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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL LEONARDO SANDI RECH CENA CULTURAL INDEPENDENTE: ESTUDO SOBRE O COLETIVO CULTURAL CASA PARALELA E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA MUSICAL LOCAL CAXIAS DO SUL 2015

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

LEONARDO SANDI RECH

CENA CULTURAL INDEPENDENTE:

ESTUDO SOBRE O COLETIVO CULTURAL CASA PARALELA E SUA

INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA MUSICAL LOCAL

CAXIAS DO SUL

2015

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LEONARDO SANDI RECH

CENA CULTURAL INDEPENDENTE: ESTUDO SOBRE O COLETIVO CULTURAL

CASA PARALELA E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA

MUSICAL LOCAL

Projeto de conclusão de curso apresentado

como requisito para aprovação da disciplina

de Monografia II, no Centro de Ciências

Sociais, no Curso de Comunicação Social –

Habilitação em Publicidade e Propaganda,

da Universidade de Caxias do Sul.

Orientador: Prof. Me. Marcelo Wasserman

CAXIAS DO SUL

2015

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LEONARDO SANDI RECH

CENA CULTURAL INDEPENDENTE:

ESTUDO SOBRE O COLETIVO CULTURAL CASA PARALELA E SUA

INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA MUSICAL LOCAL

Projeto de conclusão de curso apresentado

como requisito para aprovação da disciplina

de Monografia II, no Centro de Ciências

Sociais, no Curso de Comunicação Social –

Habilitação em Publicidade e Propaganda,

da Universidade de Caxias do Sul.

Aprovado em __/__/____

Banca Examinadora

___________________________________

Prof. Me. Marcelo Wasserman - Orientador

Universidade de Caxias do Sul – UCS

____________________________________

Prof. Me. Alessandra Rech

Universidade de Caxias do Sul – UCS

____________________________________

Prof. Me. Isabel Marinho

Universidade de Caxias do Sul – UCS

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Dedico este trabalho aos meus

verdadeiros amores. Eternos,

soam como música.

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RESUMO

Este trabalho busca compreender a importância de um coletivo cultural independente

na construção de uma cena musical local. No papel do coletivo Casa Paralela, busca-

se contextualizar o ambiente em que o setor musical considerado independente está

inserido, pontuando o caráter do mesmo quando em contato com a cibercultura e a

cultura de massa. A partir disso, busca-se compreender a importância da ação

coletiva, procurando identificar como se dá o processo de formação de tribos e suas

respectivas identidades dentro da contemporaneidade. Pontua-se ainda as novas

formas de consumo musical e suas implicações sociais, bem como o novo formato de

atuação do setor independente, que organiza-se em grupos e coletivos a fim de buscar

o seu espaço dentro do mercado cultural e musical que, por sua vez, vive um momento

de grande descentralização. Partindo de tais entendimentos, analisa-se a importância

da construção de um território compartilhado no surgimento e fortalecimento de uma

cena musical local. Através de uma pesquisa etnográfica, baseada na técnica da

observação participante, procura-se encaixar os conceitos apresentados com o

cenário do objeto de estudo. Dessa forma, entender a importância do mesmo na

consolidação de uma identidade compartilhada, responsável por uma busca de

legitimação cultural através da utilização do espaço urbano.

Palavras-chaves: cultura, independente, identidade, música.

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ABSTRACT

This paper seeks to comprehend the importance of an independent cultural collective

in the construction of a local music scene. In the role of the collective Casa Paralela,

seeks to contextualize the environment where the sector considered independent

takes place, punctuating its features once in contact with the cybeculture and the mass

culture. From there, seeks to comprehend the importance of the collective action,

understanding how it is the process of formation of tribes and its identities in the

contemporaneity. It’s also punctuated the new ways of musical consumption and its

social implications, as well as the new operating format of the independent sector,

which is organized in groups and collectives in order to get space in the cultural and

musical market, which in turn, is experiencing a period of great decentralization.

Starting from such understandings, this paper analyzes the importance of a shared

territory in the emergence and strengthening of the local music scene. Through an

ethnographic research based on the technique of participant observation, this study

tries to fit the concepts presented with the object of study’s scenario. Thereby,

understanding the importance of Casa Paralela in the consolidation of a shared

identity, responsible for a search of cultural legitimization through the use of urban

space.

Keywords: culture, independent, identity, music.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Casa Paralela.............................................................................................49

Figura 2 – Descartes no site Noisey............................................................................55

Figura 3 – Cuscobayo no site Monkeybuzz.................................................................55

Figura 4 – Carnaval do Bloco da Ovelha.....................................................................56

Figura 5 – Carnaval do Bloco da Ovelha no Jornal Pioneiro........................................57

Figura 6 – Carnaval do Bloco da Ovelha no Jornal Pioneiro (2)...................................57

Figura 7 – Show na Casa Paralela..............................................................................58

Figura 8 – Marechal Rock Bar.....................................................................................59

Figura 9 – Show do carioca Lê Almeida no Marechal Rock Bar...................................60

Figura 10 – Print do evento “Colmeia Sessions”..........................................................61

Figura 11 – Print do evento “Pré Colmeia Sessions”...................................................61

Figura 12 – Show na Casa Paralela (2).......................................................................65

Figura 13 – Show na Casa Paralela (3).......................................................................66

Figura 14 – Show da banda Winter na Casa Paralela..................................................68

Figura 15 – Reportagem no Jornal Pioneiro................................................................74

Figura 16 – Reportagem no Jornal Pioneiro (2)...........................................................74

Figura 17 – Flyer da “Semanóia Paralela”...................................................................76

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 08

2. CULTURA MUNDO .......................................................................................... 13

2.1 CULTURA CONTEMPORÂNEA........................................................................ 14

2.2 CIBERCULTURA............................................................................................... 16

2.3 CULTURA DE MASSA....................................................................................... 21

2.3.1 A INDÚSTRIA CULTURAL……………………………………........................... 23

3. CULTURA INDEPENDENTE............................................................................. 26

3.1 AS TRIBOS NA CULTURA INDEPENDENTE................................................... 26

3.1.1 FORMAÇÃO DE IDENTIDADES ATRAVÉS DAS TRIBOS............................ 29

3.2 MÚSICA INDEPENDENTE................................................................................ 34

3.3 NOVOS MODELOS DE ATUAÇÃO DO SETOR INDEPENDENTE.................. 38

3.4 NOVAS FORMAS DE CONSUMO MUSICAL.................................................... 43

3.5 INFLUÊNCIAS TERRITORIAIS.......................................................................... 47

4. ANÁLISE............................................................................................................ 51

4.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO........................................... 51

4.2 O PAPEL DA CASA PARALELA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA

CULTURAL INDEPENDENTE................................................................................. 54

5. CONCLUSÕES.................................................................................................. 81

6. REFERÊNCIAS................................................................................................. 84

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1. INTRODUÇÃO

Esta monografia tem como objetivo compreender a importância do coletivo cultural

independente Casa Paralela na construção de uma cena1 musical local, através da

construção de um território físico, virtual e simbólico. Para isso, torna-se necessário

compreender as influências da cultura contemporânea, bem como os efeitos causados

pela comunicação digital e pela cultura de massa em tal processo. A partir da

contextualização histórica do cenário atual, este trabalho busca o entendimento da

formação de tribos na contemporaneidade, através de um processo de identificação que

resulta no surgimento de uma identidade compartilhada por um grupo.

Para auxiliar na compreensão da construção de uma cena musical, também faz-

se necessário compreender as novas formas de atuação do mercado denominado

independente, ou seja, composto por artistas que encontram-se fora do circuito regido

por grandes empresas. Desta forma, torna-se importante perceber que o setor

independente tem organizado-se em grupos e coletivos a fim de buscar seu espaço

dentro do cenário cultural e musical. Tais grupos baseiam-se na troca de informações e

processos, bem como na profissionalização de suas ferramentas, tornando-se o

resultado do atual cenário cultural em encontro com as novas formas de consumo de

música e suas implicações sociais. Destaca-se a importância do espaço físico na

construção de tal cena independente, através de seu papel centralizador de múltiplas

socialidades e elemento chave na construção de relações duradouras, baseadas no

compartilhamento de experiências e de vividos emocionais.

No segundo capítulo, intitulado Cultura Mundo, busca-se entender a atual

formatação da sociedade a partir do caráter de ambiguidade presente na diversidade

cultural. Tal ambiguidade sustenta-se pela padronização de hábitos e produtos em escala

mundial, ao mesmo tempo em que constitue grupos que, por sua vez, atualizam a

modernidade de sua própria maneira, justamente em consequência da vigente

1 O conceito de “cena” foi introduzido de maneira sólida na Academia por Will Straw, em 1991. Segundo o autor, uma cena é “um espaço cultural mutável e fluído, caracterizado pela construção e diferenciação de alianças e práticas musicais” (STRAW, 1991 apud DOMINGUES, 2013, p. 2).

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padronização. Após tal compreensão, parte-se para o entendimento da cultura digital – a

cibercultura – e suas implicações sobre as relações sociais, bem como sua influência

sobre a produção e consumo de arte. A partir disso, se introduz a importância da

ocupação do espaço físico, visando a utilização da pluralidade da rede em benefício do

ato coletivo. Ainda no segundo capítulo, fala-se sobre a influência das mídias tradicionais

perante a arte e a produção cultural, a partir do exemplo da indústria cultural e de seu

papel no âmbito da validação artística. Desta forma, busca-se apresentar o impacto das

grandes indústrias ao mesclar arte com o entretenimento de massa, tornando o

pensamento econômico um fator necessário para o setor independente.

No terceiro capítulo, intitulado Cultura Independente, retoma-se a forma com que

a cultura digital possibilita a ocorrência de fenômenos comunicacionais, criando novos

territórios a partir de outros já existentes e, assim, levando novas possibilidades até

mesmo para o espaço urbano. Ao mesmo tempo, evidencia-se o caráter efêmero das

redes. Dessa forma, confere-se importância à formação das tribos através da experiência

compartilhada, do sentimento de pertencimento e dos processos de identificação.

Baseado em autores como Michel Maffesoli e Manuel Castells, tenta-se compreender o

poder de tais procesos na construção de relações duradouras e no surgimento de

projetos culturais. Logo após, ressaltam-se as mudanças ocorridas no mercado musical

em decorrer dos avanços tecnológicos. Busca-se mostrar como as novas formas de

consumir música atingem as relações sociais, bem como o caráter empreendedor do

setor independente atual, baseado na profissionalização de seus indivíduos. A partir

deste cenário, aponta-se o papel do espaço físico na construção de uma cena musical,

além de sua relação com a própria música.

Na análise, realiza-se uma pesquisa etnográfica baseda na observação

participante do objeto de estudo, sustentada através dos referenciais teóricos

previamente apresentados. Sendo assim, busca-se encaixar os conceitos apresentados

nos primeiros capítulos com o que pôde ser percebido através do ambiente da Casa

Paralela. Evidencia-se a Casa como parte de um circuito alternativo onde o setor

independente pode atuar, além de um lugar aonde grupos podem comunicar-se de forma

a construir suas identidades. Portanto, a partir da importância conferida à ação coletiva,

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procura-se compreender o lugar que a Casa Paralela ocupa diante do cenário exposto.

Ao mesmo tempo, busca-se compreender o papel da mesma na construção de uma cena

musical local e, portanto, sua importância para o cenário independente. Para isso, foram

retomadas as observações realizadas da Casa e de seus indivíduos desde o seu

surgimento, através da relação previamente existente entre pesquisador e objeto de

estudo. Além disso, uma nova observação, reforçada pela aplicação de entrevistas não-

diretivas e diretivas, foi realizada.

É, portanto, através da Etnografia, que este projeto busca compreender o seu

objeto de estudo. Tal método situa-se no âmbito antropológico, sendo ideal para o estudo

de grupos e seus fenômenos. Este tipo de pesquisa configura-se a partir de práticas como

a convivência do pesquisador em determinado ambiente, a fim de tentar compreender

um grupo social. Sendo assim, responde à questões científicas através de

conhecimentos antropológicos, a partir de uma relação entre pesquisador e sujeito

baseada em técnicas como a observação, conversas informais e entrevistas diretas e

indiretas.

Quando a Etnografia busca o estudo de um grupo previamente conhecido –

mesmo que todos seus fenômenos ainda não sejam compreendidos – faz-se necessário

uma análise de forma mais ampla, estrutural e impessoal por parte do pesquisador.

Assim, pode-se experenciar o “estranhamento” necessário para a análise da própria

cultura.

Quando parte para pesquisar outra sociedade, longe da sua muitas vezes, é preciso que o antropólogo vivencie o que DaMatta chamou de “anthropological blues”. Estes blues, esta tristeza, é o resultado da sua tentativa de transformar o “exótico em familiar” e “o familiar em exótico”. O primeiro diz respeito ao encontro do pesquisador com a sociedade do “outro”, do diferente. É seu confronto pessoal, não apenas com o isolamento e a “saudade”, mas com um universo diverso do seu, com outros códigos, outras lógicas, outra maneira de viver e pensar. O segundo movimento é o que envolve o antropólogo que decide pesquisar a sua própria sociedade, procurando encará-la de uma nova forma, experimentando o “estranhamento” dentro da sua própria cultura (TRAVANCAS, 2006, p. 3).

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Uma das técnicas da Etnografia consiste na Observação Participante. Tal técnica

implica na “inserção do pesquisador no interior do grupo observado, tornando-se parte

dele, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano

para sentir o que significa estar naquela situação.” (QUEIROZ; VALL; SOUZA; VIEIRA,

2007, p. 277). A Observação Participante, porém, deve ser efetuada com o rigor

metodológico necessário, para que não se corra o risco de análises simplesmente

emotivas e deformações de caráter empírico.

Segundo Branislaw Malinowski - pesquisador que revolucionou a Antropologia nas

primeiras décadas do século XX com suas propostas em torno da Observação

Participante - “toda estrutura de uma sociedade encontra-se incorporada no mais evasivo

de todos os materiais: o ser humano” (BRANISLAW, 1922 apud QUEIROZ; VALL,

SOUZA; VIEIRA; 2007, p. 277-278). Tal técnica deve ser utilizada, portanto, para

desvendar a complexidade que envolve as relações humanas em âmbitos como o social

e cultural. A partir disso, também torna-se necessário basear a pesquisa em teorias pré-

estabelecidas, a fim de validar e comprovar a interpretação dos dados. Na Observação

Participante o objeto de estudo une-se ao contexto em que está inserido, sendo

necessário que o pesquisador esteja atento a esta situação.

Assim, a pesquisa participante que valoriza a interação social deve ser compreendida como o exercício do conhecimento de uma parte com o todo e vice-versa que produz linguagem, cultura, regras e assim o efeito é ao mesmo tempo a causa (QUEIROZ; VALL; SOUZA; VIEIRA, 2007, p. 279).

Da mesma forma, procurar compreender de que forma um coletivo cultural

independente auxilia na construção de uma cena musical local não é apenas entender a

importância do mesmo para a sociedade, e sim compreender de que forma a sociedade

atua sob o objeto de estudo, o transformando em causa e consequência,

simultaneamente. Para a pesquisa em questão, foram respeitadas algumas diretrizes da

Observação Participativa, tais como a inserção do pequisador no grupo por um razoável

período de tempo (que pode variar de acordo com o objetivo buscado), reconstituição da

história do grupo a fim de compreender sua evolução, e a realização de entrevistas

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diretas e indiretas. Depois da coleta de dados, chega-se à uma fase muito importante da

pesquisa, onde o pesquisador organiza e analisa os dados coletados. A análise dos

dados “deve informar ao pesquisador a situação real do grupo e sobre a percepção que

este possui de seu estado.” (QUEIROZ; VALL; SOUZA; VIEIRA, 2007, p. 279).

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2. CULTURA MUNDO

O senso comum da contemporaneidade nos leva ao pressuposto de que vivemos

em uma sociedade cada vez mais cosmopolita e diversificada culturalmente. O debate

sobre a diversidade cultural, entretanto, emprega conceitos muitas vezes distintos:

integração ou diferença, globalização ou localização (ORTIZ, 2000). De um lado a crença

de que todos os povos possuem as mesmas necessidades, devido aos efeitos da

sociedade globalizada. Do outro, a valorização dos movimentos étnicos ao ponto de

torná-los essenciais para a construção cultural de cada povo, mesmo na atualidade.

Muitas vezes a análise da diversidade cultural conduz à expansão das fronteiras,

à moeda comum, ao intercâmbio cultural entre países. Em outras, às diferenças culturais

e à variedade dos povos. O que se percebe é um mundo dividido: de um lado pós-

moderno e com diversas faces, por outro, repleto de padrões e repetições. Escolher um

caminho a seguir dentre a bipolarização dos conceitos de sociedade torna-se parte da

análise e de suas respostas.

Local/global, heterogêneo/homogêneo, fragmentação/unicidade. O debate sobre a mundialização é permeado por antinomias. A afirmação de um pólo automaticamente exclui o outro. Quando lemos os escritos da área de comunicação, eles sublinham, ora as diferenças, ora a inflexão oposta, a totalidade. A análise oscila entre uma polaridade e outra (ORTIZ, 1994, p.179-180).

Sob a ótica da Antropologia, a cultura se manifesta desde as relações mais simples

do ser humano como a forma de ser, pensar, costumes, crenças até a ciência, esportes,

leis, valores morais e éticos. Toda cultura, portanto, parte da necessidade das raízes

locais para desevenvolver-se. Sob a ótica da História, a diversidade cultural tem base na

interdependência evolutiva dos povos ao longo dos séculos. Assim, há uma sucessão

natural de culturas ao longo da história: egípcios, sumérios, romanos, entre outros.

Faz-se necessário definir uma linha de partida, um marco inicial que dê origem ao

estudo em questão. Chega-se, portanto, na Revolução Industrial. Ela pode ser a principal

causa e a mais concreta legitimadora do momento em que vivemos. É a partir da

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Revolução Industrial – com início na Europa entre os séculos XVIII E XIX – que se origina

um conceito até então desconhecido: a nação (ORTIZ, 1994).

A nação tem sua origem no século XIX. Ela supõe que, a partir de determinado

território delimitado subjetivamente, hajam interações econômicas, sociais, políticas e

culturais. Na nação, a memória nacional torna-se uma inventiva, pois faz parte de sua

ideologia veicular tradições como se estas existissem desde sempre e para sempre. A

partir do conceito de nação, a diversidade cultural torna-se uma grande soma dos

encontros e trocas internas entre todas as nações.

No âmbito da nação, o surgimento da cidade torna-se um bom exemplificador da

convergência de diferentes definicões sobre a diversidade cultural. Diferentemente do

meio rural - onde os contatos face-a-face eram fatores decisivos nas relações pessoais -

a cidade é um local onde as diferenças de cada indivíduo tornam-se gritantes na própria

vida em conjunto. Desta forma, entende-se que a mundialização é, ao mesmo tempo,

única e diversa, envolvendo classes sociais, grupos, gêneros e indivíduos de diferentes

formas.

As nações são diversas porque cada uma atualiza de maneira diferenciada os elementos de uma mesma matriz. A modernidade varia, portanto, de acordo com as situações históricas (possui uma especificidade na América Latina, outra no Japão e nos Estados Unidos) (ORTIZ, 2000, p. 163).

Partindo do entendimento da nação como sendo uma organização social

modeladora de hábitos e de que vive-se um momento onde a singularidade dos costumes

pode ultrapassar as barreiras geográficas, torna-se necessário identificar os fatores

decisivos desta nova fase social. Faz-se necessário perceber como todos estes conceitos

modificam o espaço urbano e exercem influência direta sobre a cultura, criando novos

territórios e modificando territórios já existentes.

