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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA
MICHEL SILVA GUIMARES
UMA ODISSEIA BOLIVIANA:
RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,
DE CSAR BRIE
Salvador
2015
http://www.ufba.br/
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MICHEL SILVA GUIMARES
UMA ODISSEIA BOLIVIANA:
RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,
DE CSAR BRIE
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Literatura e Cultura da
Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial para obteno do ttulo de
Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Luciene Lages
Silva.
Salvador
2015
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MICHEL SILVA GUIMARES
UMA ODISSEIA BOLIVIANA:
RAPSDIA, XODO E IDENTIDADE NO TEXTO DRAMTICO LA ODISEA,
DE CSAR BRIE
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Literatura e Cultura da
Universidade Federal da Bahia, como
requisito para obteno do grau de Mestre
em Literatura e Cultura.
rea de concentrao: Estudos de Teorias e
Representaes Literrias e Culturais.
Data de aprovao:
Salvador, 19 de maro de 2015.
Componentes da Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profa. Dra. Luciene Lages Silva (UFBA/XXXX)
(Orientadora)
_______________________________________________
Prof. Dr. Mrcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA)
(Membro)
_______________________________________________
Profa. Dra. Sara del Carmen Rojo de la Rosa (UFMG)
(Membro)
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Aos meus pais, Ida e Manoel, pelo amor e pelo incentivo para
seguir em frente, mesmo diante de todas as adversidades.
As minhas amigas-irms, Cludia Santos de Jesus e Viviane de Jesus
Ferreira, cujo apoio e companheirismo incondicionais, em todas as
horas, facilitaram a minha caminhada e cuja fraternidade me livra da
solido de ser filho nico.
Ao meu melhor e mais antigo amigo, Adilson Santos de Souza, por
dividir comigo os sonhos e os pesadelos desta vida.
Ao Csar Brie cuja Odisseia me levou a navegar por uma
maravilhosa aventura.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me sustentado nos momentos mais difceis da minha vida.
A minha amada Orientadora, Profa. Dra. Luciene Lages Silva, por ter compartilhado
deste sonho comigo e me ensinado a levar uma vida acadmica de forma leve.
As minhas amigas, Amanda Reis, Ana Paula Andrade, Carolina Ferreira, lide Elen
Santana, Ellen Figueiredo, Elzia Bencio, Fernanda Machado e Talita Rocha e Thiara
de Deus, pela amizade e companheirismo dentro e fora da vida acadmica.
A linda famlia que a vida me deu, Dona Elizabete, Eliana, Jeferson e Jamile, pelo amor
e pela cumplicidade que compartilhamos.
As minhas companheiras de mestrado, Gabriela Andrade, Diandra Souza, Lucila Vieira
e Pmela Moura, pelo carinho e companhia nos momentos de riso e de desespero.
As minhas prozinhas do AliB, Profa. Me. Ana Regina Teles, Profa. Dra. Jacyra Mota,
Profa. Dra. Marcela Paim, Profa. Dra. Silvana Ribeiro e Profa. Dra. Suzana Cardoso por
terem me dado rgua e compasso para seguir minha vida acadmica
Profa. Dra. Mrcia Paraquett pela paciente orientao enquanto tutora na disciplina
Estgio Supervisionado e por todas as orientaes que levarei ao longo de minha vida
profissional.
s professoras Dras. Cleise Mendes, Florentina de Souza e Mrcia Paraquett cujas
disciplinas me ajudaram a tecer minha dissertao.
Profa. Dra. Cssia Dolores Lopes por me encaminhar nas veredas do drama.
Profa. Dra. Jlia Morena Silva da Costa por resgatar em meu corao o amor ao
ensina e a pesquisa em lngua espanhola e por ter me apresentado, metonimicamente, ao
Csar Brie.
Ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura, principalmente aos
funcionrios Ricardo Luiz dos Santos Jnior e Thiago Rodrigues, que pacientemente
atendiam s minhas solicitaes e forneciam as orientaes acadmicas.
Aos professores do programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura, pela
aprendizagem competente.
A todos os aqui citados e aos no citados que de alguma forma, direta ou indiretamente,
colaboraram para que o meu sonho de cursar o Mestrado fosse alcanado.
Obrigado!
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Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de Amrica do Sul
Por fora deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
(BELCHIOR. A Palo Seco)
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RESUMO
Esta dissertao, atravs do cotejo de trs edies do texto dramtico La Odisea (2007,
2009, 2013), de autoria do dramaturgo Csar Brie (1954 ), analisa dentro do texto
dramtico as temticas do american dream e das migraes dos latinos americanos
rumo aos Estados Unidos, das relaes identitrias estabelecidas e de como a eleio da
Odisseia homrica e de seu heri, Ulisses, contribuem para explorao dessas temticas.
As anlises foram realizadas, sobretudo, a partir do operador de leitura rapsdia, teoria
criada por Jean-Pierrre Sarrazac, terico do drama, na dcada de 1980. Junto ao cotejo
estabelecido com a Odisseia, foram analisadas as incluses e excluses de cenas e
passagens operadas no texto aps o evento de 24 de maio de 2008 ocorridos em Sucre,
Bolvia, no qual camponeses que vo cidade recepcionar o presidente Evo Morales,
em um ato racista, foram hostilizados pela populao local, tendo o dramaturgo
participado ativamente do evento, fazendo e recolhendo gravaes que resultaram em
um filme documentrio de sua autoria, Humillados y Ofendido (2008), tambm trazido
nessa dissertao para o enriquecimento das anlises. Dessa forma, examinamos, ainda,
a atuao poltica do dramaturgo atravs de seu texto dramtico e como esta atuao
corrobora para suas eleies estticas e temticas.
Palavras-chave: La Odisea. Rapsdia. xodo. Identidade. Bolvia
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RESUMEN
Esta disertacin, a travs del cotejo de tres ediciones del texto dramtico La Odisea
(2007, 2009, 2013), del dramaturgo Csar Brie (1954 -), analiza en el texto dramtico
los temas del sueo americano y la migracin de latinoamericanos hacia los Estados
Unidos, las relaciones de identidad establecidas y cmo la eleccin de la Odisea
homrica y su hroe, Ulises, contribuye para el desarrollo de estos temas. Los anlisis se
realizaron principalmente bajo el operador de lectura rapsodia, teora creada por Jean-
Pierrre Sarrazac, terico del drama, en la dcada de 1980. Con el cotejo con la Odisea
homrica, se analizaron las inclusiones y exclusiones de escenas y pasajes operadas en
el texto despus del ocurrido en 24 de mayo 2008, en la ciudad de Sucre, Bolivia, donde
los campesinos que acuden a la ciudad para recibir el presidente Evo Morales, sufren un
acto racista, el dramaturgo participa activamente en el evento, haciendo y recogiendo
grabaciones que dieron lugar a un documental de su autora, Humillados y ofendidos
(2008). Por lo tanto, se examin tambin la actividad poltica del dramaturgo a travs de
su texto dramtico y cmo esta actuacin contribuye para sus elecciones estticas y
temticas.
Palabras-clave: La Odisea. Rapsodia. xodo. Identidad. Bolivia
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SUMRIO
1 INTRODUO 10
2 ENTRE RETALHOS E COSTURAS: O RAPSDO E O
HBRIDO EM BRIE
35
2.1 CSAR BRIE: O AUTOR-RAPSODO 35
2.2 ATENA: A DEUSA PICA 48
2.3 ULISSES: O HERI CMICO 58
3 ENTRE MONSTROS E AMORES: A PARTIDA E O
RETORNO DE ULISSES
68
3.1 ULISSES E A NOSTALGIA: XODO E EXLIO 68
3.2 A TERRA DOS LOTFAGOS: XODO RUMO AO AMERICAN
DREAM E NOSTALGIA
80
3.3 PENELOPEIA E TELEMAQUIA: XODO E AMERICAN
DREAM NOS QUE PERMANECEM
96
4 4 ENTRE HUMILHADOS E OFENDIDOS: QUESTES DE
IDENTIDADE
107
4.1 TACA, SUCRE OU LA PAZ: A CAPITAL E A CRISE DA
IDENTIDADE
107
4.2 ULISSES MAMANI, MORALES, CHOQUE E QUISPE: A
IDENTIDADE, A DIFERENA E A MEMRIA
119
4.3 TACA, SUCRE E E.U.A.: A VIOLNCIA DOS LETRIGES 127
5 CONSIDERAES FINAIS 135
REFERNCIAS 139
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1 INTRODUO
1.1 UM CAMINHO TERICO: LITERATURA COMPARADA E RAPSDIA
Este estudo insere-se na linha de pesquisa Estudos de Teorias e Representaes
Literrias e Culturais. Constituiu-se, principalmente, de pesquisa bibliogrfica, partindo
de anlise crtica e interdisciplinar de textos literrios e tericos que contriburam com a
anlise da obra La Odisea (2007b1, 2009
2, 2013b), de autoria do dramaturgo Csar Brie,
a partir da relao que esta pode estabelecer com a representao do xodo do homem
boliviano e latino-americano, sobretudo com as teorias dos estudos ps-coloniais,
estudos culturais e representaes literrias no que diz respeito construo da
identidade.
Nosso modus operandi se realizou sob a metodologia da Literatura Comparada,
atravs da qual obtivemos subsdios para estabelecer o cotejo entre a Odisseia homrica
e a Odisseia de Csar Brie, corroborando para os estudos que tentam dar conta da
pluralidade da Amrica Latina e diminuir nosso mltiplo desconhecimento a respeito de
nossas culturas e produes. Desta forma, nos propomos a conhecer um pouco mais da
Bolvia, pas fronteirio, atravs do Ulisses nascido da imaginao de Brie em
comparao ao da Antiguidade Clssica, sendo ele agora um sujeito de identidade
plural, que vive processos de desterritorializao nacionais e internacionais, pondo em
circulao problemticas novas, prprias do que se convencionou chamar de
modernidade tardia (FIGUEIREDO, 2010).
Para Hutcheson M. Posnett (2011 [1886], p.23), a mais desbotada preposio da
lgica ou a afirmao ou negao de uma comparao, sendo A igual ou diferente
de B, operando subjetivamente, assim, toda razo ou imaginao. Neste vis, como se
ver ao longo desta dissertao, as personagens de Brie ora se aproximam e ora se
afastam das personagens forjadas por Homero, com uma perspectiva histrica
plenamente adaptada ao contexto das contemporneas disporas latino-americanas,
metaforizadas na migrao de um tero da populao boliviana para fora do pas,
1 A edio de La Odisea (BRIE, 2007b) pode ser descarregada no link por ns levantado em:
. 2 A edio de La Odisea (2009) pode ser descarregada no link por ns levantado em:
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sobretudo para os Estados Unidos da Amrica doravante E.U.A. Para Posnett, a
linguagem uma forma de ver a evoluo e a influncia entre povos, e neste campo,
valendo-se das evolues e influncias proporcionadas pela literatura homrica, que
Brie nos apresenta a sua taca: Bolvia.
