universidade de sÃo paulo faculdade de educaÇÃo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Luciane Muniz Ribeiro Barbosa ENSINO EM CASA NO BRASIL: um desafio à escola? São Paulo Março de 2013

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Luciane Muniz Ribeiro Barbosa

    ENSINO EM CASA NO BRASIL: um desafio escola?

    So Paulo

    Maro de 2013

  • LUCIANE MUNIZ RIBEIRO BARBOSA

    ENSINO EM CASA NO BRASIL: um desafio escola?

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da

    Faculdade de Educao da Universidade de So

    Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em

    Educao.

    rea de concentrao: Estado, Sociedade e

    Educao

    Orientador: Prof. Dr. Romualdo Luiz Portela de

    Oliveira

    So Paulo

    Maro de 2013

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    37(81) Barbosa, Luciane Muniz Ribeiro

    B238e Ensino em casa no Brasil : um desafio escola? / Luciane

    Muniz Ribeiro Barbosa ; orientao Romualdo Luiz Portela de

    Oliveira. So Paulo : s.n., 2013.

    350 p.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao.

    rea de Concentrao : Estado, Sociedade e Educao) Faculdade de

    Educao da Universidade de So Paulo)

    .

    1. Educao - Brasil 2. Direito educao 3. Ensino em casa 4.

    Escolarizao 5. Compulsoriedade I. Oliveira, Romualdo Luiz Portela

    de, orient.

  • FOLHA DE APROVAO

    Luciane Muniz Ribeiro Barbosa

    Ensino em Casa no Brasil: um desafio escola?

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao da Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para a obteno do

    ttulo de Doutor em Educao.

    Aprovada em:

    Banca examinadora:

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura:________________________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura:________________________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura:________________________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura:________________________________

    Prof. Dr. ______________________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura:________________________________

  • Ao Cezar Eduardo, pois

    desde ento, sou porque tu s

    E desde ento s

    Sou e somos...

    E por amor

    Serei... Sers... Seremos...

    (Pablo Neruda)

    Ao Heitor e Matheus,

    que chegaram durante esta pesquisa,

    trazendo-nos vida e novos sentidos.

  • Agradecimentos

    Ao meu esposo, Cezar Eduardo, pelo amor e cumplicidade, por todo o apoio necessrio e

    fundamental para a realizao e concluso desta pesquisa e, principalmente, por compartilhar

    dos meus sonhos transformando-os em nossos projetos;

    Ao Heitor e ao Matheus, filhos amados que chegaram durante a elaborao desta tese,

    obrigando-me a ampliar o olhar sobre o tema de pesquisa e a dividir meu tempo entre os

    livros e o maravilhoso universo das fraldas, mamadeiras e noites mal dormidas...;

    Aos meus pais, Valter e Deise, atores principais em minha trajetria e co-responsveis pelas

    minhas conquistas; s minhas irms Thas e Simone, pela amizade sempre sincera, profunda e

    essencial; a todos os meus familiares, pela constante torcida e apoio;

    A toda a minha equipe de apoio, pelo cuidado com meus meninos, principalmente no

    perodo de finalizao desta tese: Santinha; aos meus pais; irms e cunhados; sogro e

    sogra; tias de sangue e de corao;

    Ao Prof. Romualdo, orientador que me acompanha desde os anos de iniciao cientfica, pela

    inestimvel contribuio minha formao como pesquisadora e sobretudo pela amizade; aos

    demais professores da FEUSP que se fizeram presentes nesse processo;

    Aos integrantes do grupo Direito Educao, pela leitura, discusses polmicas e ricas

    contribuies ao trabalho; especialmente Caroline Falco, Malena Carvalho e Nathlia

    Cassettari, pela amizade e ajuda com a verso final do texto. Denise Moretti, Elaine

    Menezes e Simone Cavalheri, pelas ricas contribuies e sugestes s discusses jurdicas,

    com quem compartilho os xitos e eximo de qualquer equvoco;

    Ao Marcelo Ribeiro, responsvel pelo Servio de Ps-Graduao da FEUSP, pela

    competncia e constante gentileza. Gilmara, funcionria da limpeza da FEUSP, que

    diariamente quebrava meu silncio lembrando-me de um Brasil to desigual;

    Ananda Grinkraut e Luciana Leme, pela amizade sempre presente; Renata Sgarbi por ter

    me apresentado o tema; a todos os amigos, de perto e de longe;

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pelo apoio financeiro

    para realizao desta pesquisa no pas. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior (CAPES), pelo apoio financeiro em estgio no exterior mediante o programa

    de Doutorado Sandwich;

    Ao Professor Dr. Scott Davies, funcionrios e alunos do Departamento de Sociologia da

    Educao, da McMaster University, em Hamilton/Ontrio, Canad;

    Aos pais brasileiros e canadenses, que ensinam seus filhos em casa, e dirigentes de

    associaes de homeschooling que concederam entrevistas e compartilharam suas

    experincias, enriquecendo as anlises propostas nesta pesquisa;

    A Deus, pela vida e por continuar me ensinando que crer tambm (e sobretudo) pensar.

  • preciso fazer um problema do bvio, daquilo que

    forma o cotidiano, como meio de ressaltar, de sentir o

    mundo mais vivamente e de poder voltar a encontrar o

    significado daquilo que nos rodeia.

    (J. Gimeno Sacristn, 2001)

  • RESUMO

    BARBOSA, Luciane Muniz R. Ensino em casa no Brasil: um desafio escola? 2013. 348 f.

    Tese (Doutorado) - Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    A presente tese tem como objetivo analisar os princpios e fundamentos do ensino em casa,

    bem como sua possvel normatizao no Brasil. crescente o nmero de famlias brasileiras

    que optam por ensinar seus filhos em casa ao invs de envi-los para as escolas, apesar da

    interpretao vigente de que a legislao federal no admite tal prtica de ensino,

    apresentando como compulsria a matrcula em instituio escolar. Tal fenmeno tem

    suscitado a ao do Poder Judicirio, a apresentao de Projetos de Lei pela sua

    regulamentao e o interesse da sociedade sobre uma forma alternativa de ensinar os filhos,

    alm do debate e de reflexes sobre o tema. Seguindo tendncias internacionais em prol da

    normatizao do homeschooling, os favorveis ao ensino em casa no pas tm reivindicado o

    uso dos Documentos Internacionais de proteo aos Direitos Humanos para exigir a primazia

    dos pais na escolha da educao dos filhos e se organizado por meio de associaes para

    exercer influncia sobre o Poder Legislativo e divulgar o tema na sociedade. Acresce-se ao

    debate jurdico questionamentos como: Os argumentos utilizados pelos pais ao rejeitarem a

    instituio escolar como espao de formao acadmica e social revelam-se vlidos? Quais os

    fundamentos filosficos e polticos presentes na contestao do Estado em relao

    compulsoriedade da educao escolar? possvel compreender o ensino em casa como uma

    alternativa escolarizao de crianas e adolescentes no Brasil e rejeitar a idia de que a

    escola detm o monoplio nas questes de socializao e formao para a cidadania? Seria

    essa modalidade de ensino vivel para todos ou esta representaria apenas o descompromisso

    de poucos com a educao enquanto um bem pblico? O que a normatizao do ensino em

    casa no pas acarretaria para o debate sobre a ao e a formao docente? Estas e outras

    questes sobre o tema so objeto de anlise da presente tese, que, com base em pesquisa

    bibliogrfica e entrevistas com famlias que ensinam os filhos em casa, traa um panorama do

    ensino em casa, questionando-o como um possvel caminho em busca de uma educao que

    englobe o alcance de resultados acadmicos e o cumprimento de objetivos constitucionais

    para a educao como o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exerccio da

    cidadania. Destaca-se que todo o debate decorrente do tema em anlise visa contribuio

    para os enfrentamentos necessrios dentro de um contexto de luta em prol de uma educao

    pblica de qualidade para todos.

    Palavras-chave: ensino em casa; direito educao; compulsoriedade da educao escolar

  • ABSTRACT

    BARBOSA, Luciane Muniz R. Homeschooling in Brazil: a challenge to school? 2013. 348 f.

    Thesis (Doctoral) - Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

    The current thesis aims at analysing the tenets and the basis of homeschooling, as well as its

    possible regularisation in Brazil. The number of families that decide to teach their children at

    home has been increasing, besides understanding that the present federal legislation does not

    permit such brand of education and makes compulsory the enrollment of infants in an

    educational institution. This phenomenon has incited specific actions of the Judiciary, the

    presentation of Bills for its regulation and the interest of society in an alternative way of

    teaching their kids, not to mention the debates and reflections on the subject. Following

    international tendencies in favor of the regularization of homeschooling, people who defend

    teaching at home in the country have reclaimed the use of international documents of Human

    Rights Protection to require the priority of parents over their childrens education and

    organised associations to exert influence over the Legislature and advertise the topic for the

    society. In addition to judiciary debate some questions have risen, such as: Are valid the

    arguments presented by parents to reject the school as a place to academic and social

    education? Which are the philosophical and political principals behind States refuse in

    relation of the compulsion to school education? Is it possible to see homeschooling as an

    alternative to school education of children and adolescents in Brazil and reject the idea that

    educational institutions have the monopoly over socialization and citizen formation issues?

    Would this type of education be viable to everyone or it would just represent the

    disengagement of a few ones with public education? What would the regulation of

    homeschooling bring on for the debate on teacher practices and teacher training? These and

    other questions about this subject are the focus of the thesis presented here, which is based on

    bibliographical research and interviews with families that teach their kids at home. It reveals

    the panorama of homeschooling and investigates it as a possible way to an education that is

    able to encompass academic results and the achievement of constitutional goals to the full

    development of the individual and their capacity to exercise citizenship. It is important to

    emphasize that all the discussion over the topic in question intends to contribute to the

    necessary confrontations for a high-quality public education for everyone.

    Keywords: homeschooling, right to education, compulsory school education.

  • LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Resultados das pesquisas sobre as motivaes dos pais

    para o homeschooling................................. p. 120-123

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AC - Acre

    ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias

    AL Alagoas

    Anplia Aliana Nacional para Proteo Liberdade de Instruir e Aprender

    ANED Associao Nacional de Educao Domiciliar

    CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CC Cdigo Civil

    CCJC Comisso de Constituio, Justia e Cidadania

    CEB Cmara de Educao Bsica

    CEC - Comisso de Educao e Cultura

    CF Constituio Federal de 1988

    CNE - Conselho Nacional de Educao

    CP Cdigo Penal

    Detran Departamento de Trnsito

    DF Distrito Federal

    EAD Educao Distncia

    EC Emenda Constitucional

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8069/1990)

    ECHR - Corte Europeia de Direitos Humanos

    EF Ensino Fundamental

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio

    EUA - Estados Unidos da Amrica

    FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    FEUSP Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    GO - Gois

    HLSDA - Home School Legal Defense Association

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996

    MA - Maranho

    MEC Ministrio da Educao

    MG Minas Gerais

    MP Ministrio Pblico

    MT Mato Grosso

    NHES - National Household Education Surveys Program in the US

    PA Par

  • PB - Paraba

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PE Pernambuco

    PEC Proposta de Emenda Constitucional

    PFL Partido da Frente Liberal

    PHS Partido Humanista da Solidariedade

    PL - Projeto de Lei

    PL Partido Liberal

    PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    PP Partido Progressista

    PPS Partido Popular Socialista

    PR Paran

    PR Partido da Repblica

    PRB Partido Republicano Brasileiro

    PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

    PT Partido dos Trabalhadores

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    PUC Pontifcia Universidade Catlica

    RJ Rio de Janeiro

    RS Rio Grande do Sul

    SP So Paulo

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Superior Tribunal de Justia

    TCC Trabalho Complementar de Curso

    Unicamp Universidade Estadual de Campinas

    USP Universidade de So Paulo

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 15

    1. EXPERINCIAS BRASILEIRAS COM O ENSINO EM CASA ................................. 30

    1.1 Famlia Vilhena Coelho, em Anpolis/GO ................................................................. 31

    1.1.1 Parecer CNE/CEB 34/2000 ................................................................................... 33

    1.1.2 Mandado de Segurana N 7.407 - DF ................................................................. 36

    1.1.3 Julgamento pelo Superior Tribunal de Justia ................................................... 41

    1.1.4 Consideraes sobre o caso Vilhena Coelho/GO ................................................ 50

    1.2 Famlia Nunes, em Timteo/MG ................................................................................. 53

    1.2.1 Histrico do processo judicial ............................................................................... 56

    1.2.2 Recurso extraordinrio impetrado pelos pais ..................................................... 58

    1.2.3 Julgamento pelo Poder Judicirio de Minas Gerais .......................................... 63

    1.2.4 Consideraes sobre o caso da famlia Nunes/MG ............................................. 67

    1.3 Famlia Silva, em Maring/PR .................................................................................... 69

    1.3.1 Informaes sobre o processo judicial ................................................................. 71

    1.3.2 Consideraes sobre o caso da famlia Silva/PR ................................................. 72

    1.4 Famlia Ferrara, em Serra Negra/SP .......................................................................... 74

    1.4.1 Informaes sobre o processo judicial ................................................................. 75

    1.4.2 Ao da HSLDA em prol da famlia Ferrara...................................................... 78

    1.4.3 Consideraes sobre o caso Ferrara/ SP.............................................................. 80

    1.5 Temas emergentes da anlise dos casos brasileiros ................................................... 81

    2. ENSINO EM CASA: DISCUSSES TERICAS .......................................................... 85

    2.1 A compulsoriedade da educao escolar e as razes do ensino em casa .................. 85

    2.1.1 A questo da compulsoriedade da educao escolar .......................................... 86

    2.1.2 Influncias da matriz liberal e demais pensadores ............................................. 90

    2.1.3 A prtica moderna do ensino em casa ................................................................. 98

    2.1.4 O papel das associaes de homeschooling ........................................................ 105

  • 2.2 Caracterizao, motivaes e argumentos favorveis ao ensino em casa ............. 111

    2.2.1 Caracterizao das famlias que ensinam em casa ........................................... 112

    2.2.2 Diversidade de motivaes e argumentos favorveis ao ensino em casa ........ 116

    2.2.2.1 Ensino individualizado ..................................................................................... 124

    3. ENSINO EM CASA: DISCUSSES JURDICAS ....................................................... 135

    3.1 Uma anlise histrica da legislao luz do ensino em casa .................................. 135

    3.1.1 Debate ps Constituio Federal de 1988 .......................................................... 148

    3.1.2 Objetivos e princpios do direito educao na CF/88 .................................... 154

    3.1.3 Projetos de Lei visando legalizao do ensino em casa ................................. 167

    3.2 A influncia dos documentos internacionais ............................................................ 182

    3.3 O debate sobre a Titularidade de Direitos ............................................................... 195

    3.3.1 Os pais como titulares do direito educao .................................................... 200

    3.3.2 O Estado e o direito educao ......................................................................... 206

    3.3.3 A criana como titular do direito educao ................................................... 210

    3.3.4 O ensino em casa e um possvel equilbrio dos interesses ................................ 217

    4. ENSINO EM CASA: CONSEQUNCIAS E IMPLICAES ................................... 221

    4.1 O ensino em casa e a (falta de) socializao: um problema real? .......................... 221

    4.1.1 A Socializao dentro e fora da escola ............................................................... 229

    4.1.2 Consideraes sobre a questo da socializao ................................................. 236

    4.2 O ensino em casa e a formao para a cidadania .................................................... 239

    4.2.1 A formao para a cidadania via escola ............................................................ 243

    4.2.2 A formao para a cidadania fora da escola ..................................................... 251

    4.3 O ensino em casa e o (des)compromisso com o bem pblico .................................. 260

    4.4 O ensino em casa e os desafios formao e atuao docente ............................... 271

    5. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 285

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 313

    ANEXO A - Legislao Citada ............................................................................................ 320

  • APNDICE A - Roteiro para entrevista semi-estruturada com as famlias brasileiras

    que ensinam os filhos em casa ............................................................................................. 349

    APNDICE B - Questionrio para pais e dirigentes de associaes de homeschooling em

    Ontrio/Canad .................................................................................................................... 350

  • 15

    INTRODUO

    A escola, enquanto instituio promotora de educao, integra a realidade social dos

    indivduos, permeando a conscincia destes como uma referncia vital, por meio da qual

    possvel perceber o mundo. Considerada como algo natural e necessrio, a instituio

    escolar torna-se o local onde as pessoas passam tantos anos de suas vidas, sem questionar seu

    significado e razo de ser e aceitando-a como necessria e obrigatria (SACRISTN, 2001, p.

    12). Essa representao coletiva que se faz da escolarizao obrigatria universalizou-se nas

    diferentes sociedades e culturas, no somente como uma realidade prtica institucionalizada,

    mas como uma construo mental que, aceita e aplicada de maneira semelhante em diferentes

    pases, contribui para que sua imagem e necessidade sejam diludas no cotidiano das pessoas

    (SACRISTN, 2001, p. 11).

    Assim, o histrico debate sobre a importncia da educao escolar para a formao

    dos indivduos e a necessidade de ampliao de seu acesso para todos os cidados sobressai

    como uma questo de agenda transnacional.

    No Brasil, como fruto de conquistas histricas no mbito social e educacional,

    atualmente celebram-se os avanos em prol de uma universalizao da educao: o acesso ao

    Ensino Fundamental j se encontra garantido para a quase totalidade das crianas em idade

    escolar1, assim como progrediram consideravelmente os esforos e polticas pblicas para a

    garantia de condies de permanncia das crianas na escola e para a concluso do ensino.

    Destaca-se ento a questo da qualidade do ensino2 como centro da crtica ao processo

    presente de expanso, tornando-se a questo central da poltica educacional referente

    educao bsica nos prximos anos e na atualidade (OLIVEIRA, 2007, p. 687).

    Uma das maiores conquistas brasileiras no que tange educao surgiu a partir da

    Constituio Federal de 1988 (CF/88), com a previso de que o direito educao um

    direito de todos os cidados e dever do Estado e da famlia, alm da declarao de que o

    1 Apesar da necessidade de ainda se incorporar ao sistema educacional, em 2002, aproximadamente 3% da

    populao na faixa etria de 7-14 anos de idade (algo em torno de 800 mil crianas10), interessante observar

    que, desde o final da dcada de 1980, quantitativamente, havia vagas no ensino fundamental para toda a

    populao na faixa etria (OLIVEIRA, 2007, p. 669). 2 Reconhece-se a dificuldade na definio do termo qualidade de ensino, mesmo entre especialistas;

    compartilhando a anlise de Oliveira e Arajo (2005), neste trabalho assume-se o carter histrico do termo (no

    Brasil, percebida de trs formas distintas: como determinada pela oferta insuficiente; posteriormente percebida

    pelas disfunes no fluxo ao longo do EF; e ento por meio de generalizaes de sistemas de avaliao baseados

    em testes padronizados); reconhecendo que, na atualidade, o desafio se revela como a necessidade de se traduzir

    o padro de qualidade num conjunto de indicadores passveis de exigncia judicial, o que requer no somente

    uma anlise e ao tcnica, mas tambm poltica (Cf. OLIVEIRA e ARAJO, 2005).

  • 16

    acesso ao ensino fundamental um direito pblico subjetivo (art. 208, 1)3, o que passou a

    configur-lo como um instrumento jurdico de controle da atuao do poder estatal, pois

    permite ao seu titular constranger judicialmente o Estado a executar o que deve (DUARTE,

    2004, p. 113). Tambm chama a ateno, como avano no texto constitucional, a introduo

    de mecanismos judiciais (como o mandado de segurana coletivo, o mandado de injuno e a

    ao civil pblica) que permitem a exigncia ao Poder Pblico do cumprimento do direito

    educao obrigatria de forma sumria (OLIVEIRA, 2001, p. 31).

    Essas conquistas relacionadas s exigncias quanto ao cumprimento do direito

    educao levaram o Poder Judicirio a intervir mais diretamente na garantia dos direitos

    educacionais, o que suscitou, inclusive, o denominado fenmeno da judicializao da

    educao. Com novos questionamentos e reivindicaes relacionados ao cumprimento do

    direito educao, sendo levados constantemente ao Poder Judicirio, este passou a ter uma

    relao mais direta, com uma viso mais social e tcnica dos problemas afetos educao

    (CURY; FERREIRA, 2009, p. 35).

