátria” para os flashes. Quem precisa de
reforma é o modelo assistencial e não os médicos. Na mais recente medida em busca
da unção popular, atraíram a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República para a assinatura de uma portaria interministerial que trata
de saúde mental. Mais explícito o objetivo, impossível. Conseguiram oficializar a
relação entre tratamento de transtornos mentais com os maus-tratos.6
Em 2009, uma figura importante da literatura brasileira adentra a discussão,
Ferreira Gullar, poeta, escritor e colunista do jornal Folha de São Paulo. Utilizou-se de seu
espaço jornalístico para escrever a crônica Uma lei errada, onde critica o fechamento dos
leitos psiquiátricos e o formulador, no Congresso Nacional, da Lei 10.216, a quem se dirigiu
da seguinte forma:
Havia, naquela época, um deputado... que aderiu à proposta, passou a defendê-la e
apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que "as
famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles". E eu, que lidava
com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: "Esse sujeito é um
cretino”. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes
ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que
internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. “Esse idiota tem a audácia de
fingir que ama mais a meus filhos do que eu”.24
A relação entre a família e o tratamento do sujeito em sofrimento psíquico centrou
a reflexão crítica de Gullar nesse trecho, ao questionar o pressuposto de que a internação do
24
Disponível em: < http://www.portalliteral.com.br/artigos/uma-lei-errada>. Acesso em: 04 abr. 2009
125
doente mental seria uma forma de a família livrar-se de seu parente, sem considerar as
situações-limite, inclusive de risco de vida, a que os cuidadores e seus familiares em crise são
submetidos, recorrentemente.
Na mesma direção, outro estudo aponta que alguns familiares visualizam o
processo de desinstitucionalização como etapa de transferência de responsabilidade, em que a
ordem, o controle e a verdade sobre a doença do familiar, que era definida pelo hospital
psiquiátrico, agora era transferido para si (RANDEMARK; QUEIROZ; JORGE, 2004).
Focault (2006) destaca a relação privilegiada do asilo com a família, em que este é visto como
lugar de formação da verdade.
É importante, ainda, ressaltar que o processo de desospitalização instalado, em
muitos casos, não observou a sobrecarga que a família enfrentaria na convivência com este
doente, desencadeando atitudes de incompreensão familiar e até de rejeição, motivadoras de
reinternações sucessivas ou de internações permanentes (GONÇALVES; SENA, 2001).
Cavalheri (2010) enfatiza que o processo de desinstitucionalização tem alto
impacto para familiares, pois, ao mesmo tempo em que possibilita a convivência e a
manutenção do vínculo, impõe à família a sobrecarga de cuidar do ente familiar em períodos
de manifestação aguda. A família, por outro lado, permaneceu na expectativa da construção
da rede substitutiva preconizada, capaz de suprir as necessidades de tratamento dos egressos
dos manicômios. A não constituição desta rede contra hegemônica tem reflexo sobre o
sofrimento de familiares e sujeitos, em situação de crise, reforçando a desassistência e a
crítica ao processo de reforma psiquiátrica..
As matérias selecionadas refletem isso e mostram a confluência na crítica de
polos-interesses não, necessariamente, idênticos, entre si, ou concordantes em suas
fundamentações, motivações e consequências, como ocorrem em relação a uma entidade
corporativa como a ABP e o usuário-familiar Ferreira Gullar. Ambos criticam, embora de
lugares diferentes, a forma como o movimento de reforma psiquiátrica associa o termo
manicômio com hospitalização, pois a palavra “manicômio” acreditam, já está em desuso e,
por si já é repleta de conotações negativas, sendo utilizada em uma época em que não existe
mais este tipo de hospital.
A possibilidade de expressão pública da sobrecarga de ordem física, emocional e
econômica provocada na dinâmica familiar e enfrentada pelos cuidadores do doente, e a
ineficácia de uma atenção de saúde mental satisfatória, fez com que a manifestação de Gullar
recebesse diversas adesões à sua crônica. Esse fato o levou a se expressar, mais uma vez,
através do texto jornalístico A sociedade sem traumas, em que referiu que a maioria dos
126
apoios recebidos em sua manifestação vem de familiares que têm experimentado as
consequências da Lei. Ressaltou, também, que elogios foram lançados aos bons atendimentos
na rede substitutiva, mas, mantinha sua crítica à impossibilidade das internações dos sujeitos.