De acordo com Marius Franois Guyard (2011 [1951]) faz parte do
equipamento do comparativista a leitura em diversas lnguas, a construo de uma
bibliografia e a historicizao das literaturas e relaes literrias. Sendo o nosso objeto,
La Odisea, escrito em lngua espanhola, optamos por traduzir todas as citaes do texto
para o portugus, para dinamizar a leitura e permitir que ela seja realizada, tambm, por
no leitores da lngua espanhola, contudo, transcrevemos o texto original em nota de
rodap. Foi necessria, ainda, a reviso de uma bibliografia em lngua espanhola3 para
dar conta de historicizar o teatro boliviano e a insero de Csar Brie nele, outro dos
equipamentos do comparativista como afirma Guyard, assim como para compreender
os fenmenos polticos e sociais cujas temticas despontam no texto. Da mesma forma,
a exceo de algumas citaes no recuadas e/ou trechos que preferimos manter no
original, optamos pela traduo do texto e trouxemos em rodap o texto original. Ainda
segundo Guyard (2011, p.108):
A literatura comparada a histria das relaes literrias internacionais. O
comparativista se encontra nas fronteiras, lingusticas ou nacionais, e
acompanha as mudanas de temas, de ideias, de livros ou de sentimentos
entre duas ou mais literaturas. Seu mtodo de trabalho deve-se adaptar
diversidade de suas pesquisas.
Assim atuamos em nossa pesquisa, para qual trouxemos tambm o filme
documentrio Humillados y Ofendidos (2008)45
, de autoria de Csar Brie, para
compreendermos as temticas por ele elencadas no texto de La Odisea, assim como as
mudanas incrementadas, aps o hiato na montagem da pea para produo do
documentrio. Dentro do elenco de tericos escolhidos para abordarmos as migraes
na Bolvia, por exemplo, optamos tambm pelo mesmo terico boliviano estudado pelo
dramaturgo, que, para tratar das migraes em sua traduo da Odisseia, leu No Llores,
Prenda, Pronto Volver de Leonardo de La Torre vila (2006).
3Todas as tradues de La Odisea so nossas, assim como as tradues da bibliografia lida diretamente da
lngua espanhola, por isso, tendo aqui avisado, no inclumos a indicao de traduo nossa nas
citaes, objetivando no cansar o leitor . 4 Documentrio Disponvel em: . Acesso em
28/07/2014. 5 Trouxemos como apndice desta dissertao uma transcrio e traduo nossa do filme documentrio.
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Com isso, queremos dizer que seguimos os prprios caminhos que nos foram
dados pelo objeto e que, por uma posio marcadamente poltica em busca de uma
epistemologia do Sul, buscamos privilegiar, sempre que possvel, tericos latino-
americanos e/ou que pensam a Amrica Latina, sem com isso ter excludo quaisquer
outros tericos que corroboraram com nossas anlises.
Logo, em consonncia ao pensamento de Guyard (2011), analisamos as escolhas
do dramaturgo e o destino dado por ele aos temas e ideias, assim como suas fontes
muitas das quais declaradas em entrevistas e prlogos tirando prova dos emprstimos
diretos e indiretos feitos por ele da Odisseia homrica. Neste vis, nos deparamos com
uma pesquisa interdisciplinar para a qual trouxemos, em colaborao a metodologia
adotada, teorias pertencentes aos estudos culturais e ps-coloniais, um dilogo
necessrio, pois;
[...] pesquisas so movidas pelo mltiplo e pelo diverso, incidindo sobre
vrios discursos, vozes, disciplinas, tradies, objetos; o quanto elas do
nfase aos jogos, confluncias, trnsitos, deslocamentos, intervalos de
cultura; o quanto investem em releituras de formaes nacionais, na escuta de
dilogos entre nacionalidade, classe, gnero, etnicidade (MARQUES, 1999,
p.58).
Em La Odisea, Brie pe em cheque discursos hegemnicos internos e externos
Bolvia, o american dream estadunidense e a pretensa superioridade tnica e cultural
dos bolivianos sucrenses, ao mesmo tempo em que luta para que as artes no pas sejam
reconhecidas e apoiadas, e o faz, alm dos textos e dos palcos, na Assembleia
Legislativa boliviana demonstrando que as suas artes, a literatura e o teatro, fazem parte
de um todo, a cultura. Para o dramaturgo:
Esse trabalho [o de criar um pblico] tem a ver com organizao cultural,
com curiosidade poltica, com viajar e trabalhar em lugares nos quais,
normalmente, o teatro no trabalha. uma ao fsica no territrio da
Bolvia, e no apenas um pensamento esttico ou uma eleio de temas. Nos
consideramos como artistas partes do mundo e, se uma parte do nosso
trabalho tem como base nossa sensibilidade, essa outra se sustenta em nossa
responsabilidade6 (2007a, p.32)
6 Ese trabajo tiene que ver con organizacin cultural, con curiosidad poltica, con viajar y trabajar en
lugares en los que normalmente el teatro no trabaja. Es una accin fsica en el territorio de Bolivia, y no
solamente un pensamiento esttico o una eleccin de temas. Nos consideramos como artistas parte del
mundo y si una porcin de nuestro trabajo tiene como base nuestra sensibilidad esta otra se sustenta en
nuestra responsabilidad.
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Logo, dada tamanha interdisplinaridade e vis poltico cultural do dramaturgo e
de nosso objeto, no vimos outro caminho a seguir que no o do dilogo tambm
interdisciplinar entre a literatura comparada e os estudos culturais, j adotado por outras
pesquisas no pas.
A presente pesquisa teve a sua gnese ainda na iniciao cientfica realizada na
Universidade Federal da Bahia no Projeto NALPE - Ncleo de Antiguidade, Literatura
e Performance, no qual, paralelo ao desenvolvimento do Projeto Cine-mito nas escolas
pblicas de Salvador, pesquisvamos interlocues entre a Antiguidade Clssica e a
literatura contempornea.
O projeto foi construdo em 2012 com a edio do texto levantada no CELCIT
Centro Latinoamericano de Creacin e Investigacin Teatral7, Brie (2009), no entanto,
aps o cumprimento dos crditos e da realizao de uma viagem a Buenos Aires,
Argentina, obteve-se acesso a uma edio publicada em 2013, Brie (2013b), ao optar
por realizar as anlises com essa ltima edio do texto, estabelecemos contato com o
dramaturgo e nos foi enviada uma edio de 2007, Brie (2007b), semelhante ltima,
mas, tambm, apresentando diferenas.
Tal fenmeno muito comum no Teatro, no qual a cada montagem pode-se
modificar no texto dramtico o que no deu certo, ou pode-se testar coisas novas.
Acreditamos, tambm, que eventos polticos apresentados no documentrio
Humillados y Ofendidos tenham fomentado as mudanas e, ao eleger a ltima edio,
Brie (2013b), como o objeto das anlises, por sua organizao e acabamento, tambm, a
cotejamos com as outras duas verses, Brie (2007b, 2009), o que no nos foi muito
laborioso dada pequena extenso dos textos e das mudanas, apesar de significativas.
Ryngaert (1996, p.IX), j em seu prefcio, afirma que no se faz necessrio
invocar o palco para explicar ou justificar o texto, e assim operamos. A presente
investigao diz respeito ao texto dramtico de La Odisea e no a sua montagem cnica,
a qual no tivemos acesso. Mendes (1995), em seu texto terico, que trata das relaes
entre o texto e a encenao, brinca intitulando-o de A Convivncia Dramtica, isto
porque, para a autora, em consonncia com as teorias modernas do drama, o casamento
entre o drama (texto dramtico) e o teatro conheceu o divrcio revelando a autonomia
dessas artes. Segundo Mendes (1995, p.38):
7 http://www.celcit.org.ar/
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O texto dramtico vive num espao de interseo, e esta circunstncia tem
impedido os estudiosos de perceberem sua autonomia como obra literria,
pois, se por um lado um objeto constitudo de linguagem verbal, pode vir a
integrar, junto a outras artes (msica, interpretao, figurino), o sistema
significante da arte do teatro.
Logo, por percebermos a autonomia do texto dramtico como obra literria,
investigamos La Odisea luz da teoria da literatura, sem nos desculpar por tratar o texto
apenas como literatura, aps procedermos uma breve apologia ao teatro, como em
geral o fazem os crticos (MENDES, 1995, p.23) .
Dada a uma certa confuso lexical que h na rea dramtica, apresentando, em
certos contextos, fronteiras tnues entre as expresses texto dramtico, texto para
teatro, e, ainda, texto teatral, incorreremos, aqui, em breves explicaes, nas quais
esclareceremos nossa opo pelo termo texto dramtico, por acreditarmos ser o mais
coerente nesta pesquisa na qual o reconhecemos, ao texto dramtico, como literatura.
Obviamente, no criticamos aos que no fazem tais distines pertencentes ao lxico do
drama, j que o seu Modus Faciend, assim como o do cinema e de outras artes, s
interessa aos pesquisadores, muitos dos que vo ao teatro, ou leem textos dramticos,
em geral, no tm esse interesse, na Antiguidade Clssica por exemplo, Aristteles
(1991) em sua Potica j afirma que mesmo a tragdia grega tendo seis elementos,
sondo o mito para ele o mais importante, o que mais agrada ao pblico o espetculo.
Voltando a Antiguidade Clssica, os tragedigrafos e comedigrafos clssicos
no tinham outra opo para os seus textos que no o espetculo, isto , as
possibilidades encontradas na modernidade, como a dramaturgia para televiso,
propaganda, jogos eletrnicos, era impensvel. E isso continuou durante sculos o que
acrescido dificuldade de circulao dos textos escritos, pela ausncia da imprensa,
colaborava ainda mais com a espetacularizao para poder divulgar a pea criando um
casamento, que nas livrarias, ainda hoje, se reflete no teatro de Dias Gomes, de Nelson
Rodrigues, de Csar Brie (mesmo em textos como, por exemplo, os de Sneca e
Machado de Assis, que aparentam terem sido pensados para leitura), pois as editoras
continuam chamando o texto escrito de teatro, o que um equvoco, pois o que h ali
a dramaturgia. A edio em livro na qual se insere La Odisea, por exemplo, est
nomeada de Csar Brie: Teatro II (2013b).
A palavra drama, de origem grega, designa ao, processo, o produto de uma
atividade. Em sua etimologia dramtico sinnimo de performao. J teatro,
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etimologicamente, significa lugar onde se v, lugar para a viso. Enquanto
dramaturgia, reunindo as palavras gregas para ao e o ato de fazer, erguer, construir,
significa construo da ao. J a expresso texto teatral abstrusa, o mais correto
seria texto para teatro, demonstrando a inteno que quem escreveu tinha para aquele
texto.