    Tambm como fruto do entendimento da relevncia da ampliao do acesso

    educao para todos os cidados, em 11 de novembro de 2009 foi aprovada a Emenda

    Constitucional n 59, na qual foi estipulado prazo at 2016 para que o ensino obrigatrio

    (antes previsto apenas na etapa do Ensino Fundamental) seja progressivamente ampliado no

    pas para crianas de 4 a 17 anos, aumentando o desafio da universalizao da educao

    compulsria4.

    H ainda iniciativas recentes de regulamentao do atendimento educacional a

    populaes que antes no tinham acesso escola, como o caso das crianas em situao de

    itinerncia (como as que vivem com a famlia no mar, trabalham em circo ou mesmo os

    filhos de ciganos5). Crescem tambm as reivindicaes para a execuo de adaptaes fsicas

    e pedaggicas nas instituies escolares, de forma a atender com qualidade o pblico-alvo da

    3 Todos os artigos e o contedo de documentos legais citados e referenciados nesta tese encontram-se transcritos

    no ANEXO A (p. 320), com o objetivo de permitir ao leitor a frequente recorrncia a eles, sempre que julgar

    necessrio. 4 Neste trabalho o termo educao compulsria ser utilizado como entendimento de uma educao que exige

    frequncia escolar obrigatria, visto ter sido esse o carter assumido ao conceito nos debates constituintes do

    Brasil (Cf. OLIVEIRA, 1990). Dessa maneira, apesar da discusso sobre a diferena entre os termos educao e

    ensino, quando estes se referirem ao carter compulsrio, sero utilizados como sinnimos; o mesmo se dar

    para os termos escolarizao compulsria e frequncia compulsria, optando-se por reproduzir a expresso

    utilizada pelos autores citados ou referenciados. 5 Em 16 de maio de 2012 o Conselho Nacional de Educao aprovou a Resoluo n 3, que Define diretrizes

    para o atendimento de educao escolar para populaes em situao de Itinerncia, estabelecendo, entre

    outros, o direito matrcula em escola pblica, gratuita, com qualidade social e que garanta a liberdade de

    conscincia e de crena, devendo os sistemas de ensino adequarem-se s particularidades dos estudantes.

  • 17

    educao especial6 e para a ampliao das polticas educacionais que atendam s diferenas

    dessa populao; bem como o debate sobre o enfrentamento de questes referentes a gnero

    e diferenas de etnia, para assegurar o pleno desenvolvimento do aluno, independentemente

    de quem ele seja ou de sua origem, e o combate a situaes preconceituosas e

    constrangedoras que possam gerar indicativos de abandono escolar.

    Esse contexto introdutrio visa a ressaltar o papel que a instituio escolar ocupa nas

    diversas sociedades, alm de evidenciar, no Brasil, a crescente reivindicao legal da ao

    estatal na ampliao da escolarizao obrigatria, mediante a garantia de questes como

    acesso escola, condies para permanncia e concluso dos estudos com qualidade. Diante

    dessa realidade, insere-se e destaca-se o problema de pesquisa apresentado por esta tese: o

    direito, reivindicado por alguns pais, de que os filhos no frequentem a escola e estudem em

    casa, apresentando indagaes sobre a legitimidade do Estado no estabelecimento da

    compulsoriedade da educao escolar e sobre o papel da escola no cumprimento dos

    objetivos constitucionais para a educao.

    Assim, na contramo das reivindicaes realizadas nas ltimas dcadas no que diz

    respeito ao direito educao, revela-se a crescente discusso sobre uma alternativa

    contrria compulsoriedade da educao escolar: o ensino em casa, mais conhecido na

    verso da lngua inglesa como homeschooling. Em uma definio ampla, por homeschooling

    entende-se qualquer situao em que os pais ou responsveis assumem responsabilidade

    direta sobre a educao das crianas em idade escolar, ensinando-as em casa ao invs de

    envi-las ao sistema educacional pblico ou privado (EDMONSON, 2008, p. 437 e 438).

    Cabe enfatizar a possibilidade de diferentes formas de realizao e prtica do

    homeschooling, mediante um estudo estruturado (seguindo programas e cronogramas de

    atividades) ou um estudo livre baseado nos interesses das crianas; realizado dentro da casa

    ou em outros espaos livres e/ou locais pblicos; com uso dos recursos educacionais locais

    ou no; ou mesmo na combinao de duas ou mais formas.

    Constantemente, o homeschooling apresentado como um movimento em crescente

    expanso em mbito internacional (ARAI, 1999; BASHAM, MERRIFIELD e HEPBURN,

    2007; RAY, 2010). O direito de ensinar os filhos em casa garantido em mais de 63 pases

    dos diferentes continentes. Entre eles, destacam-se, pela populao praticante: Estados

    6 Art. 1, 1: Para fins deste Decreto, considera-se pblico-alvo da educao especial as pessoas com

    deficincia, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotao (BRASIL,

    DECRETO N 7.611, DE 17 DE NOVEMBRO DE 2011.).

  • 18

    Unidos; frica do Sul; Rssia; Reino Unido; Canad; Austrlia; Frana; entre outros

    (VIEIRA, 2012). S nos Estados Unidos da Amrica (EUA), pas com a maior populao de

    estudantes em casa, registrou-se mais de 2 milhes de estudantes7 em 2010 (RAY, 2011).

    No plano internacional, aumenta o nmero de publicaes sobre o tema, bem como

    debates presentes na mdia, o que, consequentemente, no escapa da ateno dos

    formuladores de polticas pblicas. Os interesses acadmicos, populares e polticos voltam-se

    para o homeschooling refletindo, em parte, o fato de que os pais esto reinventando a idia

    de escola (BASHAM, MERRIFIELD e HEPBURN, 2007, p. 5) e de que este se insere em

    um contexto maior dos direitos individuais (AURINI e DAVIES, 2005, p. 5). Dessa maneira,

    o debate sobre o homeschooling deixa de ser uma discusso apenas sobre o direito de

    liberdade religiosa, como foi apresentado no passado, sobretudo na Amrica do Norte, visto

    ter ampliado seu pblico-alvo, seus objetivos, as polticas educacionais a ele referentes e

    tambm sua forma de reivindicao e legitimao.

    No Brasil, so encontradas diferentes tradues para o termo homeschooling,

    denominado como ensino em casa (termo adotado neste trabalho)8, ensino domstico,

    educao domstica ou ainda educao domiciliar, tanto pela literatura quanto pelos

    documentos legais que tratam do tema. No pas, ainda que de forma incipiente, o debate

    sobre essa forma alternativa de ensino vem se ampliando nos mais diversos mbitos e

    ganhando fora ao ser debatido nos veculos de informao e ao se tornar objeto de anlise

    de trabalhos acadmicos e artigos de reas diversas9.

    O tema comeou a ter ampla repercusso nacional especialmente depois de a

    imprensa comear a divulgar casos de famlias brasileiras que passaram a enfrentar

    problemas com a Justia aps retirarem seus filhos da escola e optarem por ensin-los em

    casa, com referncia constante sobre o caso que chegou ao Superior Tribunal de Justia

    (STJ) para anlise e julgamento, em 200110

    . Tais experincias acabaram por se configurar

    7 Cerca de 3% da populao em idade escolar, segundo a Home School Legal Defense Association (HSLDA).

    8 Apesar do termo educao domstica tambm ser bastante utilizado no Brasil, optou-se pelo uso do termo

    ensino em casa devido discusso existente sobre a diferena entre os conceitos educao e ensino, a qual

    geralmente apresenta o primeiro como um processo mais amplo de formao (que necessariamente envolve a

    famlia) e o segundo como algo relacionado aprendizagem de contedos especficos. Alm disso, a posio

    apresentada pelos pais favorveis ao ensino em casa a de que j possuem o direito e responsabilidade de educar

    seus filhos, cabendo a conquista do direito de ensinar a eles os conhecimentos historicamente construdos.

    Quando se tratar da experincia internacional, tambm poder ser usado o termo na verso da lngua inglesa

    (homeschooling), assim como sero mantidos os termos utilizados pelos autores quando citados ou

    referenciados. 9 A ttulo de exemplo: VIEIRA (2012), na rea de Sociologia; CELETI (2011), BARBOSA (2012) e SGARBI

    (2008), na rea da Educao; FERNANDEZ e FERNANDEZ (2009) e VIEIRA (2011), na rea do Direito. 10

    O primeiro captulo desta tese destina-se apresentao do referido caso, assim como de outros 3, conforme

    explicitado a seguir.

  • 19

    como a apresentao de uma nova demanda ao Poder Judicirio e provocaram o debate sobre

    a viabilidade legal do ensino em casa no pas.

    Ao se analisar a histria da educao no Brasil, verifica-se que a prtica do ensino em

    casa j foi legalmente prevista no pas, tendo sido realizada principalmente devido ausncia

    de escolas oferecidas pelo Estado e, consequentemente, falta de vagas para aqueles que

    buscavam escolarizao. Destaca-se que a prtica do ensino em casa tambm foi amplamente

    aceita e reconhecida entre as elites brasileiras do sculo XIX, no havendo expresso na

    legislao brasileira desde 1934 at 1988, da necessidade de educao especificamente em

    instituies escolares (CURY, 2006, p. 672).

    Entretanto, aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, ao se aprovar a

    precedncia do Estado sobre a famlia no dever de educar (art. 205) e a tarefa do Poder

    Pblico quanto ao recenseamento, chamada e zelo pela frequncia escolar (art. 208, 3), a

    legislao decorrente dessa lei maior passou a prescrever a obrigatoriedade da matrcula das

    crianas em idade escolar em instituies de ensino (com exceo para as crianas em

    situaes consideradas como emergenciais11

    ), depreendendo-se dessas a inviabilidade legal

    do ensino em casa no pas. Deve-se reiterar, porm, que essa interpretao, apesar de

    predominante, no se mostra unnime (alm de no se apresentar como barreira para que

    algumas famlias optem pelo ensino em casa, aumentando o nmero de casos no pas).

