uber: o dilema de crescer com uma inovação disruptiva1 · 3 o crescimento geográfico foi também...
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Uber: O dilema de crescer com uma inovação
disruptiva1
Paulo Furquim de Azevedo
Leandro Simões Pongeluppe
Maria Clara de Azevedo Morgulis
Nobuiuki Costa Ito
Era segunda-feira 03 de agosto de 2015 2 , Daniel Mangabeira, Diretor de Relações
Governamentais da Uber, empresa de tecnologia que conecta passageiros a motoristas por
meio digital, acabara de entrar em um dos carros Uber, o qual quatro minutos antes ele havia
chamado para levá-lo de uma reunião com representantes do Poder Público ao escritório da
empresa na zona central de São Paulo. Em um ano de atuação no município, a Uber tinha já
crescido de modo expressivo. Estimativas apontavam um total aproximado de 7 mil
motoristas e cerca de 700 mil usuários. Todo este crescimento entusiasmava usuários e os
motoristas que se incorporavam à plataforma, mas, por outro lado, deixava atentas
autoridades públicas, que não haviam consolidado entendimento sobre como tratar esse
novo modelo de negócio e, sobretudo, os taxistas, que temiam o que chamavam de
1
Caso desenvolvido por Paulo Furquim de Azevedo, Leandro Simões Pongeluppe, Maria Clara de Azevedo
Morgulis e Nobuiuki Costa Ito. Os autores agradecem a contribuição da Uber. O caso é somente para fins de
discussão em sala de aula: não se propõe julgar a eficácia ou a ineficácia gerencial, nem tampouco deve servir
como fonte de dados primários.
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da lei 9610 de 19/02/1998.
2 Exemplo fictício elaborado para o Estudo de Caso.
2
‘concorrência predatória’. Durante a viagem, Daniel Mangabeira aproveitou o tempo para
conversar com o motorista, o senhor Jorge Teixeira. O papo foi discorrendo e a história foi se
mostrando interessante. Jorge contou que havia se tornado um motorista parceiro da Uber
há pouco tempo, e que para tanto ele havia saido de seu antigo emprego como motoboy e se
comprometido com o financiamento de um veículo, com características compatíveis com as
exigências da Uber, no valor aproximado de R$ 70 mil. Jorge relatou que o negócio ia bem,
em média ele dizia estar ganhando 6.000,00 reais por mês. Contudo, mesmo com o
rendimento satisfatório, Jorge desmostrava aflição sobre o futuro do negócio. Após os
diversos incidentes conflituosos entre taxistas e motoristas parceiros da Uber, bem como a
incerteza sobre a regulamentção do serviço na capital paulista, Jorge temia perder o
investimento realizado e ficar com o financiamento para pagar.
A entrada da Uber no mercado brasileiro gerou fortes reações de taxistas, os quais
chegaram a ter sucesso em angariar o apoio de autoridades municipais em uma cruzada para
barrar o avanço do aplicativo. No modelo de negócio da Uber, crescer é imperioso, pois
quanto mais passageiros e motoristas se vincularem à plataforma, maior o valor gerado para
ambos. Por outro lado, quanto maior esse crescimento, maior a reação daqueles que
poderiam se sentir ameaçados por este novo modelo de negócio, situação agravada pela
ausência de uma marco regulatório específico para essa atividade. Assim, uma pergunta não
saia da cabeça de Mangabeira: como crescer por meio de uma tecnologia disruptiva, baseada
em economias de rede, mas ainda sob severa incerteza jurídica?
A viagem finalmente chegara ao fim. Mangabeira desceu do carro sem sequer tocar em
sua carteira, afinal um dos benefícios que a Uber oferecia a seus usuários era a simplificação
do pagamento por meio de cartão de crédito pré-cadastrado. Contudo ao cumprimentar
Jorge, ele sabia que a reunião na prefeitura seria não só importante para a Uber, mas também
para a vida de muitos motoristas e usuários envolvidos no negócio.