No sculo XX, com a emergncia de novas mdias, comea a existir alternativas
para os dramaturgos, como o rdio, o cinema, a televiso e mais recentemente a internet
e o celular, permitindo que aqueles que usam a forma de narrativa a que chamamos
dramtica possam optar. No coincidentemente, o sculo XX tambm o palco da
gradativa libertao do teatro, do cnico, em relao ao texto.
O teatro s se d no tempo e espao presencial, o que tambm j tem sido
abalado pela gravao em tempo real em distintos lugares, o chamado teledramtico,
no qual h desde pr-gravaes postas no palco at gravaes ao vivo. Logo, tornou-se
cada vez mais claro que drama e teatro so coisas diferentes. O teatro, hoje, se relaciona
com todo tipo de texto, depois de ter se relacionado com nenhum, a literatofobia ps
1950, contemporaneamente se relaciona com todos, como o faz Brie ao dramatizar a
epopeia homrica.
Logo, no poderamos optar por outra denominao que no texto dramtico,
que indica ser esse tipo de texto, a partir das palavras que fundam uma realidade
potica, possuidor de sua prpria dimenso cnica. Essa posio contrape a de muitos
tericos, que creem que separar a pgina do palco tornaria o texto dramtico
incompleto, para Mendes, contudo, essa crena injusta, dada a autonomia do texto
dramtico enquanto literatura, j o teatro apenas outra obra, outra realidade artstica,
construda por outros signos, ou, em termos aristotlicos, por outros meios de imitao
(1995, p.24).
Para Mendes (1995), dada defesa do ponto de vista anterior, pela
possibilidade de teorizar apenas o texto que se pode estabelecer um comparatismo
entre Rei Lear, de Shakespeare, e o Ubu Rei, de Peter Brook, assim como (s)
Antgona(s), de Sfocles, de Anouilh, de Brecht, de Rafael Snchez, leituras produtivas
e produtoras de um mesmo mito (p.24), como fazemos aqui com as Odisseias, de
Homero e de Brie.
Para o cotejo entre as duas Odisseias, iniciamos as anlises desta dissertao, j
em sua primeira sesso, com os pressupostos tericos propostos por Sarrazac (2002) em
O Futuro do Drama, que nos acompanhar ao longo de toda a dissertao, sobretudo, a
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noo de autor rapsodo. Sarrazac (2002, p.31) utiliza como epgrafe verbetes de
dicionrios com os quais comea a definir sua visada terica. Alexandra Moreira da
Silva, tradutora da obra citada para o portugus europeu, opta por no traduzir os
verbetes da epgrafe, duas entradas de dicionrio, esclarecendo que as palavras
francesas rhapsoder e rhapsodage remetem para os conceitos de remendo e
remendar e que no portugus h apenas as palavras rapsdia, rapsodo e
rapsdico:
Rhapsodage Action de rhapsoder, de mal raccommoder.
Rhapsode Terme dantiquit grecque. Nom donn ceux qui allaient de
ville en ville chanter des posies et surtout des morceaux dtachs de lIliade
et de lOdysse...
Rhapsoder Terme vieilli. Mal raccommoder, mal arranger.
Rhapsodique Qui est form de lambeaux, de fragments.
Littr
Rhapsodie 1. Suite de morceaux piques recites par les rhapsodes. 2.
Piceinstrumentale de composition trs libre...
Petit Robert
Remendo Ao de remendar, de costurar mal.
Rapsodo Termo da antiguidade grega. Nome dado queles que iam de
cidade em cidade cantar poesias e, sobretudo, recitar trechos da Ilada e da
Odisseia...
Remendar Termo antigo. Mal costurado, mal organizado.
Rapsdico Que formado de retalhos, de fragmentos
Dicionrio Littr
Rapsdia 1. Sequncia de trechos picos recitados por rapsodos. 2. Pea
instrumental de composio bastante livre
Dicionrio Petit Robert8
Nos verbetes trazidos por Sarrazac, percebemos uma variedade de sentidos que
vo desde a costura de tecidos at os trabalhos artsticos, como a composio musical
livre e a forma de recitar a obra homrica na Antiguidade. Ao adentrarmos no texto,
percebemos que a escolha dessa epgrafe se justifica pelo desejo de Sarrazac de
reconhecer o drama como to livre e reinventivo quanto o romance, gnero da
reinveno e da liberdade por excelncia, incluindo ao seu domnio a polifonia
bakhitiniana, na qual h miscelnea, pluralidade, heterogeneidade, inverso de gneros e
de vozes.
Sarrazac demonstra como no drama contemporneo h um caleidoscpio dos
modos dramtico, pico e lrico, assim como uma inverso constante do alto e do baixo,
8 Traduo nossa.
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do trgico e do cmico, como veremos que h em La Odisa, em uma polifonia trazida
ao texto pelas mos do autor rapsodo forma teatral com a estrutura de uma montagem
dinmica da qual surge uma voz rapsdica que , ao mesmo tempo, narradora e
questionadora (SARRAZAC, 2012).
Bakhtin, ao se debruar sobre a teoria do romance atribui a ele a inerncia da
polifonia e do dialogismo, o que o tornaria distinto de todos os gneros diretos, do
poema pico, da lrica e do drama em senso estrito (1998, p. 371), negando assim a
existncia de polifonia no drama, tendo as investigaes com o conceito de dialogismo
prevalecido no romance e com pouca ocorrncia no drama, o que no impede Sarrazac
de tomar os pressupostos tericos bakhtinianos para, atravs da rapsdia como operador
de anlise, defender que h, sim, liberdade de inveno, reformulao continua,
variao e renovao no drama contemporneo:
A aspirao primordial das escritas dramticas contemporneas no ,
precisamente, a obteno da mesma latitude na inveno formal que o
romance, gnero livre por excelncia?... Mas o preconceito obstinado:
enquanto que se admite, sem reticncias, a vocao do gnero romanesco
para se reformular continuamente, para variar e renovar as suas estruturas,
persiste-se em recusar, em nome da ptca teatral a da sacrossanta construo
dramtica, esta possibilidade a uma obra escrita para cena. (SARRAZAC,
2002, p.35)
A sacrossanta construo dramtica, sobre a qual discorre Sarrazac, diz
respeito, justamente, a frustrada e frustrante tentativa, que existiu por sculos, de
defender o drama como um gnero puro, livre de intervenes, livre de hibridaes, o
perfeito belo animal aristotlico, que ser ferido na modernidade pela epicizao do
texto dramtico e pelo reconhecimento dos estudiosos da impureza de todo e qualquer
gnero. Ainda que a pureza ainda seja uma cobrana do senso comum, felizmente, so
essas hibridaes que se v no texto dramtico de La Odisea, cujas anlises trouxemos
aqui e em nossa segunda sesso: Entre retalhos e costuras: o rapsdo e o hbrido em
brie.
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1.2 UM CAMINHO PARA LA ODISEA: HIBRIDAES
Indubitavelmente, a caracterstica mais marcante de La Odisea enquanto texto
dramtico so as hibridaes nele propostas pelo seu autor. Em um s texto, Brie se
prope a dialogar o passado e o presente, ao mesclar a Antiguidade Clssica e a Bolvia
contempornea; o local e o global, pois explorar alguns dos fenmenos manifestos em
um mundo que se quer globalizado, e, estruturalmente, construir um drama pico
valendo-se de toda a sua potencialidade, pincelando-o ainda com lirismo e comicidade.
Por isso, para abarcar tantas hibridaes, iremos nos nortear atravs das teorias de
Sarrazac (2002) em O Futuro do Drama, Hall (2011a) em A Identidade Cultural na
Ps-modernidade e Canclini (2013) em Culturas Hbridas.
Elegemos esses trs tericos por suas singulares contribuies s nossas
investigaes, em Sarrazac, terico do drama, nos deparamos com o autor-rapsodo
que nos ajudar a destrinchar o riqussimo tecido textual cosido por Brie na potica de
La Odisea como um texto monstruoso, texto hbrido, patchwork, um texto
diferencial e utpico concebido no como um modelo, mas sim como uma quimera,
como uma criatura efmera destinada a fazer-nos sonhar (SARRAZAC, 2002, p.24).
J Hall (2011a) e Canclini (2013) colaboraram com as anlises da representao
de uma cultura hbrida feita por Brie em La Odisea, na qual territrios equidistantes no
tempo e espao como taca, Bolvia e E.U.A se encontraram e produzem Ulisses
tambm hbridos, cujas demandas ora se assemelham e ora se distanciam, cujos dramas
to contemporneos so representados por um heri secular.
Comearemos, aqui, com a apresentao de um breve histrico do teatro
nacional boliviano, cuja relevncia internacional recente e para qual muito colaborou a
dramaturgia de Csar Brie. Para Saavedra Garfias (2006), cinco projetos configuram o
processo do teatro boliviano.
O primeiro, o teatro popular costumbrista, tem incio com o escritor, diretor e
ator Ral Salmn, dele derivam o teatro das comdias livres e o teatro de stira poltica,
cria-se, contudo, uma escola e uma tradio que no provocam reflexo, mas que
sobrevivem no tempo mediante uma frmula que assegura risada vulgar, histrias
melodramticas, mensagens moralistas, e com isso a fidelidade do pblico.
O segundo, o teatro universitrio, ao contrrio do primeiro, no consegue
assegurar um pblico prprio, trabalham nele autores europeus e estadunidenses em
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uma tentativa inicial de se opor ao teatro costumbrista, no entanto veem suas ambies
ceifadas pelo golpe de estado do General Hugo Banzer Surez.
O terceiro, datado da dcada de 1970, traz um aparente auge teatral com o
regresso de atores bolivianos que decidiram estudar arte dramtica no exterior pela falta
de centros de formao no pas, neste aparente auge, h montagens no palco de autores
vanguardistas, organizao de festivais interestaduais e concursos de dramaturgia,
contudo, ainda que no princpio esse movimento surja respaldado por um pblico, com
o passar do tempo, as novidades se tornaram rotina.
O quarto projeto, datado pela autora na dcada de 1990, marcado pela apario
de grupos independentes, que, diferente dos grupos de elencos, busca cobrir a ausncia
de centros de formao teatral com oficinas, laboratrios e seminrios, preocupando-se
com a reflexo sobre o fazer teatral, a ausncia de pblicos, a tica e a esttica no teatro.
justamente nele que se inserem Csar Brie e El Teatro de Los Andes.
No quinto projeto, que no se segue aos outros cronologicamente, esto os
teatros que surgem margem da histria oficial, grupos cujas formas teatrais poderiam
ter marcado outro destino ao teatro boliviano; contudo, polticos e militares impediram
o desenvolvimento desse teatro, como, por exemplo, a primeira tentativa de teatro
indgena e o primeiro projeto de coletivo teatral que ocorreu entre os anos 1960 e 1970.