    Tambm como expresso da crescente discusso sobre a possibilidade de efetivao

    do ensino em casa no Brasil, constata-se um histrico de apresentao de Projetos de Lei

    Cmara dos Deputados, visando alterao da legislao brasileira e a fim de permitir a

    criao de um sistema que oferea o Ensino Fundamental em duas modalidades: uma

    educao formal escolar e outra domiciliar, sendo que ao Estado caberia apenas a funo de

    fiscalizar as atividades realizadas pelas famlias que optarem por esta modalidade de

    ensino12

    , possibilitando que cumpram com os objetivos da educao nacional.

    Com objetivo de pressionar os governantes para o reconhecimento legal da educao

    domiciliar no pas, foi criada a Associao Nacional de Educao Domiciliar (ANED), em

    2010. A ANED atua em prol da divulgao de tal modalidade de ensino e da promoo do

    contato entre os associados (VIEIRA, 2012); de acordo com a entidade, h um constante

    11

    Conforme previsto no art. 32, 4 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (9394/96). O art. 30 do

    Decreto 5.622/05 define o que se considera como situaes emergenciais (ambos transcritos no ANEXO A). 12

    Diante dessa proposta, constante nos Projetos de Lei e que explicitam a forma como os defensores do ensino

    em casa defendem que essa prtica seja regulamentada, este trabalho far referncia ao ensino em casa como

    uma modalidade de ensino passvel de ser normatizada no Brasil.

  • 20

    crescimento do nmero de pais que ensinam em casa: de 250 famlias em 2009 para 400 no

    primeiro semestre de 2011, chegando a 1 mil em 201213

    .

    No Brasil, a posio a favor do ensino em casa , sobretudo, reflexo de um discurso

    em torno da precariedade do ensino pblico: precisamente em torno da qualidade da

    instruo escolar que se abre um espao para o questionamento da frequncia escolar

    obrigatria, ou, da escolaridade obrigatria (BOUDENS, 2002, p. 8). Dada a grande

    repercusso da mdia sobre os baixos resultados dos alunos, em todo o territrio nacional,

    nas avaliaes sistmicas e testes padronizados, aumenta a insatisfao dos pais com a escola

    pblica. E, como a imagem apresentada a de que esta falha em seu dever de educar, os pais

    desejam tomar para si o papel da instruo, retirando-o do Estado.

    Estendendo as crticas instituio escolar, tanto pblica como privada, acrescenta-se

    a preocupao com situaes de violncia e prtica de bullying presenciadas na escola e

    amplamente exploradas pela imprensa brasileira, alm da alegao de alguns pais quanto ao

    choque de valores e moral vivenciado entre o que a criana presencia e aprende no ambiente

    familiar e na escola.

    Alm das crticas ao Estado e escola, a reivindicao do ensino em casa tambm

    pode ser analisada como fruto do complexo debate suscitado pelos Tratados Internacionais de

    Proteo de Direitos Humanos, ao apresentar a primazia dos pais na escolha da educao dos

    filhos. No Brasil, essa incorporao da linguagem dos direitos humanos ao discurso em prol

    da normatizao do ensino em casa revela-se como influncia do processo norte-americano de

    legalizao de tal prtica de ensino, e incita a ampla discusso sobre a titularidade de direitos,

    especificamente sobre o titular do direito educao.

    Diante desses questionamentos em relao ao papel e ao do Estado na educao e

    reivindicao da possibilidade de ensinar os filhos em casa como expresso de direitos

    individuais que seriam garantidos por documentos e tratados internacionais, algumas

    ponderaes relevantes tm sido apresentadas ao se analisar o tema do ensino em casa.

    Uma dessas indagaes, bastante exploradas pelas pesquisas internacionais, refere-se

    s motivaes dos pais ao optarem pelo ensino em casa, rejeitando a instituio escolar, tanto

    pblica como privada. Nesse ponto, constata-se que os argumentos podem variar em relao

    natureza da opo (ideolgica e/ou religiosa, por exemplo) ou apontar fatores especficos

    como a dificuldade de ateno individualizada em uma classe com vrias crianas, entre

    outras crticas s situaes vivenciadas no ambiente escolar.

    13

    Portal Terra, 11 de agosto de 2012; Folha de S. Paulo, 10 de junho de 2012.

  • 21

    Outro questionamento est associado aos estudos que buscam apresentar os aspectos

    positivos e negativos dessa forma de educao, para as crianas nela envolvidas e para a

    sociedade em que elas esto inseridas. Essas questes relacionam-se tanto no que concerne ao

    resultado prtico do ensino em casa (a preocupao com o rendimento acadmico das

    crianas que estudam em casa diante dos que vo escola; as dificuldades futuras para o

    acesso ao ensino superior e ingresso no mercado de trabalho); como anlise de questes de

    carter mais amplo e de impacto social (a socializao necessria no processo de formao de

    um indivduo; uma educao voltada para o exerccio da cidadania).

    Com destaque para essas ltimas indagaes, ressalta-se que, entre os pais que optam

    pelo ensino em casa, a pergunta que estes mais ouvem de burocratas, educadores, professores,

    famlia e amigos em relao socializao, ou mais especificamente, sobre a falta de

    socializao que as crianas teriam por no frequentarem a escola (ARAI, 1999, p. 2). Esse

    tambm um dos principais argumentos utilizados no Brasil pelos relatores que apresentaram

    parecer contrrio aos Projetos de Lei que visam autorizao do ensino em casa no pas, bem

    como pela maioria dos juristas brasileiros que j apresentaram parecer sobre o tema, como

    ser abordado neste trabalho. Afinal, como reitera Bruce Arai (1999, p. 10), a relevncia da

    socializao oferecida pela escola, juntamente com a formao para a cidadania14

    , em prol da

    manuteno de uma sociedade democrtica sempre foi a pedra angular das polticas

    educacionais compulsrias. Sob esse ponto de vista, Emile Boudens (2002, p. 19) declara:

    Sem educao escolar obrigatria no pode haver cidadania.

    Dessa maneira, pode-se vislumbrar o surgimento de um quadro complexo no Brasil.

    Ao mesmo tempo em que a sociedade majoritariamente critica a falta de qualidade nas

    escolas, principalmente nas pblicas, e os pesquisadores apontam a questo da qualidade

    como cerne dos problemas atuais da escola (Cf. OLIVEIRA e ARAJO, 2005; BEISIEGEL,

    2005), h uma posio de que essa instituio seria o melhor ou, para alguns, o nico local

    capaz de contribuir para a formao no somente intelectual, mas tambm para a vida em

    sociedade, habilitando cidados para dar continuidade ao aprimoramento de uma sociedade

    democrtica.

    Todavia, essa viso passa a ser alvo de contestaes pelos praticantes do ensino em

    casa. Tais famlias, ao defenderem o direito de ensinar seus filhos em casa e no os enviarem

    escola, acabam questionando o papel da instituio escolar ou ao menos sua capacidade de

    realizao dos propsitos para os quais foi criada. Nesse sentido, questiona-se no somente as

    14

    Neste trabalho utilizar-se-o os termos formao para a cidadania e educao para a cidadania como

    sinnimos.

  • 22

    limitaes de uma instituio, mas toda uma representao social sobre a escola, o que conduz

    reflexo proposta por Gimeno Sacristn (2001, p. 12, grifo nosso) de que

    (...) damos por necessariamente existente algo que no o , e o damos por

    definitivo, quando uma criao histrica que surge por algumas razes e

    cuja manuteno ser possvel enquanto servir s funes pelas quais

    apareceu como invento social, ou por ser capaz de assimilar outras novas

    que qualquer instituio no cumpra em melhores condies e de maneira

    mais vantajosa.

    Assim, algumas famlias passam a optar pelo ensino em casa diante no somente das

    crticas de que as escolas no cumprem com qualidade seu papel de formao intelectual e sua

    contribuio para o exerccio da cidadania, mas tambm do questionamento se as escolas

    devem continuar sendo consideradas as nicas ou as principais agentes de processo educativo,

    visto que determinadas experincias de pais que ensinam seus filhos em casa tm revelado a

    formao de um conceito diferente de cidadania e a prtica de formas distintas de como

    formar um bom cidado (ARAI, 1999, p. 10).

    E nesse contexto de crticas e questionamentos sobre a necessidade da instituio

    escolar para a formao acadmica, pessoal e cidad dos indivduos que se insere o objetivo

    principal dessa pesquisa: analisar a viso e os argumentos que embasam o ensino em casa,

    alm dos desafios de sua possvel legalizao no Brasil, discutindo o papel da escola

    compulsria diante do objetivo de formao de cidados e de manuteno da educao como

    bem pblico, no contexto atual.

    importante salientar que o tema do ensino em casa no somente suscita polmicas e

    posicionamentos dicotmicos, mas tambm possibilita sua anlise a partir dos mais variados

    ngulos e reas de pesquisa. De maneira a delimitar o objeto de pesquisa, convm ressaltar

    que esta tese apresenta como objetivo avaliar o tema do ensino em casa no Brasil abordando

    as seguintes categorias de anlise: a compulsoriedade da educao escolar; as razes do ensino

    em casa no pas e o contexto que embasa sua prtica atual; as discusses jurdicas que

    envolvem o tema; as questes relacionadas socializao, formao para a cidadania,

    compromisso com o bem pblico e formao e atuao dos professores, como desafios a

    serem enfrentados diante de uma possvel normatizao do ensino em casa no pas.

    Tal debate apresenta-se como fundamental e necessrio no Brasil, tendo em vista a

    divulgao de casos de experincias inerentes ao ensino em casa e as consequentes aes

    demandadas ao Poder Judicirio para sua anlise, as tentativas de regulament-lo por meio de

    Projetos de Lei, assim como a relevncia da anlise dos princpios e fundamentos que

  • 23

    norteiam essa prtica e as crticas que eles propiciam instituio escolar, levando-se em

    conta reformas em prol da melhoria do sistema escolar, sobretudo o pblico.

    Assim, o ensino em casa ganha relevncia como um movimento social (APPLE, 2007,

    p. 114), com fortes implicaes polticas (RIEGEL, 2001, p. 93), alm da avaliao de que

    este aumenta no apenas como um fenmeno, mas como uma revoluo silenciosa, que

    alm de acarretar problemas administrativos, suscita questes sobre o sentido e a finalidade da

    educao em uma sociedade baseada em princpios democrticos, ressaltando o papel da

    criana nesse processo (MONK, 2009, p. 21).