Neste aspecto, fez comentários desfavoráveis à “Psiquiatria Democrática”, por condenar a
internação.
Se a doença, porém, for esquizofrenia, a coisa muda de figura: para a "psiquiatria
democrática", interná-lo é atentar contra a sua liberdade. É que, na verdade, para os
antimanicomiais, a esquizofrenia não é uma doença, como o é, por exemplo, a
tuberculose ou a diabetes. Para eles, trata-se apenas de um "transtorno" psicológico,
cujas causas estão fora do indivíduo: estão na família e na sociedade. Família e
sociedade que, para ocultar sua culpa, o internam25
.
Recoloca-se, deste modo, outra discussão, o fato de o transtorno mental ser
tratado como distúrbio social e não como patologia, ideia propagada pela antipsiquiatria26
da
década de 1960, que procurou definir que a experiência patológica não acontece no indivíduo,
enquanto corpo e mente doente, mas, nas relações estabelecida entre ele e a sociedade
(AMARANTE, 2007).
Gullar retornou à temática com certa constância, fosse através de novos artigos
(Boas Intenções e Volto a resmungar, 2009) ou como fez em 2011, participando do XXIX
Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em cada situação de retomada do assunto, Gullar
manteve posisionamente crítico quanto à Reforma, reforçando que o tratamento oferecido nos
hospitais psiquiátricos apresentava problemas, mas, que foram superados e não fazia sentido
“demonizar” a internação psiquiátrica (CFP, 2011). E, ressaltava que, tampouco, acreditava
que a internação, por si, resolveria os problemas, mas era inegável que, para casos de surto
psicótico agudo, ela era imprescindível (GULLAR, 2009).
As afirmações e questões conceituais-práticas levantadas pelo escritor deveriam
ser ouvidas-escutadas com a devida atenção e respeito que se deve ao outro, particularmente
no caso de um familiar que vivencia existencialmente o fenômeno da doença mental, sem as
usuais desqualificações, muitas vezes ideologizadas, que fogem ao debate mais profundo e
resistem em submeter-se ao escrutínio da crítica social, no caso, de um usuário do SUS,
inusualmente com possibilidades de “direito a voz”. Todavia, compreendemos que não se
25
Disponível em: < http://www.portalliteral.com.br/artigos/uma-lei-errada>. Acesso em: 04 abr. 2009
26
Movimento iniciado na Inglaterra no final dos anos de 1950 e que teve seu apogeu nos tumultuados anos de
1960, apresentou como principais idealizadores Ronald Laing e David Cooper. Fez crítica profunda à teoria da
psiquiatria e defendeu que não existiria, enfim, a doença mental enquanto objeto natural como considerava a
psiquiatria, e sim uma determinada experiência do sujeito em sua relação com o ambiente social (AMARANTE,
2007).
127
pode destituir do hospital psiquiátrico os seus malefícios, como um passe de mágica. Afinal,
foram nestes espaços que se instituíram as formas mais segregadoras dos doentes mentais que
se tem notícia. Ao passo que, também, não se pode acreditar que uma rede substitutiva suprirá
as demandas oriundas das crises psíquicas. Devem ser lembrados os transtornos que um
sujeito psiquiátrico em crise, ocasiona e que, geralmente, a família não dispõe de suporte para
resolver tal situação. Portanto, se os defensores da Reforma Psiquiátrica afirmam que os
hospitais psiquiátricos continuam sendo manicômios segregadores de seres considerados
“diferentes”, deve-se indagar que dispositivo a Reforma estrutura para o atendimento a este
sujeito em situação de crise.
Nesse aspecto, os defensores do campo da Reforma Psiquiátrica, ao se
posicionarem nesse debate sobre as críticas referidas, apresentam a rede dos serviços
substitutivos como alternativa ao modelo hospitalocêntrico e reinteraram as contradições,
conflitos e retrocessos do modelo asilar e manicomial.