Csar Brie, na dcada de 1990, j tendo uma vida profissional que o permitia
escolher onde trabalhar, opta pela Bolvia como espao e inspirao para o seu trabalho,
quando perguntado o porqu de ter escolhido a Bolvia para atuar como dramaturgo,
ator e diretor, responde:
Queria ir a um lugar onde fosse impossvel viver do teatro, onde o teatro que
construsse tivesse que se relacionar com um pblico, onde houvesse uma
cultura tradicional notvel, onde deveria tratar de unir o inconcilivel:
vanguarda e teatro popular. Tradio e inovao. [...] Alguns afirmam que
mudei algo do teatro boliviano. Agora que esse ciclo chegou ao fim, posso
afirmar que foi a Bolvia que mudou minha forma de trabalhar9 (BRIE,
2013b, p. 188).
Ao tratar de unir o inconcilivel, como vanguarda e teatro popular, tradio
e inovao, Brie age como um dramaturgo-rapsodo, como o pensa Sarrazac (2002,
9 Quera irme a un lugar donde fuera imposible vivir del teatro, donde el teatro que construyera tuviera
que relacionarse con un pblico, donde hubiera una cultura notable, donde debera tratar de unir lo
inconciliable: vanguardia y teatro popular: Tradicin y bsqueda. Algunos afirman que cambi algo del
teatro boliviano. Ahora que ese ciclo lleg a su fin, puedo afirmar que fui Bolivia a cambiar mi forma de
trabajar.
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p.36), para o qual: a modernidade da escrita dramtica decide-se num movimento
duplo que consiste, por um lado, em abrir, desconstruir, problematizar as formas antigas
e, por outro, em criar novas. da tentativa de unio do inconcilivel que o autor agir
como o arquiteto da parbola forjada por Sarrazac, na qual:
O escritor de teatro no trabalha nem pensa em termos de grandes unidades
estruturais. Porque toda a sua ateno est concentrada no detalhe da escrita,
na escrita do detalhe. E o detalhe, como sabido, significa originariamente
diviso, converter em pedaos. Logo, escritor-rapsodo (rhaptein em grego
significa coser), que junta o que previamente despedaou e, no mesmo
instante, despedaa o que acabou de unir. A metfora antiga no deixar de
nos surpreender com as suas ressonncias modernas. (2002, p.36-37)
Atravs dos detalhes Brie costura em La Odisea um texto hbrido que se
prope a intervir tanto artstica quanto politicamente no pas que mudou sua forma de
trabalhar no teatro, ao mesmo tempo em que ele mudou algo no teatro boliviano. Csar
Brie escolheu o desafio e conseguiu dar relevncia internacional ao teatro da Bolvia,
que, para Saavedra Garfias (2006), oscila entre uma prolongada gestao e um eterno
restart, o que se deve justamente ao fato dos problemas que enfrentam os grupos, dentre
eles, problemas econmicos, acontecimentos polticos, ausncia de polticas culturais e,
em muitos casos, a ausncia de um pblico que faa o teatro necessrio.
Infelizmente, justamente em decorrncia de acontecimentos polticos, a pea La
Odisea marcou o fim da relao de Brie com El Teatro de los Andes, sendo assim
ele mesmo como Ulisses, um pai que deixa uma famlia, seu grupo teatral, e parte em
busca de novas possibilidades.
Os acontecimentos polticos fomentadores da separao do dramaturgo da
criatura por ele criada, como ele mesmo se refere ao Teatro de Los Andes em
entrevistas, tiveram incio em 24 de maio de 2008 quando ocorreu em Sucre, Bolvia, a
hostilizao de camponeses, de origem indgena, que foram cidade recepcionar o
presidente Evo Morales, o dramaturgo participou ativamente do evento, fazendo e
recolhendo gravaes sobre os ataques racistas aos camponeses que resultaram no filme
documentrio de sua autoria, Humillados y Ofendidos (2008), sobre o qual trataremos
amplamente em nossa quarta seo: Entre humilhados e ofendidos: questes de
identidade.
Aps a publicizao das imagens transformadas em documentrio, cuja
realizao interrompeu a montagem de La Odisea, sua ltima pea junto ao Teatro de
Los Andes, o dramaturgo sofreu represlias de grupos locais, o que resultou em seu
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afastamento da companhia que fundou, na qual esteve vinculado por dezoito anos, e em
sua partida para Itlia, marcando na dcada passada mais um triste episdio na histria
do teatro boliviano.
A construo e montagem de La Odisea demonstram uma nova etapa nos
projetos da dramaturgia boliviana, que, em geral, sempre careceu de grupos e de uma
dramaturgia local. El Teatro de Los Andes operacionalizou mudanas e transformaes,
para Saavedra Garfias (2006), ele inspirou grupos novos e os levou a tentarem ser
profissionais na arte teatral, como exemplos bem sucedidos disso, a autora elenca o
Teatro Duende, Kikin-teatro, Adelaide Chau e Ojo Morado.
Destacamos, ainda, a companhia teatral Teatro La Tropilla, criada em 2010,
como dito por eles mesmos, no seio do Teatro de Los Andes10
, cuja primeira
montagem justamente de um texto dramtico de Brie, El Cclope. Ou seja, alm das
companhias indiretamente influenciadas por Brie e o Teatro de Los Andes, h tambm
grupos criados diretamente aps o contato com a companhia boliviana, comprovando,
assim, o legado do Teatro de Los Andes.
Nessa perspectiva, a perda de um dramaturgo to atuante e influente mostra
como a Bolvia segue com conflitos quanto s polticas para sua arte teatral, h, hoje,
polticas governamentais, que, no entanto, esbarram em agendas de lideranas locais
que visam o silenciamento daqueles que possam vir a incomod-los. O Teatro de Los
Andes, liderado por Brie, inscreveu-se de forma extremamente positiva na historiografia
do teatro boliviano, esteve, por exemplo, no primeiro festival internacional boliviano,
no qual encenou Las Abarcas del Tiempo e chamou a ateno da crtica internacional.
justamente a operao de denncias do que ocorre a nvel local a um pblico
internacional, como em La Odisea, que incomoda aqueles que detm e querem manter o
poder, traando projetos polticos que tentam impedir a ascenso dos menos favorecidos
e privilegiando, em geral, aquilo que vem de fora, desde as formas de arte, como o
teatro nacional, at o capital. Saavedra Garfias (2006) afirma que o teatro boliviano tem
sido ninguneado ao longo de sua existncia, isto , esse teatro tem sido negado e
invisibilizado (estado do que invisvel, inviabilizado, invivel), para a autora, em
muito, pela falta de boas produes que ele oferece.
Brie marca a diferena nesse quesito e a prova disso a fortuna crtica sobre a
obra do dramaturgo, que, apesar de poucos, j conta com relevantes estudos no Brasil
10
Disponvel em: . Acesso em 20/07/2014.
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como a dissertao de Mestrado defendida por Raquel Frana Abdanur, La Ilada por
Csar Brie: um canto de memria, luto e histria, na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, em 2009 a existncia destes estudos demonstra
que com boas produes, com uma dramaturgia nacional de qualidade, nenhum teatro
pode ser ignorado.
Da mesma forma, a dramaturgia de Brie, e por tabela a dramaturgia boliviana,
segue recebendo reconhecimento internacional. Em 2010, por exemplo, na srie
intitulada Dramaturgia Latino-Americana publicao da Editora Universitria da
UFBA (EDUFBA) de tradues de textos dramticos latino-americanos lanada,
como volume n. 4, a traduo do texto dramtico En un sol amarillo/Em um sol
amarelo, de autoria de Csar Brie, levado aos palcos em 2004. Demonstrando, mais
uma vez, que Brie obteve, sim, xito no seu intento de inscrever a dramaturgia boliviana
na cena internacional.
Sobre La Odisea, aps nossas investigaes, encontramos dois significantes
artigos sobre a pea. O primeiro intitulado La Odisea de Cesar Brie: Ulises en tiempos
de globalizacin, de autoria de Maria Atienza, presente no livro De Ayer a hoy:
influencias clsicas en la literatura (2010) coordenado por Aurora Lpez, Andrs
Pocia e Maria de Ftima Silva e editado em Portugal pelo Centro de Estudos Clssicos
e Humansticos da Universidade de Coimbra e o segundo intitulado Imagen,
Imaginacin, Historia: La Odisea de Csar Brie, de autoria de Sara Rojo, presente no
livro Imagem e Memria, organizado por Elisa Vieira, Elcio Cornelsen e Mrcio
Seligmann-Silva.
Como se pode observar pelas temticas desses dois artigos11
que abordam o
texto dramtico La Odisea, Brie constri um texto inquietante com amplas
possibilidades de leitura, logrando seu intento de colaborar para inscrio do teatro
boliviano no hall internacional da dramaturgia e da crtica, nos levando a navegar em
um mar infinito e nunca totalmente explorado de leituras e rapsdias.
Sobre estudos da obra do dramaturgo no Brasil destacamos ainda, de autoria e
coautoria de Sara Rojo, O teatro de Csar Brie e a apropriao dos mitos da morte
(2009) e, A traduo de Slo los giles mueren de amor, de Csar Brie (2009), com
11
Os dois livros aqui referenciados, nos quais contam artigos sobre La Odisea de Csar Brie, podem ser
descarregados em pdf nos seguintes links:
1.https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/137/1/de_ayer_a_hoy.pdf
2. http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/imagem%20e%20memoria.pdf
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coautoria com Raquel Frana Abnadur. Completando, aqui, a fortuna crtica brasileira
sobre o dramaturgo utilizada nessa dissertao.
Tanto no filme documentrio, Humillados y Ofendidos (2008), quanto em sua
ltima pea com o Teatro de Los Andes La Odisea Brie opera a denncia de que na
periferia do mundo globalizado, boa parte do povo boliviano sobretudo o indgena,
campons e autctone do qual o dramaturgo declara abertamente tomar partido j no
possui suas terras, que lhes foram tomadas no perodo de colonizao, salvo uma
pequena parcela abonada da populao, pois se v esmagado por uma situao
neocolonial, na qual, muitas vezes, no tem subsdios nem para sobrevivncia.
O territrio, do qual essa populao autctone, passou a pertencer a
latifundirios, que o usa para gerar capital e progresso, ainda que custa de naes
indgenas e massas de vulnerveis, criando imensas comunidades de sem terra, que
veem, dentre outras sadas, na migrao para os E.U.A. a soluo. Neste vis, Brie
representa em seu texto dramtico o que para Hall (2011a), ao tratar da globalizao,
seja talvez um dos fenmenos mais importantes da reteno da dominao global
ocidental: o fenmeno da migrao. Para Hall (2011a, p.81,82): as pessoas mais pobres
do globo, em grande nmero, acabam por acreditar na mensagem do consumismo
global e se mudam para os locais de onde vm os bens e onde as chances de
sobrevivncia so maiores.