    Dessa maneira, para apresentar o debate sobre os temas que envolvem essa questo

    maior de pesquisa, a presente tese estrutura-se da seguinte maneira:

    No primeiro captulo sero relatadas quatro experincias recentes de prtica do ensino

    em casa no Brasil, amplamente divulgadas pela mdia e que j foram alvo de aes no sistema

    de justia. Alguns desses casos foram tambm objeto de anlises em pesquisas acadmicas

    nas reas do direito e da educao. O objetivo maior, ao esmiuar a trajetria percorrida por

    essas famlias ao ensinar os filhos em casa, o de refletir no somente sobre as motivaes

    que as levaram a essa deciso, mas sobretudo analisar os argumentos utilizados nas decises

    dos rgos competentes e os temas que essas experincias revelam, tanto no campo legal

    quanto no educacional.

    No segundo captulo ser promovida uma anlise das questes tericas, presentes na

    literatura internacional e nacional, que giram em torno do tema. O captulo inicia com um

    panorama geral do debate histrico sobre a compulsoriedade da educao escolar, bem como

    os posicionamentos de pensadores e tericos da matriz liberal, entre outros, que se

    posicionaram contra essa obrigatoriedade e influenciaram os pioneiros na formulao e defesa

    do ensino em casa. Ao discorrer sobre a prtica moderna do ensino em casa, tambm se

    procurou apresentar a atuao das associaes de homeschooling e seu papel em prol da

    legalizao de tal prtica e de apoio s famlias que optam por essa modalidade de ensino;

    alm do debate existente sobre uma possvel caracterizao daqueles que optam pelo ensino

    em casa e suas motivaes para essa escolha.

    O terceiro captulo destina-se ao debate jurdico sobre o ensino em casa, por meio de

    uma anlise histrica do tema nas constituies brasileiras e das questes atuais sobre o uso

    da linguagem dos direitos universais e o impacto dos tratados universais de proteo aos

    Direitos Humanos, ao apresentar a primazia da famlia sobre o Estado na escolha educacional.

    Esse captulo tambm contempla a anlise sobre as possibilidades de alterao da legislao

  • 24

    brasileira, previstas nos Projetos de Lei e na Proposta de Emenda Constitucional j

    apresentados Cmara dos Deputados com esse objetivo, alm de uma reflexo sobre a

    questo que envolve a disputa pela titularidade de direitos (entre pais, Estado e crianas no

    que se refere ao direito educao).

    O quarto captulo estabelece uma discusso das possveis implicaes presentes na

    prtica do ensino em casa, no que diz respeito s crticas explicitadas pela ausncia da escola

    na vida do indivduo, como: a relevncia da socializao na vida das crianas e adolescentes;

    a formao para a cidadania como objetivo da educao escolar; a educao escolar como um

    bem pblico, do qual os defensores do ensino em casa se esquivam de contribuir; a indagao

    sobre a formao e atuao dos professores diante do entendimento de que os pais podem

    ensinar seus filhos; e questes presentes no debate sobre o ensino em casa versus escola,

    revelando-se cerne da presente tese.

    Por fim, faz-se uma reflexo decorrente das anlises sobre o tema e suas

    particularidades no Brasil, almejando contribuir para a ampliao do debate sobre o direito de

    todos educao, destacando-se que tal direito envolve a busca da construo da qualidade da

    educao escolar, sobretudo a pblica, inserindo-se nesse contexto os resultados acadmicos e

    tambm o papel da escola quanto socializao dos estudantes, sua formao para o exerccio

    da cidadania e valorizao da formao e atuao dos professores e da educao como um

    bem pblico.

    Metodologia de investigao

    Para a realizao desta investigao, foi empregada como metodologia uma

    abordagem qualitativa de pesquisa, a qual, segundo Menga Ldke e Marli Andr, rica em

    dados descritivos, tem um plano aberto e flexvel e focaliza a realidade de forma complexa e

    contextualizada (1986, p. 18). Nesse sentido, iniciou-se com uma pesquisa bibliogrfica

    sobre o tema, a qual consistiu em analisar o conjunto das obras tericas e legais, tanto

    nacionais quanto internacionais, sobre os assuntos relacionados ao tema do ensino em casa,

    sendo que o quadro terico inicial servir assim de esqueleto, de estrutura bsica a partir da

    qual novos aspectos podero ser detectados, novos elementos ou dimenses podero ser

    acrescentados, na medida que o estudo avance (LDKE e ANDR, 1986, p. 18).

    No decorrer da pesquisa bibliogrfica, mostrou-se necessria a busca por informaes

    em documentos legais e jurdicos. A anlise desses documentos pode representar uma

  • 25

    tcnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, sendo considerada uma fonte estvel e

    rica para a pesquisa de abordagem qualitativa (LDKE e ANDR, 1986, p. 42 e 43).

    Tambm foram coletados dados mediante a realizao de entrevistas e aplicao de

    questionrios para diferentes pblicos, no que se refere a uma amostra realizada no pas e

    outra no Canad, como explicitado a seguir. Da anlise resultante da produo bibliogrfica,

    tanto nacional quanto internacional, do estudo dos documentos legais e jurdicos e dos dados

    resultantes da coleta de dados, constituram-se as categorias de anlise sobre o ensino em casa

    no Brasil, ampliando-se as inicialmente previstas. Cabe ressaltar o entendimento de que as

    categorias devem antes de tudo refletir os propsitos da pesquisa, que, por sua natureza um

    ato poltico (LDKE e ANDR, 1986, p. 43).

    Procedimentos de coleta dos dados

    Para a coleta de dados, recorreu-se inicialmente s fontes documentais, ou seja,

    literatura nacional e internacional sobre o tema, legislao nacional e aos Tratados

    Internacionais de Direitos Humanos, aos Projetos de Lei apresentados Cmara dos

    Deputados que visam normatizao do ensino em casa no Brasil e aos documentos

    referentes ao julgamento dos casos de algumas famlias envolvidas com a experincia do

    ensino em casa. Em pesquisa realizada no stio da Cmara, foi possvel no somente ter

    acesso ntegra da proposio e justificao dos referidos Projetos de Lei e de seus pareceres,

    quando este ocorreu, como tambm do histrico de tramitaes. Os documentos referentes ao

    julgamento das famlias foram obtidos no stio dos rgos a que elas se referem e, em sua

    maioria, cedidos pelas famlias.

    Apesar de, em um primeiro momento, no se ter cogitado a pesquisa de campo no

    Brasil, por se entender que o ensino em casa no amparado pela legislao nacional e as

    famlias no possuem permisso para pratic-lo, com a ampliao da divulgao de casos pela

    imprensa, optou-se por entrevistar quatro famlias que realizaram ou realizam esse tipo de

    educao com seus filhos. Nesse sentido, houve a compreenso da entrevista como

    instrumento til que permite a captao imediata e corrente da informao desejada,

    praticamente com qualquer tipo de informante e sob os mais variados tpicos, alm de

    tambm permitir correes, esclarecimentos e as adaptaes que a tornam sobremaneira

    eficaz na obteno das informaes desejadas (LDKE e ANDR, 1986, p. 34).

    Para isso, a opo foi entrevistar quatro famlias que sobressaram na mdia por

    ensinarem seus filhos em casa: a famlia Vilhena Coelho, de Gois, que teve o caso julgado

  • 26

    pelo Superior Tribunal de Justia (STJ), em 2001; a famlia Nunes, de Minas Gerais,

    condenados, em 2010, nas esferas cvil e criminal; a famlia Silva, do Paran, a qual recebeu,

    em 2008, concesso do juiz local para dar continuidade educao de seus filhos em casa; e a

    famlia Ferrara, no interior de So Paulo, que, com desaprovao do juiz local, em 2010,

    regressou aos Estados Unidos para dar continuidade ao ensino em casa. Todas as famlias

    foram contatadas por e-mail e telefone e prontificaram-se a conceder entrevista sobre o tema.

    O tipo de entrevista escolhida foi a semi-estruturada, que se desenrola a partir de um

    esquema bsico, porm no aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faa as

    necessrias adaptaes (LDKE e ANDR, 1986, p. 34). Sendo assim, foi elaborado um

    roteiro prvio (APNDICE A), contudo, o andamento das entrevistas permitiu aos pais a

    liberdade de discorrerem sobre outros assuntos que julgassem necessrios. As entrevistas

    foram realizadas por telefone ou por ferramentas de comunicao online, conforme

    preferncia do entrevistado, e gravadas, transcritas ou relatadas.

    Foi enviado s famlias um termo de consentimento livre e esclarecido para que estas

    autorizassem o uso das informaes cedidas para este trabalho, no qual constava, alm dos

    objetivos da pesquisa, a impossibilidade de manuteno do sigilo dos entrevistados dada: a

    macia divulgao da mdia (impressa e televisiva) sobre os casos, explicitando dados

    pessoais como nome e sobrenome dos envolvidos, local de moradia, entre outros; a

    publicao recente de trabalhos acadmicos que, ao envolver algumas das famlias

    entrevistadas, tambm citam dados pessoais destas; alm de tais famlias terem sido alvo de

    ao do Poder Judicirio e, em alguma instncia, haver processos judiciais disponibilizados

    nos stios eletrnicos das referidas comarcas. Diante de tais condies, a alternativa escolhida

    foi a de omitir os nomes dos menores envolvidos e fazer aluso apenas ao sobrenome das

    famlias, assim como a cidade e estado onde estavam localizadas no momento em que

    ocorreram as aes judiciais citadas.

    Aps a redao do primeiro captulo, em que as experincias das famlias foram

    apresentadas e o contedo das entrevistas utilizado, optou-se por enviar s famlias o texto

    elaborado para que estas pudessem sugerir omisses e/ou correes de informaes. As

    alteraes sugeridas pelos entrevistados foram acatadas em sua totalidade.

    Para se aprofundar o debate sobre o ensino em casa, incluindo as questes tericas e

    legais a ele relacionadas, mostrou-se fundamental uma pesquisa bibliogrfica sobre as

    experincias internacionais nos pases em que essa prtica legalmente aceita e praticada.

    Apesar de os Estados Unidos serem o pas que apresenta o histrico mais antigo de debates

  • 27

    sobre o tema e tambm de prtica do homeschooling, a anlise de sua experincia no foi

    acatada devido ao contexto no qual o debate atual em torno do tema encontra-se inserido.

