un cuore pensante autora: susanna tamaro copyright © 2015 ... · 1.a edição, lisboa, fevereiro,...

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FICHA TÉCNICA Título original: Un Cuore Pensante Autora: Susanna Tamaro Copyright © 2015, Susanna Tamaro Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Maria das Mercês Peixoto Imagem da capa: Shutterstock Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, fevereiro, 2016 Depósito legal n. o 404 100/16 Reservados todos os direitos para Portugal à a língua portuguesa (exceto Brasil) àr EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: Un Cuore PensanteAutora: Susanna TamaroCopyright © 2015, Susanna TamaroTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016Tradução: Maria das Mercês PeixotoImagem da capa: ShutterstockCapa: Sofia Ramos/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, fevereiro, 2016Depósito legal n.o 404 100/16

Reservados todos os direitospara Portugal à a língua portuguesa (exceto Brasil) àrEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Uma menina!

Aprendi bastante cedo a ficar calada.Como quando abria a boca gerava preocupação, era melhor estar

em silêncio, ou esforçar‑me por dizer as coisas que todos esperavam que eu dissesse. Procurava camuflar‑me, copiava as aspirações dos outros, tentava transformar o tigre dentro de mim num gato de pano. Mas era desastrada, desajeitada, contrariar os meus fingimen‑tos seria simples.

Para mim a diversidade não era um motivo de orgulho, mas um lastro do qual me libertaria com muito agrado.

Era feliz nas raras vezes em que conseguia fazer crer às pessoas em meu redor que era normal. Também eu, por algumas frações de segundo, gostava de me iludir: regozijar‑me com as mesmas coisas com que todos se regozijavam, chorar por qualquer coisa pela qual era normal chorar. Respeitar os papéis, permitir aos adultos serem adultos sendo eu uma criança. Aliás, uma menina.

Uma menina!Havia algo de mais sideralmente distante da realidade profunda

do meu ser?Uma menina devia gostar de cor‑de‑rosa e rendas, cuidar das

bonecas e ter gosto em imitar as mulheres adultas, deitar a mão às escondidas aos cosméticos da mãe, experimentar os seus sapatos, cambaleando nos seus saltos, gostar da tagarelice ligeira, da com‑petição exibicionista com as da sua idade.

Uma menina devia ser, nessa época, graciosa e prestável. «A pequena dona de casa», dizia o meu avô com orgulho, quando ia visitar‑nos.

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Seria possível, perguntava a mim mesma, que ninguém visse a minha longa cauda macia mover‑se com lentidão ameaçadora? Que ninguém, cruzando o meu olhar, notasse as brasas que ardiam no fundo?

Um tigre obrigado a ser uma boneca!

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Uma antena com os fios a descoberto

Até entrar para a escola primária, sempre usei para mim própria, em vez do meu nome, um nome masculino. Depois, nas aulas, tive de me render à impiedade prosaica do registo. Com imensa vergo‑nha — sócia dum queijo1 em triângulos muito popular na época — comecei a viver sob o jugo do retraimento.

Se tivesse podido ser eu a escolher, ter‑me‑ia chamado Electra, porque, desde sempre, quantidades excessivas de eletricidade atra‑vessam o meu corpo e a minha mente, fazendo de mim uma antena com os fios a descoberto.

Que grande mistério o momento em que os pais escolhem o nome do ser cujo rosto ainda não conhecem! Estou convencida de que existe um Anjo encarregado de tal tarefa, é ele que, ao longo do caminho, se inclina ao ouvido da mãe e sussurra aquela sequên‑cia de letras até então desconhecida.

No fundo, cada nascimento é precedido de uma pequena anun‑ciação. O Anjo sugere o nome e esse nome é a porta a transpor para entrar no próprio destino.

Só ao crescer, com os anos, percebi que na verdade eu era Susanna desde o instante em que a blástula tinha começado a aumentar e que esse nome seria a cruz e a graça do meu caminho.