Em La Odisea , sobretudo, esse fenmeno, o da migrao e suas implicaes,
que o dramaturgo representar na figura de Ulisses. O heri homrico ser a
personagem-funo pela qual ser exposta a sada de 1/3 da populao boliviana do pas
populao estimada em 10 milhes de habitantes pelo ltimo censo 3 milhes de
pessoas que migram, principalmente, rumo aos E.U.A, Europa e Argentina.
atravs da migrao que a grande tenso contempornea entre local e
global ser explorada pelo autor ao longo do texto dramtico de La Odisea, sobretudo
no que tange as relaes estabelecidas com os E.U.A, na pea, principal destino das
personagens e com os quais diversas situaes de conflito sero estabelecidas, por
diferenas culturais, lingusticas, em suma, diferenas identitrias.
Eneida Maria de Souza traa uma cartografia do projeto imperialista dos E.U.A,
iniciado nos anos 40, cujo objetivo era substituir, aos poucos, a hegemonia europeia,
para isso desenvolveram um programa de controle poltico e econmico com o interesse
de promover o esquecimento das diferenas locais da Amrica Latina, criando
identidades coletivas (SOUZA, 2007). A criao de tais identidades visava e visa,
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obviamente, o domnio poltico e cultural dos E.U.A sobre o resto da Amrica e a
expanso de seu mercado consumidor, difundindo os pases ricos do Ocidente o
consumismo, seja como realidade ou como sonho (HALL, 2011a), tal difuso ocorre
nos pases em desenvolvimento, como o Brasil, e mesmo nos pases pobres, a ideologia
da mercadoria impera, seja na aquisio delas pela posio ou na imposio delas por
meio de acordos com seus governos.
a sua difuso como sonho, mais precisamente como o american dream, que o
dramaturgo explora em La Odisea, indo de encontro a este projeto dos E.U.A, de
criao de identidades coletivas, e tomando as distintas culturas, etnias e povos da
Amrica Latina como potncia para coser um texto idiossincrtico, em um fazer teatral
que rompe com a quarta parede e que quer no seu pblico uma assembleia de pessoas
interessadas, cujas demandas precisam ser satisfeitas, como advoga Benjamim sobre o
teatro pico brechitiano (1985, p.79), construindo, assim, um teatro de vis
extremamente poltico, como dito pelo prprio dramaturgo em um lugar onde o teatro
que construsse tivesse que se relacionar com um pblico (BRIE, 2013b, p. 188).
Brie faz explodir um apelo poltico atravs da criatividade dramatrgica
expondo as feridas da Bolvia ao mesmo tempo em que trabalha para incluir o pas na
cena teatral latino-americana e internacional e representa um colorido, uma
pluralidade de identidades tambm hbridas, como o prprio texto.
O dramaturgo hibridiza o seu texto com o texto homrico, o que ocorre desde a
Antiguidade, pois a Odisseia homrica, mesmo na distante Antiguidade Clssica, j era
reconhecida pelos helenos como de grande importncia para sua dramaturgia. Serra
(2012, p.9), afirma que: Os gregos diziam, com certo exagero, que seus poetas trgicos
aproveitaram as sobras do festim de Homero. (A frase se deve majestosa modstia de
squilo). Na Antiguidade Clssica, as narrativas homricas, as epopeias a Ilada e a
Odisseia, que narram, respectivamente, a clera de Aquiles e o retorno de Ulisses, so
intercaladas por micronarrativas, cujos mitos tornaram-se as sobras as quais Serra
(2012) faz referncia.
Logo, a obra homrica segue sendo aproveitada, matando a fome e agradando ao
paladar de diversos autores e leitores, desde a Antiguidade at os contemporneos. O
texto dramtico de La Odisea, de Brie, e a montagem cnica de El Teatro de los Andes,
demonstram a fora representativa da obra de Homero j retomada por grandes obras
da literatura mundial como A Eneida de Virglio, I a. C., e Ulysses de Joyce, publicado
em 1922, obras com as quais, em um fazer rapsdico, Brie diz tambm dialogar.
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Dessa forma, a eleio da Odisseia por Csar Brie no aleatria, como trazido
por Franois Hartog (2004), o seu heri, Ulisses, um homem-fronteira, um
homem-memria e a sua odisseia o prottipo das narrativas de viagem,
indubitavelmente, da se origina a escolha da Odisseia por Brie para representao da
migrao do homem latino-americano, tambm, convertido em homem-fronteira e
homem-memria nas ltimas dcadas marcadas por fortes levas migratrias. O
dramaturgo cria o seu prprio Ulisses para representar as fronteiras, visveis e
invisveis, que o homem latino-americano atravessar, as memrias que levar consigo
e que, havendo retorno, das novas memrias que trar de volta.
Ao escolher dramatizar as viagens ulissianas, optando mais uma vez por
Homero, como j o fizeram muitos outros autores, Brie demostra com sua Odisseia
boliviana que vivemos, tambm, uma permanncia da Antiguidade Clssica que
perpassa os nossos mais diversos bens culturais: a lngua, o teatro, a literatura.
Benjamim (1985, p.244) afirma que: A verdadeira imagem do passado
perpassa, veloz. O passado s se deixa fixar, como imagem que relampeja
irreversivelmente, no momento em que reconhecido, com isso, inferimos que muitas
manifestaes contemporneas nos fazem rememorar o passado na tentativa de
reconstruir a histria. So constataes como estas que nos levam de volta ao clssico,
revisitando-o e empregando-lhe novas representaes, nesse contexto est La Odisea,
levada a cena em 2008. Brie revisita a Antiguidade Clssica, ainda, em outros dois
momentos: La Ilada, encenada em 2000, e El Cclope, em 2002.
Estas escolhas representam a viso que Brie tem de tradio: a tradio o
antigo que ainda nos faz falta (2013b, p.188). A Odisseia, neste sentido, no tomada
para ser desconstruda, como podem advogar alguns crticos, mas para potencializar o
que tradicional na prpria Bolvia, metamorfoseada em taca, e catapultar os anseios
de Ulisses contemporneos, que so to terrenos e humanos quanto os do Ulisses
clssico: envelhecer bem na presena da famlia. Atravs desse heri, Brie cria um texto
plural, intercultural e hbrido.
Quando questionado sobre o que pensa da recepo de sua traduo dos textos
homricos pelos jovens, o dramaturgo responde que um clssico tem sentido quando
nos diz algo agora, isto , ele acredita que o texto homrico se atualize por si mesmo,
o que de fato o faz, ainda que ele tambm o modernize criei pontes com nosso presente
e com o passado prximo (BRIE, 2013b, p.191).
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Desse modo, Brie se apropria daquela que uma das obras fundacionais da
literatura ocidental para (re) apresentar o mundo boliviano e latino-americano. Em sua
rapsdia narra no somente uma navegao de retorno, mas tambm uma navegao de
xodo rumo ao american dream, ideal que nos chega atravs do capitalismo global,
cujos tentculos atingem a praticamente todas as instituies sociais, modo de vida dos
cidados, comportamentos sociais, agarrando-os ou sufocando-os, impondo assim seu
regime cultural e civilizatrio, no qual quase no h espao para a afirmao de outras
prticas, que no o american way of life.
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1.3 UM CAMINHO PARA O LEITOR: BRIE E El TEATRO DE LOS ANDES
Csar Brie dramaturgo, diretor e ator, nascido em 1954, em Buenos Aires,
Argentina, est em atividade desde 1971, quando inicia sua carreira como co-fundador
da Coluna Baires, com a qual participa da luta contra a ditadura, o que, com a represso
do governo militar, leva parte do grupo a exilar-se na Itlia, em 1974, Brie fica na
argentina, reunindo-se com o grupo meses mais tarde, para separar-se dele,
definitivamente, em 1975, quando funda, ainda na Itlia, o teatro Tupac Amaru.
Neste perodo, estuda artes marciais, tcnicas de clown, acrobacia, dana
contempornea, tcnicas vocais e teatro de rua, que colaboram com toda a sua prtica
teatral desde ento. Em 1980, muda para Dinamarca, onde passa a integrar o Odin
Teatret, sob a direo de Iben Nagel Rasmussen, considerada por ele como uma grande
professora, cuja disciplina do ofcio e a reflexo filosfica sobre a arte ainda o
seguem (BRIE, 2013a, p.194). tambm nesse perodo da dcada de 1980 que trabalha
com Eugnio Barba, chegando a ser seu assistente de direo. Para Rojo (2009), axial
na dramaturgia de Brie a importncia desse contato com a Antropologia Teatral de
Barba12
.
Em 1991, Csar Brie se separa de sua antiga companhia teatral Odin Teatret,
na Dinamarca , e com as peas El mar en el bolsillo (1989) e Romeo y Julieta (1991)
chega a Bolvia, onde funda em agosto de 1991, junto com Naira Gonzlez e Paolo
Nalli, o Teatro de Los Andes. As duas peas supra citadas so as primeiras a receberem
montagem do grupo, apesar de terem nascido antes de que sequer decidisse ir
Bolvia13
, diz Brie (2013a, p. 195).
Radica-se em Yatola, cidade prxima a Sucre, no estado de Chuquisaca, onde
criam a fazenda-teatro, e, em 1992, j nos primeiros textos escritos na Bolvia, o
dramaturgo demonstra que esta, a Bolvia, sempre ter importncia nas temticas da
companhia, com as peas Coln e El pueblo que perdi el mar, que referenciam,
respectivamente, um dos primeiros conquistadores da Amrica e o episdio de 1979 no
qual a Bolvia perde para o Chile o seu nico territrio com sada para o mar, tornando-
12
Eugenio Barba (Brindisi, 29 de outubro de 1936). Dramaturgo italiano, pesquisador e diretor de teatro.
o fundador e diretor do Odin Teatret, integrado por Brie na dcada de 1980, e criador do conceito da
Antropologia Teatral, ainda fundador e diretor do Theatrum Mundi Ensemble, e criador da ISTA
(International School of Theatre Anthropology). 13
a pesar de que haban nacido antes de que decidiera siquiera ir a Bolivia.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Brindisihttp://pt.wikipedia.org/wiki/29_de_outubrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1936http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Odin_Teatret&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/International_School_of_Theatre_Anthropology
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se, ao lado do Paraguai, um dos dois nicos pases encravados de todo continente
americano. Para Abnadur e Rojo (2009, p.13-14):
Brie sabe que a escolha por esse pas [Bolvia] como local de trabalho lhe
dar sempre o status de imigran
te, de estrangeiro. Mas o papel social do teatro definido pela escolha de um
lugar com pouca tradio cnica em termos ocidentais, mas com muitas
crenas populares parece que foi mais relevante em sua deciso. O Teatro
de los Andes produz, em Yatola, um lugar de encontro e trabalho com atores
e diretores do mundo inteiro.