    Nos Estados Unidos, atualmente o homeschooling est fundamentado no entendimento

    de que sua prtica uma entre as vrias escolhas possveis para os pais norte-americanos,

    movimento considerado uma das consequncias da reforma escolar ocorrida a partir da

    dcada de 80, da qual se destaca a school choice, programa que permite aos pais dos

    estudantes escolherem de que forma e onde os filhos estudaro, contexto no qual se inserem

    os vouchers15

    , as charters schools16

    e o prprio homeschooling (NATIONAL CENTER FOR

    EDUCATION STATISTICS, 2003, p. 13). O foco atual de anlise do homeschooling nesse

    pas centra-se na possibilidade de seu potencial mercadolgico (APPLE, 2003; BURCH,

    2009) e na extensa literatura e nos numerosos manuais destinados ao como fazer, alm de

    materiais para suporte e ensino (ARAI, 2000, p. 205).

    Diferentemente dos Estados Unidos, pouco tem sido escrito sobre o homeschooling no

    contexto do Canad. Entretanto, pesquisas indicam que o nmero de famlias canadenses que

    optam pelo ensino em casa tambm vem aumentando, suscitando questionamentos relevantes

    a serem analisados. Quanto maior o nmero de pais, maior legitimidade ganha o movimento

    como uma opo educacional, o que passa a encorajar outros pais (ARAI, 2000). Em 1999,

    estimava-se mais de 80.000 crianas sendo educadas em casa, com a tendncia de esse

    nmero ser duplicado em poucos anos (BASHAM, MERRIFIELD e HEPBURN, 2007, p. 9).

    Como no Canad a educao responsabilidade das provncias, observa-se uma

    grande variedade de aes no que diz respeito regulao e prtica do ensino em casa.

    Atualmente, o homeschooling considerado legal em dez provncias, cada uma possuindo

    regulaes especficas. Na prtica, o governo exige apenas que as crianas recebam instruo

    satisfatria no desenvolvimento do lar, sendo que em muitas provncias os pais devem

    registrar os filhos que estudam em casa nas escolas ou conselhos locais; apenas 11% das

    famlias recebem algum tipo de interferncia do governo em sua forma de educar; nenhuma

    15

    De acordo como Tomasevski (2001c, p. 21), o esquema de vouchers em que o governo oferece aos indivduos

    forma de pagamento da escola (ou ensino em casa) de sua escolha, demonstra, em um nvel maior de abstrao,

    o raciocnio de aumentar a competitividade e/ou ampliar liberdade de escolha dos pais na educao. Para a

    autora, com a introduo do programa de vouchers, a distino entre pblico e privado, estatal e no-estatal,

    escola gratuita e escola paga (e toda a diversidade que estes incorporam) corroda, alm de levar o debate para

    o campo da economia, focando na escolha do consumidor e competitividade, enquanto rejeita a ideia de

    educao como bem pblico. 16

    Charters schools so escolas pblicas independentes, isentas de muitas leis e regulaes estaduais e locais em

    troca de maior responsabilidade financeira e acadmica. Embora estas escolas sejam escolas pblicas autnomas,

    elas normalmente so obrigadas a aderir e administrar padres e avaliao estatal. A Regulao e o

    financiamento das escolas charters variam de estado para estado. In: The Friedman Foundation for the

    Educational Choice (traduo nossa). Disponvel em: http://www.edchoice.org/School-Choice/Types-of-School-

    Choice.aspx. Acesso em: 26 de fevereiro de 2013.

    http://www.edchoice.org/School-Choice/Types-of-School-Choice.aspxhttp://www.edchoice.org/School-Choice/Types-of-School-Choice.aspx

  • 28

    provncia exige que os pais sejam professores para ensinar seus filhos (BASHAM,

    MERRIFIELD e HEPBURN, 2007, p. 6).

    As pesquisas indicam que famlias canadenses expressam uma mistura de razes

    ideolgicas e pedaggicas para a prtica do homeschooling. necessrio atentar para o fato

    de que vrios pais, apesar da deciso pelo ensino em casa, apresentaram uma viso positiva

    em relao aos professores e diretores das escolas pblicas, fazendo objeo somente a alguns

    fatores pedaggicos ou ideolgicos destas. H, inclusive, uma questo atual que se apresenta

    na discusso sobre o homeschooling: a evoluo na cooperao entre escolas e pais que

    ensinam em casa. Essa cooperao tem crescido nos Estados Unidos e, com o

    desenvolvimento das escolas virtuais em algumas jurisdies do Canad, tudo indica que esse

    sistema de cooperao aumentar nesse pas tambm (ARAI, 2000, p. 211).

    Outro aspecto relevante a ser ressaltado que, com sucesso, as associaes de

    Homeschooling do Canad tm usado os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, bem

    como as recentes decises da Suprema Corte em prol do homeschooling, em prol da liberdade

    individual de conscincia, direito vida, liberdade e segurana bsica, destacando sobretudo a

    liberdade de escolha dos pais na educao dos filhos (DAVIES e AURINI, 2003, p. 10). Os

    pais canadenses defensores do homeschooling, com demonstraes de muita organizao e

    fora poltica, tm demandado, com sucesso, constante acesso para os seus filhos ao ensino

    superior, impactando as universidades que passam a responder positivamente a esses pais

    (DAVIES e AURINI, 2003, p. 9).

    Dessa maneira, decidiu-se analisar a experincia canadense do ensino em casa,

    entendendo que o debate por eles apresentado e em curso, no que diz respeito ao uso da

    linguagem dos direitos e dos documentos internacionais para reivindicar e respaldar o direito

    dos pais na escolha da educao dos filhos, em muito se assemelha ao que est se iniciando no

    Brasil. A forte atuao poltica dos pais e associaes canadenses outro fator relevante e

    passvel de anlise diante da experincia das famlias brasileiras, que praticam o ensino em

    casa e j iniciaram um processo de formao de associaes para divulgao e apoio aos

    demais pais, como ser apresentado posteriormente.

    Outra justificativa refere-se ao tipo e objetivos de pesquisas que esto sendo realizadas

    sobre a experincia canadense do homeschooling. Apesar da incipiente literatura sobre o tema

    naquele pas, o que tem sido produzido busca apresentar no apenas dados quantitativos e

    caracterizao da populao envolvida, mas questionar temas fundamentais como: o

    individualismo pedaggico como base da prtica do homeschooling (DAVIES e AURINI,

  • 29

    2003); o impacto dessa experincia para a formao da cidadania (ARAI, 1999); as hipteses

    antipolticas e antidemocrticas do homeschooling; e a necessidade de reforma e revitalizao

    da educao pblica (RIEGEL, 2001), entre outros.

    Pelos motivos anteriormente mencionados, foi realizada uma pesquisa de campo no

    Canad, sob superviso do Prof. Dr. Scott Davies, da McMaster University, em Hamilton

    (Ontrio). A pesquisa destinou-se a entrevistar diretores das associaes de homeschooling da

    regio de Ontrio e pais que praticam o ensino em casa na regio, mediante aplicao de

    questionrio (APNDICE B), com foco nas questes que envolvem o debate sobre o papel da

    escola para a socializao das crianas e para a formao da cidadania. As respostas obtidas

    sero, em parte, apresentadas no decorrer desta tese, como argumentos ilustrativos e que

    visam ao aprofundamento do tema, o que no configura a inteno de traar comparaes

    entre os dois pases, mas sim a de fornecer informaes e contribuir para o aprofundamento

    das anlises, de modo que se amplie o debate sobre o ensino em casa no Brasil.

  • 30

    1. EXPERINCIAS BRASILEIRAS COM O ENSINO EM CASA

    Este captulo tem como objetivo relatar as experincias de quatro famlias brasileiras

    que retiraram seus filhos da escola e fizeram a opo por ensin-los em casa. As famlias

    selecionadas para apresentao e anlise do caso, neste estudo, foram alvo de divulgao pela

    imprensa, o que gerou amplo debate na sociedade sobre o tema, e tambm suscitaram aes

    do Poder Judicirio na ltima dcada. Vale ressaltar que, com a ampliao do debate sobre a

    possibilidade do ensino em casa, mais famlias comeam a se manifestar a favor dessa

    modalidade de ensino e passam a ser objeto de interesse da imprensa, dada a polmica que

    envolve a questo no Brasil.

    Ao traar um retrato da homeschooling no Brasil em recente trabalho sobre o tema,

    Andr Vieira (2012, p. 7) estima que mais de 700 famlias pratiquem o ensino em casa no

    Brasil nas diferentes regies do pas, sendo difcil a preciso desse nmero dada a ausncia de

    dados oficiais. Ao receber questionrios respondidos por 62 pais brasileiros que ensinam em

    casa, Vieira (2012, p. 27 e 28) expe um panorama dessa populao que, em sua avaliao, se

    assemelha dos homeschoolers nos Estados Unidos: a maioria casada, denomina-se crist,

    acumula mais anos de estudo que a mdia da populao brasileira e vive nos estados mais

    populosos do pas (So Paulo e Minas Gerais). Ele ainda ressalta que quase metade desses

    pais mantm contato com outros pais-educadores e apenas 32,3% no participam de

    organizaes de apoio, sejam brasileiras ou internacionais. Os grupos de discusso na internet

    so o espao de maior dilogo dessas famlias sobre o assunto, sendo que em algumas cidades

    (como Rio de Janeiro/RJ, So Paulo/SP, Belo Horizonte/MG e Taquara/RS) j ocorreram

    encontro de pais. De acordo com o autor, a principal dinmica de difuso da prtica do ensino

    em casa no Brasil tem frente lderes religiosos evanglicos atuando em grandes centros

    urbanos, mas com penetrao em cidades pequenas e mdias do interior.

    Vieira (2012, p. 27) afirma ainda que, dessas famlias, pelo menos dez j foram

    acusadas, desde meados de 1990, por abandono intelectual e dezenas de casas foram visitadas

    por Conselheiros Tutelares, alm de haver centenas de pais que aguardam a regularizao da

    prtica no pas. Entretanto, cabe ressaltar que os casos divulgados e analisados a seguir na

    presente tese foram os que, entre 2000 e 2012, receberam ampla divulgao, suscitaram aes

    do Poder Judicirio e diante dos quais se pode ter acesso aos documentos pertinentes anlise

    e julgamento dos casos.