2.1 CULTURA CONTEMPORÂNEA

É bem verdade que fast-food, comida industrial, calça jeans, entre outros

elementos altamente mundializados, acabam criando uma cultura hegemônica. Filmes,

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músicas e comerciais nos tornam parte de uma mesma cultura mundial. A noção de

viajar, por exemplo, também foi modificada. Deslocar-se no tempo-espaço para conhecer

uma nova cultura deixou de ser uma experiência completamente desconhecida. Ao

mesmo tempo, elementos mundializados fazem com que indivíduos sintam-se em casa

mesmo estando do outro lado do mundo. Táxis, mapas, dicionários, cartões de crédito

são experiências já pré-codificadas. Importantes pontos turísticos como Pão de Açúcar,

Torre Eiffel e Estátua da Liberdade são imagens absorvidas diariamente por todos

através da publicidade, do cinema e da televisão, criando uma cultura mundializada a

partir do momento em que o mundo invade o cotidiano de cada indivíduo (ORTIZ, 1994).

Padrões culturais ganharam força e indivíduos tornaram-se mais semelhantes.

Ainda assim, não é possível examinar a cultura exclusivamente a partir de uma grande e

única padronização. De acordo com Ortiz, “este traço fundamental das sociedades

contemporâneas não nos deve fazer confundir as coisas” (1994, p. 33). A sociedade

contemporânea é formada de diversos subgrupos cujos costumes são transformados

dentro do modelo comum.

Ou seja, a presença de uma padrão não caracteriza uma padronização completa.

Esta identificação dos dois conceitos muitas vezes se dá devido ao fato de que a

sociedade contemporânea é cercada pela produção em massa e pela produção em série

de seus artefatos culturais. Quando esta industrialização se instaura com força em uma

das diversas esferas ou subgrupos sociais, a tendência é que haja uma generalização

dos processos culturais, formando uma espécie de sociedade global.

Ao problematizar o assunto, Ortiz ainda afirma que “a questão é compreender

como o processo de padronização torna-se hegemônico no mundo atual” (1994, p. 33).

Sendo assim, torna-se importante perceber que outras formas de expressão cultural

coexistem dentro de um processo já hegemonizado e que um padrão cultural não refere-

se a uma uniformização de todos indivíduos.

A crença no alcorão e sua exegese pela pela hierocracia religiosa atuam como cimento unitário da cultura islâmica de vários povos. Porém, no seio deste espaço amplo, a diversidade permanece enquanto a atualização do grupos e dos interesses que se cofrontam (separação entre xiismo e

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sunismo, lutas entre facções políticas, enfrentamento do islamismo com a religiosidade mágica das classes populares, etc.) (ORTIZ, 1994, p. 33).

Peça chave na dissociação e padronização dos indivíduos, a tecnologia torna-se

condicionante na contemporaneidade. A evolução tecnológica é vista por Pierre Levy

(1999) como uma técnica produzida dentro de determinada cultura, condicionando a

sociedade a agir a partir de tais técnicas. Esta mesma técnica pode agregar-se a

conjuntos culturais bastante distintos e sua utilização varia de acordo com o contexto e

do ponto e vista empregados sobre a mesma, contudo

acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e de seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, esclarecidos e racionais seria nutrir-se de ilusões. Muitas vezes, enquanto discutimos sobre o uso de determinada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram (LEVY, 1999, p. 26).

A partir de técnica, entende-se a capacidade de interagir, utilizar e apropriar-se da

constante evolução tecnológica a fim de facilitar atividades diárias e cognitivas. A

utilização desta técnica, portanto, não é unânime perante os indivíduos que constituem a

sociedade. Sendo assim, permite uma nova organização social, relacionada a níveis de

vida e a compreensão da mesma.

2.2 CIBERCULTURA

Os primeiros computadores surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1945.

Primeiramente reservados ao uso militar, sua utilização entre os civis popularizou-se na

década de 1960. Desde então, a capacidade de seu hardware tem aumentado

constantemente. Talvez fosse possível prevêr que a capacidade de sua funcionalidade

aumentaria com o passar do tempo. Porém, o que não podia ser previsto era a gigantesca

virtualização da comunicação humana e a grande influência que a máquina teria em

diversos fatores da vida em sociedade.

É a partir da década de 1970 - na Califórnia, no auge do movimento de

contracultura hippie - que o computador pessoal é inventado, apropriando-se das

possiblidades técnicas do momento. A partir de então, o computador iria fugir

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gradativamente do uso exclusivo de grandes empresas e tornaria-se gradativamente um

instrumento gerador de imagens, textos, músicas e tudo que sua tecnologia vigente

combinada com o uso da criatividade humana pudesse tornar possível (LEVY, 1999).

Em sua obra “A Máquina Universo’’ (1998), Pierre Levy aborda o uso do

computador não simplesmente como uma máquina, e sim como uma ferramenta

inovadora do pensar. Desta maneira, a tecnologia atuaria como um fator fundamental na

evolução humana e social, inserindo-se no processo de evolução biológica do ser

humano a partir do momento em que age de forma a modificar processos criativos e

cognitivos.

A mediação digital remodela certas atividades cognitivas fundamentais que envolvem a linguagem, a sensibilidade, o conhecimento e a imaginação inventiva. A escrita, a leitura, a escuta, o jogo e a composição musical, a visão e a elaboração das imagens, a concepção, a perícia, o ensino e o aprendizado, reestruturados por dispositivos técnicos inéditos, estão ingressando em novas configurações sociais (LÉVY, 1998, p.17).

A influência da cultura digital sobre o texto, imagem e música torna-se evidente. A

apreciação da arte torna-se mais interativa, menos estática. Os textos modificam-se

tornando-se hiper-textos. Estes, por sua vez, interagem entre si possibilitando o

surgimento de um grande plano textual. A imagem modifica-se perdendo sua antiga

definição de espetáculo para abrir espaço à imersão e à construção coletiva. Ou seja,

tudo torna-se matéria-prima e pode constituir a criação de uma obra muito mais ampla.

A música, por sua vez, aproxima-se do ouvinte cada vez mais, tornando-o, em

parte, seu autor. Isso significa que a distância entre autor e público diminui

significativamente devido à aproximação com a obra. Ou seja, é possível fazer parte da

criação do que se aprecia, assim como é possível modificá-la, desconstruí-la, torná-la

maior, inserir-se em conjunto com a criação anterior e constituir um novo território artístico

e cultural.

A possibilidade cada vez mais abrangente de tornar-se autor vem do fato de que

todos recebem a mesma corrente de informações e estas, por sua vez, perderam sua

totalidade, podendo ser modificadas em qualquer estância e a qualquer momento. A

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cultura digital alimenta-se da universalidade e da falta de totalidade e o autor em questão

tem cada vez menos importância no processo de transformação, apreciação e

transformação das obras na atualidade (LEVY, 1999). É o exemplo do sampling, que é a

utilização de trechos sonoros anteriores para a construção de uma nova composição

(quase sempre musical).

Colocando a cultura digital contemporânea frente a frente com os fatos descritos,

é possível entender que o processo de transmissão, reprodução e transmutação de

elementos está em primeiro plano dentro das novas formas de se consumir arte,

entretenimento e cultura na contemporaneidade. A desvalorização da informação

propriamente dita também é um efeito natural da modernidade (LEVY, 1999).

A partir de então, o propósito do trabalho artístico desloca-se para o acontecimento, ou seja, em direção a reorganização da paisagem de sentido que, fractalmente, em todas as escalas, habita o espaço de comunicação, as subjetividades de grupo e a memória sensível dos indivíduos (LEVY, 1999, p.154).

Isso significa que o ambiente virtual não substitui o ambiente físico. Muito pelo

contrário, agrega-se ao mesmo criando um território a parte e com grande facilidade de

ser difundido, sendo uma extensão conjunta e possibilitadora de novas interações sócio-

culturais. A cibercultura requer um deslocamento da arte até o espaço urbano,

possibilitando a absorção racional da mesma e fazendo com que o que há de mais

contemporâneo retorne ao formato inicial: o ato coletivo. Tal acontecimento consegue

captar todas subjetividades do indivíduo, possibilitando experiências mais duradouras

(LEVY, 1999).

Para André Lemos (2005), a propagação do ato coletivo e o uso do espaço físico

é de extrema importância na atualidade, porém, encontra-se muitas vezes engessada.

Isso se deve ao papel de validação artística assumido pelas mídias de massa e a

constante conexão proporcionada pela da tecnologia sem fio. A disseminação da cultura

digital radicaliza-se ainda mais com a popularização do bluetooth, do wi-fi, telefone

celular.

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“Trata-se de transformações nas práticas sociais, na vivência do espaço urbano

e na forma de produzir e consumir informação.” (LEMOS, 2005, p. 2). O usuário não

precisa mais ir até a rede, pois a rede pode envolvê-lo completamente de onde ele estiver,

mudando seus hábitos e seu estilo de vida, além de alterações na forma de lidar com a

informação disponível.

As comunicações wireless estão definindo rapidamente a própria natureza da aparência das ruas urbanas do século XXI. A rede global de celulares foi combinada com o sistema de transporte de superfície e ar para fornecer níveis de mobilidade sem precedentes. Os rígidos sistemas de jornadas e horários de trabalho introduzidos durante a era industrial estão definhando frente às constantes renegociações de movimento e comunicação (TOWNSEND, 2004 apud LEMOS, 2005, p. 15).

A partir disso, a cibercultura instala uma cultura midiática nunca vista antes,

denominada por Lemos de estrutura “pós-massiva”, ou seja, que vem após a estrutura

da cultura de massa. Essa estrutura pós-massiva possibilita que uma enorme quantidade

de informação circule em tempo real e em diversos formatos. “Os exemplos são

numerosos, planetários e em crescimento geométrico: blogs, podcasts, sistemas peer to

peer, softwares livres, softwares sociais, arte eletrônica...” (LEMOS, 2006, p. 38). Estas

plataformas tornam-se novas formas de emissão de texto, imagem e som pelas quais

cada indivíduo cria o seu próprio veículo.

Juan Pérez (2011) ao debater sobre o papel da cibercultura na evolução das

relações sociais e das relações entre emissor e receptor, utiliza-se do termo Web 2.0,

originalmente concebido por Tim O’Really, em 2005. Pérez tenta compreender as

mudanças ocorridas na relação entre música, artista e a própria indústria musical, através

da crescente interatividade que as plataformas digitais apresentaram a partir das últimas

décadas. Desta forma, a Web 2.0 torna-se mais do que uma tecnologia e passa a ser

uma atitude, elevando o nível de troca, participação, colaboração e intercâmbio entre

usuários. Sites que, antigamente, eram uma reprodução digital de antigas plataformas,

onde o receptor possuía baixo nível de contato ou não possuía contato algum com o

emissor, tornam-se territórios com alto nível de interatividade, onde as possibilidades são

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cada vez mais distintas. Segundo o autor, vive-se um novo Do It Yourself (DIY)2, mesmo

sendo muito difícil mensurá-lo. Movimentos independentes como o punk – que

antigamente apoiavam-se no boicote e combate a indústria – hoje utilizam-se das

mesmas ferramentas digitais utilizadas por grandes indústrias, a fim de reinvindicar seu

espaço.

Como usuários de todas essas ferramentas, deparamo-nos com uma geração que já foi rotulada de diversas maneiras: Messenger, iPod Generation, Myspace etc. Realmente, estamos ante uma geração de “nativos digitais” que tem uma relação midiática diferente da anterior e que se baseia na interatividade e na colaboração (PÉREZ, 2011, p. 53).

Esta é a “geração da colaboração” que, diferentemente da geração de seus pais -

que passavam boa parte do seu período de lazer semanal em frente à televisão -

encontra-se inserida em um universo onde a interatividade fala mais alto (PÉREZ, 2011,

p. 53). Se antes as gerações de jovens e adolescentes buscavam encontrar seu espaço

privado em seus quartos, através de ferramentas com baixo nível de interatividade entre

emissor e receptor – walkmans, televisão, revistas – os jovens de hoje encontraram na

rede um novo local para buscar seu espaço privado e construir sua identidade, através

de um ambiente com alta troca de informação.

É durante este processo que a música surge, como elemento chave na construção

de identidade do jovem. A escolha da música – e toda sua indumentária – é utilizada

pelos jovens para destacar suas diferenças em relação aos demais, ou seja, para inserir-

se em determinados grupos. “Não nos surpreende o fato de que os estudantes de ensino

secundário formem grupos sociais baseados nos gostos musicais que eles

compartilham.” (FRITH, 2006 apud PÉREZ, 2011, p. 54). Portanto, o espaço privado que

a rede possibilita é fortemente influenciado pelos gostos musicais e seus respectivos

2 Termo em inglês da expressão “Faça Você Mesmo”, surgido através da cena punk e pós-punk dos anos 1980. A expressão surgiu para categorizar artistas e bandas independentes que atuavam em todas áreas de sua obra - da produção musical à divulgação de seu produto. O termo também serve para refletir uma ideologia baseada na contracultura e no anticapitalismo – onde um indivíduo e/ou um grupo podem construir algo a partir de seu próprio esforço e ideias, sem a necessidade do intermédio da indústria de massa. Atualmente, a expressão é utilizada de forma mais assídua pelo setor musical independente, que baseia suas atividades na produção própria, organizando-se em grupos e coletivos.

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universos. A Web 2.0 viabiliza o encurtamento da distância entre artistas e público, além

de mudanças na relação entre estes e as mídias mais tradicionais. Além disso, transforma

seus usuários em agentes de prescrição musical, que compartilham e debatem seus

gostos musicais de forma cada vez mais ativa.

2.3 CULTURA DE MASSA

Dentre todas possibilidades atuais que a inserção tecnológica traz, faz-se

necessário um breve mapeamento da influência das mídias tradicionais e/ou de massa

perante a população. A mídia, assim como outros fenômenos comunicacionais, possui

seu território. Neste caso, seu território torna-se muito abrangente pois consegue transpôr

a barreira entre o físico e o virtual. Isso se dá através do momento em que a mídia passa

a formar opiniões e moldar ações, criando um universo de pensamento generalizado.

Ao perceber o poder da mídia nas relações sociais, é possível entender que a

mesma influência é exercida no âmbito da produção cultural. A mídia tem o intuito de

atingir o maior número de pessoas pela maior fatia de tempo possível. Desta maneira, os

valores mercadológicos acabam sendo sempre essenciais. Assim, a mídia de massa

mescla o universo do mercado com o da cultura ao ponto de deslegitimizar todo a

construção criativa do mesmo, tornando-se um gigantesco instrumento social de

validação artística (ORTIZ, 1994).

Os críticos e os defensores da sociedade de “massa” enfrentam a mesma questão. Fundamentalmente eles estão dizendo: a cultura preenche um papel essencial. Ela é o cimento social através do que se realiza essa função integradora. Mas, para tanto, ela deve necessariamente ser de ‘massa’, isto é, possuir a maior abrangência possível, e ser interiorizada pela maioria da população. As sociedades modernas tiveram, portanto, de secretar setores especializados de produção: as indústrias culturais (ORTIZ, 2000, p. 109).

Tais indústrias culturais possuem papel essencial na constituição de uma cultura

massificada. Elas tornam-se ferramentas produtoras de objetos, valores e intenções a

serem absorvidos em grande escala. Seu poder em fazê-lo pode ser comparado

possivelmente apenas com as religiões universais, com a diferença de que estas estão

instaladas na cultura da humanidade há séculos.

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Frédéric Martel, em seu livro intitulado Mainstream3, fala sobre “uma nova

geopolítica ,da cultura e da informação na era digital”, debatendo sobre o cenário político

e as relações de poder que permeiam a indústria do entretenimento.

Foi declarado a guerra mundial de conteúdos. É uma batalha nos meios de comunicação pelo controle da informação; nas televisões, pelo domínio dos fornatos audiovisuais, séries e talk-shows; na culura, pela conquista de novos mercados através do cinema, da música e do livro; e finalmente é uma batalha internacional de troca de conteúdos pela Internet. Nessa guerra pelo soft power4 se opõem forças muito desiguais. É, para começar, uma guerra de posições entre países dominantes e países emergentes, pelo controle das imagens e dos sonhos dos habitantes de muitos países dominados que produzem pouco ou não produzem bens e serviços culturais. Finalmente, são também batalhas regionais para conquistar nova influência através da cultura e da informação (MARTEL, 2010, p. 445).

2.3.1 A INDÚSTRIA CULTURAL

O nascimento e desenvolvimento da indústria cultural (livros, filmes, músicas) fez

surgir a lógica da produção industrial no território da cultura. Esta evolução foi prevista,

em 1935, pelo filósofo Walter Benjamin. Sua discussão filosófica se estende aos dias de

hoje em nomes como Adorno e Horkheimer. Desde então, o debate tem sido de suma

importância para os diversos âmbitos da cultura: de artistas à políticas públicas.

Percebe-se o papel decisivo da economia não só nas mudanças ocorridas com a

indústria fonográfica mas nas próprias mudanças ocorridas com os cenários culturais

independentes. Paul Tolila, em sua obra “Cultura e Economia” (2007), afirma que “pensar

a economia do setor cultural é uma arma para a cultura”, uma arma que o setor cultural

3 Para Frédéric Martél (2010), mainstream é um termo genérico e com mais de um sentido. Pode

significar uma produção cultural que contemple um grande público, difundida democraticamente, ou pode significar uma produção cultural dominante, difundida indiferentemente. 4 O termo soft power foi originalmente criado pelo professor de Harvard, Joseph Nye. É um termo utilizado

para descrever a capacidade do Estado de moldar e manipular determinado um corpo político através de ideologias e cultura. Soft power torna-se mais importante para países dominantes com a ascensão da globlização e a mundialização da cultura pois utiliza-se de meios de comunicação como a mídia de massa para alcançar seus objetivos. Este termo é o oposto de hard power, que é uma medida mais concreta do poder de determinada nação. Como, por exemplo, sua renda per capita. Ou seja, a busca pelo domínio e controle dos conteúdos disponibilizados à população torna-se uma mensuração de poder entre territórios e fronteiras.

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deve utilizar para melhorar a sua compreensão do todo, defender sua existência e

determinar o seu futuro de maneira cada vez mais ativa (2007, p. 19). Ou seja, pensar na

economia não significa uma derrota dos ideais humanistas conhecidos a respeito da

cultura e um abandono da luta pelo livre desenvolvimento cultural, e sim uma forma de

dominar um terreno muitas vezes invadido por pressões contrárias.

Economistas perceberam, ao longo da história, que os bens culturais e artísticos,

como a música, fugiam – em grande parte – da definição de mercadoria. Isso se deve ao

fato de o que constrói sua definição – a qualidade artística – é um elemento de análise

muito subjetivo. Logo, que não seria tão passível a padronização e produção em massa.

Conceito que conduz novamente ao debate sobre a cultura de massa e a indústria cultural

– apresentados no primeiro capítulo. “O conteúdo artístico de um bem em relação a outro

não pode ser objeto de uma classificação objetiva nem de uma hierarquização universal.”

(TOLILA, 2007, p. 29).

É possível encontrar no papel da MTV um bom exemplo de indústria cultural.

Atualmente, a emissora vive uma grande crise de público e formato, devido a

concorrência direta de diversos canais digitais de música, tais como o Youtube. Porém,

nem sempre foi assim. Em seu início, a MTV apostou no gênero do videoclipe, obrigando

a indústria fonográfica a avançar para tal formato. Da mesma forma que aconteceu com

o surgimento do rádio, do leitor de CD ou da internet, a indústria inicialmente não aderiu

ao vídeo. Porém, acabou cedendo devido ao sucesso gradativo da emissora que, em

1981, levou ao ar o primeiro videoclipe de sua história.