A ABRASME assim se manifestou sobre as colocações de Gullar:
...desqualifica todo um processo social complexo, que vem evoluindo nos últimos 30
anos no Brasil, com a participação de diversos segmentos sociais, desde médicos
psiquiatras, outros profissionais de saúde mental e de saúde pública, poderes
legislativo, executivo e judiciário, cientistas sociais, sujeito em sofrimento psíquico,
seus familiares e diversos outros setores, denominando-o simplesmente de
“campanha contra a internação de doentes mentais”.27
A nota ressaltou que o autor pareceu incorrer no mesmo vácuo de compreensão de
muitos que confundem amplo processo social de discussão das instituições, com a ideia
simplória da desospitalização (OLIVEIRA, 2009b). Salientou, ainda, que nenhum profissional
de saúde mental sério defenderia uma posição de não internação de uma pessoa, quando
necessário.
Nessa perspectiva, o processo de Reforma tem estruturado serviços que garantem
tratamento e assistência digna ao portador de transtorno mental, sendo lugares de vida, de
estímulo, de confronto, de oportunidade, de diversas relações interpessoais e coletivas,
visando mudança cultural e política, antes social que sanitária (AMARANTE, 2008).
Estes serviços têm rompido e superado os espaços manicomiais que, segundo a
ABRASME, continuam a existir:
Os manicômios continuam existindo, continuam sendo desumanos, tratando seres
humanos como animais, produzindo mais doença e, com seu papel de depósito
27
Disponível em:http://www.abrasme.org.br/RESPOSTA_DA%20ABRASME_A%20FERREIRA_GULLAR.pdf.
Acesso: 25 mai. 2009b.
128
humano (temos milhares de pessoas internadas por 20, 30, 40 anos), continuam
sangrando o dinheiro público28
.
A instituição de uma rede substitutiva ao manicômio torna-se um desafio aos
militantes da Reforma, já que, assim, tornaria o hospital psiquiátrico objeto obsoleto e
ultrapassado. No entanto, a não estruturação deste serviço tornou os serviços comunitários
grandes captadores e encaminhadores de nova clientela para os hospitais psiquiátricos
(OLIVEIRA, 2009). É por esse motivo que militantes pró-hospital procuram por revitalizá-lo,
proclamando sua eficiência.
Em busca por interromper toda essa massificação de eficiência do hospital
psiquiátrico, a ABRASME propôs que se conheçam lugares que caracterizam verdadeiros
manicômios e aponta que pesquisas vêm evidenciando cientificamente avaliações positivas do
novo formato de atenção à saúde mental. Por fim, a entidade ressaltou o interesse existente
por trás de matérias deste modo, que buscavam por valorizar tratamentos ultrapassados.
Há, também, interesses no velho sistema de internações que não têm nada a ver com
a intenção de melhorar a saúde dos usuários, são herança da mentalidade do INPS,
onde as internações, e por quanto mais tempo melhor, são negócios que dependem
da hotelaria, dos serviços, das licitações e da medicalização excessiva dos sujeitos.28
A disseminação de matérias sobre a saúde mental brasileira tem conquistado
espaço considerável nos últimos anos na impressa brasileira, algumas com interesse de
demonstrar a evolução do sistema de atenção à saúde mental. Todavia, segundo a
ABRASME, muitas têm a má intenção e tentativa de manipulação da opinião pública. É
focada na tese da má utilização da informação que o Conselho Federal de Psicologia (CFP)
caracteriza o artigo do jornalista Gullar.
Usando e abusando de falácias, o seu artigo na verdade tem como finalidade
advogar, na contra mão das tendências mundiais, a favor da manutenção dos
hospitais psiquiátricos como feudos corporativos e contra o incômodo fim dos
privilégios dos empresários da Psiquiatria e de certa elite acadêmica - a Psiquiatria
de gravata - que se utiliza destes estabelecimentos como campo privilegiado para
experimentos locais, teleguiados pela indústria farmacêutica mundial29
.
28
Disponível em:
http://www.abrasme.org.br/RESPOSTA_DA%20ABRASME_A%20FERREIRA_GULLAR.pdf. Acesso: 25 mai.