Alm de receber aos profissionais de teatro em seu teatro-fazenda, o Teatro de
los Andes tambm excursiona por toda Amrica Latina, com apresentaes em
universidades, praas, bairros, povoados, locais de trabalho, comunidades, pois, para
eles, a relao com o pblico que determina a sua prtica teatral14
.
Abnadur e Rojo (2009) opinam ainda que na dramaturgia de Brie h um dilogo
entre a sua histria pessoal e a macro-histria, tomam como exemplo o texto dramtico,
de 1993, Slo los giles mueren de amor, inspirado no velrio de um amigo suicida, no
qual a personagem-protagonista, em um monlogo, leva a cena a prpria morte,
relembra os tempos juvenis, a iniciao sexual e o trabalho do artista dentro do contexto
da ditadura militar dos anos de 1970. Em La Odisea, a histria pessoal do autor tambm
compe a macro-histria, sendo ele mesmo um exilado, um emigrante, um Ulisses que
reencontra Telmaco; ao conhecer j adulto, na montagem de La Odisea, o sobrinho,
Pablo Brie. O dramaturgo, assim, um Ulisses que deixa taca; j que La Odisea o seu
ltimo trabalho com o grupo.
As mesmas autoras tambm ratificam a ideia de que a mitologia clssica uma
das suas fontes (p.15), como j aludimos, trs dos textos dramticos do autor tm
relao direta com a Antiguidade: La Iliada, encenada pela primeira vez em 2000, El
Cclope encenada pela primeira vez em 2002, e La Odisea encenada pela primeira vez
em 2008.
Logo, neste trabalho, o de levar o teatro ao pblico em geral, utilizando,
tambm, os temas da mitologia clssica, Brie e El Teatro de los Andes dialogam como o
que acredita Said (2004, p.21): na positividade da leitura dos clssicos Homero,
Herdoto, squilo, Eurpides, por exemplo no s em uma educao no nvel
superior, como tambm em defender a importncia de sua leitura para o mundo em
14
Disponvel em: < http://www.teatrolosandes.com/sp/acerca.asp>. Acesso em 07/04/2012.
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29
geral. o que fazem ao e, levando-o as pessoas onde elas estiverem e levando at elas
saberes da Antiguidade Clssica, fonte de nossa formao cultural.
O dramaturgo deixa de dirigir a companhia, definitivamente, em 201015
.
Contudo, sua semente nela continua a germinar vvida e forte, atualmente, eles encenam
Hamlet, de los Andes, com o diretor convidado Diego Aramburo. Enquanto Brie vive,
novamente, entre a Argentina e a Itlia, encenando os textos escritos na sua antiga
companhia e uma nova adaptao sua de 2011, Karamazov, de Fedor Dostoievski,
levada ao palco em 2012.
Cremos relevante ressaltar, ainda, a importncia de fontes literrias para o
trabalho de criao de Brie e do Teatro de los Andes, alm da trilogia temtica com a
Antiguidade Clssica, que marca a ltima dcada do diretor e dramaturgo com o grupo
(La Iliada, El Cclope e La Odisea), ambos levaram ao palco, tambm, a j referida
Romeu y Julieta, de 1991, adaptao do texto dramtico homnimo de William
Shakespeare.
Em 1994, duas adaptaes do texto literrio Crnica de una muerta anunciada,
de Gabriel Garca Marquez, foram montadas, uma homnima e La muerte de Jess
Mamani, adaptao do ltimo captulo do mesmo romance, com adaptao, direo e
atuao de Gonzalo Callejas.
Ub en Bolvia, tambm de 1994, adaptao do texto dramtico Ubu Roi, do
francs Alfred Jarry. Juan Darien, de 1995, adaptado do conto homnimo de Horcio
Quironga. De 1998, En la cueva del lobo que possui uma montagem anterior, de Brie
com o grupo dinamarqus FARFA, com uma posterior montagem boliviana , adaptao
do conto O Lobo Feroz, de Boris Van.
E, de 2008, La Mujer de Anteojos, uma adaptao do conto La Historia del
Lagarto que Tena La Costumbre de Cenar a sus Mujeres, de Eduardo Galeano, com
adaptao e atuao de Alice Guimares, dirigida por Csar Brie.
Infelizmente, com exceo de La Iliada e La Odisea, nenhum desses textos est
editado ou disponvel para descarregar16
. Paradoxalmente, ao passo que adaptam textos
15
Atualmente, integram o grupo Giampaolo Nalli (produtor e administrador), Gonzalo Callejas (ator,
cengrafo e diretor artstico), Lucas Achirico (ator e diretor musical) e Alice Guimaraes (atriz e
coordenadora pedaggica). 16
O dramaturgo possui publicado na Argentina duas Antologias, Teatro I (BRIE, 2013a) e Teatro II
(BRIE, 2013b.). Nelas esto publicados os textos dramticos: La Iliada, Las Abarcas del Tiempo, En un
sol amarillo, otra vez Marcelo (Teatro I). E La Odisea, Te duele?, Solo los giles mueren de amor, El
mar en el bolsillo, El grito de Alcorta (Teatro II). Levantados no site do CELCIT podem ser
descarregados os textos de En un sol amarillo, Frgil, Graffiti, La Odisea, Las Abarcas del Tiempo, Solo
los giles mueren de amor e Te duele?.
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literrios, demonstrando que o grupo no faz parte daqueles que defendem uma
literatufobia, o fato de muitos dos textos produzidos pelo grupo, sobretudo os mais
antigos, no estarem editados e serem de difcil resgate demonstram tambm uma certa
luta contra o textocentrismo. Sobre seus textos, Brie cr que no so essenciais para
a encenao, o principal que deem margem para serem interrogados e, s vezes,
forados a algumas mudanas (BRIE apud ABNADUR & ROJO, 2009, p.15).
Deixando claro que o texto no tem ascendncia dominante sobre a encenao,
reconhecendo-os, assim, como independentes.
Como j se pode perceber, a produo de Brie junto ao Teatro de los Andes foi
intensa e perene17
e, como j aludido, colaborou para inscrio do teatro boliviano na
cena internacional, ao mesmo tempo em que contribuiu para o fortalecimento de um
teatro nacional que os tornou referncia na Amrica Latina. Com um teatro de vis
extremamente politico, o dramaturgo comeou a se envolver cada vez mais com os
acontecimentos polticos bolivianos, atuando alm dos palcos, inscrevendo em sua
biografia o j referenciado filme documentrio Humillados y Ofendidos (2008) e
tambm outro filme documentrio, Morir en Pando18
(2010), sobre o massacre de
camponeses em Povenir, no estado boliviano de Pando, que origina o ttulo do
documentrio, ocorrido em 11 de setembro de 2008.
Prova do reconhecimento que recebe como dramaturgo ainda que uma minoria
poltica boliviana, pertencente elite, o tenha levado a um segundo exlio foi o
encargo que recebeu, em 2012, do Instituto Nacional del Teatro Argentino (INT) para
dramatizar o Grito de Alcorta, publicado em Csar Brie: Teatro II (2013b) revolta
agrria de pequenos e mdios produtores rurais, que em 1912 abalou o sul da provncia
de Santa F, Argentina, e logo se expandiu por toda a regio dos Pampas, se centrando
na cidade de Alcorta , no centenrio da data cvica, gerando um espetculo
homnimo. Tambm com o patrocnio do INT excursionou pela Argentina com
Karamazov e El mar en el bolsillo.
Trazemos, aqui, essas informaes com o objetivo de contextualizar a produo
do texto dramtico de La Odisea para o nosso leitor, assim como, apresentar um pouco
17
Reproduzimos aqui a cronologia dos 22 textos dramticos escritos e montados por Brie em sua atuao
como dramaturgo e diretor do Teatro de los Andes: 1991 El mar en el bolsillo, Romeu y Julieta. 1992
Coln, La leyenda del pueblo que perdi el mal, Cancionero del mundo. 1993 Slo los giles mueren de
amor. 1994 Crnica de una muerte anunciada, La muerte de Jess Mamani, Ub en Bolivia, Desde
lejos. 1995 Las abarcas del tiempo. 1996 Juan Darien. 1998 En la cueva del lobo, Graffiti. 2000
La Iliada. 2002 El Cclope. 2003 Frgil. 2005 Otra vez Marcelo. 2006 120 kilos de jazz. 2007 -
Te duele?. 2008 La Odisea. 18
Documentrio disponvel em .
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de Csar Brie e do Teatro de los Andes, que, apesar de terem estado lado a lado,
dramaturgo e companhia, por quase vinte anos de 1991 a 2010 so instituies, hoje,
com projetos distintos, que foram, em geral, convergentes at a sua ltima produo
juntos: La Odisea.
importante ressaltar, tambm, que, alm de fundador, Brie foi dramaturgo,
diretor e ator do grupo, papeis que segue desempenhando em sua carreira. Mesmo sendo
notria sua liderana, tanto na direo quanto na dramaturgia, cabe mencionar que ele
no era o nico a exercer esses papeis. Como nos esclareceu Alice Guimaraes19
, atriz do
grupo desde 1998, e, hoje, tambm coordenadora pedaggica, Brie foi fundador e parte
importante do grupo, edificou os pilares artsticos do trabalho que continuamos
fazendo at hoje, diz ela.
Ressalta, ainda, que mesmo nesses quase vinte anos, exerceu atividades com
outros grupos que no dizem nenhum respeito ao Teatro de Los Andes como a
montagem de Zio Vanja, texto de Anton Tchekhov, na Itlia, em 2006 , sendo o grupo
hoje, repetimos, uma instituio totalmente apartada e independente de seu fundador,
cuja importncia, para o grupo, to significativa quanto a de outros membros que
deixaram ou seguem na companhia, para Alice Guimaraes, ainda que Brie, como diretor
e dramaturgo, seja importantssimo, o aporte dos membros que fizeram e fazem parte
ainda do grupo no menor.
Recebemos esses esclarecimentos nos contatos que mantivemos tanto com o
grupo quanto com o dramaturgo em busca de outros suportes que enriquecessem as
nossas leituras, assim como de materiais para confeco de um projeto de doutorado, no
qual se pretende seguir com a investigao de textos dramticos de Brie e/ou do Teatro
de Los Andes. Ao menos nesta subseo, em que contextualizamos a ambos, faremos
esta distino o que no ocorrer doravante, quando nossas anlises versaro apenas
sobre La Odisea , haja vista, como dissemos, no ser Brie o nico a dirigir, escrever e
adaptar textos no grupo.
J havia nos ocorrido a necessidade de problematizar a autoria coletiva nas artes
cnicas, mesmo estando clara nossa metodologia, e filiao terica na crena da
independncia do texto dramtico com a clara concepo de sua montagem cnica como
uma outra obra, que angaria para si outros signos e elementos e, obviamente, em
nossas referncias estar a creditao de La Odisea (2013b) a Brie. A necessidade dessa
19
Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014.