Através da MTV um artista rapidamente se tornava mainstream. Os clipes foram se tornando cada vez mais elaborados, inovadores e profissionais, e a MTV converteu-se em um elemento central no planejamento de marketing das majors. O lugar ocupado pela MTV na história da cultura pop é essencial [...] ela gera o elo que faltava entre a cultura e o marketing, entre a música ‘’pop’’ e a música ‘’ad’’ (publicitária), entre a cultura de nicho e a cultura de massa, ligando dois universos que se consideravam separados mas se descobrem misturados, o da arte e o do comércio. Após o surgimento da MTV, seria cada vez mais difícil estabelecer a diferença entre esses dois mundos (MARTEL, 2010, p. 155).

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Após uma grande dificuldade inicial em definir seu conteúdo e seu público, a MTV

foi salva por aquilo que até então se negava a compartilhar: a música negra5. O videoclipe

“Thriller” de Michael Jackson – com duração de 14 minutos - vai ao ar em dezembro de

1983, entrando na programação duas vezes por dia. Este fato possibilita a aproximação

da emissora com os gêneros musicais como o pop e o R&B, afastando-a do gênero inicial

– o rock – e conferindo sua abertura entre população negra e o mainstream da época.

No início dos anos 90 – a MTV passa pelo mesmo debate, dessa vez com o

“gangsta rap”. A princípio considerado muito violento e sexual, sofrendo ameaças de veto

pelo governo Clinton, o gênero é difundido de vez em 1998 - ano em que o hip-hop

correspondia à 81 milhões de disco vendidos para um público 70% branco. Assim,

através da ascensão do hip-hop e sua popularização entre os brancos, a MTV torna-se

mainstream novamente.

A emissora passou por diversas transformações deste então. A ótima ideia de

transmitir videoclipes gratuitos acabou virando-se contra a própria emissora. Hoje em dia,

os videoclipes também são gratuitos para seus concorrentes e, atualmente, existem

diversos canais similares a MTV em todo o mundo. Isso sem mencionar o Youtube e

outras plataformas disponíveis na internet. A partir disso, o canal necessitou reestruturar-

se.

O modelo atual é composto por um formato mais interativo, voltado a reality shows,

stand-up comedy e talk shows. A ideia de seus dirigentes é voltar a distribuir conteúdo

exclusivo, além de acompanhar a geração da internet, proporcionando experiências

tecnológicas para seu jovem público: “[...] mais de 390 sites são lançados na internet e

funcionam atualmente, milhares de conteúdos exclusivos são criados para o aplicativo

MTV no iPhone [...]” (MARTÉL, 2010, p. 158). Hoje a MTV consta com uma rede de mais

de 150 canais, espalhados ao redor do mundo. Sua aposta ainda é a música mainstream

americana, porém, com o adendo do formato interativo, embasado em reality shows e

5 A black music, 20 anos depois de ser difundida pela gravadora Motown e ser disseminada entre os brancos, ainda era considerada “de gueto” pela MTV. Seus dirigentes a consideravam um gênero de nicho. Até mesmo Michael Jackson era ignorado pela emissora (MARTÉL, 2010).

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talk shows. Desta forma, a MTV tenta manter o seu nome de Music Television ao mesmo

tempo em que tenta agarrar-se ao seu público por outros meios.

Foi então que entendi por que motivo, num canal “pop” como a MTV, o skateaboard pendurado na parede [...] é o símbolo da contracultura, da independência e do cool, no próprio coração da máquina de fabricar do mainstream (MARTEL, 2010, p. 160).

A revolução digital está ainda acontecendo, o que torna sua completa análise um

trabalho árduo. Porém, as infinitas possibilidades que a rede apresenta fazem com que

novas mídias surjam cada vez mais, reestruturando antigos formatos de consumo e

distribuição, transformando assim “a própria natureza da cultura, da arte, da informação

e do entretenimento, que por sinal talvez venham um dia a se confundir.” (MARTEL, 2010,

p. 473).

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3. CULTURA INDEPENDENTE

“Toda efervescência é estruturalmente fundadora.”

Michel Maffesoli

A cultura digital, mencionada ao longo do primeiro capítulo, é um processo que

aumenta a possibilidade de fenômenos comunicacionais ocorrerem. Além disso, cria

novos territórios dentro de outros já existentes, possibilitando a distribuição e troca de

informações de uma maneira autônoma e formando organizações comunicacionais de

altíssima complexidade (LEMOS, 2004).

Todos esses territórios de informação permitem que novas estruturas sociais e

organizacionais ocupem o espaço virtual e urbano, estabelecendo seu próprio lugar

perante culturas hegemônicas. Segundo Lemos (2004), é necessário que o ser humano

se utilize de todo pluralismo cultural que o rodeia para inserir-se ativamente na

cibercultura, a fim de criar novos territórios e novas possibilidades culturais através do

espaço urbano.

Trata-se da crescente troca e processos de compartilhamento de diversos elementos da cultura a partir de possibilidades abertas pelas tecnologias eletrônico-digitais e pelas redes telemáticas contemporâneas (LEMOS, 2006, p. 39).

Ortiz afirma ainda que “a autonomia das artes (literatura, música, artes plásticas)

possibilita a criação de uma nova instância de legitimidade cultural” (1994, p. 186). Desta

forma, é possível criar um cenário que se opõe a cultura massificada, constituindo um

ambiente independente e livre. Aproveitando-se deste cenário, a arte independente

ganha mais voz e consegue comunicar-se com seu público de maneira mais próxima.

Sendo assim, surgem mercados de nicho baseados na colaboração, que se fortificam

com o auxílio dos novos meios de comunicação tais como a internet.

3.1 AS TRIBOS NA CULTURA INDEPENDENTE

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Michel Maffesoli (1998) afirma que “a constituição em rede dos microgrupos

contemporâneos é a expressão mais acabada da criatividade das massas” (p. 137). Para

Maffesoli, tais grupos e/ou microgrupos formam-se a partir do sentimento de

pertencimento por parte dos indivíduos, assim formando uma grande rede de

comunicação. O autor propõe o território da cidade como sendo uma “sucessão de

territórios onde as pessoas, de maneira mais ou menos efêmera, se enraízam, se

retraem, buscam abrigo e segurança”, formando o que chama de “aldeias” (1998, p. 194).

Tais aldeias, compostas de suas tribos, não limitam-se a um espaço concreto, podendo

tornar-se territórios simbólicos, seguindo uma determinada ordem e, por isso, legitimando

sua existência social.

O sentimento de pertencimento é, por sua vez, remodelado através do

desenvolvimento tecnológico, devido a interatividade passageira que este sugere. As

tribos acabam organizando-se de acordo com as situações que se apresentam. Devido

ao constante número de “anúncios informáticos”, os indivíduos conectam-se e

compartilham situações e atividades. Desta forma, surgem tribos ligadas ao esporte,

música, entre outros. A duração destas tribos dependerá do grau de conexão e de

investimento por parte dos seus protagonistas, pois a relação entre oferta e procura

tornou-se muito rápida na contemporaneidade, ainda que inerente ao processo de

aprendizado. Quanto ao nível de integração, este dependerá do sentimento

experienciado pelo indivíduo, além de uma análise do mesmo sobre os “rituais iniciáticos”

conferidos a determinada experiência. Ou seja, aspectos como o grau de intensidade da

experiência, sentir-se à vontade, entre outros. São estes pequenos detalhes,

imperceptíveis se não ao próprio experenciador, que possibilitarão o surgimento de

frequentadores em determinado locais. Os rituais de pertencimento podem ser

encontrados por toda parte e é através deles que diversas tribos perduram no tempo e

espaço.

Maffesoli considera a importância da constituição de um território ao mencionar

que “o grupo, para sua segurança, dá forma a seu meio ambiente natural e social e, ao

mesmo tempo força, de facto, outros grupos a se constituirem enquanto tais. Nesse

sentido, a delimitação territorial (território físico e território simbólico) é estruturalmente

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fundadora de múltiplas socialidades” (1998, p. 197). As diversas tribos urbanas

constituem, formam e transformam a cidade, devido a suas diferenças e polarizações. Ao

afirmar que “toda efervescência é estruturalmente fundadora” (1998, p. 199), Maffesoli

entende que as cidades, muito mais do que organizações nacionais, são ajuntamentos

emocionais, constantes e diversos, girando a engrenagem funcional da sociedade. Isso

reflete a tendência da sociedade atual que, cada vez mais, busca um estilo de vida

hedonista, menos voltado para o “dever-ser”. Esta característica – investigada por

sociólogos há algumas décadas – toma proporções muito maiores na

contemporaneidade, onde a busca pela “conquista do presente” apresenta-se fortemente

na relação dos pequenos grupos, que passam a maior parte de seu tempo descobrindo

novas formas de viver as suas concepções de sociedade ideal.

É interessante notar, aliás, que com o passar do tempo esses pequenos bandos se estabilizam. Aí surgem os clubes (esportivos, culturais), ou a ‘sociedade secreta’, com fortes componentes emocionais. É essa passagem de uma forma para outra que fala em favor do aspecto prospectivo das tribos. Certamente, nem todos esses grupos sobrevivem, mas o fato de alguns deles assumirem as diversas etapas da socialização faz destes uma “forma” de organização flexível, um tanto atribulada, mas que responde bem, concreto modo, às diversas imposições do meio ambiente social e desse meio ambiente natural específico que é a cidade contemporânea (MAFFESOLI, 1998, p. 200-201).

Sendo assim, o que antes era considerado “marginal” necessita ser visto através

de outra ótica, como elemento constituinte de um mecanismo que vem perdendo sua

centralidade devido a seu contato cada vez maior com a rede. Porém, grande parte da

diferenciação entre massa e tribo deve-se à possibilidade do indivíduo de participar de

uma infinidade de grupos, muitas vezes levando a cada um destes grupos um pedaço

diferente de si. É através da “ambiência do momento” que a contemporaneidade, em

diversos níveis, apresenta-se constantemente como sendo extremamente ambígua,

adaptando-se entre o local e o global, o individualismo e o coletivo, ou até mesmo o

individualismo coletivo.

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No quadro de uma sociedade complexa, cada um vive uma série de experiências que não têm sentido senão dentro do contexto global. Participa de uma multiplicidade de tribos, as quais se situam uma com relação às outras. Assim cada pessoa poderá viver sua pluralidade intrínseca, ordenando suas diferentes “máscaras” de uma maneira mais ou menos conflitual, e ajustando-se com as outras ‘máscaras’ que a circundam. Eis aí, como podemos explicar, de alguma forma, a morfologia da rede. Trata-se de uma construção que, como certas pinturas, valorizam todos os seus elementos, sejam eles os mais minúsculos ou os mais insignificantes (MAFFESOLI, 1998, p. 207).

Através das imagens que compõem nosso cotidiano, encontra-se a experiência

que só pode existir através de níveis afetuais e emocionais, a experiência do “vivido

emocional”, conferindo a importância do coletivo perante ao individualismo. Assim, a

existência das tribos, por mais efêmeras que possam ser, despertam sentimentos que,

por sua vez, são aparentemente duradouros. Um imóvel, um local ou até mesmo um

bairro proporcionam uma relação táctil e emocional, afirmando uma tribo como tal e

constituindo para ela um local seguro. A valorização do espaço – por diferentes vieses

como a arte, a música, o encontro, o esporte, entre outros – representa a superação do

indivíduo em um ambiente coletivo. Através desta lógica é possível enxergar a cidade de

uma outra forma, onde a diversidade da experiência do vivido em comum é o que define

sua grandeza (MAFFESOLI, 1998).

3.1.1 FORMAÇÃO DE IDENTIDADES ATRAVÉS DAS TRIBOS

Manuel Castells, reconhecido estudioso contemporâneo sobre o aspecto da

identidade, a conceitua como “o processo de construção de significado com base em um

atributo cultural, ou ainda em conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) quais

prevalecem sobre outras fontes de significado” (1999, p. 22). Segundo o autor, estas

identidades são fontes de significados construídas pelo próprio indivíduo dentro da

sociedade, que tornam-se mais importantes que os papéis sociais. Isso se deve ao fato

de que as identidades organizam os significados enquanto os papéis socais se limitam

ao fato de delimitar as funções de determinado indivíduo. O significado, por sua vez, é

definido como identificação simbólica com a finalidade da ação realizada, organizando-

se através de identidades anteriores, já pertencentes ao indivíduo a partir de seu

desenvolvimento cognitivo e social.

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Segundo o autor, a identidade tem sua forma mais significativa através da

constituição de uma resistência. Identidades de resistência surgem em contraponto à

processos de dominação já estabelecidos e o sentimento de não pertencimento aos

mesmos, além de possuir conceitos opostos àqueles amplamente disseminados

socialmente, ou seja, hegemonizados. A construção de determinadas identidades de

resistência leva, portanto, à formação de novos grupos sociais e ao surgimento de novas

formas de “resistência coletiva” à uma opressão, com base em identidades definidas

através da geografia e da história. Tais comunidades apresentam três diferentes traços:

1) surgem como resposta aos traços culturais dominantes; 2) atuam como identidades

defensivas no papel de refúgio para um indivíduo e/ou grupo; 3) são constituídas

culturalmente, através de uma série de valores compartilhados entre determinado grupo.

Ainda conforme Castells, não há nenhuma sociedade que não se diferencie de

outras através de seu autoconhecimento. Ou seja, conhecer a si mesmo torna-se uma

necessidade, a fim de ser conhecido de maneiras específicas pelos outros. Neste

processo, existem os denonimados “atores sociais”, que constróem seus significados a

partir de um atributo cultural ou uma série de atributos culturais inter-relacionados.

Castells ressalta a importância de se distinguir os conceitos de identidade e papel, a fim

de evitar tensões tanto na auto-representação quanto na vida social. Papéis são o título

de pai, trabalhador, jogador de futebol, comunista, participante de determinada religião,

alcóolatra, entre outros, definidos por normais sociais. A importância de tais papéis na

vida de cada indivíduo depende da relação destes com as instituições e organizações

sociais. Já as identidades, são uma fonte de significado para os próprios atores. Elas são

construídas através de uma internalização e, por isso, possuem a característica de

autodefinição.

Tais autodefinições podem confundir-se com os papéis sociais quando um destes

torna-se a função mais importante entendida por determinado autor, como o fato de ser

pai. “Em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados,

enquanto papéis organizam funções.” (CASTELLS, 1999, p. 23). O significado, por sua

vez, seria o grau de identificação do autor com a finalidade de suas ações. Neste

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contexto, a identidade pode ser compreendida como um fator que concentra um grupo

de indivíduos em torno de uma mesma finalidade.

Do ponto de vista sociológico, toda identidade é construída através da matéria-

prima fornecida pela história, geografia, memória coletiva e aspirações pessoais.

Todavia, ela é remodelada através de tendências culturais e sociais e a relação dos

indivíduos com tais tendências, tempo e espaço. Dentre as três identidades destacadas

por Castells - identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto -

encontra-se um interessante exemplo sobre o papel de nosso objeto de estudo na

construção de uma identidade coletiva, que serve de mola propulsora para a formação

de grupos e compartilhamento de significados.

A identidade legitimadora é aquela introduzida constantemente por instituições

dominantes da sociedade. No lado oposto, está a identidade de resistência. Composta

por todos aqueles que encontram-se em situações deslegitimizadas pelas lógica da

dominação, a identidade de resistência sustenta-se através de princípios diferentes ou

opostos em relação a tais instituições de poder. Já na identidade de projeto, os atores

envolvidos utilizam-se de quaisquer materiais culturais disponíveis a fim de modificar sua

posição ocupada na sociedade, reorganizando toda estrutura social (CASTELLS, 1999).

A identidade legitimadora dá origem a uma série de organizações e instituições

sociais, além de originar uma série de atores que, por sua vez, reproduzem os fatores

que constituem tal dominação. Ela se manifesta em elementos como a igreja, partidos e

corporativas, ressaltando a dinâmica do Estado ao mesmo tempo em que torna-se um

contraponto à construção de identidades de resistência ou de projeto, essas muito mais

ricas em signficado para os atores. Logo, é a partir da identidade legitimadora que a

identidade de resistência é concebida. Tal identidade surge para originar comunidades e

formas de resistência frente a uma opressão que, de outra forma, não seria suportável

aos atores sociais.

O fundamentalism religioso, as comunidades territoriais, a auto-afirmação nacionalista ou mesmo o orgulho de denegri-se a si próprio, invertendo os termos do discurso opressivo (como na cultura das “bichas loucas” de algumas tendências do movimento gay), são todas manifestações do que

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denomino exclusão dos que excluem pelos excluídos, ou seja, a construção de uma identidade defensiva nos termos das instituições/ideologias dominantes, revertendo o julgamento de valores e, ao mesmo tempo, reforçando os limites da resistência. Nesse caso, surge uma questão à comunicabilidade recíproca entre essas identidades excluídas/excludentes. A resposta à essa questão, que somente pode ser empírica e histórica, determina se as sociedades permanecem como tais ou fragmentam-se em uma constelação de tribos, por vezes renomeadas eufemisticamente de comunidades (CASTELLS, 1999, p. 25-26).

A identidade de projeto, por sua vez, desperta no indivíduo a vontade de formar

uma história pessoal, de atribuir significados à todas suas experiências de nível

individual. Esta identidade ocorre quando indivíduos, utilizando-se dos materias culturais

ao seu alcance, constróem identidades capazes de modificar suas posições sociais. Ao

fazer isso, estão automaticamente modificando estruturas sociais vigentes (CASTELLS,

1999).

Stuart Hall (2004) apresenta uma segunda visão sobre os processos de identidade

na contemporaneidade, somando-se às ideias de Castells. Segundo Hall, a identidade

encontra-se extremamente apoiada no discurso, ou seja, através da linguagem. Devido

a isso, o processo de identidade é construído através de poderosos discursos

globalizados e, ao mesmo tempo, através das práticas que vêm desconfigurar esta

singularidade. Logo, a identidade acaba sendo um híbrido entre o que se exclui e o que

se recicla, entre a diferença e a semelhança. Além disso, toda esta processo de

interdependência encontra-se extremamente moldada por relações econômicas e de

poder. Isso se deve ao fato de que as identidades estão diretamente interligadas com o

interesse de grupos sociais no alcance de bens. De tempos em tempos, identidades

sociais são fortemente moldadas, hierarquizadas e disputadas, alcançando o status de

norma social (HALL, 2004 apud BENEVIDES, 2008).

Ao citar o aspecto de multiculturalismo presente na contemporaneidade, Hall

afirma que o controle cultural realizado por países como Estados Unidos – como a grande

capacidade de exportação de seus bens culturais – conduzem a sociedade à

homogeneização, por meio do mercado de consumo. Ao mesmo tempo, possui efeitos

inesperados, pois produz novas tendências e identidades emergentes. Portanto,

alicerçada ao conceito de ambiguidade presente na construção das nações

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contemporâneas - mencionada por Ortiz ao longo do primeiro capítulo – a constante

globalização e padronização não se dá na eliminação das diferenças e sim, na

conformação das mesmas.