2009b.
29
Disponível em: <http://www.abrapso.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=101>. Acesso em:
25.05.2009.
129
Para que a linha de defesa utilizada pelo CFP seja concretizada, é preciso
transformação do paradigma de atenção à saúde mental, ocorrendo transformação da
instituição psiquiátrica. Esta transição paradigmática tem que ser manifestada em todo projeto
sanitário, do contrário, continuar-se-á mantendo os empresários da loucura e alimentando os
experimentos farmacológicos nos novos aparatos assistenciais (FIGUEIREDO, 2007;
ROTELLI, 2001).
Em outra parte da nota de contestação ao artigo de Gullar, o CFP criticou a
tentativa de revitalizar a força do hospital psiquiátrico e manter o privilégio de psiquiatras no
domínio do conhecimento das patologias psíquicas.
...uma tentativa de não participação do médico no cotidiano dos cuidados hoje
desenvolvidos nos serviços substitutivos de forma integrada por todos os integrantes
da equipe multiprofissional. ... Como sabem aqueles que realmente trabalham em
serviços territoriais: sujeito preso (internado) no hospício, médico solto; sujeito solto
no território, médico preso no serviço.30
Amarante (2007) destaca que a natureza do campo da saúde mental vem
contribuindo para que se pense de forma diferente, não mais com o paradigma da verdade
única e definitiva, mas, em termos de complexidade, simultaneidade, transversalidade de
saberes.
Concordando com o autor referido sobre a complexidade e a necessidade de
múltiplos olhares e saberes para o pensar-fazer do campo da saúde mental e a relatividade e
perspectivismo das verdades, incorporamos ao conjunto de debatedores já apresentados, para
concluir, mas não finalizar a discussão, os informantes-cuidadores dos sujeitos em sofrimento
psíquico em situação de crise participantes desta pesquisa, no caso representados por Geia,
para que, pelo menos, deste modo, possam participar do debate, ainda que de modo restrito e
desigual. Espero, ao dar voz através desta pesquisa a usuários da rede de saúde mental do
Município de Fortaleza, contribuir com debate crítico, sob a perspectiva do usuário, e com a
melhoria do cuidado do sujeito em situação de crise:
“[...] de vez em quando é que ele enlouquecia...um dia que choveu ... ele tirou a
farda e ficou pulando no meio da chuva...não quis obedecer à professora...a pessoa se
agarrava...para vestir o calção...ele empurrava...tinha força...tinha uns sete para oito anos...
quando eu cheguei lá...estava encharcado...ela disse...foi muito difícil hoje...não quis sair da
chuva...não quis vestir o calção...empurrou as professoras...se agarrou com a gente...deu chute
30
Disponível em: <http://www.abrapso.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=101>. Acesso em:
25 mai 2009.
130
na canela...depois desse quadro da infância... começou a piorar...a ficar agressivo...por volta
dos 10 anos...pegava o cabo de vassoura...batia no meu pai...saia até sangue...ele começou a
quebrar as coisas dentro de casa... quebrou uma cadeira de plástico...arremessou a cadeira
contra um muro...quebrou um som...meu pai ficou muito preocupado...como é que vai ser
daqui para a frente...esse menino...já tem a força de quebrar uma televisão de 14
polegadas...arranca a borracha da geladeira... quebra a porta do armário...quebra a maçaneta
da outra porta...dá chute nas portas... quando ele ficar adolescente...quando ele ficar maior
como vamos contê-lo?...ele já tinha 13 anos...conseguiu arrancar uma porta...deixar só os
pedaços...estava de uma maneira assim impressionante...subia em cima de uma
pia...pulava...para ver se a pia desabava no chão... quando o SAMU chegou...ele não estava
mais quebrando...porque estava suado e exausto...fez muita força para arrancar essa
porta...não tinha mais força...já estava sentado no chão suado... sujo...nu...comendo as coisas
que tinha dentro da geladeira... estava quieto...exaurido.. quando cheguei lá eu apenas
banhei...vesti e levei-o...não deu trabalho nenhum para entrar na ambulância...a gente o levou
ao hospital de Messejana...foi à primeira vez que eu pisei no hospital de Messejana para dar
uma injeção... eu estava chorando...aflita... sem saber o que fazer... porque eu nunca imaginei
que ele chegasse a tanto...aí ele tomou uma injeção...foi para o Mira y Lopes...ficou na
intercorrência clínica...com 13 anos...a maior dificuldade em cuidar dele...já é um
adolescente...quando está em crise é muito forte...é pesado...é alto ...eu sempre necessito da
presença do meu esposo na hora da crise..não posso contar com a presença dele o tempo
inteiro...ele faz coisa arriscada...põe a vida dele em risco... corre...atravessa em frente de
carro...de ônibus...foge de casa...me agride fisicamente...rasga as coisas... destrói moveis...faz
várias coisas perigosas...a dificuldade é contê-lo... segurá-lo para ele não se machucar... não
machucar a mim... como conter se ele é um rapaz...eu ainda sou uma pessoa frágil...