A Uber: Nascimento e Crescimento
A Uber nasceu nos Estados Unidos, na cidade de São Francisco, Califórnia, no início de
2009. Fundada por Garret Camp e Travis Kalanick, a concepção inicial era oferecer um
serviço de transporte de luxo por meio de um aplicativo para smartphone. A operação em fase
de testes foi iniciada em 2010, mas o lançamento ocorreu apenas em 2011, inicialmente
restrito à cidade de São Francisco. Apesar do longo período entre o início da empresa em
2009 e o seu lançamento em 2011, a expansão ocorreu de forma muito rápida. Ainda em
2011, a Uber já operava em Paris e continuava a expansão nos EUA.
Nos anos de 2012 e 2014, a empresa realizou um processo intenso de crescimento
internacional para vários continentes. Em 2012, por exemplo, a empresa já operava no
Canadá, Inglaterra e Austrália. Em 2013, Ásia e África passavam a contar com os serviços da
Uber em países como África do Sul e Singapura. A América Latina recebeu a empresa apenas
no ano de 2014, iniciando pela cidade de Tijuana, no México. Em outubro de 2015, a Uber
operava em 60 países e em mais de 330 cidades.
3
O crescimento geográfico foi também acompanhado pela ampliação dos serviços
oferecidos pela Uber, voltados aos mais variados segmentos de mercado. Para o segmento de
alto padrão, foi desenvolvido o UberBLACK, com carros sedans pretos para transportar até
cinco passageiros. O uberX foi criado para atender o segmento mais sensível a preços,
fazendo uso de automóveis compactos, mas com tarifas significativamente mais baixas. O
UberSUV, por sua vez, também um serviço de luxo, com carros pretos e grandes, foi criado
para atender aqueles que demandavam maior espaço. Além dessas variedades, a empresa
utilizava portfolios e variações de serviços conforme o perfil da demanda em cada cidade.
Por exemplo, em 2015, a Uber possuía em Londres o UberEXEC e UberXL ou, ainda, o
UberBERLINE em Paris. As modalidades de serviços tinham, também, diferentes tipos de
exigências, que variavam pela localidade.
Para utilização dos serviços da Uber, o usuário instala o aplicativo em seu smartphone e
realiza um cadastro, fornecendo: nome, telefone celular, e-mail, idiomas e informações de
um cartão de crédito. Ao abrir o aplicativo, o usuário pode visualizar um mapa do local onde
pode ajustar sua localização. Por meio do GPS, o aplicativo Uber associa o passageiro
solicitante a motoristas mais próximos e estima o tempo de espera. O preço estimado para a
viagem pode ser visualizado antes de confirmar o pedido de transporte. Após confirmar a
localização exata, o aplicativo contata o outro lado da plataforma, os motoristas. Uma vez
aceita a viagem, o passageiro recebe as informações sobre o motorista e seu automóvel,
podendo acompanhar o deslocamento do carro no mapa do aplicativo (o Anexo 1 mostra
uma imagem do aplicativo Uber). Na chegada do carro, o usuário é avisado por mensagem
de texto.
Ao entrar no carro, o passageiro nota um padrão de qualidade do serviço. Ao chegar no
destino, o passageiro não precisa realizar nenhum pagamento em dinheiro, pois a conta é
cobrada diretamente no cartão de crédito cadastrado no aplicativo. O preço final da tarifa
também pode ser dividido com mais de um usuário Uber. Nesta etapa final do serviço,
ambos motorista e passageiro realizavam uma avaliação, cujo papel é coletar informações
sobre usuários e motoristas, que funciona como um mecanismo de incentivo e
monitoramento sobre a qualidade do serviço prestado. Os motoristas parceiros são
autônomos e livres para exercer suas atividades da forma como melhor lhes convier -- não
estão sujeitos a ordens, possuem liberdade para definir quando e por quanto tempo
trabalhar, e deles não se exige exclusividade. Seu interesse em permanecer vinculado à
plataforma e receber um maior número de corridas é o que os incentiva a buscar boas
avaliações, o que garante o padrão de qualidade do serviço. No Brasil, a Uber ficava com
20% do valor de cada viagem do UberBLACK e 25% no uberX, sendo o restante a
remuneração do motorista.