  • 31

    Dessa maneira, no se pretende generalizar as demais experincias existentes no pas

    mediante a apresentao desses casos. O objetivo, ao inicialmente apresentar as experincias

    das famlias selecionadas (suas motivaes e argumentos favorveis prtica do ensino em

    casa e os embates com a justia brasileira), est em conhecer as questes, de diversas

    naturezas, que permeiam o tema, tornando possvel o aprofundamento das discusses terica e

    jurdica (relacionando-as com casos concretos inseridos na realidade brasileira), bem como o

    debate sobre os desafios que ele proporciona educao compulsria no pas.

    As informaes referentes a essas experincias foram coletadas por diversas fontes:

    em entrevistas realizadas com membros das prprias famlias; mediante a coleta de

    reportagens divulgadas em jornais, revistas de temas diversos, stios de notcias e programas

    televisivos; bibliografia, ainda que incipiente, ao tratar de temas relacionados rea da

    educao, do direito ou outra; alm dos documentos relacionados ao processo legal

    envolvendo as famlias.

    1.1 Famlia Vilhena Coelho, em Anpolis/GO

    A experincia do ensino em casa realizada pela famlia Vilhena Coelho, em

    Anpolis/GO, foi a primeira que levou a ao do Poder Judicirio sobre o tema, recebendo

    parecer da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, manifestao do

    Ministrio Pblico Federal e julgamento do Superior Tribunal de Justia, tornando-se

    referncia sobre o tema. Por esse motivo, trata-se de um importante caso a ser analisado,

    sobretudo para o estudo do debate legal referente ao ensino em casa no Brasil.

    Dos cinco filhos da famlia Vilhena Coelho, os trs primeiros (ento com 10, 9 e 7

    anos quando o caso foi a julgamento) vivenciaram a experincia de estudar em casa. O pai,

    procurador da Repblica em Gois, e a me, bacharel em Administrao e, na poca, do lar,

    decidiram ensinar seus filhos em casa e assim o fizeram durante dez anos. Segundo relato do

    pai, o filho mais velho chegou a frequentar a escola na Educao Infantil e no incio do

    Ensino Fundamental, quando os pais perceberam que havia uma grande perda de tempo em

    toda a rotina que envolvia a ida escola (entre acordar, se uniformizar, se deslocar) e que se

    tornava penosa para a criana, especialmente a de pouca idade.

    O pai entrevistado ressaltou que a deciso da famlia por essa modalidade de ensino

    foi absolutamente laica e baseada em razes positivas: a preocupao dos pais para que os

    filhos se tornassem cidados de bem, realizados na rea pessoal e profissional, sendo

  • 32

    ticos em todos os mbitos da vida. Ele tambm teceu crticas instituio escolar, por

    apresentar, em sua viso, um formato no encontrado em nenhum outro local: salas de aula

    como um lugar artificial, que segrega crianas da mesma faixa etria e de mesmo poder

    socioeconmico. De acordo com esse pai, a estrutura escolar propcia para doutrinar as

    crianas, como almeja o Estado, o qual no transfere a tarefa de educao para a famlia por

    temer a desformatao desse modelo, o que possivelmente resultaria na formao de

    pessoas crticas e questionadoras.

    Baseada nos argumentos anteriormente citados, a famlia resolveu desenvolver em sua

    residncia um ambiente propcio ao estudo (o qual chamavam de escolinha) e equiparam-na

    com mobilirio e materiais para pesquisa e aprendizado. Desde ento, a rotina passou a ser o

    acordar, tomar caf e estudar de pijama mesmo, observou o pai. Para a realizao dos

    estudos em casa, a famlia solicitou a lista de materiais de trs ou quatro escolas da regio

    consideradas de primeira linha, comparou esses materiais e escolheu o que julgou ser o

    melhor para seus filhos, na inteno de torn-los autodidatas.

    Posteriormente, as crianas foram matriculadas em uma escola privada da cidade,

    qual o pai se referiu como escola parceira. Na ocasio (1999), os filhos fizeram uma

    avaliao e foram classificados em uma srie acima da esperada pela idade. Dessa maneira,

    foram autorizados a utilizar o material didtico adotado pela escola, porm, sem frequentar as

    aulas. O contedo passou a ser ministrado pelos pais em casa e os filhos apenas compareciam

    escola em dias de avaliaes, para realiz-las com as demais crianas (nica ocasio em que

    o uniforme era vestido, segundo o pai). Os pais tambm receberam da escola suporte

    pedaggico em momentos especficos, quando julgaram necessrio e solicitaram auxlio para

    os professores das diferentes disciplinas ou de demais membros da equipe escolar.

    De acordo com o pai, quando o filho mais velho estava prestes a completar o primeiro

    ciclo do Ensino Fundamental, a escola solicitou que a famlia informasse o caso Secretaria

    da Educao do Estado de Gois. Esta, quando instada a elaborar parecer sobre o caso, no

    abonou o nmero de faltas das crianas envolvidas, sob a alegao de que a Lei de Diretrizes

    e Bases da Educao Nacional 9394/96 (LDB) exige que o Ensino Fundamental seja

    presencial.

    Em maio de 2000, a famlia decidiu entrar com o requerimento de validao do ensino

    ministrado no lar, junto ao Conselho Estadual de Educao de Gois. Nesse requerimento, os

    pais relataram, minuciosamente, a experincia pedaggica com os filhos em casa por dez

    anos, visando ao reconhecimento do direito de educarem os filhos sem a obrigatoriedade de

  • 33

    frequncia regular a qualquer escola (CNE/CEB 34/2000, p. 2) e por conclurem ter chegado

    a hora de buscar o reconhecimento estatal dessa modalidade de educao no pas (BRASIL,

    2001, p. 5). A concluso foi a de que o tema extrapolava o mbito de decises do Conselho

    Estadual, tendo sido o caso enviado ao Conselho Nacional de Educao (CNE) para

    manifestao deste.

    1.1.1 Parecer CNE/CEB 34/200017

    Em dezembro de 2000, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educao um parecer

    (CEB 34/2000) negando o pedido do casal. Nesse documento, o relator, Ulysses de Oliveira

    Panisset, apresentou um breve histrico sobre a experincia da famlia e o processo por eles

    movido com o objetivo de continuar ensinando os filhos em casa, e declarou surpresa ao se

    deparar com inusitado tema, em caminho oposto ao que normalmente se encontrou no Brasil:

    a ver pais reclamando a falta de vagas para seus filhos nas escolas pblicas (CNE/CEB

    34/2000, p. 2).

    Apesar de ter registrado apreciao ao desvelo com que o casal se dedicou ao

    desafiador, mas sublime compromisso de educar os filhos, o relator se props a analisar a

    questo sob seus mltiplos aspectos, de natureza pedaggica ou legal, julgando oportuno

    ressaltar o papel do CNE ao destacar o art. 90 da LDB 9394/9618

    (CNE/CEB 34/2000, p. 3).

    Sendo assim, o relator iniciou sua reflexo avaliando que a CF/88 aponta nitidamente

    para a obrigatoriedade da presena do aluno na escola, em especial na faixa de escolarizao

    obrigatria (CNE/CEB 34/2000, p. 4). Para tal, ele transcreveu o art. 227 (tambm utilizado

    na argumentao do casal) e o art. 205 para defender que o dever de que trata o artigo em

    relao educao consiste em uma trplice e compartilhada responsabilidade entre famlia,

    sociedade e Estado, devendo a educao resultar dessa ao trade (CNE/CEB 34/2000, p. 4).

    Panisset tambm fez meno ao art. 206, I, sobre a igualdade de condies de acesso

    e permanncia na escola; e ao art. 208, que versa sobre a garantia do ensino fundamental

    obrigatrio e gratuito, declarando-o um direito pblico subjetivo (1), o qual importa

    responsabilidade da autoridade competente quando de sua oferta irregular (2) e que

    17

    A ntegra de tal parecer encontra-se disponvel no arquivo:

    http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb34_00.pdf. Acesso em: 22 de fevereiro de 2013. 18

    Convm ressaltar que toda a legislao citada e referenciada constar no ANEXO A (p. 320) desta tese, com o

    objetivo de permitir ao leitor a frequente recorrncia ao contedo legal em discusso, sempre que se fizer

    necessrio.

    http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb34_00.pdf

  • 34

    compete ao Poder Pblico recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes

    chamada e zelar, junto aos pais ou responsveis, pela frequncia escola (3).

    Em seguida, o relator analisou o tema luz da LDB 9394/96, indicando inicialmente o

    art. 22, XXVI, da CF/88, ao definir que cabe Unio legislar sobre diretrizes e bases da

    educao nacional. Ele baseou-se no art. 1 da LDB 9394/96 para definir a educao e

    lanou mo do 1 para lembrar que a referida lei disciplina a educao escolar, que se

    desenvolve predominantemente, por meio do ensino, em instituies prprias (grifos do

    relator).

    Dessa maneira, Panisset (CNE/CEB 34/2000, p. 3) defendeu que

    (...) famlia, sociedade, organizaes culturais e outras, so todas

    cooperadoras no desenvolvimento de uma educao plena, visando plena

    cidadania. Mas a escola agncia indispensvel, na conjugao dos

    deveres da famlia e do Estado, conforme o art. 2 da LDB. (...)

    Certamente, foi sbio o legislador, ao envolver a trade mencionada na

    consecuo de objetivos to amplos. Porque a famlia, ela s, jamais

    reunir as condies mnimas necessrias para alcanar objetivos to

    amplos e complexos. (grifos nosso)

    O relator concluiu que os artigos 3, 4 e 5 da LDB 9394/96 ratificam o j inscrito na

    CF/88, mas considera o art. 6 definitivo: art. 6 - dever dos pais ou responsveis efetuar a

    matrcula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental (grifos do

    relator)19

    . Relacionou a ele o art. 12, VII, que versa sobre a incumbncia, por parte dos

    estabelecimentos de ensino onde as crianas na faixa etria que corresponde ao Ensino

    Fundamental estejam matriculadas, de informar aos pais ou responsveis sobre a frequncia e

    rendimentos dos alunos.