pequena...eu não consigo...já pensou se o estado pagasse...um cuidador para que você pudesse
ter mais esse suporte domiciliar...seria muito melhor...não precisaria estar internando a pessoa
o tempo todo...poderia cuidar da pessoa em casa...se houvesse um cuidador, alguém que
fosse...na hora de uma crise...o conteria...o segurava...a última crise começou...ele já vinha há
vários dias fazendo coisa que não deveria...na segunda-feira chegou...saiu
correndo...atravessou Avenida...é um risco muito grande...foi correndo até a casa de um
amigo...ele sabe que lá tem uma palmeirinha que ele gosta...invadiu a casa...destruiu o jardim
inteiro...a esposa do meu amigo estava lá...ele trabalha na casa da esperança... por sorte ele
sabe...não ficou chateado... mas se fosse um estranho ele teria chamado o ronda...ele quebrou
um jarro de cimento enorme...destruiu todas as plantas...arrancou tudo com os dentes...as
131
mãos...eu não sabia como fazer para ele parar...consegui que ele saísse...levei-o para casa...na
terça-feira ele também tentou fugir de casa...destruiu alguns objetos em casa..rasgou roupa...a
camisa de malha dele e tudo mais... a gente ainda conseguiu que ele fosse para casa da
esperança...ele chegou a rasgar o banco do transporte escolar de uma mordida...na quarta-feira
eu fui com ele para evitar isso..fui e voltei com ele no transporte escolar...assim que o rapaz o
desceu de dentro do carro... que eu abro a casa e coloco a bolsa dentro...ele saiu novamente
pelo portão...atravessou avenida...foi novamente quebrar todos os galhos...árvores que ele
encontrou na rua ... aí eu peço ajuda a um amigo na rua...ele me dá uma corda...eu amarro as
pernas dele para ele não correr...também amarro a mão dele com a camisa dele...é muito
constrangedor...você ter que amarrar seu próprio filho...sair amarrado com ele pela rua...só
assim consegui chegar a casa com ele...quando cheguei... ele foi arrancar um galho...bateu na
minha mão...arrancou um pouco a pele do meu braço...chegou em casa muito
agressivo...chutou meu joelho...ficou arrancando meu cabelo...puxando meu cabelo...eu
resolvi desistir...de ficar perto dele...vi que ele ia me machucar...desço as escadas...ele pega a
cômoda e tenta arremessar a cômoda escada abaixo...para ver se a cômoda pegava em
mim...eu chamo a ambulância...chamei o SAMU...o SAMU demora muito... demorou 4
horas...como é apenas uma ambulância...não pode uma cidade...com mais de dois milhões de
habitantes terem apenas uma ambulância psiquiátrica...a espera é enorme...se um sujeito em
crise matar uma pessoa...quando a ambulância chegar vai estar só o cadáver...não vai mais dar
tempo de fazer nada...eu chamei a ambulância uma hora...eles chegaram às quatro e meia da
tarde...quando eles chegam...meu filho nunca precisou ser contido por eles...eles chegam a
crise já passou...aí ele entra bem....é bem atendido pelos rapazes...até eles conversam
comigo...já me conhecem...nós fomos com ele para Messejana...é mais outra espera
grande...tive que dormir no chão...muita humilhação as pessoas tem que dormir no chão...uma
pessoa lá dos funcionários molhou o chão sabendo que as pessoas estavam dormindo no
chão...não têm um pingo de respeito...as pessoas estão ali humilhadas...necessitando daquele
atendimento...se submetem a essa coisa degradante...ficar no frio...no chão sujo...tem que se
submeter...ficar a noite inteira sentada numa cadeira até de manhã.” [...]