Hall define o multiculturalismo como sendo uma representação do trabalho dos

autores na construção da imagem dos indivíduos. Os atores, por sua vez, possuem o

papel de receber as diversas informações sociais que os cercam, afim de construir uma

identidade. É através da reinvindicação cultural que os movimentos, em sua maioria

compostos por jovens, conseguem avançar sobre as tradicionais fragmentações do

multiculturalismo (etnia, gênero e raça) e proporcionar novas formatações a divisões

sociais. Nesse aspecto, é a juventude quem mais tem impulsionado as novas formas de

compreender e vivenciar o multiculturalismo (BENEVIDES, 2010). Isso significa que uma

imensa parcela da população jovem constrói sua identidade através de movimentos

culturais e redes de comunicação, utilizando-se de todas possibilidades apresentadas

pelo cenário da cibercultura. É também por isso que criam-se novas identidades, que

ultrapassam as características nacionais e formam comunidades com diferentes

linguagens entre a juventude.

Ainda segundo Benevides, “as formas de resistência encontradas nestas culturas

se referem à situação de tutelagem que os jovens são colocados pelo dominante cultural

da sociedade, e as reinvindicações por conhecimento são, entre outras, reinvindicações

por autonomia” (2008, p. 154-155). A construção das diversas identidades e culturas

juvenis, localizada às margens da sociedade centrada na figura do adulto, torna-se mais

do que uma identidade de resistência ou cultura de resistência, constituindo uma

reinvindicação de existência, nem sempre reconhecida socialmente.

A maioria dos relatos ou celebrações do rock ou da música popular pós-modernos enfatiza dois fatores relacionados: em primeiro lugar, sua capacidade de articular identidades culturais alternativas ou plurais de grupos pertencentes à margem das culturas nacionais ou dominantes; e, em segundo (com frequência, mas não invariavelmente vinculado com o primeiro ponto), a celebração [...] da multiplicidade estilística e da mobilidade genérica (CONNOR, 1996 apud BENEVIDES, 2008, p. 154).

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É, portanto, através da cultura jovem e do desejo de protagonismo por parte das

juventudes que se constitui uma nova identidade social, de resistência e de pluridade

cultural, constituído através de fatores geográficos e históricos. “As práticas

desenvolvidas pelos jovens são, por um lado, de afirmação de direitos e de participação

política e, por outro, de criação e ação cultural” (IULIANELLI, 2003 apud BENEVIDES,

2008, p. 176); trazendo o protagonismo juvenil à um novo significado, através da

intervenção direta.

As ações culturais, por sua vez, podem ser construídas através de entidades

estruturadas a partir de dinâmicas políticas, onde a cultura local exerce grande influência

(costumes e tradições da comunidade local), visando o aproveitamento cultural e

diminuição das precariedades sociais. Por outro lado, podem ser determinadas por um

conjunto de ações que vise uma comunidade específica – da mesma forma que

configura-se o objeto de estudo deste projeto – com espaços de produção e consumo

tais como a música, teatros, periódicos independentes, entre outros.

Na maioria das vezes, essas articulações se organizam no formato de redes. Um

conjunto de práticas sociais exercidas por um grupo de indivíduos é o que caracteriza tal

rede, ou seja, totalmente baseada na proposta de coletivos e movimentos sociais. Tais

redes possuem grande valor simbólico e ideológico, que se sustenta justamente na

participação coletiva dos indivíduos. Ainda conforme Benevides, as redes são “formas de

auto-organização e de relacionamento interorganizacional que têm sido propostas pelos

atores sociais interessados nos processos de transformação social com base na ação

coletiva” (2008, p. 177).

Tais organizações sustentam-se na construção de uma nova utopia da

democracia, passando por um processo de democratização da sociedade através da

ação coletiva. Ou seja, “chegar ao reconhecimento da diversidade cultural e no respeito

ao pluralismo ideológico” (SCHERER-WARREN, 1999 apud BENEVIDES, 2008, p. 177-

178). A participação em tais redes confere aos seus indivíduos participantes o status de

membros de um novo tipo de movimento social, que busca ações políticas mais

democráticas e horizontais.

3.2 MÚSICA INDEPENDENTE

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A cultura independente ganhou destaque no final dos anos 1970 com a explosão

do gênero musical punk, quando diversos artistas mantidos por gravadoras

independentes começaram a ter maior destaque. O próprio uso da palavra da língua

inglesa underground6 já fazia uma oposição à musica industrial, buscando definir o artista

marginal de forma mais filosófica. Nesta época, a cultura independente ainda era muito

associada aos valores da contracultura.

O imperativo da escolha fez da música [...] um fator chave nesse longo processo que serve para os indivíduos aprenderem o que significa ser jovem ou velho, branco ou negro, homem ou mulher. Nesse sentido, a música é utilizada pela juventude para ressaltar suas diferenças com relação aos demais, participando de um complicado jogo de identidade e de status. Não nos surpreende o fato de que os estudante de ensino secundário formem grupos sociais baseados nos gostos musicais que eles compartilham.” (FRITH, 2006 apud PÉREZ, 2011, p.54).

A independência almejada pos artistas desta época baseva-se no total controle

artístico. Os punks, assim como os hippies, criaram uma barreira entre arte e negócios.

O importante era proteger sua criatividade. Dessa forma, músicos não eram considerados

trabalhadores ou até mesmo “empregados culturais” e sim artistas individuais, com pleno

controle sobre suas ações e projetos.

De fato, no fim dos anos 1970, o movimento punk radicalizou tal concepção da independência musical ao perceber nela um meio para a expressão do indivíduo. Seguindo a receita do “faça-você-mesmo” (do-it-yourself), incitaram outros músicos a buscarem acesso aos meios de produção fonográfica para viabilizarem sua própria arte (MARCHI, 2006, p. 122).

Já o período pós-punk inglês adotou novas formas de lidar com o mercado de

massa e manter sua cultura independente ativa. Aqui, a filosofia havia mudado. Esta nova

geração independente já não buscava um distanciamento fervoroso do mercado de

massa. Ela queria, de certa forma, fazer parte do mercado, pois entendia que se o artista

6 Do inglês para “subterrâneo”, o termo underground faz alusão às diversas formas de expressão artísticas que diferem-se dos padrões mercadológicos, que estão a parte da mídia de massa. Ou seja, é o contrário do termo mainstream, citado anteriormente.

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mantivesse o controle da distribuição e da produção tornaria-se mais fácil alcançar a

sonhada democratização da indústria musical. “Como constituinte da indústria

fonográfica, portanto, o setor independente estaria engajado politicamente não na

negação do sistema, mas na democratização da produção de música.”

(HESMONDHALGH, 1999 apud MARCHI, 2006, p. 123).

Além de um afastamento da burocracia mercadológica e a limitação dos territórios

já existentes, a música independente encontrou uma maneira de consolidar-se a partir

de seus próprios ideais, deixando de lado objetivos de escala industrial que pudessem

vir a prejudicar a estética desejada para seus trabalhos. A ideia era diminuir a distância

do produto fornecido pelas grandes gravadoras ao produto independente. Para isso, era

necessário apropriar-se de métodos exclusivos das empresas de grande porte,

negociando com outros setores da sociedade afim de aproximar-se dos métodos de

distribuição utilizados pela indústria de massa (MARCHI, 2006).

Outro bom exemplo das nuances que atingiram a cena de música independente

se dá no Brasil da década de 1970, onde a expansão do mercado como um todo levou a

indústria fonográfica – em maior número, menos segmentada e constantemente

beneficiada pelos incentivos fiscais para a produção nacional – a incluir cada vez mais

as novas tendências e artistas que surgiam na época. Processo que acabou se

invertendo na década seguinte quando o país passou por um forte crise econômica,

fazendo com que a indústria musical voltasse a ser mais seletiva e menos abrangente,

marginalizando artistas que não se adequavam a sua lógica de mercado vigente.

A cena independente atual começa a ser fortalecer nos anos 1990, quando as

indies7 passam a ocupar uma lacuna deixada pelas majors8, inserindo-se na formação e

prospecção de novos artistas, fazendo parte da fatia mais restrita e emergente do

mercado. Esta nova formatação sustentou-se em três importantes fatores: na gradativa

busca pela profissionalização por parte das indies (o afastamento da imagem de

precariedade sonora perante a indústria); na evolução técnica e empreendora por parte

7 Pequenas empresas fonográficas que possuem meios autônomos de produção e distribuição. 8 BMG, EMI, Sony, Universal e Warner.

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destes artistas; e na aproximação das majors que visavam nas indies uma fonte de

renovação e maior contato com as tendências vigentes (MARCHI, 2006).

Portanto, a mudança necessária para o fortalecimento do setor independente deu-

se através de uma nova consciência política por parte do mesmo, uma forte mudança da

indústria fonográfica9, e um constante processo de evolução da cibercultura – que,

apoiada no desvenvolvimento tecnológico, tornou o consumo de música cada vez mais

mediado pela imaterialidade dos meios musicais.

A extrema maleabilidade do som digital favorece a diluição de fronteiras entre cópia e original, autor e editor, receptor e distribuidor. A disseminação de sites de distribuição gratuita de música na Internet vem ainda desafiando sobremaneira a formatação comercial da escuta. Por outro lado, a produção e a distribuição independentes ganham contornos profissionais, enquanto nichos minoritários de consumo encontram na rede sua possível viabilidade econômica (CASTRO, 2005, p. 30).

Em seu artigo “Do marginal ao empreendedor”, Leonardo de Marchi (2006) cita as

mudanças ocorridas com o cenário independente ao longo da história. A independência

que antes era sinônimo de completa oposição às práticas comerciais, e também de

marginalização do artista autônomo perante a indústria e o mercado de massa, adapta-

se a uma nova configuração. Ainda que a crítica ao modo de produção das majors tenha

se mantido central no posicionamento dos independentes, o empreendedorismo começa

a fazer parte do novo jeito de fazer.

A partir desta flexibilização, os independentes passaram a assumir um novo papel

na economia da música. Muitas vezes alinhando-se com as majors, os independentes

passaram a atuar como “agentes de inovação comercial”, possibilitando o surgimento de

novos mercados de nicho e sustentando a existência de duas perspectivas distintas: uma

delas embasada em um forte discurso contracultural e outra, posterior, baseada na

democratização cultural.

9 Fazem parte da indústria fonográfica as empresas responsáveis pela gravação e distribuição de aúdio, no formato de CD, LP, fita cassete, ou até mesmo arquivos digitais (MP3).

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O constante encolhimento do mercado atual (venda de CD’s) e sua substituição

gradativa pela troca de informação no ambiente virtual foi absorvido pelas grandes

empresas que, a partir da venda de música online, tentaram adequar-se a nova forma de

se consumir música. Porém, a queda da indústria tradicional continua maior em relação

ao aumento da compra de música online. Isso deve-se muito à característca que o

ambiente virtual possui de constantemente encontrar novas alternativas de consumo,

visando o possível distanciamento de ideais corporativos (YÚDICE, 2011).

3.3 NOVOS MODELOS DE ATUAÇÃO DO SETOR INDEPENDENTE

Em sua obra compartilhada The Pro-Am Revolution – How enthusiasts are

changing our economy and society (2004), Charles Leadbeater e Paul Miller abordam o

fato de o século XXI ter sido caracterizado pela ascensão dos profissionais e o surgimento

de uma nova classe de amadores na contemporaneidade. O que os autores chamam de

Pro-Ams (profissionais amadores, em sua tradução direta) são amadores, cada vez mais

conectados e comprometidos com a inovação, trabalhando em níveis profissionais e

assim fazendo surgir uma nova organização de negócios, criando uma nova relação entre

o homem e o trabalho. Segundo Leadbeater e Miller, quando tais profissionais amadores

encontram-se em torno de um mesmo ideal, suas propostas tendem a fluir naturalmente

devido a união entre a paixão e vontade de acertar, ou seja, profissionalizar-se. Desta

forma, tal encontro pode conferir grandes mudanças econômicas, sociais e culturais,

invertendo monopólios de grandes corporações e produzindo mudanças até mesmo em

nível democrático na sociedade.

O trabalho dos profissionais amadores tem uma relação muito grande com o lazer

e a satisfação própria, o que o torna um tipo de “não-trabalho”, ajustando-se a horários

flexíveis como madrugadas, feriados e finais de semana, além de espaços alternativos

como locais abertos ou o conforto do lar. Porém, não deve se confundir o trabalho destes

profissionais amadores como uma simples forma de lazer, afinal, ele é composto de

alguns elementos comuns designados ao trabalho comum tais como esforço, expectativa,

sacrifícios, imersão total, busca de resultados, entre outros. Isso se deve ao fato de que

estes trabalhos normalmente estão vinculados com objetivos e conquistas pessoais. Isso

não significa que o a remuneração não seja um dos intuitos porém ela não é o único

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motivo, tornando o trabalho em questão mais do que uma fonte de renda e tornando-se

uma ocupação produtiva em termos criativos e até mesmo espirituais. Colocando de outra

forma, por mais que muitos dos profissionais amadores encarem seus trabalhos como

uma necessidade, ela é mais visto como uma compulsão ou uma paixão (LEADBEATER

& MILLER, 2004, p. 21).

Da mesma forma, o objeto de estudo deste trabalho - que será abordado com mais

ênfase no terceiro capítulo – possui a característica de “profissionalização amadora”, pois

é a partir de diversas reuniões e, mais do que isso, rotinas planejadas e frequência de

seus participantes, que uma série de ações futuras são estruturadas e decididas, sempre

com o intuito de tornar o projeto sustentável e contínuo. Pro-Ams normalmente utilizam a

renda de seus projetos para viabilizar a continuação de seu trabalho e, muitas vezes, a

renda gerada é suficiente apenas para esse específico fim. Ainda trazendo o exemplo

para o objeto de estudo deste trabalho e suas ramifiações – selo musical, coletivos e

artistas independentes – os feriados e finais de semana (momentos de lazer) são

utilizados para a realização de pequenas turnês, shows, ensaios e práticas, na maioria

das vezes sustentados pelo breve capital levantado nas últimas vezes em que esse tipo

de ação foi realizada.

For many people ‘amateur’ is a term of derision: second-rate, not up to scratch, below par. Pro-Ams want to be judged by professional standards. Many of the defining features of professionalism also apply to Pro-Ams: they have a strong sense of vocation; they use recognised public standards to assess performance and formally validate skills; they form self-regulating communities, which provide people with a sense of community and belonging; they produce non-commodity products and services; they are well versed in a body of knowledge and skill, which carries with it a sense of tradition and identity. Pro-Ams often have second, shadow or parallel careers that they turn to once their formal and public career comes to an end (LEADBEATER & MILLER, 2004, p. 22). 10

10 Para muitos, “amador” é um termo pejorativo: de segunda classe, que não é bom o suficiente. Pro-Ams querem ser julgados em níveis profissionais. Muitos dos elementos que definem o profissionalismo também aplicam-se aos Pro-Ams: eles têm um forte senso para vocação; usam métodos já reconhecidos para atingir suas performances e validar suas habilidades; eles formam comunidades auto-reguláveis, que provém às pessoas um senso de comunidade e pertencimento; eles produzem não-mercadorias; são versáteis no âmbito do conhecimento e das habilidades, o que carrega um senso de tradição e identidade. Pro-Ams geralmente possuem carreiras paralelas que tornam-se seu foco uma vez que suas carreiras públicas e formais chegam ao fim (LEADBEATER & MILLER, 2004, p. 22).

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Segundo os autores, a linha entre professional e amador torna-se muito tênue.

Afinal de contas, os profissionais amadores utilizam-se de padrões profissionais para

medir seus esforços supostamente amadores, o que leva este assunto a uma

interpretação interessante. Partindo do ponto de vista que a maioria dos músicos

consagrados ou os integrantes das centenas de bandas independentes que surgem

diariamente no mundo não têm formação acadêmica para exercer determinada atividade,

qual a diferença entre o profissional e o amador? Estaria esta diferença presente no nível

de sucesso conquistado? Ou talvez na renda atingida? Estaria esta diferença

simplesmente no fato de um registro burocrático afirmando a existência de tal como uma

“empresa”? Este já é um outro assunto, mas encaixa-se neste contexto a fim de

exemplificar a legitimidade dos trabalhadores que atuam de forma independente, neste

caso, no âmbito da música e produções culturais independentes em geral (LEADBEATER

& MILLER, 2004, p. 22).

Aqueles que levam a sério a cultura Pro-Am, ou seja, aqueles que buscam

consolidar uma carreira através da atividade escolhida, necessitam de muita dedicação

e perseverança pois terão que investir grande parte de seu tempo, dinheiro, esforço físico

e/ou mental na busca de tal objetivo. As técnicas referentes a execução de determinado

trabalho serão, em muitas vezes, desenvolvidas e aprimoradas ao longo do percurso,

evoluindo em níves muito maiores quando compartilhada e executada em pares, grupos

e/ou coletivos.

The knowledge involved is invariably substantial, in the sense that it involves several layers of technique. It cannot be picked up quickly or casually, and requires social organization through which skills can be shared, passed on and accredited, through clubs, networks, events, competitions and performances. Pro-Ams put their time and money in many different things – equipment, props, technology, travelling to and from events, club memberships. What all this amounts to is a substantial investment in “cultural capital” (LEADBEATER & MILLER, 2004, p. 39).11

11 O conhecimento envolvido é invariavelmente essencial, no sentido de que abrange diversas camadas de técnica. Não pode ser absorvido rapidamente ou casualmente e requer organização social através da qual as habilidades possam ser compartilhadas, repassadas e validadas, a partir de clubes, redes, eventos, competições e performances. Pro-Ams investem seu tempo e dinheiro em diferentes elementos – equipamentos, adereços, tecnologia, viagens de eventos, associações. Tudo isso faz parte de um essencial investimento no “capital cultural” (LEADBEATER & MILLER, 2004, p. 39).

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O termo “capital cultural” argumenta que as pessoas possuem quatro tipos de

capitais à sua disposição: “financeiro, humano (conhecimento e habilidades), social

(conexões e relações) e cultural”. O capital cultural seria, portanto, a habilidade de tal

indivíduo em fazer parte de atividades culturais, de hobbies à atividades artísticas e

esportivas. Tais atividades determinariam “o que é importante para você e que tipo de

pessoa você é”, ou seja, que tipo de papel e identidade sociais são exercidos pelo

indivíduo. (BORDIEU, 1985 apud LEADBEATER & MILLER, 2004, p. 39-40).

Assim como o investimento de elementos como tempo, lazer, renda, técnicas,

entre outros, está presente na caracterização da recente classe de profissionais

amadores, os benefícios individuais parecem ser duradouros. Este tipo de trabalho está

muito relacionado com a constituição da identidade de seus participantes, e da identidade

de grupos e subgrupos formados a partir de tais atividades. A organização dos Pro-Ams

está muito relacionado com a formação de grupos, devido a uma socialização natural que

envolve tais tarefas, levando Leabdter e Miller a afirmarem que “é virtualmente impossível

engajar-se em uma atividade Pro-Am sozinho” (2004, p. 44).

Algumas características na organização de tais indivíduos é apontada pelos

autores, tais como: “aprendizado e transmissão de novas técnicas através de cursos,

práticas e ensaios; reconhecimento de terceiros através de eventos e ocasiões em geral;

vínculo social por meio de atividades sociais que reforçam códigos comprtilhados de

vestimenta, comportamento e valores; representação de pontos de vista dos membros

para uma outra fatia da comunidade e sociedade”12 (LEADBEATER & MILLER, 2004, p.

44). Com a popularização dos profissionais amadores na sociedade, haverá mais

inovação, além de uma reciclagem constante e saudável dos níveis de democracia

experenciados pelos cidadãos. Os vínculos e as relações formadas permitem que mais

pessoas unam-se em torno de ideais e paixões comuns, assumindo riscos maiores e

organizando-se coletivamente. Isto acaba aliando indivíduos que possuem identidades

distintas, em torno de uma mesma, possibilitando o surgimento de um novo grupo,

12 Tradução minha.

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pertencente do grande processo de múltiplas identidades e pluralidade cultural intrínseca

de cada um.