Em todo mundo, a Uber enfrentou pesadas resistências à entrada, tanto por autoridades
públicas quanto por motoristas de táxi, companhias de táxi e sindicatos. Muitas das reações
podiam ser explicadas pela novidade do serviço e velocidade de entrada. A falta de
regulação e a potencial concorrência com um serviço que era fortemente regulado, o serviço
4
de táxi, criaram uma situação em que os carros da Uber atuavam de forma mais livre que os
taxistas. Dessa forma, a Uber aparecia como um potencial concorrente para o táxi, mas não
necessitava observar a regulação deste transporte, o que causou as reações adversas.
Entre as principais reações contra a Uber, pode-se citar três principais: (1) acusação de
concorrência desleal, dado que a Uber não precisava observar a mesma regulamentação a
que estavam sujeitos os taxistas; (2) preocupações sobre a segurança, já que a autoridade
municipal não fiscalizava os automóveis e motoristas vinculados à plataforma; e (3) relação
de trabalho entre motorista e Uber, pois, para a Uber, o motorista é um empreendedor,
prestando seus serviços de maneira autônoma, enquanto que críticos argumentavam que
haveria um vínculo de trabalho, que exigiria conformidade com a legislação trabalhista. As
manifestações e protestos pelo mundo chegaram a provocar confrontos físicos, com
agressões e depredações. Esses conflitos culminaram na suspensão de alguns serviços do
aplicativo pelo Judiciário em algumas cidades da Espanha, em dezembro de 20143, e na
convocação para prestação de esclarecimentos de dois executivos da Uber na França, em
junho de 20154, além de diversos incidentes e restrições ao uso do aplicativo em todo o
mundo.
Inovação Disruptiva, Economia de Rede e Status Quo: Em Busca do
Equilíbrio Ideal
O modelo de negócio da Uber se pautava sobre um tripé que revela importantes dilemas.
Primeiramente, trata-se de uma inovação disruptiva, ou seja, que modificou de modo radical
a relação entre pessoas que gostariam de se deslocar e outras que detinham um veículo
ocioso e estavam dispostas a transportar as primeiras. Ao ser lançada, a Uber vislumbrou
uma oportunidade econômica ao facilitar a relação entre passageiros potenciais e motoristas,
tendo por base o crescimento exponencial de smartphones, que dava a ambas as partes
conectividade e georreferenciamento. Por meio da plataforma digital da Uber, essa transação
ocorre de forma direta, rápida e segura, seja no que se refere ao valor e pagamento da
viagem, seja quanto à qualidade e confiabilidade para passageiros e motoristas.
O primeiro risco foi mitigado pela Uber ao definir que o pagamento ocorreria diretamente
na fatura do cartão, e que o motorista seria creditado em conta corrente diretamente,
mediante a prestação do serviço. Já o segundo risco foi reduzido pela forma de validação dos
motoristas no momento de sua associação ao sistema, bem como pelas avaliações prestadas
pelos usuários.
O resultado imediato deste tipo de inovação foi a redução da assimetria de informação entre
as partes e, portanto, maior segurança e confiança para realizar a transação. Esse era
3 Fonte BBC. Disponível em: http://www.bbc.com/news/business-30395093. Acessado em 13 de outubro de 2015. 4 Fonte: Time. Disponível em: http://time.com/3940092/uber-executives-arrested/. Acessado em 13 de outubro de
2015.
5
fundamento para a regulação do serviço de taxi, que apenas precariamente conseguia lidar
com esse problema informacional. Nas palavras de Vinícius Marques de Carvalho,
presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) órgão de defesa da
concorrência brasileira, em matéria do Jornal Folha de São Paulo de 12 de julho de 2015:
O serviço de táxi é caracterizado por assimetrias de informação. Quando chama o táxi, você não
sabe o estado do veículo, o preço final que irá pagar pela corrida e a confiabilidade do condutor.5
O negócio da Uber também é marcado por externalidades de rede, i.e. quanto maior o
número de motoristas parceiros vinculados à plataforma, maior o valor gerado aos
potenciais passageiros, e vice-versa. Isso ocorre porque, conforme aumenta a quantidade de
motoristas parceiros, maior é a probabilidade de haver algum próximo à localização do
passageiro, reduzindo o tempo de espera pelo veículo. Do mesmo modo, quanto maior o
número de usuários, maior o benefício gerado aos motoristas, que poderão realizar mais
viagens e utilizar mais eficientemente o seu investimento no automóvel. Portanto, o sucesso
do negócio não depende apenas de se tratar de uma inovação disruptiva, mas requer
também ganhar rapidamente massa crítica (i.e. número de pessoas vinculadas à plataforma)
suficiente para torná-lo viável.