132
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória deste estudo foi árdua e marcada por inquietações, conflitos e
perplexidades. Como em todo trabalho científico, muitas dúvidas me consumiram, me
torturaram, como, também, me enriqueceram no conhecimento acadêmico. Após definir o
trajeto que seguiria, entrei em campo e fui envolvido por uma realidade que me marcará para
a vida inteira. Os narradores se colocaram colaborativos e valorizados por obter uma
oportunidade de relatarem seu sofrimento ao cuidar de um parente em situação de crise e os
sujeitos tiveram na narrativa a oportunidade de expressar angústias, medos e temores. Todo o
contexto apreendido neste estudo marcará por longo tempo, pois percebi que no contexto da
Reforma Psiquiátrica brasileira, nem tudo são flores e que há espinhos dolorosos que são
encobertos ou desconhecidos.
Insurge das narrativas um relato peculiar da realidade vivenciada no contexto
das situações de crises psíquicas e a apreensão somente foi possível pela utilização da história
oral temática como metodologia. É bem verdade que hesitei, por algum instante, ouvir toda
história oral de vida, mas, contive-me por perceber que não daria conta de abordar um
contexto tão amplo. Mas isso em nada prejudicou o estudo. Pelo contrário quando da
confrontação das narrativas, obtive uma realidade detalhada da situação social e histórica que
as situações de crise psíquica representam no contexto familiar.
Ao insistir na história oral temática como metodologia para esta tese, percebo que
não estava errado, pois, o campo provou-me que há espaço imenso a ser buscado e ampliado
pela saúde coletiva com essa metodologia. A escolha, também, foi fundamental para
materialização das narrativas e para análise peculiar daquilo que a memória permitiu recriar.
Vale ressaltar que o estudo apresenta algumas limitações, entre elas o fluxo de
atendimento que são desenvolvidos no interior da rede hospitalar na chegada do sujeito em
situação de crise. Infelizmente, não conseguimos dispor de recursos que me levasse a adentrar
tal contexto. Mesmo assim, alguns pontos relativos a esta problemática foram visualizados no
corpo do trabalho, mas, ressalto que são oriundos dos relatos dos narradores e não de
aprofundamento na problemática.
Estruturado na premissa metodológica e respondendo aos objetivos e critérios
acadêmicos, chego a algumas conclusões.
1. O processo saúde/doença que se instala no contexto social e cultural das famílias passa
a gerar conflitos e sofrimento mental em seus membros. A partir desta instalação, inicia-se o
processo por uma assistência. Geralmente, a busca por esta assistência ocorrerá quando o
133
sujeito em sofrimento psíquico estiver infringindo as regras impostas por seus familiares,
quando deixar de obedecer e seguir os padrões considerados como normais. A percepção por
essa necessidade de cuidado é oriunda dos familiares já que o sujeito em sofrimento psíquico,
dificilmente, percebe a necessidade de ajuda e esta busca por ajuda, geralmente, surge quando
o sujeito encontra-se em um estado de agressividade e destruição relevante.
Ao iniciar a busca por uma ajuda, inicia-se também o processo de dificuldade que a família
enfrentará para alcançar o atendimento de seu ente. Primeiramente, a inexistência de uma rede
extra-hospitalar que receba este tipo de situação. Em seguida, a ineficiência no atendimento
do serviço de assistência médica de urgência (SAMU), que devido à deficiência no
quantitativo de viaturas tende a apresentar longo tempo de demora. Também percebi que
existe influência externa dentro do serviço do SAMU, que facilita o encaminhamento da
viatura em alguns casos. Mas, o fato primordial percebido foi à carência ou ausência de
qualificação da equipe em emergência que, pelos relatos dos familiares, não apresentam
conduta adequada na forma de abordar o sujeito na situação de crise. A presença da polícia,
como forma de apoio buscado pelos familiares foi outro fato marcante, isso demostra que a
necessidade da utilização da força na contenção do sujeito em sofrimento psíquico ainda
encontra-se internalizada na mente de seus familiares.