Assim como mencionado anteriormente, os profissinais amadores são, de certa

forma, o resultado concreto da cultura “marginal ao empreendedor” que tem se instalado

na indústria cultural ao longo das últimas décadas. Tais indivíduos são a materialização

da aproximação dos amadores com as novas ferramentas digitais e sua forte aspiração

à profissionalização, modificando toda lógica da indústria – que se desverticaliza e

percebe nestes nichos uma grande fonte de inovação cultural e tecnológica – e a lógica

das relações pessoais – criando vínculos e grupos que funcionam inerentes à instituições

sociais dominantes. Tal cultura favore o surgimento de organizações cada vez mais

horizontais, ao proporcionar novos caminhos a seus indivíduos. Pro-Ams têm se

mostrado como uma das formas mais efetivas de organizar grupos duradouros, através

do co-working13 gerado através de suas atividades.

Em sua obra “The German Ideology”, escrita entre 1845 e 1847, Karl Marx pode

ter sido o primeiro a abordar toda a lógica dos profissionais amadores, ao idealizar uma

sociedade onde ninguém possuíria uma esfera exclusiva de atividade mas poderia tornar-

se realizado em qualquer ramo desejado. Tal utopia pode estar mais perto da realidade

do que nunca. Se por um lado, a cultura Pro-Am pode ser apenas uma escolha de estilo

de vida, por outro lado possui uma grande importância social. Através da disseminação

do DIY (Do It Yourself / Faça Você Mesmo) – mencionado anteriormente – farão com que

novas formas de organização possam emergir, baseadas na conexão, nas redes e em

novas formas de autoridade e democracia, contribuindo com a lógica da desverticalização

presente em diversos âmbitos de nossa sociedade contemporânea.

3.4 NOVAS FORMAS DE CONSUMO MUSICAL

Escutar música tornou-se uma ação cada vez mais disseminada na

contemporaneidade. O ato de escutar música em qualquer lugar e a qualquer momento

– seja para realizar ações corriqueiras, como dirigir ou lavar roupas – fez com que a

música obtivesse um papel cada vez maior no comportamento social dos indivíduos. A

13 Formato de trabalho baseado no compartilhamento de espaço e recursos, envolvendo profissionais liberais e independentes que podem compartilhar da mesma finalidade ou não.

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constante e gradativa “miniaturização” dos aparelhos musicais, a onipresença da internet

e a generalização das conexões sem fio – aliadas a popularização de novas plataformas

de consumo musical – têm reformulado a maneira com que a música ocupa o espaço

urbano e cerca seus indivíduos.

Verifica-se uma forte segmentação no mercado fonográfico, com nichos minoritários de consumo ganhando relevância devido ao alcance global da web. Em diversos tipos de coletivos virtuais – das listas temáticas de discussão, blogs, chats, comunidades virtuais, etc – a música desponta como um forte elemento aglutinador. Sendo o consumo um importante marcador social na contemporaneidade, a escuta de música vai além do mero prazer estético, funcionando também como fator de identificação e valorização social (CASTRO, 2005, p. 31-32).

A recente cultura do álbum ou CD deixou de ser exclusiva no compartilhamento e

lançamento de música, abrindo espaço para sites especializados, downloads gratuitos,

downloads por faixa, plataformas de reprodução de música online, entre diversas outras

possibilidades inseridas no contexto da cibercultura. A crescente popularidade do MP3

fez com que coleções musicais inteiras sejam armazenadas em computadores. O próprio

surgimento do download gratuito de música, em 1999, no papel do Napster14, já apontava

indícios do crescente ideal libertário que originaria o surgimento e consolidação da rede

mundial de computadores pessoais – conferindo aos usuários um ambiente de

colaboração e de troca. Embora o Napster, após um período de tempo, tenha sido

considerado ilegal, seus usuários acabaram migrando para novas plataformas – que

partiam do mesmo ideial de distribuição de música gratuita, porém, com arquiteturas

compartilhadas, tornando mais difícil a ocorrência do mesmo tipo de acão judicial sofrida

pelo Napster.

O compartilhamento de música na internet torna-se um diálogo entre

consumidores que, por sua vez, são participantes ativos no processo de reformulação de

toda indústria fonográfica e utilização do espaço urbano. Novas tribos surgem através da

sintonia entre música e ambiente online, dentre os mais diversos nichos musicais,

14 Primeiro programa de compartilhamento e download de música no formato MP3 através do sistema peer-to-peer (tecnologia que permite que o download seja feito através do computador de outro usuário).

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fazendo com que artistas independentes disponibilizem seu trabalho nas redes cada vez

mais, em busca de uma exposição e de um contato maior com seu público-alvo. Este

mesmo ambiente virtual possibilita o aumento e crescimento da profissionalização citada

anteriormente, devido a um encurtamento da distância entre o setor independente e os

processos de produção.

Grande parte da programação do rádio, por exemplo, atende ao interesse de

grandes gravadoras – salvo uma pequena parcela de música independente regional

tocada em algumas rádios – o que faz com que os ouvintes interessados em

determinados nichos procurem rádios online, cada vez mais populares. Nestas, é

possível que você formule sua própria programação que, posteriormente, será tocada

aleatoriamente. É possível ainda que você definina gêneros e subgêneros de seu

interesse para estarem presentes em sua playlist, criando uma espécie de rádio pessoal.

As novas modalidades e formatos para se consumir música são inúmeros. Tais

modalidades possibilitam o recorte, readaptação, releitura e a confecção de novas

músicas, como no exemplo dos samplings. Esta funcionalidade remete a mesma

desmaterialização da arte citada no capítulo anterior, onde música torna-se um grande

“fluxo de dados”, podendo ser remodelada de acordo com os interesses do ouvinte, a

partir da maleabilidade que o ambiente virtual e a arte digital em geral podem oferecer.

Entre o território da música e da tecnologia, cria-se um ambiente propício para

entender as mudanças sociais e econômicas relacionadas a distribuição de cultura

independente e sua disseminação. Para a indústria, a constante segmentação do

mercado frente a monopólios ainda muito influentes ressalta a necessidade de novos

apelos estratégicos comerciais, enquanto que para os ouvintes, a criação e manutenção

destes canais pode ser um grande indicador de uma identidade social. Através do

território da experiência musical – que ultrapassa as barreiras da música em si – fortifica-

se a ideia de que existem modelos alternativos de estruturação da mesma na atualidade

e que estes são fatores importantes a serem observados quando o objetivo é

compreender as mudanças sociais e culturais que as nova formas de consumir e produzir

música implicam (YÚDICE, 2011).

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Diariamente, novas iniciativas culturais e musicais estão sendo construídas dentro

de modelos alternativos de negócio, fora do eixo constituído pelas indústrias do

mainstream. Dados de venda, número de acessos a determinados sites, entre outros,

são aspectos importantes para compreender o novo consumo de música na

contemporaneide. Porém, não são o suficiente e nem mesmo indicadores decisivos sobre

as novas tendências. A reestruturação do mercado musical demonstra o grau de ligação

da experiência musical com a vida social, afirmando o papel da música como ferramenta

social e cultural. A interatividade presente na internet possibilita em muito a validação

social de experiências musicais, pois é através da relação com outro que o conhecimento

musical é gerado de forma mais impactante. Isso significa que a indústria musical, assim

como seus métodos de medição e validação mercadológica, não estão em conexão com

as mais diversas novas formas de produção e consumo atuais, e o que se escuta e vê

nos veículos de massa não corresponde aos gostos de setores específicos da sociedade.

Os repertórios transmitidos via meios de comunicação tradicionais representam os catálogos de produtos oferecidos e impostos pelas indústrias culturais – que controlam os principais canais de distribuição em massa – e escondem a informação sobre os gostos de diferentes indivíduos e grupos. [...] Além disso, catálogos de música em sites (lojas de venda online) também não refletem fielmente os gostos dos usuários, como é verificado pelo grande número de canções que nunca são acessadas pelos usuários [...] somente 2% da música ouvida nos sites vem a ser comprada (SANTINI, 2010 apud YÚDICE, 2011, p. 42).

Rosie Marie Santini (2010), em sua análise do popular site de música Last.fm15,

constatou que mesmo em um site de recomendação musical, o conhecimento é

construído através da interação com outros usuários do ambiente. Santini analisou os

dados dos usuários do Last.fm e o número de vezes que estes ouviam determina música

– isso inclui todas as músicas tocadas em seus computadores ou através de dispositivos

tocadores de MP3 como IPODs. Sua constatação foi de que os novos consumidores

15 Fundado em 2002, o Last.fm é um serviço de recomendações musicais. Para utilizá-lo, é necessário fazer o download de um programa chamado Scrobbler. Tal programa identifica as músicas que o usuário ouve em plataformas como seu computador pessoal ou IPOD e, a partir disso, recomenda artistas, músicas e shows com base nos respectivos interesses. Além disso, possibilita a criação de um perfil para que seja possível compartilhar gostos e descobertas com demais usuários.

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(consumidores jovens) têm acesso a uma vasta quantidade de fonogramas, não

necessariamente sob o controle das majors. Isso não significa que a cultura mainstream

não esteja presente em grande escala, e sim que existem diversos gêneros que

encontram-se fora das estatísticas de consumo tradicional, o que complica a

interrpretação do atual mercado em sua totalidade.

O levantamento de Santini, porém, trouxe mais dúvidas do que respostas.

Considerando o fato de que existem 56 milhões de usuários e 16 milhões de artistas, o

cálculo óbvio é o de que um em quatro usuários são o próprio artista – conduzindo-a à

tentativa de compreensão da visibilidade possível dentre artistas independentes. Se este

cálculo for realmente verídico, surgem uma nova série de questões. De que forma todos

esses artistas podem ser gerenciados? É possível que tais artistas alcancem um nível de

sustentabilidade dentro do mercado? Segundo o mesmo site, existem 57,14 artistas para

cada produtor (dados de 2011), e torna-se necessário ressaltar que o Last.fm representa

apenas uma pequena parcela dentre sites especializados em música disponíveis na rede.

Levando em consideração “só 2,1% ou 2.050 dos 97.751 álbuns publicados em 2009

venderam mais do que cinco mil cópias, torna-se óbvio que ganhar visibilidade numa

escala de massa é impossível para quase todos os artistas. Para que isso ocorra, as

majors precisam investir muito na divulgação e promoção de um artista.” (YÚDICE, 2011,

p. 44).

Obviamente, não é apenas através da análise do Last.fm que pode se chegar à

uma conclusão sobre o assunto. Por mais que plataformas como o Last.fm auxiliem no

entendimento da ecleticidade atual, faz-se necessário pontuar a necessidade de veículos

como este na geração de lucro. São plataformas que negociam com grandes empresas,

tornando a neutralidade reconhecível da internet um fator questionável. Toda a rede

torna-se um grande intermediário que não consegue mensurar toda abrangência da

experiência musical. A rede modificou a forma com de se consumir música. Ainda assim,

não é suficiente que o setor independente baseie-se apenas no seu uso. Logo, é

necessário que “iniciativas alternativas, em nome de interesses específicos” sejam cada

vez mais difundidas entre a população, a fim de gerar um contato verdadeiro e uma troca

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que extrapole as barreiras do virtual, mesmo que tenha seu surgimento nele (YÚDICE,

2011, p. 45).

3.5 INFLUÊNCIAS GEOGRÁFICAS NAS CENAS MUSICAIS

A fim de compreender a influência do lugar na construção musical e da música na

constituição da memória de determinado lugar, faz-se necessário compreender os

aspecto geográficos presentes na construção de cenários culturais independentes.O

conceito de território, bastante presente na Geografia, remete ao conceito de nação de

Ortiz (2000) – exposto no primeiro capítulo – referindo-se a um determinado recorte de

espaço sob a influência de agentes políticos, econômicos e culturais. Esta apropriação

de espaço seria caracterizada como territorialização e seus elementos culturais

constituiriam sua territorialidade. “A territorialidade pertence ao mundo dos sentidos e,

portanto, da cultura e das interações cuja referência básica é a pessoa e sua capacidade

de se localizar e deslocar” (SPÓSITO, 2004 apud FUINI, 2014, p. 97).

A territorialidade é uma forma de representação de territórios não

necessariamente mantidos por leis, mas utilizados de forma efetiva por determinados

grupos e subgrupos sociais. Fruto da mesma, a microterritorialidade conduz expressões

sócio-culturais, passível de transmitir símbolos e características de vida de determinado

local ou região. A microterritorialidade serve para expôr a dinâmica própria de cada lugar

em contraponto a visão generalizada por parte de grandes territórios. Considerando

importante a compreensão dos elementos que constituem a identidade de determinado

local, pode-se perceber na música o papel de relatora do cotidiano de seus territórios,

exacerbando seus valores sociais, culturais, políticos e econômicos (FUINI, 2014).

A territorialidade, portanto, está associada a grupos sociais, eventos culturais e

intervenções públicas, estando diretamente conectada com os eventos que produzem

seu conteúdo. Assim, transformando símbolos, sensações e sentimentos em ações

concretas. Estas ações, por sua vez, configuram-se a partir do espaço urbano e físico,

ou seja, do cenário de cada lugar. A microterritorialidade diz respeito aos diversos

subgrupos pertencentes de determinada região, referindo-se a organizações sociais não-

institucionais e a transformações do modo de vida no âmbito coletivo e individual dentro

de determinados espaços urbanos.

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Esta é a primeira variável dentro dos processos de microterritorialidade: o lugar. É

através dos lugares que círculos de identidade surgem e desenvolvem-se, fazendo com

que as conexões criadas a partir destes encontros tornem-se alguns padrões culturais.

“Assim, lugares sintetizam a materialidade e a imaterialidade, sendo o imaterial desígnio

de afetos, sensações e sentimentos produzidos no/pelo lugar” (CARNEY, 2007 apud

FUINI, 2014, p. 100). A segunda variável é a identidade, caracterizada pela relação de

determinado indivíduo com objetos e atividades. A partir dela é que desenvolve-se uma

consciência territorial, frente a constante ameaça de homogeneização cultural que

envolve as identidades locais e regionais. Uma terceira variável no processo de

territorialidade é o tempo. Este, por sua vez, modifica valores e laços organizacionais,

conferindo uma característica de constante evolução às identidades regionais e locais.

Com o tempo surgem novas tecnologias e técnicas, que modificam as formas de

produção e modos de viver, desconstruindo os antigos padrões e os substituindo por

novos.

Porém, qual a relação da música com as microterritorialidades, ou seja, com a

identidade própria de cada lugar? Estudos sobre a Geografia na música existem nos

Estados Unidos desde 1960 e desenvolvem-se cada vez mais a partir da contribuição de

novos autores e pesquisadores. O primeiro estudo referente ao assunto surgiu em 1968

com o artigo Music Regions and Regional Music de Peter Hugh Nash. A partir de então,

o assunto tornou-se cada vez mais difundido, principalmente na literatura norte-

americana, sendo pauta de diversos eventos relacionados ao estudo da geografia, da

música e da cultura (CASTRO, 2009).

Lily Kong e George Carney são os dois principais autores do assunto e

fundamentais na reinvindicação dos estudos da Geografia da Música. Kong (2009) afirma

que a música é um elemento presente em todas as sociedades, sendo um elemento

transformador do cotidiano e das relações entre indivíduos. A partir disso, a autora

estabelece alguns fatores que podem constituir um programa de pesquisas sobre o

assunto: 1) a música de determinado local traz imagens do mesmo; 2) a música pode

atuar como principal fonte no processo de entendimento da identidade de um lugar; 3) a

música torna-se um meio para indivíduos expressarem suas experiências relacionadas a

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determinado tempo e lugar; 4) a música é o resultado de experiências dos ambientes em

questão.

Carney (2007) conecta ainda mais a música com a Geografia. Buscando

compreender a música através dos lugares em que ela acontece, a fim de reconhecer

padrões e diferenças presentes na mesma, o autor sugere o estudo conjunto de lugares

e música através de uma hierarquia de lugares. Estes, por sua vez, revelam diferentes

formas de manifestação musical através de ruas, bairros, cidades, regiões, nações. Estes

lugares possibilitam a formação de gêneros e subgêneros musicais e artísticos, agindo

como fatores diretos na construção da memória coletiva de determinada nação. Ou seja,

a música exerce o papel de comunicadora cultural. Seu discurso e seus textos musicais

devem ser compreendidos como diálogos sociais, refletindo processos comunicacionais

e o contexto histórico no qual estão inseridos (CASTRO, 2009).

Will Straw (1991) busca compreender o conceito de cena musical como um

conjunto de aspectos envolvendo a produção, consumo e circulação de música no

cenário urbano. Dessa forma, descreve a cena como como “um espaço cultural mutável

e fluído, caracterizado pela construção e diferenciação de alianças e práticas musicais”

(STRAW, 2001 epud DOMINGUES, 2013, p. 2). Straw também destaca a importância da

relação entre música e local, sendo a conexão entre indivíduos através de um espaço

cultural um fator fundamental em fatores como a expressão cultural de um grupo ou até

mesmo a própria produção musical.

Sendo assim, a prática musical conecta-se com elementos como a identidade,

criatividade, lazer, economia e produtividade. Ou seja, a cena musical possui caráter de

fenômeno cultural. Cada cena acaba possuindo suas peculiaridades, ao mesmo tempo

em que conecta-se com diversas outras cenas, através da força dos processos

hegemônicos citados anteriormente. Produzindo diversas interações através do espaço,

“práticas como comer, beber, dançar e conversar em público podem ser associadas às

cenas, que, por sua vez, farão apropriações e negociações peculiares entre elas

(STRAW, 2002 apud DOMINGUES, 2013, p.4).

As cenas agregam afeto e memória a um local específico. Espaços considerados

marginais adquirem significado ao aliar um espaço com determinada prática, assim como

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seus grupos pertecentes afirmam sua existência. Ao longo do processo de construção de

uma cena, interesses comuns a diferentes indivíduos encontram-se, gerando relações

que tornam-se essenciais para a permeabilidade e sustentação de tal grupo.

Ao buscar abrigar redes macroeconômicas que nutrem práticas sociais e conectam-nas ao espaço urbano, uma cena torna-se grande o suficiente para que seja difícil conceituá-la com precisão. No entanto, é exatamente essa abstração e dificuldade de circunscrição que as cenas parecem buscar, justamente para que estejam em consonância com o próprio espaço urbano. Se o termo mostra-se como algo complexo, que por vezes nos oferece mais perguntas do que respostas, o espaço urbano atual e as infinitas práticas culturais que tomam conta de suas tessituras portam-se exatamente da mesma forma. A construção de um conceito lúbrico reflete a ebulição da sociabilidade desenvolvida nos espaços urbanos (DOMINGUES, 2013, p. 5-6).

Ainda segundo Straw, a gradativa importância conferida ao ambiente virtual e seus

processos de comunicação não são suficientes para inserir determinada cena musical

em um conceito totalmente globalizado. Dessa maneira, o aspecto de virtualização

presente dentro das cenas não substitui a força do encontro ou a conexão entre a música

e o local. Até mesmo gêneros musicais mundialmente conhecidos são apropriados de

maneira específica por festivais locais, sendo atualizados de acordo com traços

geográficos. Dessa forma, faz-se de extrema importância um local aonde a música possa

ser visualizada de maneira compartilhada (STRAW, 2001 apud DOMINGUES, 2013, p.

6).

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4. ANÁLISE

4.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO

Na palavras da própria Casa Paralela, na descrição de Fan Page no Facebook: “A

Paralela é uma casa independente que ingere e vomita arte. Um espaço coletivo para

coletivos que não têm espaço.”.