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discusso foi ratificada pela fala de Alice Guimares, j que at ento, s conhecamos a
voz do dramaturgo. Na fala da atriz: considero importante mencionar que o que sempre
caracterizou e caracteriza o trabalho do Teatro de Los Andes o trabalho de criao
coletiva. No prescindimos da figura do diretor, mas ele mais um no processo criativo
junto com os atores, cengrafo, msicos, etc20
.
Sabemos que este um terreno movedio, tanto que em um outro contato
oportuno, com a professora e tambm dramaturga Cleise Mendes, recebemos dela o seu
texto, at ento ainda indito, que em breve seria publicado, Dramaturgia e autoria em
obras cnicas (2014)21
, com o qual podemos esclarecer nossas dvidas.
No que tange ao texto, na cronologia de Csar Brie, trazida por Marita Foix (In.:
BRIE, 2013a), e por ns revisada com o auxlio do dramaturgo e de Alice Guimares, o
nico texto ao qual creditada criao coletiva Desde lejos, de 1994, aos outros so
creditados um ou dois autores, nem sempre Brie, como j aludido. Logo, a montagem,
sim, de autoria coletiva, mas muitos dos textos incluindo o nosso objeto tem a
assinatura de Brie, obviamente que com possveis e provveis contribuies, mas com a
assinatura dele, como segue sendo editado (BRIE, 2013a, 2013b). Quanto a esta
questo, Mendes (2014, p. 29) defende que:
As artes cnicas, em suas vrias modalidades, tm em comum o fato de sua
autoria ser, inescapavelmente, coletiva. Qualquer criao no campo das artes
cnicas implica a co-participao de profissionais das mais variadas funes
e formaes, tais como diretores, atores, cengrafos, aderecistas, figurinistas,
sonoplastas, iluminadores. A obra-evento [...] engendrada por um processo
colaborativo que no pode ser seno o resultado de uma autoria mltipla.
Quando uma montagem chega a sua forma final final no sentido de que
est pronta para ser apresentada ao pblico, j que uma obra viva, em
mutao constante, portanto no h, para falar com rigor, forma final
torna-se impossvel separar as participaes autorais.
Logo, embasados no que diz Mendes, qualquer arte cnica de autoria,
inescapavelmente, coletiva, estejam os participantes dela cientes ou no, e, sendo essa
uma filosofia de trabalho, a coletividade ainda mais inquestionvel, se que possvel.
Para a terica, cuja temtica extremamente interessante por ser ela mesma dramaturga,
20
Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014. 21
O texto de Mendes foi o desenvolvimento de sua fala proferida durante o Painel Direito Autoral,
Propriedade Intelectual e Plgio, uma realizao do Instituto de Cincia da Informao da UFBA e da
Academia de Letras Jurdicas da Bahia, em 15 de setembro de 2011. J se encontra publicado, como
referenciado nessa dissertao, e o livro completo, homnimo ao painel, cuja organizao de Rubens
Ribeiro Gonalves da Silva, se encontra disponvel para descarga no repositrio da UFBA no link:
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a obra cnica, aquela que se realizar no palco, viva, estando mais para evento do que
para obra, j que no estvel, fixa, imutvel, terminada.
Mendes esclarece que, dentre as distintas querelas sobre autoria ou autorias
nas artes cnicas, a mais antiga, porm extremamente atual, a que diz respeito s
relaes de dependncia ou autonomia entre o texto e a encenao, o que j discutimos
com base na prpria autora, ao decidirmos trabalhar apenas o texto.
No que tange a esta questo, como desde o princpio deixamos evidente a nossa
viso do texto dramtico enquanto obra literria e independente da encenao, Mendes
(2014), mais uma vez, nos dar os pressupostos para creditar o texto dramtico aos seus
respectivos autores dentro da companhia, como Brie, em La Odisea, Gonzalo Callejas,
em La Muerte de Jess Mamani, e a prpria Alice Guimares, em La Mujer de
Anteojos, para a terica e dramaturga:
No caso do dramaturgo, pode-se dizer que ele o nico dentre os
profissionais envolvidos que possui uma obra autnoma, que tem existncia
independente, pois seu texto pode ser lido antes e depois do espetculo
produzido. Pelo menos no caso de processos mais tradicionais de montagem,
a pea teatral, o texto, j existe antes da encenao (MENDES, 2014, p.30).
Assim sendo, dentro da reviso que fizemos de Marita Foix da cronologia de
Brie e do Teatro de los Andes, cabe mencionar, tambm, os casos de Fragil, de 2003,
120 Kilos de Jazz, de 2006, e Te Duele, de 2007, estando os dois primeiros editados na
Bolvia e o ltimo na Argentina (Brie, 2013b). Destes trs textos, na cronologia traada
por Foix, apenas Fragil mencionado com co-autoria, sendo seus autores Brie e Mara
Teresa del Pero, os outros dois trazem como autor apenas Brie. Contudo, Alice
Guimares relata que estes trs textos:
120 Kilos De Jazz, Fragil e Te Duele foram espetculos atpicos dentro da
dinmica do grupo porque foram projetos nascidos de iniciativas e
necessidades individuais de alguns atores que propuseram ao grupo a
realizao de determinados projetos. 120 Kilos foi um projeto do ator Daniel
Aguirre, Fragil, de Maria Teresa Dal Pero e Te Duele de Lucas Achirico e
Danuta Zarzyka que fizeram uma exaustiva investigao sobre o tema da
violncia domstica na Bolvia e na Amrica Latina22
.
Como dito pela atriz e coordenadora pedaggica do Teatro de los Andes, os
espetculos foram atpicos dada a iniciativa individual dos atores por realiz-los e a
pesquisa que empreenderam , mas, aps toda discusso com base em Mendes, e
22
Correspondncia eletrnica trocada com Alice Guimares em 29 de julho de 2014.
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estando creditada a assinatura de Mara Tereza del Pero em Fragil, s podemos pensar
na coerncia da cronologia trazida por Foix e na existncia, sim, de possveis e
provveis contribuies nos textos dramticos de Brie, mas cujas autorias so dele.
Dada nossa Introduo, discorreremos a partir de agora, nas trs seguintes sees
que desenvolvem nossa dissertao Entre retalhos e costuras: o rapsdo e o hbrido
em Brie, Entre monstros e amores: a partida e o retorno de Ulisses, Entre humilhados e
ofendidos: questes de identidade , os conceitos-chave aqui apresentados e a anlise
minuciosa de La Odisea em sua insero cultural, poltica e literria na Bolvia e na
Amrica Latina.
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2 ENTRE RETALHOS E COSTURAS: O RAPSDO E O HBRIDO EM BRIE
2.1 CSAR BRIE: O AUTOR-RAPSODO
No cnone da literatura nacional brasileira encontramos como exemplo de
rapsdia a obra Macunama (2007), assim definida pelo seu prprio autor, Mrio de
Andrade, que a definiu tomando o termo rapsdia emprestado da msica, rea na qual
tambm atuava, na qual a rapsdia define o verso livre, sem excluir, obviamente, toda
potencialidade do termo, que inclui, desde que ele foi cunhado na Antiguidade Clssica,
a hibridizao de gneros e textos, a narrativa oral, a narrativa de lendas.
A evocao a obra quase centenria 86 anos de Mrio de Andrade justifica-
se para refletirmos que o operador de leitura proposto pelo terico francs Jean-Pierre
Sarrazac para o texto dramtico, na dcada de 1980, tambm se faz presente na
literatura latino-americana, de forma explcita ou no, diramos, alis, que na Amrica
Latina a rapsdia um dos constituintes no s de nossas artes, como de nossas
identidades. No Lxico do Drama Moderno, cuja organizao do prprio Sarrazac, o
operador de leitura rapsdia como forjada por ele est definido como:
Conceito criado e desenvolvido por Jean-Pierre Sarrazac em O futuro do
drama, no incio dos anos 1980, a rapsdia corresponde ao gesto do rapsodo,
do autor-rapsodo, que, no sentido etimolgico literal rhaptein significa
costuras , costura ou ajusta cnticos. [...] a noo de rapsdia aparece,
portanto, ligada de sada ao domnio pico: o dos cantos de narrao
homricos, ao mesmo tempo que a procedimentos de escrita tais como a
montagem, a hibridizao, a colagem, a coralidade. (HERSANT;
NAUGRETTE, 2012, p.152)
A rapsdia como operador de leitura traz em si outros operadores que so ricos
s anlises literrias contemporneas, dentre eles hibridizao/hibridismo e
intertextualidade, operadores potentes para o cotejo de duas Odisseias, e, como se pode
perceber, ao manter o nome do hipertexto homrico, em espanhol La Odisea, o
dramaturgo optou por evidenciar e, diramos at, potencializar o seu fazer rapsdico,
isto porque, segundo o prprio Csar Brie: a Odisseia infinita. Suscitou muitssimas
obras de arte. Ler, ler, ler, comparar (BRIE, 2007b, p.4).
Logo, ele segue outros rastros alm dos de Homero, como os de Joyce, Borges,
Dante, realizando outras intertextualidades para costurar um texto hbrido no qual
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pudesse expor a perda de um tero dos cidados bolivianos para a emigrao rumo a
territrios estrangeiros, sobretudo, E.U.A., Argentina e Europa.
No ano de 2008, mais precisamente em 24 de maio, durante a montagem da
pea, ocorreu na cidade de Sucre cidade prxima a cidade na qual localiza-se a
fazenda da companhia, Yotala um ato de violncia e racismo contra os indgenas do
interior, praticado pela populao universitria, servidora pblica e classe mdia da
cidade, que, em geral, tambm de ascendncia indgena. O ato levou o dramaturgo a
parar a montagem e, como j foi dito, iniciar um documentrio posteriormente,
internacionalmente reconhecido chamado Humillados y Ofendidos (2008).
Aps produzir e publicizar o documentrio, o dramaturgo passou a ser
hostilizado pelas lideranas locais, deixando de ser o artista conceituado para ser o
argentino de merda23
, como relata em entrevistas. Em suas peas, a poltica e a
denncia contra o que sofrem os camponeses e vulnerveis sempre estiveram presentes,
contudo, quando esse ato poltico, mas ficcional, saiu dos palcos, do mbito metafrico,
para a realidade e se tornou transparente para o poder ele foi imediatamente repelido.
Verifica-se que esse ato explicitamente poltico de Csar Brie, a filmagem do
evento e a sua participao nele, o levou a modificar o rumo do seu texto, excluindo e
incluindo cenas, pensando e repensando a forma, em um fazer rapsdico de coser e
descoser o texto homrico e o seu prprio texto.