Na verdade, em hebraico Susana significa «lírio branco», a flor que, na iconografia cristã, simboliza a pureza.

O episódio bíblico do livro de Daniel confirma a leitura duma inocência traída. E ainda melhor faz o mundo da natureza, tendo

1 Alusão ao queijo Tigre. (NT)

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criado um gracioso coleóptero de plumagem vermelha (Lilioceris lilii) que vive unicamente nos lírios, não para se inebriar com o perfume ou com a beleza, mas para os usar unicamente como sani‑tas. A não ser que se utilizem antiparasitários, é realmente difícil colher um lírio que não se encontre constelado de maciças incrus‑tações castanhas.

Há no mundo, portanto, uma energia que gosta sempre e de qualquer maneira de sujar, corromper aquilo que não é sujo e cor‑rupto. Seguindo as sirenes da psicologia, esquecemo‑nos demasiado rapidamente desta força omnipresente, do seu constante desejo de afundar o que é belo, de tornar opaco o que é autêntico.

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O nome duma pistola

Apesar de já terem passado mais de vinte anos desde a morte da minha avó — e os últimos seis passou‑os nas trevas da demên‑cia —, sinto que entre nós ainda continua a haver uma ligação muito forte.

Ela foi o farol da minha infância e da minha adolescência. Aquela luz que se pousava intermitente nos meus dias foi a luz que me permitiu evitar várias vezes o naufrágio em plena tempestade.

A minha avó tinha lido Freud quando em Itália ninguém sabia quem ele era e tinha mais familiaridade com as moedas do I Ching, o Livro das Mutações taoísta traduzido pelo seu tio Bruno Veneziani, do que com a Bíblia, que apesar de tudo continuava a ser o seu livro preferido. Era uma mulher muito bonita, cheia de caráter, adorava a literatura e aos oitenta anos ainda recebia ramos de flores dos seus admiradores; culta e inquieta, lamentava não ter conseguido fazer nada com a sua inteligência, dada a época e o meio em que nascera. Péssima mãe, seguramente deu o melhor de si como avó.

Foi, pois, graças à sua perspicácia psicológica que certo Natal, debaixo da árvore, encontrei um fato de cowboy igual ao do meu irmão.

Ainda me recordo da ansiedade com que coloquei o cinturão nas ancas e a estrela de lata de xerife na camisola. Não queria tirá‑la nem para dormir. Quando depois descobri que o nome gravado na pistola era o meu — Susanna —, uma grande paz desceu no meu coração.

Ter o nome duma pistola era muito diferente de ter o nome dum queijo!

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Alguns anos mais tarde, foi ainda a minha avó que no Carnaval me procurou um fato de carabiniere. Esse Carnaval, para mim, durou um ano inteiro, assim que podia vestia o fato. Tive de o pôr de parte quando o tecido nos joelhos se desfez literalmente com o uso.

Que felicidade usar uma farda!Ao longo dos anos, muitas vezes me interroguei sobre esta

minha propensão marcial, visto que nunca gostei das posições de poder nem da violência. Fosse como fosse, vestir uma farda signi‑ficava aderir a uma ordem — algo de que eu sentia uma neces‑sidade extrema — e estar disponível para combater por essa ordem.

Não seria talvez isso que eu sabia desde o início?Que a minha vida, no fundo, seria uma batalha única e inesgo‑

tável?

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As perguntas

Cresci na cidade, dores intensas curvaram desde logo a minha postura.

Nada de corridas despreocupadas, nenhuma leviandade infantil.Caminhava e olhava para o chão, observava os tufos de parietá‑

ria poeirenta nos muros, as ervas entre as fendas do asfalto, as pedrinhas, os fragmentos de vidro, as pontas de cigarros, as tampas de garrafas.

Pensava na terra e tentava perceber como era feita.Como é que nós estávamos colados a ela, ao passo que as aves

voavam?E se ela se cansasse de nos segurar, ficaríamos dispersos no

espaço?De vez em quando corria esbracejando furiosamente, na tenta‑

tiva de voar.«E então?», perguntava depois ao meu irmão.«Sim, conseguiste erguer‑te um bocadinho.»Mas eu sabia que era uma mentira piedosa.A terra exigia a minha presença e, a essa presença, era necessário

dar um sentido.

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Clarões na noite

A primeira coleção que fiz foi de pedras.Da praia, levava para casa seixos mesclados de vidros maravilho‑

samente polidos. Durante os passeios ao Carso ou à montanha, apanhava pedras que pareciam aprisionar no seu interior centelhas de luz e outras transparentes como fragmentos de gelo.

A terra sob os pés, portanto, era um todo, mas esse todo já era capaz de se manifestar de múltiplas formas. «De onde vinha aquela diversidade?», perguntava a mim mesma.

Na ausência de televisão e de Internet, as perguntas permane‑ciam suspensas na mente durante dias, durante meses. Surgiam de noite como clarões, diminuíam ao amanhecer, para depois explo‑direm de novo ao fim do dia.

A jangada onde navegar era o manual da escola primária.E assim, a dada altura, a revelação. A Terra não era pois muito

diferente de um bombom de ginja. Por fora, uma crosta dura de chocolate e, por dentro, o fruto macio cheio de licor.

Também o nosso planeta tinha uma crosta e, sob ela, um manto, como os salteadores e as fadas. E sob esse manto, prisioneiro, um coração de fogo incandescente. Portanto, o coração da Terra era macio, mas de uma macieza inquietante. O fogo ilumina, aquece, mas também pode destruir, devorar.

Aquela potência implícita encerrada lá dentro, que sentido tinha?

Iria explodir um dia, fazendo‑nos saltar a todos para o ar?Ou ficaria ali aninhada, como aqueles tigres desalentados que

eu tinha visto no circo?

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O tigre e o acrobata

O circo fazia‑me chorar.Ainda hoje, só de ver os seus panfletos, sinto um aperto no

coração. A majestade solene das criaturas humilhada pela imbe‑cilidade da estupidez humana. Aqueles tigres em equilíbrio nos banquinhos, aqueles rugidos e aquelas patadas controladas a espaços pelo sibilar do chicote. Toda aquela energia, aquele poder, aquela beleza apenas para saltar por dentro de um aro em chamas.

E o que dizer dos elefantes?A sua antiga e veneranda sabedoria reduzida a andar à roda com

um penacho na cabeça, a pousar uma pata sobre o domador sem o esmagar.

Sentia vontade de correr para o meio da pista, de os abraçar, de banhar com as minhas lágrimas a sua pele rugosa, implorando: perdoem‑nos, irmãos elefantes!

Também os palhaços me faziam chorar.Todos riam e eu sentia o estômago contorcer‑se, fazia um esforço

terrível para não irromper em soluços.A dor dos animais e a tristeza dos homens forçados a fazer rir

abatiam‑me com a força dum tsunami.O alívio chegava com os acrobatas, os malabaristas, os equili‑

bristas. Seguia os pratos que voavam no ar, as caminhadas sobre um arame, o esvoaçar dos corpos entre os trapézios quase sem res‑pirar. Que grande maravilha existe na capacidade do homem de se aperfeiçoar, de alcançar, através do trabalho e do esforço, dimensões aparentemente inalcançáveis!

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Nos dias seguintes, em casa, oscilava entre dois sentimentos contrastantes.

Sabia que tudo aquilo que tinha visto me dizia respeito. Sentia que dentro de mim havia um tigre aninhado, só temporariamente atemorizado pelo chicote. Todavia, além do tigre havia também o acrobata, com a sua vontade e o desejo de se soltar do chão e voltear no ar sem peso e sem esforço, suspenso por um instante na graça.

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