Figura 1 – Casa Paralela

Fonte: Fan Page da Casa Paralela no Facebook (facebook.com/paralelacasa)

A Casa Paralela é um coletivo cultural independente, sediado em uma antiga casa

de dois andares, na Rua Tronca, 3483, na Cidade de Caxias do Sul, no estado do Rio

Grande do Sul. A Paralela surgiu em em junho de 2012, primeiramente idealizada por

Vicente Lopes Pires e Leonardo Ferrolho, ambos com 26 anos de idade na época. A

Casa surgiu através de dois vieses. O primeiro era a necessidade, por parte de seus

idealizadores, de encontrar um lugar para realizar os ensaios de suas respectivas

bandas, além de reunir um grupo de amigos em um ambiente confortável e interativo. O

segundo viés, somou-se ao primeiro, sendo a necessidade de um ambiente de produção,

onde fosse possível externar visões, sentimentos e vontades, bem como um local

específico para criar música e apresentá-la ao vivo.

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Desde o seu princípio a Casa Paralela teve uma ligação muito forte com a música,

que foi, de seu surgimento até aqui, o carro-chefe das mobilizações que ocorrem na

Casa. Porém, desde junho de 2012, através de um vísivel processo de constante

evolucão, diversas outras formas artísticas e de colaboração coletiva agregaram-se ao

espaço. No começo, a Casa sustentava-se através de pequenas festas, saraus e shows

das bandas de seus idealizadores e amigos, através da renda sob a venda de bebidas e

de contribuições espontâneas deixadas por seus frequentadores – já remetendo aos

ideais de colaboração e gerenciamento coletivo que sustentam a Casa até os dias de

hoje.

As grandes atrações sempre foram as bandas locais devido ao fato da Casa ter

surgido justamente do agrupamento de alguns músicos. Estes, por sua vez, queriam

mostrar o seu trabalho mas sofriam da falta de um local e de um público. Após um curto

período de tempo, a quantidade de eventos realizados na Casa começou a crescer e se

disseminar entre outros grupos. Tais grupos que, antes do surgimento da Casa, não

comunicavam-se entre si, agora dividiam o mesmo espaço, gerando uma coletividade

que hoje aparenta ser a responsável pela manteneção de diversos projetos culturais no

ambiente. Além disso, o ambiente da Casa sempre mostrou-se amplamente pluralizado,

reunindo grupos distintos através do desejo de consumir e produzir cultura e arte.

A partir de então, surgiram mais pessoas interessadas em manifestar sua arte,

através de exposições, oficinas, artes visuais, entre outras. O formato inicial da Casa,

com um público formado pelos próprios artistas que ali buscavam um espaço alternativo

para mostrar seu trabalho, foi reconfigurando-se em um ambiente de aparente pluralidade

e aceitação, baseado no compartilhamento de experiências, projetos e ideais.

Atualmente a Paralela é formada e serve de escritório para outros três coletivos,

que funcionam na forma de co-workings independentes: Tédio – uma espécie de fábrica

cultural e produtora de eventos, composta pelos dois idealizadores da Casa; Honey Bomb

Records – selo de distribuição e assessoria de bandas locais e até mesmo de fora do

estado e do país; e Manifestasol – coletivo cultural responsável por reconhecidos festivais

independentes da cidade, tais como o Festival Manifestasol. Estes coletivos são

formados, em sua grande parte, por integrantes de bandas que ajudam a movimentar a

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Casa. É a partir de seus projetos que a economia da Paralela circula, através de produtos

e conteúdo (físico e online), tais como os eventos que acontecem na Casa. A cada dia,

os coletivos que atuam dentro da Casa Paralela parecem estar mais interligados, o que

torna sua caracterização e delimitação mais complicadas. Isso pode ser visto através de

flyers dos eventos da Casa que, na maioria das vezes, levam a assinatura de todos os

coletivos, além da assinatura da própria Paralela.

Cada um dos coletivos possui seu próprio espaço dentro da Paralela, promovendo

ações que situam-se nas próprias dependências da Casa, em locais públicos ou até

mesmo em locais fechados, levando o nome e o público da Paralela para fora de suas

dependências. Tais coletivos estão em constante troca de informações, auxiliando uns

aos outros nos inúmeros projetos que surgem diariamente: festival de música, bazar de

rua, oficinas, entre outros. Em muitos casos torna-se complicado entender

completamente o que cada coletivo produz e/ou é responsável. Aparentemente, é mais

fácil entender em que tipos de projeto cada coletivo está trabalhando naquele

determinado momento para que seja possível desvendar sua finalidade - que também

está em constante processo de mutação.

Segundo Vicente Lopes Pires (29) – um dos idealizadores da Casa – uma das

principais mudanças perceptíveis ao longo destes três anos está na mudança das formas

de produzir. O que, no começo, era feito de forma muito mais empírica, a partir das

experiências absorvidas pela convivência no espaço, passou a ser compreendido de

forma mais ampla, como uma possível plataforma muito importante dentro do cenário

cultural da cidade. Plataforma do ponto de vista estrutural e também do ponto de vista

intelectual, produzindo e dando suporte para várias iniciativas que estavam por vir.

Desde então, a Paralela já recebeu centenas de shows de bandas locais, além de

bandas de fora do estado e até do país. Seus eventos passaram a ocorrer mais do uma

vez por semana, em muitos casos, ocorrendo nas quintas-feiras, sextas-feiras, sábados

e domingos à tarde. A Casa já recebeu importantes nomes do cenário independente

nacional e internacional, além de ser citada em inúmeras vezes pelo jornal impresso de

maior visibilidade da cidade, alcançando espaço até mesmo na mídia televisiva local e

consolidando-se com uma plataforma cultural importante para o cenário regional.

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4.2 O PAPEL DA CASA PARALELA NA CONSTRUÇÃO DE UMA CENA CULTURAL

INDEPENDENTE

Através da análise etnográfica, baseada na técnica da Observação Participante,

realizada ao longo dos últimos três anos de contato com o objeto de estudo, bem como

a realização de novas observações – baseadas na aplicação de entrevistas diretas e

indiretas – analisa-se o ambiente da Casa Paralela e de seu grupo de indivíduos através

de sua contextualização com os referenciais teóricos apresentados até aqui. Assim,

busca-se compreender o papel da mesma na construção de uma cena musical local, bem

como o entendimento do cenário em que está inserida.

Ao problematizar que a existência de padrões hegemônicos não caracterizam

uma padronização completa da sociedade contemporânea, Ortiz ressalta a importância

de perceber que existem grupos e subgrupos dentro da sociedade que, por sua vez,

atualizam a modernidade de acordo com suas próprias matrizes. Conforme mencionado

anteriormente, a sociedade atual polariza-se entre a integração e a diferença. Ao mesmo

tempo que faz-se necessário analisar a contemporaneidade como um ambiente de ampla

conexão – resultado da grande afirmação da cibercutura – também torna-se essencial a

valorização de movimentos étnicos, no papel de grupos e subgrupos, como peça

fundamental da construção cultural e social (ORTIZ, 2000).

O grande avanço da cultura digital faz com que elementos cada vez mais

hegemonizados circulem de forma muito rápida, atingindo elementos como a cultura e a

arte. No que diz respeito às mídias massificadas, tais elementos sofrem a grande

influência de validações artísticas, voltadas ao lucro e ao entretenimento de massa.

Dessa forma, alguns grupos acabam localizando-se às margens do chamado

mainstream, atuando com suas próprias ferramentas criativas e apoiados nos estímulos

da cibercultura, a fim de criar ambientes legitimizados culturalmente através de

experiências coletivas e utilização do espaço urbano.

Dentro do mercado cultural, diversas manifestações artísticas procuram ganhar o

seu espaço, muitas vezes utilizando-se de jeitos próprios para isso. Longe dos veículos

de massa, o setor independente musical organiza-se em coletivos, grupos e redes a fim

de buscar seu território fora do mercado tradicional. Percebe-se que a tendência do setor

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musical – onde o artista criador da obra também é quem produz sua música, divulga seu

trabalho, agenda shows e é responsável pela arte gráfica de seus materiais – é também

encontrada na cena independente que envolve a Casa Paralela e seus coletivos

pertencentes. Ou seja, o artista independente está cada vez mais presente em todos as

áreas da produção cultural e musical, necessitando tornar-se gestor de sua própria

carreira. Aparentemente, os artistas independentes da contemporaneidade não

sobreviverão se deixarem de lado tais fatores e dedicarem-se apenas à criação da

música. Faz-se necessário que acompanhem de perto as mudanças do setor e, através

das ferramentas disponíveis, encontrem seus próprios caminhos baseados na

coletividade, em busca de visibilidade e sustentabilidade.

A efemeridade define bem a realidade atual do mercado cultural e musical,

atingindo muitas vezes o próprio mainstream. Tendo em vista que absorver novos

conhecimentos de forma rasa tornou-se algo comum na contemporaneidade, a ascensão

da sociedade digital é completamente ambígua, desde sua origem. Ao mesmo tempo em

que possibilita que determinado indivíduo tenha contato com um infinito número de

artistas e suas respectivas obras, confere níveis de engajamento e profundidade muito

baixos. Novos artistas, bem como apropriações e reconstruções de obras já existentes,

surgem incessantemente a cada dia, mas nascem com prazo de validade cada vez

menor.

Artistas independentes possuem seu próprio nicho. Um público que, por sua vez,

ao identificar-se com determinada proposta, sonoridade ou estética, passa a acompanhar

o trabalho do artista nas redes sociais e atender a shows (este processo pode variar,

sendo a performance ao vivo a primeira forma de contato entre artista e público). Assim,

o mercado independente parece possuir sua própria economia, baseado em ações

coletivas, exposições e eventos. Pode-se dizer que o “independente” sobrevive onde a

cultura de massa não consegue se fixar.

A articulação de grupos/coletivos torna-se muito importante dentro do ambiente

independente, além de ser uma tendência cada vez maior em tais cenários. Alguns

exemplos estão espalhados Brasil à fora. É o exemplo do coletivo Circuito Fora do Eixo,

nascido da movimentação musical de cidades como Goiânia e Cuiabá, no ano de 2005.

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Profissionais de diversas áreas da comunicação e produção reuniram-se a fim de

compartilhar ideias e informações sobre as cenas culturas independentes do país, com o

objetivo de realizar ações conjuntas a favor do movimento musical independente

nacional. A proposta do Circuito Fora do Eixo possui semelhanças em relação a Casa

Paralela, no sentido de que consiste em gerar uma comunicação entre artistas e

produtos, visando uma maior circulação e maior contato com o público por parte de tais

artistas. Nos coletivos, as ações procuram ocorrer de forma solidária. Aos poucos, um

grupo de coletivos consegue criar um próprio circuito, fazendo com que bandas

independentes consigam sobreviver dentro deste circuito, alcançando sua

sustentabilidade. A ideia dos coletivos é trabalhar através de elementos como a troca de

serviços, a economia solidária, a comunicação e trabalho em redes.

Dentre os aparentes fatores motivadores da produção musical dentro da cena

independente que envolve a Casa Paralela está o desejo de criação de um mercado

intermediário dentro da indústria do setor musical. As transformações no sistema de

produção e distribuição musical comentadas ao longo deste estudo são favoráveis para

tal objetivo. Afinal, é no surgimento e afirmação de circuitos alternativos que o artista

independente consegue evoluir sua performance e criatividade, podendo atuar de forma

justa e profissional, envolvendo-se em uma série de oportunidades, tais como festivais

de música independente. É a partir da troca e aproximação dos demais territórios, cenas,

coletivos e organizações, que torna-se possível que o artista independente alcance sua

sustentabilidade. Aqui, aparentemente, está a importância do espaço físico e da

organização baseada na troca coletiva. É através do espaço físico, sustentado pelo

ambiente virtual e todas suas possibilidades, que torna-se possível construir a visibilidade

e o reconhecimento do artista como tal dentro da contemporaneidade.

A cena independente parece acabar fazendo parte de uma luta por conquista de

capital cultural e pela legitimação de seus valores, ou seja, de sua própria identidade,

dentro do campo musical e de um campo mais amplo, o social. Em Caxias do Sul, a cena

independente que desenvolveu-se através da Casa Paralela conseguiu gerar alguns

visíveis efeitos disruptivos, no momento em que obteve visibilidade nacional antes

mesmo de obter a atenção de gestores e instituições culturais, bem como de produtores

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culturais e contratantes de shows. Através do surgimento da Casa e da organização de

seus coletivos adjacentes de forma cada vez mais profissional e articulada, a cidade de

Caxias do Sul obteve uma grande visibilidade em termos musicais. Tal visibilidade é

comprovada através da grande clipagem que envolve as bandas emergentes da Paralela

em diversos sites especializados de música, tais como a revista Rolling Stone, revista

Noize, blog Amplificador do jornal O Globo, entre outros. Voltando a citar Ortiz, é através

da “autonomia das artes” que torna-se possível a construção de novos territórios e sua

legitimação cultural (ORTIZ, 1994).

Figura 2 – Descartes no site Noisey

Fonte: Internet (noisey.vice.com/pt_br/blog/hardcore-descartes-streaming-ensaio)

Figura 3 – Cuscobayo no site Monkeybuzz

Fonte: Internet (monkeybuzz.com.br/ouca/bandas/13424/ouca-cuscobayo)

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Nas imagens acima, algumas bandas que estiveram presentes no início da Casa,

com integrantes que foram responsáveis pelo próprio surgimento da Paralela, puderam

inverter o antigo processo do mercado musical – onde o artista necessitava ser absorvido

por uma grande gravadora – e, a partir de uma organização constante baseada na

coletividade, fazer com que veículos especializados de música voltassem seus olhos para

setor independente.

O pertencimento à cena, ou seja, o ato de fazer parte da movimentação, produz

uma identificação imaginária com “posições normativas excluídas”, advindas de toda

atmosfera que envolve a criação independente, seus estilos musicais, suas energias e

significados pessoais e/ou coletivos. Benevides acredita que fazer parte de tal

circustância ou momento torna-se um compartilhamento de “experiências marcantes em

contextos plenos de trocas afetivas e altamente inclusivas” (2008, p. 303).

Percebe-se que a Casa tornou-se mais do que um espaço físico e sim, um

território. Isso se deve ao fato de que alguns eventos organizados pela Casa já foram

realizados em locais que não englobavam as dependências da Casa, tais como o Bloco

da Ovelha – bloco de carnaval organizado pela Casa e realizado em fevereiro de 2015,

ocupando as ruas da cidade de Caxias do Sul com centenas de pessoas. Com samba-

enredo baseado nas músicas das bandas locais e misturando ritmos que alternavam-se

entre o rock e o samba, o evento ganhou visibilidade na imprensa local, através de

veículos regionais conhecidos.

Figura 4 – Carnaval do Bloco da Ovelha

Fonte: Fan Page da Casa Paralela no Facebook (facebook.com/paralelacasa)

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Figura 5 – Carnaval do Bloco da Ovelha no Jornal Pioneiro

Fonte: Fan Page da Casa Paralela no Facebook (facebook.com/paralelacasa)

Figura 6 – Carnaval do Bloco da Ovelha no Jornal Pioneiro (2)

Fonte: Fan Page da Casa Paralela no Facebook (facebook.com/paralelacasa)

A partir deste exemplo, percebem-se três importantes fatores: a participação ativa

do público nos eventos realizados; uma gradativa atenção da imprensa em relação aos

eventos; e a identidade baseada na pluralidade cultural – uma versatilidade de

acontecimentos que baseia sua identidade na livre criatividade, realizando eventos

direcionados aos gêneros musicais do reggae e do punk rock no mesmo final de semana.

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Figura 7 – Show na Casa Paralela

Fonte: Fan Page da Casa Paralela no Facebook (facebook.com/paralelacasa)

A Paralela evidencia-se no formato de “aldeia”, seguindo a definição de Maffesoli

(1998) para a mesma, onde indivíduos enraízam-se a partir do sentimento de

pertencimento a determinado território. É importante ressaltar o aspecto passageiro de

tais tribos em contato com a contemporaneidade. Tal efeito deve-se ao caráter de

interatividade passageira que o ambiente virtual confere, influenciando as relações

interpessoais. Desse modo, a duração de tais tribos depende do grau de investimento

por parte de seus protagonistas (MAFFESOLI, 1998). Tal investimento pode ser

observado no território da Paralela, onde seus integrantes buscam métodos de fixar-se

no cenário cultural diariamente, ao estar em constante comunicação com o meio cultural

da cidade. Com o passar do tempo, a Casa tornou-se o que Maffesoli denomina de

“território simbólico”. A Paralela encontrou em alguns outros pontos da cidade um local

onde é possível recriar seu ambiente, construindo uma espécie de extensão da Casa e

unindo o seu público em diferentes locais. É o exemplo do Marechal Rock Bar, que tem

sido palco de diversos eventos assinados pela Paralela e pela Honey Bomb Records,

entre outros coletivos locais. O bar, conhecido por seus frequentadores apenas como

“Marechal”, possui características que aparentam conectar-se com as da Paralela. Por

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ser um bar voltado a eventos de cunho independente, o bar já possui um estigma de

underground, fugindo da simples característica de casa noturna e tornando-se um local

importante para a construção da cena musical local. É possível perceber tal característica

através de seu ambiente e dos eventos que lá ocorrem. Atualmente, o Marechal recebe

uma média de dois a três eventos mensais realizados em parceria com a Paralela e seus

coletivos pertencentes. A partir disso, é possível perceber a Paralela como território

simbólico, descentralizando-se de seu próprio espaço fisico e atuando como elemento

essencial no incentivo de uma movimentação cultural na cidade, além de sua atuação no

papel de fundadora de múltiplas socialidade, incentivando ajuntamentos emocionais e

fortalecendo a construção de uma tribo.

Figura 8 – Marechal Rock Bar

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

Figura 9 – Show do carioca Lê Almeida no Marechal Rock Bar

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

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Nas imagens abaixo é possível perceber a característica de colaboração presente

na construção da cena independente local. Um evento criado pela Honey Bomb Records

em parceria com o Marechal Rock Bar, denonimado “Colmeia Sessions”, aconteceria na

noite de quarta-feira, na véspera de feriado. O evento estava sendo divulgado há uma

média de duas semanas e contaria com uma banda local pertencente do selo Honey

Bomb Records, além de uma banda de Porto Alegre e outra do Rio de Janeiro. Horas

antes do evento a Paralela publicou um evento relâmpago em sua página do Facebook,

divulgando uma “pré-festa” nas dependências da Casa. Além disso, a presença na

Paralela garantiria um desconto na entrada do evento, que ocorrreria logo em seguida no

Marechal Rock Bar. Tal acontecimento demonstra também a importância do espaço no

processo de formação das tribos e na construção de suas identidades, onde a valorização

do mesmo através da arte, da música, do encontro, representam a superação do

indivíduo através de um ambiente coletivo.

Figura 10 – Print do evento “Colmeia Sessions”

Fonte: Internet (facebook.com/events/403785076475980)

Figura 11 – Print do evento “Pré Colmeia Sessions”

Fonte: Internet (facebook.com/events/386041754935812

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Desta forma, assumindo as diversas etapas da socialização através de uma

organização flexível, a Paralela parece conseguir se manter dentro do ambiente

contemporâneo. Outro aspecto importante dentro do desenvolvimento da Casa é a

possibilidade de construção de um público que a acompanha fortemente nas redes,

dando atenção aos pequenos detalhes de seu ambientes, reforçando a ideia de Maffesoli

quanto à morfologia das redes. Segundo o autor, esta morfologia se dá através dos

elementos, sejam eles os mais minúsculos possíveis, criando toda a atmosfera de

interação de um grupo. Ou seja, compreende-se que uma identidade compartilhada

dentro da pluralidade da cada um no contexto global vem sendo experenciada dentro da

Paralela, que já possui seus próprios códigos, significados e símbolos.