Justamente para que a Uber passasse a ser superavitária, ela precisaria crescer de forma a
atingir a massa critíca presente na “early majority” dos usuários (Anexo 2) de modo a
viabilizar seu modelo de negócio de forma sustentável. Quanto maior for o tempo para a
empresa atingir esta massa crítica, maior será o deficit de suas operações, além de que esta
morosidade pode afugentar “early adopters” ao verificarem poucos benefícios em fazer parte
da uma rede que não cresce. Assim, a viabilidade do negócio da Uber dependia de um
desenvolvimento rápido para atingir massa crítica e se tornar sustentável.
Entretanto, toda inovação disruptiva, por definição, afeta as estruturas sociais e
econômicas previamente existentes. Ao fomentar o rápido desenvolvimento de seu modelo
de negócios nas cidades brasileiras, a Uber começou a alterar o status quo do mercado de
transporte privado individual urbano, tendo impacto na modalidade pública desse
transporte, aquela feita por meio de taxis licenciados pelo poder público municipal. Os
taxistas, até então em uma posição praticamente monopolista na prestação dessa espécie de
serviço, passaram a enfrentar a concorrência de um novo modelo de negócio, o qual operava
sob regras bastante distintas, em que, em particular, os limites legais à entrada de novos
motoristas obedecia a regramento diferente. Como era de se esperar, a reação dos taxistas à
entrada da Uber foi sanguínia. Esta reação, ademais, deve ser tanto mais forte quanto mais
rápida for a entrada da inovação disruptiva. Mas, de outro lado, para a Uber a viabilidade do
negócio depende de um crescimento rápido. O que fazer?
5 Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/07/1654462-melhor-que-
proibir-o-uber-e-fortalecer-os-taxistas-diz-chefe-do-cade.shtml Acessado em 13 de julho de 2015.
6
Uber no Brasil: Estratégia de Entrada e Regulação
No Brasil, a Uber iniciou as operações na cidade do Rio de Janeiro, às vésperas da Copa
do Mundo de Futebol, em maio de 2014. Até junho de 2015, a empresa já atuava em quatro
cidades brasileiras: Rio de Janeiro-RJ, São Paulo-SP, Belo Horizonte-MG e Brasília-DF,
oferecendo os serviços UberBLACK, uberX e UberBIKE. Os serviços da Uber no Brasil
ocorriam, de forma geral, como descrito em seção anterior, exceto o UberBIKE. O UberBIKE
não consistia no aluguel de uma bicicleta, mas sim na possibilidade de chamar um carro com
suporte para bicicletas. Dessa forma, o usuário poderia utilizar o transporte por automóvel
em um trajeto que poderia ser complementado por bicicleta em outro momento. As tarifas e
as condições dos veículos eram as mesmas do UberBLACK ou uberX (o Anexo 7 mostra os
serviços disponíveis em cada cidade brasileira).
A estratégia de entrada da Uber no Brasil, como era de se esperar para um modelo de
negócio baseado em externalidades de rede, foi de um crescimento muito rápido,
concentrando a operação em bairros de maior demanda potencial, seguido de expansão para
as demais regiões da mesma cidade, primeiramente o Rio de Janeiro, bem como pela entrada
em outras capitais de elevada densidade e renda. Esta estratégia era justificada pela natureza
dos negócios, em que a criação de uma massa de usuários (passageiros) e prestadores de
serviço (motoristas) era crítica para gerar as economias de rede. Assim, para funcionar, a
plataforma Uber deveria disponibilizar um número grande de motoristas, para que as
viagens solicitadas fossem atendidas rapidamente. Ocorrendo isso, os usuários passariam a
ter incentivos para instalar e utilizar o aplicativo. Mas, ao mesmo tempo, se não houvesse
usuários, os motoristas ficariam ociosos e, então, não teriam incentivos para se cadastrarem.