2. Nas relações de cuidado que se formaram durante as narrativas, percebi que não há
interface que integre a tríade sujeito, família e rede de atenção, pelo contrário, ocorrem um
isolamento integral do sujeito neste processo. Esse fato motiva profissional a propor
tratamentos ultrapassados e segregadores, como o médico que sugeriu a Atena o isolamento
de seu filho em um quarto no fundo do quintal de sua residência. A participação familiar no
plano terapêutico de seu sujeito é marcada por ausência do corpo familiar, centralizando o ato
de cuidar em um único individuo, geralmente, a mãe. No contexto familiar, encontrei a
ausência por completo da familiar extensiva, ficando centrado todo o cuidado a família
nuclear.
3. Por fim, o cuidado desenvolvido no interior das unidades hospitalares se revela como
grande conflito para as famílias, pois percebendo a inexistência de um plano terapêutico
definido e adequado ao cuidado de seu familiar, hesitam em interná-lo ou não. Mesmo
percebendo que o hospital psiquiátrico não é a estrutura assistencial desejada para assistir seu
familiar em sofrimento, mas é o único recurso existente, as famílias terminam preferindo
interna-los que vê-los presos por terem agredido alguém querido da família.
Acredito que o grande desafio da Reforma Psiquiátrica brasileira é detectar as
lacunas existentes na assistência ao sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise e
134
proporcioná-lo integração a este modelo inovador de atenção. A Reforma também deve
direcionar novamente seu olhar para o interior dos hospitais psiquiátricos, já que emergiu de
dentro deste espaço a este espaço deve voltar para produzir ali dentro o que vem produzindo
no seu exterior, pois acredito que, mesmo considerado ultrapassado em sua forma de atenção,
este aparato, ainda, apresentará influência clínica e assistencial junto à rede de atenção de
saúde mental do Brasil por alguns anos, devido à extensão territorial do país e devido à
instalação heterogênea da rede substitutiva.
Espero que o estudo apresentado seja transformador na forma de assistir o sujeito
em sofrimento psíquico e que gestores estaduais, municipais se sensibilizem com a situação
desta população e, no meu caso, comprometo em divulgar e relatar o sofrimento desta
população através de artigos científicos, palestras e entrevistas. Pois, acredito que a
disseminação de uma solução deve partir de uma primeira intervenção que se somando a
diversas outras trará a transformação desejada.
135
REFERÊNCIAS
AMADOR, S. M. A Reforma Psiquiátrica Brasileira e a Luta Antimanicomial [Internet].
Disponível em: http://www.sermelhor.com/especial/luta_antimanicomial.htm. Acesso em: 20
nov. 2010.
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143
APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista Semiestruturado
Identificação: ________________________.
Sexo: ( ) masculino ( ) feminino Idade: ______
Estado Civil: ___________
Escolaridade: _________________________
Ocupação: ______________________
Renda Familiar: _________________________.
Tempo da Doença ___________________.
Bairro: __________________. SER ______________.
N° de internações: _____________________.
N° de crise: __________________.
1. Como você experiência as situações de crise de seu familiar?
2. Quais os caminhos que você percorreu ao cuidar do seu familiar durante os momentos
de crise?
3. Como você lida com o seu familiar nas situações de crise?
4. Quais as ações nas redes assistenciais que você considera importantes para a melhora
do seu familiar?
144
APÊNDICE B - Roteiro de Entrevista Semiestruturado do Sujeito
Identificação: ________________________.
Sexo: ( ) masculino ( ) feminino Idade: ______
Estado Civil: ___________
Escolaridade: _________________________
Ocupação: ______________________
Renda Familiar: _________________________.