Em La Odisea, Brie aproxima-se do teatro brechitiano em sua forma e inteno,
isto , atravs de recursos picos convida a Bolvia a repensar sua condio, ao mesmo
tempo em que a expe fora das fronteiras nacionais. Como dito por Sarrazac, a rapsdia
est ligada de sada ao domnio pico, aos cantos de narrao homricos, aos
procedimentos de escrita de colagem, caractersticas que Brie faz explodir ao descoser e
recoser um canto homrico em si, a Odisseia.
H, como j foi apontado anteriormente, trs verses do texto dramtico La
Odisea disponveis para leitura. A primeira (BRIE, 2007b) est impressa e editada pelo
Teatro de Los Andes na Bolvia e, ainda que apresente significativas diferenas, se
assemelha muito a ltima verso editada em uma antologia de textos dramticos do
autor junto ao Teatro de Los Andes publicada na Argentina (BRIE, 2013b), esta verso
apresenta mais didasclias e maior edio nas cenas (como o acrscimo de uma fala
23
Entrevista disponvel em: < http://www.youtube.com/watch?v=X_ug3IqVW9c> . Acesso em 07/02/14.
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ltima cena), alm de ter recebido correo ortogrfica e textual nos erros presentes na
de 2007.
A verso de 2009 encontra-se disponvel para download no site do CELCIT
Centro Latinoamericano de Creacin e Investigacin Teatral, sob o nmero 316, com o
ano de 2009 indicado como data de postagem, a datao presente nos dois artigos
encontrados que referenciam o texto datam o acesso entre 2010 e 2011, logo, esta
verso, estaria entre a primeira e a terceira. Primeira (BRIE, 2007b), segunda (BRIE,
2009) e terceira (BRIE, 2013b).
Nesta verso levantada no CELCIT h uma relevante cena, a primeira, que foi
posteriormente excluda, no estando presente no texto de 2013, esta verso, alm de
possuir cenas excludas, possui a organizao de suas falas e cenas tambm distinta dos
textos de 2007 e 2013, por isso est cena ser o primeiro objeto de nossa anlise, esta
verso, (BRIE, 2009), possui, tambm, menos indicaes cnicas ou possui indicaes
diferentes das outras verses e apresenta um final tambm diferente, o trmino do texto
de Brie, alis, distinto nas trs verses.
Essa primeira cena excluda corresponderia no texto homrico assembleia dos
deuses, que, justamente, em Homero, ocorre duas vezes, a primeira assembleia como
cena de abertura da Odisseia e daquela que os tericos chamam de Telemaquia,
resultando na descida de Atena para ajudar Telmaco os quatro primeiros cantos que
narram a busca de Telmaco por Ulisses (sobre a Telemaquia especificamente
trataremos na terceira seo) e a segunda assembleia na ida de Hermes a ilha de
Calipso para inform-la que deve liberar Ulisses.
Para muitos tericos, como Jaqueline de Romilly, ocorre que as duas
assembleias so, um pouco, uma repetio escusada (2001, p.48), assim sendo, ao
excluir da verso de 2013 uma das assembleias presente na verso de 2009, Brie estaria
dialogando tambm com os comentaristas da Odisseia.
Como j mencionado, aps os eventos de 24 de maio de 2008 na cidade de
Sucre, na Bolvia, o dramaturgo, que at ento montava La Odisea, parou a montagem
para participar dos eventos vividos em 24 de maio e registr-los em um documentrio,
intitulado Humillados y Ofendidos. Acreditamos que, tambm por isso, a relevante
primeira cena que est presente na verso disponvel no CELCIT, intitulada Primer
Acto: Escena 1: Asamblea de los dioses (Assembleia dos Deuses) tenha sido editada,
acrescentada e, posteriormente, descartada da verso publicada em 2013. Para que
compreendamos melhor, seguem alguns excertos da cena:
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Praia. Zeus deitado em uma cadeira de praia. Atena chega com uma
sombrinha e se deita na areia. Hermes camareiro serve a Zeus champanhe.
Afrodite faz massagem em Zeus. Na praia h sapatos masculinos e femininos
trazidos pela mar. Hermes recebe uma ligao. Hermes: Al, sim, Ulisses?
Ulisses Choque?Voc est na Espanha, no aeroporto? Chama-se Barajas?
Qual o probleminha? O de migraes, um tal de Polifemo? Voc no tem
visto, querem lhe deportar, no lhe deixam passar? [...] Afrodite: Al,
Ulisses Quispe? No est em Ushuaia? Em Londres... Mxico... No Paso?
No escuto... H latidos. Os ces de guarda da polcia de Escila e Caribdis?24
.
(BRIE, 2009, p.1, 3)
A relevncia e importncia dessa cena, includa e depois excluda, est
justamente em seus traos rapsdicos. Aps a indicao cnica, o texto j comea com
uma narrao, isto , epicizado, Hermes, em uma ligao telefnica relata o que ocorre
com Ulisses do outro lado do Atlntico. A presena de Afrodite tambm indica o canto
rapsdico do dramaturgo, j que essa personagem em Homero s se faz presente na
Ilada, sem ocorrncias suas na Odisseia, a deusa do amor, aqui, demarca o retalho e a
costura de outro tecido textual. Apesar da excluso dessa primeira cena (BRIE, 2009),
na cena 5, Calipso, da edio publicada em livro (BRIE, 2013b, p.26) mantem-se a
personagem de Afrodite, que aparece no segundo quadro, Los consejos de Afrodita, para
aconselhar a ninfa de ricas tranas. Na verso do CELCIT essa a 6 cena do primeiro
ato.
A rapsodagem ocorrida com Afrodite se passa, de outra forma, com Ulisses,
que ao receber sobrenomes, Choque e Quispe, traz tona as reais personas de Salustio
Choque e Felipe Quispe Huanca, este recebeu o ttulo de o mallku, em aimar, o condor,
ttulo que designa os chefes de tribos, um ativista indgena e poltico boliviano da
etnia aimar mesma do presidente Evo Morales , lder do Movimento Indgena
Pachakuti (MIP), fundado em 2000, e lder sindical, foi ainda o secretrio geral
da Confederacin Sindical nica de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB),
aquele, Salustio Choque, foi integrante do Grupo guerrilheiro de Che Guevara na
Bolvia, detido pelo exrcito, torturado, condenado a trinta anos de priso e anistiado
em 1970.
24
Playa. Zeus acostado en una silla playera. Atenea llega con una sombrilla y se acuesta en la playa. Hermes camarero sirve a Zeus champagna. Afrodita le hace masajes. En la playa hay zapatos de hombres
y mujeres llegados con las olas. Hermes recibe una llamada. Hermes: Al, si, Ulises? Ulises Choque?
Ests en Espaa, en el aeropuerto? Barajas se llama? Qu problemita? El de migraciones, un tal
Polifemo? Te falta la visa, quieren deportarte, no te hacen pasar? [] Afrodita: Al, Ulises Quispe?
No ests en Ushuaia? En Londres... Mxico... en el Paso? No escucho... Hay ladridos Los perros
guardianes de la polica de Escila y Caribdis?
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O dramaturgo, assim, traz cena figuras importantes na luta por direitos
igualitrios na Bolvia, Choque remete a um passado prximo de guerrilha, enquanto
Quispe a um presente de lutas democrticas, ambas com intenes de livrar os
campesinos indgenas da opresso e de uma situao de vulnerabilidade
socioeconmica, o autor, mais uma vez, encontra uma estratgia para atualizar o texto
homrico.
Na interpretao de Alicia Mara Atienza, a mescla, no texto, do nome Ulisses
com os sobrenomes peruanos Choque e Quispe ressignificariam o estatuto da
personagem aproximando-a de um roll tipificado, o de qualquer imigrante (ATIENZA,
2010, p.55). No exclumos esta interpretao, j que esses sobrenomes indgenas,
assim como outros que surgiram ao logo do texto, realmente so comuns na Bolvia,
como o so Silva e Souza no Brasil. Contudo, acreditamos na possibilidade de
coexistncia das duas interpretaes j que tais sobrenomes suscitam no leitor/pblico,
sobretudo, no boliviano, figuras relevantes na histria do pas, como Silva que no
Brasil representaria a qualquer um, mas que pronunciado em um contexto internacional,
suscitaria ao primeiro presidente oriundo da classe Trabalhadora que teve o pas Luis
Incio Lula da Silva o que ocorrer na pea com a meno, tambm, ao sobrenome
Morales25
. Interessa-nos, tambm, perceber como a verso do texto disponibilizado no
CELCIT a que mais possui fortuna crtica at o momento, obviamente, porque, apesar
do status que o texto impresso ainda possui, a verso on-line possui um alcance
infinitamente maior e essa a verso analisada e referenciada pela autora.
Ainda com relao a essa primeira cena, temos a seguinte passagem que acima
elipsamos:
Zeus: (Mostra-lhe um sapato) Atena, veja que beleza. Quem o ter calado?
Atena: Zeus Pai, onde o encontrou?
Zeus: O encontrei na praia, em sete de agosto de mil novecentos e oitenta.
No sculo passado...
Atena: Eu conheo o dono. Se chama Ulisss, faz muito tempo que foi
guerra e nunca voltou26
(BRIE, 2009, p.1).
25
Podemos establecer nessa estratgia de Brie um pararelo com a comdia na Antiguidade Clssica, a
exemplo de Aristfanes, comedigrafo grego, que nomeava seus personagens com nomes de polticos e
generais atenienses. Melhor exemplo disso a pea Os Acarnenses. A comdia antiga, a comdia de
Aristfanes, poltica. A comdia serve como crtica a sociedade ateniense da poca, um sculo depois,
j est consolidada a comdia nova, com Menandro, que escreveu comdia de costumes, como O
Misantropo. 26
ZEUS: (Le muestra un zapato)/Atenea, mira qu belleza. Quin lo habra calzado?/ ATENEA: Padre
Zeus Dnde lo encontraste?/ZEUS: Lo encontr en la playa el siete de agosto de mil nueve ochenta. El
siglo pasado.../ [] ATENEA: Yo conozco al dueo./ Ulises se llama, hace mucho tiempo que se fue a
la guerra y nunca volvi.
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40
O calado aqui um objeto cnico que surge como gatilho para as memrias de
ambos os envolvidos na cena, Zeus, Atena e, por meno, Ulisses. a partir dele que
Zeus rememora, com preciso divina, a data, o ms e o ano em que o encontrou e
demarca ter sido no sculo passado.
O sapato de Ulisses o pontap inicial para que a pea comece a narrar as
memrias de um heri boliviano, andino, que erra pelo mundo em narrativa tambm de
exlio e no mais apenas de retorno. Faz-se necessrio que rememoremos, tambm, que
os Andinos da regio que hoje conhecemos como a Bolvia foram dominados e
explorados durante o Imprio dos Incas, para os quais, segundo Stallybrass (2012, p.
13), a roupa possua enorme significado, ao incorporarem uma nova comunidade para o
seu reino, por exemplo, concediam aos novos cidados roupas para vestir. Dentre as
diversas rapsdi