A necessidade de rapidamente atrair massa crítica de usuários e motoristas
concomitantemente, portanto, justificaria a estratégia de entrada rápida. Entretanto, na
mesma velocidade em que a Uber expandiu sua atuação nas cidades brasileiras, taxistas e
governos municipais reagiram à entrada deste novo modelo de negócio no serviço de
transporte de pessoas.
Efeito Uber no Transporte por Táxi
Nas cidades em que a Uber atuava, a reação imediata veio dos taxistas. Os taxistas
detinham a exclusividade do transporte público individual de passageiros por automóveis,
sendo, assim, contemplados por uma espécie de reserva de mercado. De fato, para usufruir
do direito de explorar a atividade de táxi, o motorista devia obter uma licença, junto ao
poder público municipal, mas este raramente abria espaço para novas licenças.
Alternativamente, o motorista interessado poderia comprar uma licença de um motorista já
atuante, mas pagando para isso um elevado custo de entrada6. Em contrapartida, o taxista
tinha vantagens para aquisição de carros, com isenção de tributos, e potencialmente auferia
6 Essa transação era, contudo, ilegal, visto que as licenças de táxis eram pessoais e intransferíveis. Ainda assim,
há evidências de compra e venda de licenças de modo informal.
7
rendas superiores, dado que atuava em um mercado com quantidade de serviços ofertados
limitada pelo governo. Outros motoristas, sem condições financeiras de comprar uma licença
no mercado paralelo, optavam por alugar a licença e o automóvel de terceiros, pagando, para
tanto, uma diária que cobria os custos do automóvel e o direito de operar como taxista.
A Uber, ao se estabelecer no mercado, quebrou a lógica anteriormente estabelecida e não
apenas atuava como forma alternativa de transporte, mas, principalmente, permitiu a
entrada de novos motoristas na prestação desse serviço, sejam aqueles que já atuavam como
empresas de transporte executivo, sejam aqueles que se sentiram estimulados a ingressar na
atividade. Quem foi mais afetado por esse novo modelo de negócio foram os detentores de
licenças, motoristas ou não, cujo valor decorria justamente do direito de impedir a entrada
de novos motoristas e, assim, assegurar rendas supracompetitivas. Por exemplo,
anteriormente à entrada da Uber, o mercado possuía um número definido de licenças de
táxi, que não variava conforme as flutuações de oferta e de demanda, mas por meio da
decisão de cada prefeitura. Estas, por sua vez, poderiam se sujeitar ao interesse daqueles que
já tinham licenças e que não gostariam de ver aumentar a concorrência. Nas palavras de
Vinícius Marques de Carvalho, presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE), órgão de defesa da concorrência brasileira, em matéria do Jornal Folha de São Paulo
de 12 de julho de 2015.
Pegando o exemplo Brasília: tem 30 anos que não há novas licenças de táxi. Quantos habitantes
havia em Brasília e quantos há hoje? Será que a demanda não aumentou?7
Em tese, estas licenças não poderiam ser transacionadas no mercado (ainda que por vezes
o fossem (Anexo 3)), mas poderiam ser alugadas e assim conferiam a seu detentor rendas
pela concessão do direito de uso. O Anexo 4 traz uma estimativa de quanto seria o valor
presente líquido de uma licença de táxi em função de alguns parâmetros econômicos. Já o
Anexo 5 traz o fluxo de caixa de um taxista que não possui a licença em um período de cinco
anos, descontados os custos do carro e valores da diária média de São Paulo.