De bazares, shows de bandas autorais, festas temáticas e até bloco de carnaval, a Paralela se tornou um espaço cativo a que todos concebem com muito carinho; a cidade tinha necessidade de um espaço assim, que pudesse interagir de forma mais espontânea com o artista e com o público (BRENO DALLAS, 29, PRODUTOR CULTURAL, IDEALIZADOR DO COLETIVO MANIFESTASOL).

Castells (1999) conceitua a identidade como sendo um processo de construção

de significado que tem sua base nos atributos culturais. Percebe-se na Paralela a

presença da mais importante forma de identidade apontada pelo autor: a identidade de

resistência. Tal identidade surge justamente em contraponto a processos dominantes

estabelecidos, sendo os processos de hegemonização fatores decisivos na constituição

de grupos que, por sua vez, são extremamente importantes na construção social. A

identidade de resistência auxilia a formação de grupos e estes, por sua vez, formam uma

espécie de resistência coletiva. Este processo evidencia-se na Paralela, onde tal

identidade é construída a partir do compartilhamento de determinados valores, atuando

no papel de refúgio para seus indivíduos pertencentes. A identidade torna-se de extrema

importância pois define mais do que simples funções ao indivíduo, organizando

significados para suas ações. Ainda segundo Castells, o significado é o nível de

identificação que cada indivíduo confere para a finalidade de suas ações. Tal

identificação evidencia-se na Paralela, onde seus indivíduos pertencentes mostram-se

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conectados pelo mesmo ideal de fomentação cultural através da vivência compartilhada

e da experiência prazerosa.

A Paralela incentivou muitas outras iniciativas parecidas ao seu redor. Talvez não no formato de uma casa, mas em perceber que pode-se criar aquilo que sente-se falta. Um espaço assim não existia antes na cidade de Caxias do Sul, e se existia era do conhecimento de um público bem menor. Como dito anteriormente, a Casa serve como um ponto de encontro entre diversas cenas, fazendo uma nova cena surgir a partir desta mistura. Depois que a Casa surgiu, pôde-se notar uma fluidez maior na cena musical, nas exposições e feiras, e em todo cenário underground. A casa já foi sede para o encontro de muitos grupos e isso tem um diferencial muito importante. É um espaço ímpar na cidade, que parece ainda ter muito a realizar (JONAS BUSTINCE, 28, IDEALIZADOR DO SELO HONEY BOMB RECORDS E INTEGRANTE DA BANDA LOCAL SLOW BRICKER).

Do outro lado da identidade de resistência está a identidade legitimadora. Esta,

por sua vez, é introduzida por instituições dominantes da sociedade, tais como veículos

de massa, partidos políticos, igreja, entre outros. Em contraponto a estes, os indivíduos

pertencentes e participantes da Casa parecem unir-se também em busca de processos

de resistência frente a instituições dominantes, gerando um terceiro tipo de identidade,

denonimada de identidade de projetos (CASTELLS, 1999). A partir da identidade de

projetos torna-se possível compreender um pouco mais o significado da Paralela. Através

de tal identidade, determinado grupo utiliza-se das ferramentas que estão ao seu alcance

para modificar suas posições sociais bem como para alterar estruturas sociais.

Este aspecto é ratificado por Hall (2004), que percebe nos processos hegemônicos

o automático surgimento da diferença, do oposto. Este seria o aspecto inesperado sofrido

por instituições de poder: a emergência de tendências alternativas, independentes, auto-

suficientes. Sendo assim, a Paralela, no papel de reinvindicação cultural, consegue

avançar sobre já tradicionais fragmentações do multiculturalismo (gênero, raça) e

proporcionar novas formatações sociais. Partindo do entendimento que grande parte da

população jovem constróe sua identidade através de movimentos culturais e redes de

comunicação, percebe-se a importância da Paralela em tal construção, que possibilita

um local onde este processo todo pode ocorrer. Os eventos que ocorrem na Paralela

mostram-se como articuladores de identidades culturais alternativas. Através da arte e,

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principalmente, da música, a Casa consegue centralizar o desejo de protagonismo do

jovem em um mesmo território, onde é possível que tal desejo seja compartilhado entre

mais indivíduos. Estes, por sua vez, ao identificarem-se com a finalidade das ações do

grupo, constituem uma ação cultural, baseada no espaço de produção e apreciação da

música e outras formas de arte.

Uma cena não é só um conjunto de boas bandas, mas uma atitude comum inconsciente em relação à música e consciente em relação ao método, à atitude (RAFAEL FRONER, 29, MÚSICO, INTEGRANTE DA BANDA LOCAL CUSCOBAYO).

Através das ferramentas disponíveis atualmente, a cena independente parece

buscar a participação e acúmulo de poder simbólico dentro do campo musical, da

indústria cultural e da vivência social. A autonomia presente na cena torna-se muito

importante neste cenário, pois possibilita que a criatividade, versatilidade e essência dos

artistas seja sempre reciclada, abrangendo limites até mesmo fora do campo musical.

É importante citar o campo da criatividade pois, na maioria das vezes, artistas

independentes utilizam-se de sua obra como um meio para transmitir uma mensagem

desejada, uma ideologia. Tal mensagem abrange desde o caráter da produção musical

à confecção do disco e à performance ao vivo. Esta última, tende a ocupar um lugar de

destaque dentro da recente cena musical caxiense. Desta maneira, os shows realizados

na Casa Paralela são uma forma de expressão de toda identidade do independente, do

underground, da mensagem pessoal despreendida de instituições dominantes e

normativas. As performances ao vivo, segundo Jason Toynbee (2000), inserem-se no

“processo de criação musical como um dos mecanismos à disposição dos artistas em

sua luta para minimizar a distância que os separa do público (distância esta existente

mesmo nos ambientes mais intimistas)” (TOYNBEE, 2000 apud BENEVIDES, 2008, p.

317-318).

Uma cena pode ser definida como uma comunidade de significados superprodutiva; onde muito mais informação semiótica é produzida do que pode ser racionalmente analisada. Tais cenas retém uma condição [...]

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capaz de mover sobre a mera expressão de valores culturais e desenvolvimento genérico significativos localmente – isto é, para além da permuta estilística – em direção a uma interrogação das estruturas dominantes de identificação e do potencial de transformação cultural. O traço constitutivo de cenas locais de música e de performance ao vivo é a sua exposição evidente de disrupção semiótica, sua potencialmente perigosa superprodução e troca de signos musicalizados da identidade e da comunidade. Através desta exposição de mais do que pode ser compreendido, encorajando a radical re-combinação de elementos humanos em novas estruturas de identificação, as cenas locais [...] produzem transformações momentâneas no interior dos significados culturais dominantes (SHANK, 1994, p. 22 apud BENEVIDES, 2008, p. 318).

Uma grande troca entre a atuação do artista e a resposta física do público

visivelmente se cria, gerando uma interação física muito poderosa de signos musicais e

indivíduos, que só é possível através da experiência compartilhada. Desta forma, é

possível o surgimento de diversos níveis de identificação e de comunidade, de

pertecimento a determinado local, tempo, momento histórico. A cena formada na Casa

Paralela acaba tornando-se uma espécie de troca de vivências, informações, contatos,

ações, estilos, ideologias, mensagens, desejos e muito mais. A identificação com a

finalidade das ações do grupo, mencionada por Castells, é um dos prováveis fatores que

faz com que a cena perdure no tempo e espaço, além do senso de identificação e do

nível de comprometimento dos participantes em seguir produzindo e participando das

experiências consideradas prazerosas.

De acordo com Ferrolho, tornar a Casa Paralela uma referência de produção cultural se baseia em não haver um lance segregatório entre público e artistas. O público que consome arte também é inserido no processo transformador – mais do que isso, esse canal aberto é o que sustenta a iniciativa através do apoio e da divulgação (MINIFULL.COM.BR/CASA-PARALELA – ACESSADO EM 04/06/2015 ÀS 20H).

A Casa Paralela aparenta ter criado um público ativo, onde “os espectadores se

tornam fãs, os fãs se tornam músicos, os músicos são sempre fãs, todos construíndo os

não-objetos de identificações através de suas performances como sujeitos da

enunciação” (SHANK, 1994 apud BENEVIDES, 2008, p. 322). Dentro da cena

independente, a música tende a ser o fator essencial de conexão entre grupos e

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indivíduos. É através do papel da música nos processos de criação de identidade que a

cena independente torna-se um local onde os elementos de identificação convergem

entre si. A Casa apresenta uma série de possibilidades em níveis criativos e musicais,

sendo o espaço onde seus indivíduos pertencentes podem comunicar-se com mais força.

O senso de identificação e pertencimento é expressado através das inúmeras

apresentações artísticas e musicais que ocorrem dentro da Casa, através de seus

gêneros musicais e respectivas simbologias.

Figura 12 – Show na Casa Paralela (2)

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

Figura 13 – Show na Casa Paralela (3)

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

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Dentre os diversos legados que a Casa aparenta estar deixando para a música

local, está também o intercâmbio cultural e artístico. É através de tal intercâmbio que todo

um circuito independente de trocas se origina. A partir deste circuito, é possível que o

artista encontre sustentabilidade – a partir da rotatividade de apresentações ao vivo e do

giro de seus produtos – e que o público possua um local onde pode criar sua identidade

baseada em um grupo. Desta forma, as poucos, tornam-se perceptíveis mudanças mais

profundas em níveis culturais e sociais, sustentados por toda mudança na forma de se

consumir música e experenciá-las.

Jonas Bender Bustince, idealizador da Honey Bomb Records, comentou sobre o papel do selo nessa história. “A Honey Bomb Records surgiu na metade de 2013, mas antes disso a Slow Bricker e a Catavento já tinham tocado na Casa Paralela. Saí de um emprego para me dedicar inteiramente a promover nossas bandas, e montei o QG ali.” E todo esse esforço valeu a pena: a Catavento já foi notícia em site nacional e gringo, e participou de festivais em São Paulo, Goiânia e Curitiba. “Com a Paralela podemos promover intercâmbios, receber gente de fora, fazer reuniões. Tudo ali aproxima, é realmente um ponto de criação coletiva pra nossa geração de artistas independentes.” (MINIFULL.COM.BR/CASA-PARALELA – ACESSADO EM 14/04/2015 ÀS 18H30).

É interessante ressaltar que o selo Honey Bomb Records surgiu posteriormente

ao surgimento da Paralela e, aparentemente, a existência da Casa foi a mola propulsora

deste surgimento. Isso se deve ao aparente fato de que a Paralela conseguiu conectar

artistas que não se comunicavam anteriormente e, a partir do momento que tais artistas

se uniram, fez-se necessário um selo musical que pudesse oficializar uma espécie de

união entre os mesmos. Hoje, é através da Casa que o selo consegue facilitar

negociações. A Paralela parece tornar-se um grande facilitador do intercâmbio de bandas

realizado pelo selo. O intercâmbio funciona assim: o selo comunica-se com determinada

banda de outro local do país para que esta venha apresentar seu show na cidade e, em

troca, uma das bandas da cidade dirige-se à este outro local. Assim, a cena consegue

continuar efervescente em ambos os lugares. Esta troca acaba sendo vantajosa para

ambos os lados. É possível que o artista viaje e apresente sua obra em novos territórios,

ao mesmo tempo em que fortalece e movimenta a cena de sua própria cidade com um

novo artista. A própria Paralela vinha criando tais tipos de vínculos antes mesmo do selo

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existir. Nesta troca, o local torna-se de extrema importância. Com a existência da

Paralela, a negociação tende a torna-se muito mais fácil. O local já existe. Não é preciso

que seus integrantes negociem com outra casa de shows ou bar. Não é necessário dividir

lucros com um bar que, na maioria das vezes, não possui um público próprio, tornando o

evento menos abrangente. O show acontece nas dependências da Casa, que conta com

uma estrutura envolvendo palco e sistema de som. O ambiente intimista de “casa”

também mostra-se como um fator muito importante neste momento. Além disso, e o que

aparenta ser mais importante, a Casa conta com um público dedicado a conhecer novas

sonoridades, entusiasta, que irá interagir de forma muito mais impactante com o artista.

Em novembro de 2014, a banda Winter, de Los Angeles - parceira do selo Honey

Bomb Records - em uma pequena turnê pelo Brasil, envolvendo as cidade de São Paulo,

Curitiba e Porto Alegre, passou pela cidade de Caxias. O show foi realizado na Casa

Paralela, que também serviu de estadia para os integrantes da banda durante os dois

dias que permaneceram na cidade. A banda Winter é composta por Samira Winter –

nascida no Brasil e criada nos Estados Unidos – e outros três integrantes, todos norte-

americanos. A maioria das pessoas que atenderam ao show não conheciam a banda

antes de seus sons serem divulgados nos territórios virtuais da Paralela, Honey Bomb,

Manifestasol, Noia Coletiva, entre outros. Porém, no dia do show a Casa estava lotada e

o público presente aparentava estar em plena sintonia com o som da banda Winter, o

que acabou gerando um processo de identificação muito forte por parte do artista, do

público e da própria Casa Paralela. Através de acontecimentos como este, a Paralela

demonstra estar conectada com o mundo, ou seja, pensando globalmente, ao mesmo

tempo em que produz profundas transformações estruturais na sua cidade. Sendo assim,

acaba trazendo toda a modernidade da rede de volta ao estágio inicial de acontecimento,

agrupamento e troca de experiências.

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Figura 14 – Show da banda Winter na Casa Paralela

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

Verifica-se que a Paralela conecta outros coletivos, artistas, pequenos produtores

e novas iniciativas, possibilitando um espaço físico onde a “cena” pode compartilhar

experiências e, o mais importante, atuar. A Casa oferece um lugar que bares e casas de

evento costumam não oferecer, um espaço mutante e maleável, praticamente gratuito. É

possível perceber um grande estímulo de produzir arte através de seu ambiente, isso

parece ajudar seus habitantes e adeptos a acreditarem no que estão fazendo, a

perceberem que tais ações podem difundir-se cada vez mais, influenciando a própria

cena e outras mais – proporcionando mudanças culturais, sociais e políticas.

O ambiente é sempre muito aberto e de aceitação da pluralidade das pessoas, isso serve pra quebrar barreiras de hesitação que as vezes impede muita gente de se expressar (LEONARDO FERROLHO, 26, UM DOS IDEALIZADORES DA PARALELA, IDEALIZADOR DO COLETIVO TÉDIO E INTEGRANTE DA BANDA LOCAL DONES PRIMATA).

É importante ressaltar que além do caráter de espaço físico, a Paralela mostra-se

como sendo um ambiente virtual. É através de todo impulso da cibercultura que torna-se

possível o acesso à referências e meios de produção de maneira avançada. Utilizando-

se da técnica, descrita por Levy, o ambiente da Paralela é composto de indivíduos que

utilizam-se dos meios virtuais para fortalecer o espaço físico, trazendo manifestações

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artísticas para o espaço urbano, agindo de forma horizontal e dialogando com a cidade e

o mundo.

Os indivíduos envolvidos com a Casa – em sua grande maioria – utilizam-se das

ferramentas de cibercultura de maneira a facilitar suas atividades diárias e seus objetivos

artísticos, profissionais e sociais. Ou seja, utiliza-se da constante evolução tecnológica –

entendida por Levy (1999) como uma técnica criada dentro de determinada sociedade

que, posteriormente, torna-se condicionante dos estilos de vida, criando até mesmos

diferentes níveis sociais - para interagir com a cidade e o mundo, possibilitando novas

formas de organização social e, paralelamente, interagindo com o espaço urbano.

A Paralela, de certo modo, é também um espaço virtual, pois todos os laços formados no espaço físico se transportam pro virtual, e vice-e-versa. Aí começa também uma troca de conteúdo e informação muito importante para a formação de uma identidade cultural e musical de um lugar (EDUARDO PANOZZO, 22, ESTUDANTE DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA, INTEGRANTE DO SELO HONEY BOMB RECORDS E DA BANDA LOCAL CATAVENTO).

Conforme abordado por Levy (1999), a cultura digital exerce grande efeitos

perante a cultura e a própria arte, no momento em que transforma a obra da rede em

uma obra infinitamente inacaba, possuindo caráter altamente desconstrutivo e maleável.

É possível perceber tais interações no ambiente virtual e físico da Paralela, nas próprias

relações de seus indivíduos. Isso se deve ao fato de que o público da Casa compreende

que é possível fazer parte da obra que se aprecia, modificá-la, inserir-se e a tornar maior,

criando novos territórios culturais e artísticos. Decorrente disso, elementos como a

música, literatura e arte em geral encontraram novas configurações sociais através da

rede. Tais configurações sugerem a aproximação entre emissor e receptor. Ou seja, entre

artista e público. O encurtamento da distância foi possível através da rede – onde a obra

tornou-se muito mais maleável e passível de adpatações – e refletiu na sociedade

contemporânea que, por sua vez, tem percebido a arte como uma construção coletiva.

Desta forma, ao modificá-la, desconstruí-la e torná-la maior, grupos e subgrupos

constróem um novo território artístico e cultural.

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É possível perceber que a Casa Paralela, bem como seus coletivos e bandas

pertencentes, constantemente produzem matéria-prima, no sentindo de que os eventos

realizados e levados ao público nunca são apenas o produto final. É a partir de tais

eventos que artistas da região expõem seus trabalhos – roupas feitas a mão, acessórios,

artesanato, culinária, fotografia, material audiovisiual em geral, entre outros – além de

comunicarem-se uns com os outros, procurando manter relações e desvendar processos

por trás de cada obra. Dessa forma, a Paralela mostra-se como um aglutinador de

diferentes artistas, onde cada um pode compreender a construção de determinada obra,

além de acompanhar sua desenvoltura de perto.

A Casa Paralela, cada vez mais, é uma história contada por diversos autores,

tornando-se uma experiência conjunta de seus indivíduos e constituindo uma memória

coletiva local. O ambiente da Casa, segundo seus idealizadores, procura oferecer tal

aspecto de apropriação, no sentido de que todos seus frequentadores devem sentir-se

livres para modificar e enriquecer o que já está acontecendo. Isto parece tornar-se

realidade. A Casa tem recebido um perceptível aumento no número de artistas e

colaboradores desde o seu início. Muitos destes novos colaboradores, expositores,

artistas, entre outros, começaram a frequentar a Casa no papel de público, talvez sem

perceber a importância de suas presenças no processo de construção da Paralela.

Usando a metáfora da construção, dá pra se dizer que a Paralela é a argamassa que serve para assentar e ligar diferentes tipos de tijolos, além de fornecer alguns tijolos ela própria. Trabalho com música autoral desde 2003. Nunca tinha visto esse espírito coletivo, contagiante, “faça-você-mesmo”, na cidade. A Paralela sabe se comunicar muito bem com seu público e também formá-lo. Ela está em sintonia com os novos tempos (MARCELO PERINI MOOJEN, 29, ARQUITETO E URBANISTA, INTEGRANTE DA BANDA LOCAL INDEPENDENTE MINDGARDEN).

É no momento em que a arte direciona-se ao acontecimento que torna-se possível

perceber as subjetividades do indivíduo, fortalecendo a comunicação e a construção da

memória sensível de cada um enquanto indivíduo, afirmando a ideia de grupo a partir das

experiências compartilhadas. A cibercultura, ao penetrar o território cultural e artístico,

necessita levar o que há de mais moderno ao formato original de ato coletivo (LEVY,

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1994). É também devido a este fato que a ocupação do espaço físico torna-se o

complemento necessário da arte contemporânea (LEMOS, 2004).