Tempo da Doença ___________________.
Bairro: __________________. SER ______________.
N° de internações: _____________________.
N° de crise: __________________.
1. Fale sobre sua experiência em momentos de crise.
2. Fale como você percebe o cuidado quando está em crise
3. Como você se relaciona com a equipe que cuida de você nos momentos de crise?
4. Fale sobre a participação de sua família quando você esta em crise.
145
APÊNDICE C - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS DE SAÚDE
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Você está sendo convidado a participar como voluntário de uma pesquisa. Você não deve participar contra
sua vontade. Leia atentamente as informações abaixo e faça qualquer pergunta que desejar, para que todos os
procedimentos desta pesquisa sejam esclarecidos.
Sou Aluno do curso de Doutorado em Saúde Coletiva em Associação de IES AMPLA AA - UECE-UFC-
UNIFOR sobre a orientação do Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes e estou desenvolvendo a pesquisa:
Experiências em situação de crise dos sujeitos em sofrimento psíquico: análise de narrativas. Tendo por
objetivo:
Compreender as experiências vivenciadas por sujeitos em sofrimento mental e seus familiares na busca
por assistência na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza quando em situações de crise.
Identificar o itinerário de sujeito e familiar durante a atenção às situações de crise psíquica;
Descrever como acontece a assistência ao sujeito de sofrimento psíquico durante as situações de crise
no município de Fortaleza.
Informo que durante a entrevista, utilizarei um gravador para melhor captar as informações repassadas.
Deste modo, venho solicitar a sua colaboração para participar da pesquisa respondendo a uma entrevista semi-
estruturada, sobre a qual esclarecemos que:
As informações coletadas somente serão utilizadas para os objetivos da pesquisa;
O (A) Sr.(A) tem liberdade de desistir a qualquer momento de responder aos questionamentos;
As informações ficarão em sigilo e sua identidade será preservada;
Esta pesquisa não trará nenhum tipo de dano físico a seus participantes abordados, não oferecendo,
portanto, nenhum tipo de risco; Os possíveis desconfortos resultantes dos questionamentos serão
acompanhado pelo pesquisador e quando este não conseguir solucioná-los, lança-se-a mão da Rede de
Saude Mental de Fortaleza.
Os principais benefícios da pesquisa ficarão por conta das contribuições junto a organização dos
serviços de emegências psiquiátrica, na melhoria do atendimento psiquiátrico aos pacientes em crise e
na orientação das novas politicas publicas da Rede de Saúde Mental de Fortaleza.
A sua participação muito contribuirá na execução desta pesquisa. ATENÇÃO: Para informar qualquer questionamento durante a sua participação no estudo, dirija-se ao: Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará Rua Coronel Nunes de Melo, 1127 Rodolfo Teófilo. Telefone: 3366.8338 Endereço do responsável pela pesquisa: Nome: Adriano Rodrigues de Souza Instituição: Universidade Federal do Ceará
146
Endereço: Rua Professor Costa Mendes, 1608. 5º andar. Rodolfo Teófilo. Fortaleza-CE. CEP: 60430-140.
Tel. (85) 3366-8045 Telefones p/ contato: 3452.6989 (trabalho) e 8877.1801.
O abaixo-assinado, ______________________________________________________, ______, anos.
RG no. ________________ declara que é de livre e espontânea vontade que está participando como voluntário
da pesquisa. Eu declaro que li cuidadosamente este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que, após sua
leitura tive oportunidade de fazer perguntas sobre o conteúdo do mesmo, como também sobre a pesquisa e recebi
explicações que responderam por completo minhas dúvidas. E declaro ainda estar recebendo uma cópia assinada
deste Termo.
Fortaleza, ________/________/________. Nome do Voluntário ____________________________________________________________ Data: _______/________/_______. Assinatura: ___________________________________________________________________ Nome do Pesquisador __________________________________________________________. Data: _______/________/_______. Assinatura: ___________________________________________________________________ Nome da Testemunha (se o voluntário não souber ler) _____________________________________________________________________________ Data: _______/________/_______. Assinatura: ___________________________________________________________________
147
ANEXO A – Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa