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1 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ sob orientação da Profª Drª Heloisa Caldas. Especialização em Psicanálise e Saúde Mental - UERJ. Atualização em Fundamentos da Experiência Psicanalítica - FIOCRUZ/ENSP. Graduação em Psicologia - UERJ. Graduação em Letras Português-Grego - UFRJ. UM ESTRANHO NO NINHO: EM BUSCA DE UM LUGAR PARA AREJAR Jacqueline de Andrade Loeser dos Santos 1 O desafio encontrado na condução de um caso precipitou o desejo de estudar a aplicação da psicanálise à clínica das psicoses, em especial com pacientes que cometem a passagem ao ato suicida. Segundos as orientações de Freud e de Lacan, a clínica é o alicerce da pesquisa em psicanálise, pois a práxis é o lugar da produção de saber e implica o caso a caso da experiência. Neste trabalho, sigo os princípios éticos da psicanálise e discuto algumas questões que dizem respeito aos desafios inerentes ao campo da Saúde Mental em que trabalho. Nele sou convocada a pensar como a passagem ao ato configura uma realidade alucinada pelo sujeito. Nesse caso, que lugar tem esse sujeito cuja lógica funciona para se abolir? Considerando o que diz Lacan em “O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” (1949/1998, p.100) a constituição do sujeito se inicia por meio de uma identificação ao assumir uma imagem especular projetada a partir da relação com o Outro. Essa imagem estabelece a posição do sujeito com sua realidade, uma vez que há um momento crucial na constituição do eu, ainda que seja imaginário, no qual o bebê é percebido e identificado ao olhar do Outro que o investe de desejo. Na medida em que o infans tem a imagem de si refletida através do olhar do Outro isso lhe facilita a apreensão do corpo próprio, mesmo que seja “uma imagem despedaçada” (Ibid., p.100) incompleta, em sua

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1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ sob orientação da Profª Drª Heloisa Caldas. Especialização em Psicanálise e Saúde Mental - UERJ. Atualização em Fundamentos da Experiência Psicanalítica - FIOCRUZ/ENSP. Graduação em Psicologia - UERJ. Graduação em Letras Português-Grego - UFRJ.

UM ESTRANHO NO NINHO: EM BUSCA DE UM LUGAR PARA

AREJAR

Jacqueline de Andrade Loeser dos Santos1

O desafio encontrado na condução de um caso precipitou o desejo de estudar a aplicação

da psicanálise à clínica das psicoses, em especial com pacientes que cometem a passagem ao ato

suicida. Segundos as orientações de Freud e de Lacan, a clínica é o alicerce da pesquisa em

psicanálise, pois a práxis é o lugar da produção de saber e implica o caso a caso da experiência.

Neste trabalho, sigo os princípios éticos da psicanálise e discuto algumas questões que dizem

respeito aos desafios inerentes ao campo da Saúde Mental em que trabalho. Nele sou convocada a

pensar como a passagem ao ato configura uma realidade alucinada pelo sujeito. Nesse caso, que

lugar tem esse sujeito cuja lógica funciona para se abolir?

Considerando o que diz Lacan em “O estádio do espelho como formador da função do eu,

tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” (1949/1998, p.100) a constituição do sujeito

se inicia por meio de uma identificação ao assumir uma imagem especular projetada a partir da

relação com o Outro. Essa imagem estabelece a posição do sujeito com sua realidade, uma vez

que há um momento crucial na constituição do eu, ainda que seja imaginário, no qual o bebê é

percebido e identificado ao olhar do Outro que o investe de desejo. Na medida em que o infans

tem a imagem de si refletida através do olhar do Outro isso lhe facilita a apreensão do corpo

próprio, mesmo que seja “uma imagem despedaçada” (Ibid., p.100) incompleta, em sua

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totalidade.

Freud, em “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914/1996, p. 94), assinala que, a

escolha anaclítica de objeto elege o pai que protege e a mãe que nutre, sendo que a mãe é

considerada o primeiro objeto sexual da criança, em torno da qual as escolhas narcisistas giram.

Assim, podemos acrescentar, com Lacan, que quando há impossibilidade de júbilo da criança

com sua imagem especular, ou seja, quando esta não é investida com o olhar do Outro, ela se vê

diante de um impasse na sua apropriação do corpo.

No que concerne ao corpo, o psicótico o alucina como algo fora dele e muitas vezes só

consegue separar-se disso quando se suicida. No texto “Luto e melancolia” Freud, (1917[1915]:

254-255) pontua que o objeto cai, juntamente com o próprio sujeito. Dessa maneira, “a sombra

do objeto caiu sobre o eu, e este pode, daí por diante, ser julgado [...] como se fosse um objeto, o

objeto abandonado. [...] uma perda objetal se transformou numa perda do eu”. Nessa leitura,

Freud elucida que, especificamente na melancolia, há uma insatisfação com o eu, um julgamento

crítico e uma perda do amor próprio apontando a uma perda relativa do eu, ou seja, o eu toma a si

mesmo como um objeto e, é importante ressaltar: um objeto dejeto.

UM ESTRANHO NO NINHO

Em um trabalho de acompanhamento terapêutico a um paciente que aqui chamarei de

José, observei que o álcool e outras drogas estavam sempre presentes na sua relação com o Outro.

Segundo seu relato, “sem o álcool eu me sinto um nada, sem energia”. Ele não sustentava a

aproximação com as outras pessoas sem que de alguma forma criasse confusão e situações

embaraçosas, pois o sofrimento das pessoas em sua volta se tornava seu sofrimento. As pessoas já

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não suportavam sua presença em um ambiente comum, não sustentavam o laço com ele. Sua

marca era a contestação; para aliviar seu sofrimento, ele tinha que incomodar. Em um de seus

relatos enfatiza: “venho aqui a casa e fico sem lugar. Sinto-me arredio, com medo... os lugares da

casa... a loucura de cada um... me sinto estranho, um estranho no ninho”.

Em seu histórico, relatam-se tentativas de suicídio com a utilização de substâncias tóxicas,

tais como o álcool, cocaína e maconha. Em seu corpo, encontram-se registros deixados por

determinados momentos de angústia, entorpecimento e gozo; em um deles ateou fogo ao corpo.

Ele relata que: “quando eu me queimei foi bom [...], eu estava em surto, eu estava muito louco”,

palavras que comprovam o sujeito à mercê dos investimentos de uma pulsão mortífera,

desenfreada.

Para Lacan, o objeto pode se apresentar de forma separada, inatingível, o que não é o caso

desse sujeito, visto que o objeto está presente e causa de incomodo, de angústia; não está,

portanto, em consonância com o âmbito do desejo, no qual o objeto está perdido. A imagem

desse objeto, percebido em presença, traz consigo um mundo despedaçado e sem sentido; Lacan

chama esse movimento de oscilação imaginária. O objeto é estruturado conforme a imagem do

corpo do sujeito e é por excelência sua imagem especular. O autor sustenta ainda que no sonho,

em todo momento, se revelam as relações imaginárias e libidinais do sujeito atingindo assim,

uma angústia em que o sujeito se depara com a destruição do seu mundo. A angústia representa

um desmantelamento corporal, o momento em que a falta constitutiva da operação simbólica

falta, sinalizando uma presença predominante do real.

Na ocasião do acompanhamento terapêutico, José estava em um período de abstinência

alcoólica e, na noite anterior ao acompanhamento, ele não havia dormido; ainda estava sob os

efeitos do hipnótico (usado para induzir ao sono) e do neuroléptico que havia ingerido, pois

estava ansioso com o acompanhamento. No caminho, sem que eu percebesse, José ingere mais

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um hipnótico, inviabilizando o trabalho de acompanhamento neste dia. Aliás, frequentemente,

aderia ao entorpecimento horas antes do acompanhamento, já que se tratava de sustentar o laço:

ingeria sabonete líquido, mastigava velas aromatizadas, bebia desodorante, perfume, e assim por

diante. Vale ressaltar que José, quando não estava acometido pelo surto, dizia que se alimentava

de luz, ou seja, de energia solar e água para adquirir a energia do universo. Durante o dia não

come nada, apenas se alimenta ao entardecer.

Freud (1924/1996, p. 206) aponta que a perda da realidade ocorre tanto na neurose como

na psicose. Entretanto, se na neurose essa perda é sempre evitada, na psicose essa perda está

sempre presente. Segundo ele, na neurose se tem na amnésia uma fuga, ou seja, o horror da

realidade faz o sujeito ignorá-la, acionando o processo do recalque para resolver o conflito. De

forma distinta, a psicose repudia a realidade e a substitui. Diz Freud (1924/1996, p. 207) que “a

psicose também se depara com a tarefa de conseguir, para si própria, percepções de um tipo que

corresponda à nova realidade e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação”. José,

de alguma forma, busca substituir a realidade desagradável, na qual é convocado pelo Outro por

um gozo excessivo, por outra realidade que vai em direção da satisfação pulsional.

Na neurose, ter um corpo implica ter sintoma e é preciso que o sujeito decifre essas

marcas a fim de que dissolva seus impasses, pois os sintomas são modos de funcionamento

subjetivo. Na psicose, a clínica evidencia que há um estranhamento radical entre o sujeito e seu

corpo. O corpo na psicose é atravessado pelo gozo do Outro. Em determinados momentos parece

anestesiado contra a dor, ardência, fome ou frio e ao mesmo tempo em que em outros é

hipersensível: ouve vozes, tem sensações corporais de pressão brusca e toques inesperados, em

particular nos momentos de surto. É um corpo em pedaços, cujas sensações ocorrem de maneiras

isoladas e sem lógica entre si. O corpo que se agita é o mesmo que trava e emperra, não anda.

Para José, o álcool e outras drogas proporcionaram episódios e tentativas de dar cabo à vida:

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quando bêbado sufocou-se com seu próprio vômito e quando se cortou com a garrafa, como já

citado anteriormente, incendiou-se com o álcool que bebia.

No que tange a sua imagem, José possui um corpo de meia idade, mas olha para ele como

se ainda fosse um jovem. É subversivo e questionador como um adolescente, além de se vestir

como um. Por vezes, dizia que se achava um “sapo”: asqueroso e escorregadio, pois ele não

entendia porque as mulheres, alvos do seu delírio erotomaníaco não correspondiam às suas

investidas, já que ele tinha certeza que elas o amavam.

Na leitura de Freud (1917[1915]: 253) orientada às psicoses, mais especificamente à

melancolia, há uma insatisfação com o eu, um julgamento crítico e uma perda do amor próprio.

Lacan (1955-1956/1985: 287) diz que na psicose a relação amorosa só é possível quando há

anulação do sujeito, sendo assim um amor morto. Consoante ao que Lacan salienta em O

Seminário, livro 10: a angústia (1962-63/2005) a passagem ao ato suicida está do lado do sujeito.

Ela impele o sujeito a sair de cena e assim saber que tem um corpo. A passagem ao ato se articula

ao embaraço, momento em que o sujeito se mantém na cena como próprio sujeito, mas, em

seguida, “ele se precipita e despenca fora da cena” (ibid, p.129).

Trabalhar e poder estar próximo a José implicava em dar liberdade ao seu pertencimento,

liberdade pelo laço, sem que este fosse maciço e invasivo, um laço sem pretensão de ser

propriamente um laço. Era poder construir uma ponte como sustentação e contorno, que

funcionasse como uma conexão para ele. Era fazê-lo encontrar um lugar arejado ao qual ele

sentisse pertencer sem amarras. Nas oficinas terapêuticas, eu apenas lançava o convite para que

ele pudesse se juntar ao grupo, convivesse e produzisse algo com as outras pessoas, inventasse

soluções para os seus impasses. Um dia, o convite feito assim, sem imposição, possibilitou o laço

de José com os outros participantes da oficina. Permitiu sua permanência e pertencimento,

mesmo que fugaz, naquele lugar. Assim, esporadicamente, estava José ali, atento, produzindo,

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escrevendo, pensando junto, trabalhando. Referindo-se às pessoas que se direcionavam junto com

ele para o salão das oficinas, José deixa escapar: “Agora vai arejar”.

Na clínica do caso a caso é importante que atentemos aos modos particulares de gozo do

sujeito, aos modos de lidar com seu corpo e a pulsão. No campo da Saúde Mental é comum tomar

o delírio como algo a ser medicado, abolindo-se o sujeito. É comum as pessoas forçarem uma

“barra” para que o psicótico faça laço incondicionalmente. Orientados pela ética da psicanálise,

nos cabe respeitar a singularidade do sujeito e suas relações com a angústia de ter um corpo

cindido, de modo que o trabalho analítico experimente soluções que possibilitem o novo na

direção do tratamento.

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