    Outro artigo da LDB 9394/96 que Panisset considerou emblemtico foi o 32, quando,

    ao anunciar o ensino fundamental como obrigatrio, trata em seus incisos sobre os objetivos

    de tal etapa de ensino, enunciando a importncia do fortalecimento dos vnculos da famlia

    e dos laos de solidariedade humana e de tolerncia recproca em que se assenta vida

    social.

    Destaca-se, para o propsito desse trabalho, a justificativa do relator ao analisar esse

    artigo:

    Ora, se o fortalecimento dos vnculos da famlia de capital significado, no

    menos importantes so a solidariedade humana, a tolerncia recproca que

    19

    Trata-se de verso anterior EC 53/2006 que estabelece a Educao Infantil at os cinco anos de idade e,

    consequentemente, incio no Ensino Fundamental aos 6 anos, conforme leis que tratam da ampliao do Ensino

    Fundamental para nove anos: Lei n 11274/2006; Lei 11.114/2005; Parecer CNE/CEB N 6/2005; Resoluo

    CNE/CEB N 3/2005; Parecer CNE/CEB N 18/2005.

  • 35

    fundamentam a vida social. E estes, no devero ser cultivados no estreito

    (no sentido de limitado) espao familiar. A experincia do coexistir no meio

    de outras pessoas, a oportunidade do convvio com os demais semelhantes,

    tudo so situaes educativas que s a famlia no proporciona e que,

    portanto, no garante o que a lei chama de preparo para a cidadania

    plena. (CNE/CEB 34/2000, p. 6, grifos nosso).

    Panisset (CNE/CEB 34/2000, p. 6) argumentou ainda que, ao determinar o Ensino

    Fundamental como presencial e obrigatrio, exigindo um mnimo de 75% de frequncia, o

    legislador enfatizou a importncia da troca de experincias, do exerccio da tolerncia

    recproca, no sob o controle dos pais, mas em espao, atividades e interaes que demandam

    mais que apenas irmos, para que reproduzam a sociedade onde a cidadania ser exercida,

    sendo o preparo para esse exerccio uma das finalidades da educao. O relator mencionou

    tambm o art. 87, 3 que impe ao Municpio e, supletivamente, ao Estado e Unio,

    matricular todos os educandos na faixa etria do Ensino Fundamental (grifos do relator).

    De acordo com Panisset, seria possvel invocar (para defender em algum grau o ensino

    em casa) o art. 24, II, c, o qual dispe que o aluno pode ser classificado em qualquer srie,

    mediante avaliao feita pela escola, independentemente de escolarizao anterior. Entretanto,

    na avaliao de Panisset (CNE/CEB 34/2000, p. 5), No se trata, obviamente, de um

    estmulo desescolarizao do ensino. O dispositivo sbio, visando viabilizao de

    insero de alunos desgarrados do processo regular, a qualquer tempo.

    De modo semelhante, o art. 81 poderia ser invocado em favor do ensino em casa.

    Entretanto, Panisset conclui que, apesar da lei permitir cursos ou instituies de ensino

    experimentais, ela exige que tal fato ocorra desde que obedecidas as disposies desta lei, o

    que, em sua avaliao, significa atender a um mnimo de 800 horas anuais, com frequncia

    mnima de 75% nos cursos presenciais, com mnimo de 4 horas dirias de trabalho efetivo em

    sala da aula, entre outras disposies que a LDB 9394/96 determina (CNE/CEB 34/2000, p.

    7).

    Dessa maneira, Panisset finalizou seu relatrio alegando no encontrar na LDB

    9394/96 e nem na CF/88 abertura para que se permita a uma famlia no cumprir a exigncia

    da matrcula obrigatria na escola de ensino fundamental. Matricular em escola, pblica ou

    privada, para o exclusivo fim de avaliao do aprendizado no tem amparo legal (...)

    (CNE/CEB 34/2000, p. 7), no sendo possvel autorizar o procedimento adotado pela famlia

    em questo. Sua adoo, na opinio do conselheiro, est condicionada a manifestao do

    legislador, pois, naquele momento, na etapa a que se refere o pleito, a matrcula escolar

    obrigatria, o ensino presencial e o convvio com outros alunos de idade semelhante

  • 36

    considerado componente indispensvel a todo processo educacional (CNE/CEB 34/2000, p.

    7, grifo nosso). O voto do relator foi aprovado por maioria na Cmara de Educao Bsica, do

    qual resultou a indicao de que os filhos da famlia Vilhena Coelho fossem avaliados para

    sua classificao e matrcula em uma escola devidamente autorizada.

    O parecer CEB 34/2000 foi aprovado em 4 de dezembro de 2000 e homologado em 18

    de dezembro do mesmo ano pelo ento ministro de Estado da Educao Paulo Renato Souza

    (BRASIL, 2001, p. 4).

    1.1.2 Mandado de Segurana N 7.407 - DF20

    Em discordncia deliberao do CNE, a famlia Vilhena Coelho decidiu impetrar,

    perante o ministro presidente do STJ, um mandado de segurana21

    com pedido de liminar,

    contra o ato do Ministro da Educao de homologao do Parecer CEB 34/2000. Tal ao foi

    embasada na convico dos pais de que lhes fora ferido o direito lquido e certo de educar

    seus filhos em casa, tendo sido afrontado os direitos humanos e as normas constitucionais

    brasileiras, como buscaram demonstrar no documento apresentado.

    Inicialmente, os pais esclareceram que seus trs primeiros filhos haviam sido

    regularmente matriculados, para o ano letivo de 2000, em uma escola particular localizada na

    cidade de Anpolis, onde as crianas foram submetidas a uma avaliao classificatria por

    no apresentarem escolarizao anterior (segundo o disposto no art. 24, II, c da LDB

    9394/96). Os resultados evidenciaram que estavam ao menos um ano frente das sries

    correspondentes s respectivas idades. Tal fato representou, para os pais, a comprovao do

    trabalho bem sucedido realizado pela famlia no que diz respeito ao ensino dos filhos, alm do

    reconhecimento estatal desse processo, j que as crianas foram avaliadas por uma escola

    privada que exerce funo pblica delegada pelo Estado.

    Os pais impetrantes ressaltaram que a pretenso de ensinar os filhos em casa foi de

    cunho pessoal e familiarmente individual, sem nenhum intuito de generalizao, pois

    reconheciam como dever do Estado o zelo pela educao de todos os cidados. O objetivo de

    tal ao foi o reconhecimento da situao peculiar da famlia, que mantinha absoluta condio

    de prover a educao integral dos filhos no mbito familiar, tendo os pais o pleno

    20

    Disponvel em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.doc. Acesso em:

    22 de fevereiro de 2013. 21

    O mandado de segurana encontra-se previsto na CF/88 no Ttulo II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais,

    captulo I, Dos Direitos Individuais e Coletivos, art. 5, LXIX e LX.

    http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.doc

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    convencimento, com base no texto constitucional, de que o dever do Estado, no campo

    educacional, supletivo e subsidirio ao dever da famlia.

    A famlia explicitou, ento, discordncia do contedo publicado no Parecer 34/2000,

    por conter crticas que, na avaliao dos pais, no se mostraram pertinentes ao caso, tendo a

    CEB/CNE dado questo uma soluo exclusivamente de direito, prescindindo de qualquer

    diligncia investigativa in loco e mesmo de qualquer documento que fosse, alm de possuir,

    tal como redigido e homologado, inconstitucionalidade.

    Pela viso dos pais, constante no Mandado de Segurana, o Parecer 34/2000 teria

    apresentado alguns equvocos: sem qualquer conhecimento ftico, afirmou que as crianas

    estavam sendo criadas, educadas e instrudas de forma isolada, como que numa redoma de

    vidro, hermeticamente fechada para o ambiente exterior, longe de qualquer contato com o

    mundo social22

    . Contra essa crtica, os pais argumentaram que a vida social das crianas

    sempre ultrapassou os limites fsicos da famlia, tendo elas participado ativamente de

    campeonatos esportivos, feiras e apresentaes culturais; excurses; festas infantis; contatos

    com realidades scio-econmicas diferentes e participao em programa dirio de rdio23

    (algumas dessas atividades promovidas pela escola e realizadas juntamente com as demais

    crianas), como buscaram comprovar por meio de fotografias e depoimentos de professores

    da escola e vizinha da famlia, anexados ao documento.

    Os pais registraram ainda que as crianas tambm cumpriam a parte curricular que a

    LDB 9394/96 denomina de diversificada, recebendo, fora da escola, aulas de msica, de

    ingls, hipismo, tnis, kumon e catequese. Eles declararam-se preocupados com as finalidades

    fundamentais da educao conforme previsto no art. 205 da CF/88 (pleno desenvolvimento do

    educando, preparo para o exerccio da cidadania e qualificao para o trabalho), propiciando

    tambm a formao social das crianas, como registrado no documento enviado ao Conselho

    Estadual de Educao de Gois24

    .

    No Mandado de Segurana tambm foram realados vrios argumentos que atestariam

    a inconstitucionalidade do Parecer 34/2000. A posio dos pais foi pautada na Declarao

    Universal dos Direitos Humanos (art. 26), da qual o Brasil signatrio, e na CF/88 (artigos

    22

    Disponvel em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.doc. Acesso em:

    22 de fevereiro de 2013. 23

    Disponvel em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.doc. Acesso em:

    22 de fevereiro de 2013. 24

    Neste, a famlia registra que O mencionado processo educativo vem sendo vivenciado h dez anos no mago

    da famlia dos requerentes, e ampliado gradativamente de acordo com o desenvolvimento fsico e mental dos

    filhos, sempre voltado a propiciar a eles a realizao completa, seja como indivduo, seja como pessoas

    integrantes do grupo social, cidados capazes de contribuir para um futuro melhor do nosso pas.

    http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.dochttp://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_piolla/arquivoDownloadPiolla.doc

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    229, 205 e 206), pela qual se deve garantir famlia o direito fundamental, que lhe pertence,

    de escolher, livre e prioritariamente, o tipo de educao que deseja dar a seus filhos, visando

    aos fins proclamados na constituio, j que os pais tm o dever de educar os filhos

    menores25

    . Dessa maneira, tratando-se de um direito-dever fundamental dos pais, salienta-

    se que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao

    i