Através da explosão midiática causada pela cibercultura, vive-se o que Lemos

(2004) define como “estrutura pós-massiva”, sendo aquela que é posterior às estruturas

de massa, ou seja, que possibilita que a informação desloque de maneira muito rápida e

com muito menos controle que antigamente. Entende-se que a Paralela utiliza-se de tais

ferramentas, reforçando o novo formato do “faça-você-mesmo”, totalmente baseado nas

novas ferramentas que a tecnologia disponibiliza. Pérez, ao mencionar a Web 2.0, afirma

que esta tornou-se mais do que uma tecnologia, vindo a se tornar uma atitude, baseada

na interatividade e colaboração de seus usuários (PÉREZ, 2010). Tais elementos

transpassam a barreira entre o físico e o virtual, reformulando a maneira com que se dão

as relações sociais. É através de um ambiente extremamente compartilhado e com altos

níves de troca que os jovens contemporâneos buscam o seu espaço privado, antes

relacionado a ferramentas bem menos interativas: televisão, revistas. Durante tal

processo é que os usuários da Web 2.0 tornam-se agentes de prescrição musical,

formando grupos sociais através de gostos musicais e de toda indumentária que

acompanha determinados gêneros. Esta é uma das ferramentas visivelmente utilizadas

pelos indivíduos pertecentes da Casa, que demonstram utilizar-se de todo pluralismo

cultural que os rodeia para inserir-se ativamente na cibercultura, a fim de criar novos

territórios e novas possibilidades culturais através do espaço urbano.

Percebo o fortalecimento da cultura local, apoio e interligação cada vez maiores de formas de produzir e difundir cultura na cidade, além do uso cada vez mais inteligente da internet por parte de seus colaboradores (LUCAS LIZOT, 26, DESIGNER GRÁFICO E INTEGRANTE DA BANDA LOCAL SLOW BRICKER).

Conforme mencionado anteriormente, a cultura independente teve o seu auge no

final da década de 1970, quando integrantes do movimento punk perceberam que

poderiam se utilizar de meios próprios para criar um circuito alternativo e viabilizar sua

arte. A ideologia que, no início, era completamente voltada aos ideais da contracultura,

ou seja, negando os processos da indústria musical de uma forma até filosófica, baseada

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na completa indendência artística e proteção da livre criatividade, foi aos poucos

transformando-se. A necessidade de permanecer livre de barreiras criativas e

interferências estéticas continua sendo um fator essencial até os dias de hoje, a diferença

é que tais circuitos independentes como a Paralela parecem ter percebido na

aproximação com a profissionalização uma forma de obter poder sobre o mercado

musical, podendo fazer com que sua obra circulasse de forma mais abrangente.

A Paralela demonstra utilizar-se de tais processos, buscando democratizar a

produção musical e cultural ao invés de negar o mercado e suas ferramentas. A Casa

busca consolidar-se a partir de seus próprios ideais, para isso, busca diminuir a distânca

entre os produtos oferecidos pela indústria de massa e os cenários independentes, em

questão de qualidade. Aproximando-se de fornecedores, desde a confecção de

camisetas à equipamentos de som, e unindo-se a outros coletivos culturais da cidade, a

Paralela consegue estar participando de forma ativa dentro da mudança cultural que a

cidade vem sofrendo nos últimos anos.

Toda esta movimentação é fruto da constante profissionalização que os envolvidos

com a Casa buscam trazer a si mesmos e a seus projetos. Na faixa etária entre 22 e 29

anos, percebe-se que as principais motivações por trás de tal postura está em poder fazer

aquilo que se tem paixão, ou seja, a satisfação pessoal. Assim como na abordagem da

cultura Pro-Am, trazidza por Leadbeat & Miller (2004), a Paralela parece fazer parte da

nova classe de amadores na contemporaneidade. Isso se deve ao fato de estar cada vez

mais atenta às inovações, podendo assim criar um nova relação entre o indivíduo e o

trabalho, uma relação mais voltada ao alcance de objetivos pessoais. Porém, o que

percebe-se na Casa é que tais objetivos pessoais são compartilhados, gerando

organizações que tendem a auxiliar-se naturalmente, modificando até mesmo estruturas

democráticas e sociais.

A diversão se mistura com o comprometimento de querer uma vida mais ativa e presente, formando uma tribo de inconformados com a mesmice, capaz de revolucionar a cultura de onde passam (LEONARDO FRIZZO DE LUCENA, 22, ESTUDANTE DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA, INTEGRANTE DO SELO HONEY BOMB RECORDS E DAS BANDAS LOCAIS CATAVENTO E DESCARTES).

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Os integrantes da Casa procuram seguir uma espécie de rotina, por mais que esta

seja totalmente flexível. Porém, o fato de haver muita demanda de trabalho faz com que

o fluxo de trabalho seja diário, durante os períodos da manhã e parte da tarde. A renda

dos projetos atuais acaba sendo destinada aos próximos projetos, bem como a

arrecadação da Casa, que serve para pagar o aluguel da mesma e continuar realizando

eventos. Assim como na cultura Pro-Am, muitas vezes a renda gerada torna-se suficiente

apenas para continuação de projetos. Devido a essa incessante busca por

sustentabilidade, os idealizadores da Paralela entendem a necessidade de pensar a

situação atual que envolve a cultura e sua legitimação dentro da contemporaneidade.

Segundo Vicente, os principais desafios estão ligados a gestão e a viabilidade. Ou seja,

como desenvolver e organizar sistemas colaborativos e como captar recursos para essas

iniciativas. Atualmente, a Paralela busca a profissionalização e a legalização através da

formalização de uma Associação Cultural. Este, talvez, seja o maior desafio das cenas

independente e da Casa Paralela: alcançar uma sustentabilidade artística através de uma

estabilidade econômica.

No papel de idealizador, Vicente compreende que o formato da Paralela está cada

vez mais consolidado na esfera de "plataforma", criando uma identidade coletiva dentro

do cenário cultural. Para Vicente, além da abordagem artística, a Casa possui um outro

papel, relacionado ao eixo econômico. Isso porque a visível consolidação da Paralela

criou um aparente cenário para novos empreendedores com foco no desenvolvimento de

novas ideias, conferindo a resposta de que é possível criar novos modelos de negócios

a partir de iniciativas independentes e da colaboração coletiva. As imagens abaixo, feitas

no jardim da Paralela, ilustram o senso de coletividade presente na cena local, onde

diversos coletivos culturais da cidade mostram-se cada vez mais unidos em busca de

uma movimentação do cenário artístico regional.

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Figura 15 – Reportagem no Jornal Pioneiro

Fonte: Jornal Pioneiro (04/01/2015)

Figura 16 – Reportagem no Jornal Pioneiro (2)

Fonte: Jornal Pioneiro (04/01/2015)

Um aspecto interessante está em perceber a vontade do grupo da Casa de serem

tratados como profissionais. Segundo Leadbeat & Miller (2004), Pro-Ams normalmente

possuem uma segunda emprego e/ou carreira, que pode ser deixada de lado ou não,

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dependendo das circustâncias. Tais funções podem ser a maior fonte de renda do

indivíduo, porém, são normalmente consideradas como segundas funções ou empregos

paralelos até que seja possível alcançar outros níveis dentro do planejamento Pro-Am. É

interessante notar que os participantes ativos da Casa, dos coletivos Tédio, Honey Bomb

Records e Manifestasol, largaram seus empregos gradativamente dentro dos úlltimos

dois anos. Alguns ainda deixaram seus respectivos empregos nos seis meses que

precederam esta pesquisa. Isto tende a comprovar e validar o comprometimento de tais

“profissionais amadores”, além de ser uma pista para entender que o esforço em pról da

cena pode estar sendo recompensado para o grupo atuante.

A obra de Leadbeat & Miller, que traz na capa a frase “como entusiastas estão

mudando nossa sociedade”, também aborda o fato de, em muitas circustâncias, a linha

entre profissionais e amadores ser muito tênue. Isso porque muitas profissões exercidas

diariamente, tais como músico, não pedem necessariamente um diploma. Seria esta linha

então desenhada pelo nível de sucesso alcançado? Por questões financeiras? São

questões pertinentes a serem abordadas na atual sociedade, como um todo. Na Paralela,

aonde o tipo de atividade é voltada a cultura e arte, esta linha entre profissional e amador

é ainda mais subjetiva. Da mesma forma, a fronteira entre majors e indies encontra-se

cada vez mais dividida, onde o circuito independente torna-se uma espécie de inovador

cultural e tecnológico, agindo como um lançador de tendências para a grande indústria

(MARCHI, 2006).

Percebe-se que todo esforço para movimentar a cultura gera um capital cultural –

a habilidade de indivíduos em participar de ativiades culturais e assim formar grupos e

subgrupos – remetendo a uma construção da identidade de determinada sociedade. A

cultura Pro-Am está muito relacionada com a formação de tais grupos devido a

socialização natural que envolve tais tarefas, tornando o engajamento em atividades Pro-

Am uma atividade muito difícil de se realizar sozinho (LEADBEATER & MILLER, 2004).

Percebe-se o entendimento de tais valores por parte da Casa, de forma até empírica,

tendo em vista seu constante viés através da colaboração e abertura de “espaço para

coletivos que não têm espaço”.

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Uma semana de atividades, denominada de “Semanóia”, envolvendo diversos

locais público da cidade, contemplando exposições e performances de diversos artistas,

além da exposição de curta-metragens, ocorreu em maio de 2014. Segundo Vicente, um

dos idealizadores da Casa, este tipo de atividade tem proporcionado diversas formas de

interação entre artistas e coletivos locais, assim como tem integrado indivíduos e os

familiarizado com obras de artistas locais e da região. Dessa forma, através da utilização

do espaço urbano, reforça-se a busca por protagonismo e legitimação de uma cena

independente, através da valorização do encontro. Na figura abaixo, também é posssível

peceber a realização conjunta de alguns dos coletivos anteriormente citados, além do

vínculo e do apoio de outros coletivos artísticos locais.

Figura 17 – Flyer da “Semanóia Paralela”

Fonte: Fan Page da Noia Coletiva no Facebook (facebook.com/noiacoletiva)

De tais processos surge um visível aprendizado, apropriamento e transmissão de

novas técnicas, além do reconhecimento de terceiros que, por sua vez, podem tanto

agregar-se como inspirar-se nestes tipos de processo. A Casa aparenta estar deixando

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uma espécie de legado positivo entre os que a conhecem, a visualizam e a frequentam.

Este tipo de trabalho tende, portanto, tende a caminhar aos mesmos passos da indústria

musical, cada vez mais desverticalizada e percendo na tecnologia uma fonte de

aproximação com a qualidade. Mais do que isso, tende a proporcionar novos caminhos

para seus indivíduos, criando vínculos e grupos que funcionam inerentes à instituições

sociais dominantes.

O aumento significativo dos eventos culturais gratuitos, o incentivo à arte (trazido pelo sucesso de público/repercussão de muitos artistas vinculados a casa) e tudo mais que acontece na Casa servem de exemplo para organizações culturais mais formalizadas e governamentais, que acabam absorvendo conhecimentos com o meio independente (DEMYTRIUS MENEGHETTI DE PIERI, 22, ESTUDANTE DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA, DIRETOR DE ARTE E INTEGRANTE DA BANDA LOCAL PSYCHIC FAIR).

A importância do local fisico é visivelmente valorizada na cena que envolve a

Paralela. Ao serem utilizados, espaços ganham novos significados e ajudam a construir

a identidade de seus indivíduos, bem como participam de um processo de legitimação

cultural e construção de sentido. Indivíduos de diferentes coletivos culturais da cidade

unem-se para apreciar e divulgar os eventos da cidade, o que demonstra um forte senso

de coletividade presenta na construção da cena. Sendo assim, a Paralela aparenta refletir

os traços multiculturais da cidade, ao mesmo tempo em que possibilita vínculos afetivos

através da relação intimista entre indivíduos e o espaço.

Sendo a Paralela uma materialização do futuro que uma vez imaginamos para a cultura independente, o que o futuro reserva para essa galera? “Queremos levar nossas produções cada vez mais longe, encontrar mais pessoas que se identifiquem com nosso jeito de enxergar o mundo, realizar trocas interpessoais, alimentar a cultura, a diversidade e a humanidade, que às vezes, no corre da cidade ficam esquecidas”. Se o corre da cidade deixa de canto a criatividade que nos fez chegar onde estamos, o corre da Paralela resgata o que existe de mais bonito e inspirador no processo mágico da arte sincera, despretensiosa e feita com o coração pra tocar aqueles que serão responsáveis pelo futuro que imaginamos agora (MINIFULL.COM.BR/CASA-PARALELA – ACESSADO EM 05/06/2015 ÀS 19H15).

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A Paralela mostra-se como marca da identidade de um grupo que, através do do

encontro e da participação ativa, busca novas formas de utilizar o espaço urbano. Desta

forma, a frequência de eventos realizados na Casa ou pela Casa encaixam-se com os

conceitos da necessidade de utilizar-se do espaço físico. Ou seja, por mais que a cultura

digital tenha possibilitado um alcance extremamente amplo no sentido de comunicação

e informação, os indivíduos pertencentes da Pararela permanecem utilizando-se do

encontro presencial a fim de reforçar um movimento. Em muitas rodas de conversa nas

dependências da Casa, até mesmo nos dias de evento, percebe-se que a ideia que

circula entre os indivíduos é a da coletividade. Em diversos momentos é possível se ouvir

conversas a respeito de como é importante unir-se em busca de um mesmo objetivo, que

o que está acontecendo, em questão de movimentação cultural, está deixando um legado

para a cidade, ou ainda que a Paralela não pode acabar.

As novas formas de consumo de música têm auxiliado o setor independente a

firmar-se e a construir seu público próprio. Porém, como citado por autores como Lemos

(2004) e Levy (2005), bem como Maffesoli (1998), Castells (1999) e Straw (2001), o

espaço físico onde a cena pode comunicar-se de maneira presencial, a fim de

compartilhar experiências e unir-se em busca da mesma finalidade de ações, torna-se

essencial na contemporaneidade. Portanto, é através da construção de tais grupos e

suas identidades, alicerçados no poder de voz concedido pela cibercultura, e em

constante processo de legitimação cultural perante às grandes indústrias culturais e

instituições dominantes, que o setor independente – cada vez mais profissionalizado –

busca constituir seu próprio circuito, a fim de alcançar sustentabilidade e fazer com que

as relações interpessoais surgidas durante este processo fortaleçam-se cada vez mais.

A Casa Paralela parecer ser o cenário ideal para tudo isso.

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5. CONCLUSÕES

Chegando ao final deste estudo pode-se perceber que a existência de padrões

hegemônicos na contemporaneidade ressalta a ambiguidade da atual diversidade

cultural. Do interior de uma vigente padronização, sustentada pela indústria e mída de

massa, surgem grupos que opõem-se à instituições dominantes, criando seus próprios

territórios a partir de suas próprias ferramentas. Através da atual cultura digital, novos

fenômenos comunicacionais ocorrem. A experiência da rede torna-se mais do que um

simples contato com a tecnologia para tornar-se parte de uma atitude social, implicando

diretamente na forma com que as pessoas comunicam-se na contemporaneidade.

É dessa maneira que o setor independente consegue se comunicar com seu

público, constituindo novos territórios a partir dos impulsos da cibercultura. Ao mesmo

tempo, é necessário que o setor independente utilize-se de toda pluralidade da rede para

inserir-se de forma ativa no cenário urbano. Sendo assim, torna-se possível a criação de

tribos duradouras, baseadas em uma identidade compartilhada que, por sua vez, origina-

se de fatores como a experiência do vivido comum, o afeto e a identificação com a

finalidade das ações do grupo.

A música é uma ferramenta de grande expressão dentro da cultura independente.

Foi através da música que a cultura independente encontrou uma forma de conectar e

consolidar grupos ao longo da história. Historicamente presente na vida das pessoas, a

música passa por uma fase aonde sua constante digitalização transformou o jeito com

que é consumida, tanto no âmbito econômico quanto no social. Tal digitalização alterou

as formas de consumo de arte de um modo geral, tornando a música uma obra passível

de infinitas reconstruções e, assim, aproximando o emissor e recepetor cada vez mais. A

cultura digital mostra-se favorável ao setor independente e aumenta suas possibilidades

de contato com o público. Ao mesmo tempo, torna-se desafiadora para qualquer artista,

que vivencia baixos níveis de engajamento por parte do público.

A Casa Paralela, que surgiu para viabilizar um ambiente aonde a música pudesse

ser realizada e contemplada, acabou tornando-se o cenário ideal para o fortalecimento

de toda uma cena musical local. Através de seu território físico, virtual e simbólico, a

Paralela conseguiu unir indivíduos e grupos que não comunicavam-se anteriormente.

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Sendo assim, tais indivíduos encontraram um lugar aonde podem transformar-se em um

único grupo. Através do encontro presencial e da experiência compartilhada, os

indivíduos pertencentes da Casa Paralelela acabaram tornando-se uma tribo baseda na

identidade coletiva. Torna-se importante ressaltar que na Paralela tal identidade coletiva

não resulta em uma padronização de indivíduos mas sim em uma coletividade sustentada

através da pluralidade cultural e do estímulo à produção artística.

A cena musical que vem concentrando suas forças na Casa se fortalece através

da colaboração, da troca de processos e da movimentação coletiva, conseguindo

transpôr barreiras impostas por instituições de poder. Percebe-se que a Paralela uniu

diversos grupos que estavam distantes dentro de uma mesma cena, possibilitando uma

comunicação maior entre tais e gerando maiores níveis de envolvimento mútuo por parte

destes. No compartilhamento de criações, projetos e produções, que vão do material ao

imaterial, fomenta-se uma cultura de participação na cidade, responsável pela

consolidação de um público e, consequentemente, de artistas e bandas locais.

A continuidade das atividades da Casa deve-se tanto a construção de um público

entusiasta quanto a atuação de seus coletivos que, através de processos participativos e

de uma constante profissionalização, estão em sintonia com atual configuração social.

Fortalecendo-se no ambiente virtual e sem deixar de lado a importância do evento físico,

a Casa têm agregado diversos artistas, músicos e coletivos da cidade através de um

mesmo ambiente de produção e de arte. Dessa forma, a Paralela conseguiu criar um

público próprio, fortalecendo seu papel dentro do circuito de música independente

nacional. Através de locais como a Paralela, é possível que um artista independente

consiga atuar e buscar visibilidade, conferindo a importância da performance ao vivo.

A Casa Paralela, dentre todo seu papel na formação e consolidação da identidade

de um grupo, parece criar algo ainda mais importante que é a construção de um

patrimônio intangível, voltado ao conhecimento, à cultura e à criatividade. O incentivo a

produção artística, bem como o encontro de diferentes grupos em um ambiente

compartilhado, em busca da sustentabilidade de seus colaboradores e frequentadores,

tende a ser um processo que cresce de forma exponencial. Através de processos

colaborativos é possível mapear os recursos disponíveis e utilizá-los da melhor forma

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possível. A valorização do espaço, através de elementos como a arte e a música, tornam

possível a visualização da cidade a partir de outra ótica, onde a diversidade da

experiência compartilhada reconstróe as antigas formas de se produzir, modificando até

mesmo níveis democráticos e sociais de centros urbanos. Assim, Maffesoli, ao citar

Nietzsche, descreve com muito bom gosto o que este estudo procurou brevemente

abordar. A construção de uma cena musical local, que apoiou-se no surgimento do

coletivo cultural Casa Paralela, é a vontade do encontro, a vontade de protagonização

por parte de seus indivíduos, a necessidade de transformar a vida em constante obra de

arte.

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