Por exemplo, no Rio de Janeiro, primeira cidade onde a Uber começou a operar, o valor
estimado para uma licença é de aproximadamente R$ 900 mil8. Esse montante é obtido
tomando-se o valor médio das diárias, referentes ao aluguel da licença e do automóvel, o
custo médio de um veículo, no valor de R$ 50.000,00, renovado a cada cinco anos, abatendo-
se as isenções tributárias na aquisição de veículos por taxistas; um custo anual de
manutenção e seguro da ordem de R$ 4 mil por ano, o que gera um fluxo de caixa, o qual é
descontado ao valor presente líquido por meio da taxa selic real de 4,22% a.a. (taxa livre de
7 Op. Cit.
8 Esse valor é superior ao relatado para as transações de compra e venda de licenças no Rio de Janeiro. Trata-se,
contudo, de uma transação informal, que, como tal, apresenta riscos e, portanto, um valor negociado inferior à
expectativa de renda gerada pelo ativo. Por isso, o cálculo é feito a partir da renda derivada do aluguel da
lincença.
8
risco descontada a inflação dos últimos doze meses)9. Já no caso de São Paulo este montante,
considerando o valor médio da diária nesse município, seria de aproximadamente R$ 680
mil. Isto significa que a entrada da Uber no mercado tem potencial de ampliar a oferta de
serviços até o ponto em que não há mais valor no direito de limitar a participação de
terceiros, podendo, potencialmente, reduzir a zero o valor das licenças. Se multiplicarmos o
valor presente líquido de cada licença pelo número de licenças existentes em cada um desses
quatro municípios, tem-se um valor aproximado de 58 bilhões de reais decorrente do poder
de impedir a entrada de concorrentes. Esse é o tamanho da resistência à expansão da Uber
(vide Anexo 6).
Nota-se aqui a questão complexa com que se defrontava a Uber. Se por um lado a
empresa necessitava viabilizar rapidamente sua implementação de modo a garantir os
benefícios de economias de rede aos seus usuários, por outro, ao se apressar para conseguir
chegar a uma massa crítica de clientes e fornecedores, a empresa cria uma forte oposição por
parte daqueles que se beneficiavam do status quo anterior. As reações ao modelo de negócio
da Uber eram mais do que esperadas. E seus efeitos podiam extrapolar a mera manifestação
pública, visto que a classe de taxistas tradicionalmente tem forte influência sobre o poder
público municipal, com quem tem relação de longa data.
Em contrapartida, os usuários do sistema Uber tinham pouca capacidade de ação coletiva
para defenderem o modelo “uberista”. Os ganhos individuais de cada usuário seriam
relativamente pequenos, o que limitava a capacidade e interesse de coordenação dos vários
usuários em defesa de seus interesses. Já aqueles que sofreram os reveses com o modelo da
Uber, sobretudo, os que detinha as licenças e os sindicatos de classe dos taxistas, tinham
ampla capacidade de coordenação e de ação coletiva. Nas palavras do professor João Manoel
Pinho de Mello e de Vinícius Carrasco em artigo publicado na revista Exame em 10 de agosto
de 2015:
Rendas extraordinárias criam incentivos para tentar mantê-las a todo custo. (...) Portanto, os
interesses dos detentores de licença na manutenção do status quo são maiores do que os interesses dos
consumidores em muda-lo.10
Tal capacidade se exercia de forma notável na viabilização e na manutenção do status quo.
Esta capacidade coordenação e de ação coletiva organizada permitiu a classe atuar de
diversas formas, desde por meio de manifestações e “trancamento” de ruas em forma de
protesto (Anexo 8); até por meio de pressão política e, por vezes, coerção física para a
proibição da Uber. A reportagem da Folha de São Paulo de 19 de junho de 2015 realizada por
Felipe Souza mostra um exemplo desta situação por meio da declaração do presidente do
Simtaxis (Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores nas Empresas de Táxi de São Paulo):
9 Dado que a licença não deprecia, a série poderia ir ao infinito. Optou-se por um fluxo de caixa mais
conservador, de 30 anos, com a aquisição de um automóvel a cada cinco anos. 10
10
Fonte: Revista Exame. Disponível em: http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/leis-da-oferta/2015/08/10/o-
uber-e-a-natureza-da-regulamentacao/. Acessado em 11 de agosto de 2015.
9
"Não temos como conter a categoria", "vai ter morte".11
Ainda nesta linha o referido presidente da Simtaxi, Antônio Raimundo Matias dos Santos,
conhecido como “Ceará” reforçou:
"Eu quero dizer aos nobres deputados para que tomem providências porque, se não tomarem, não
temos como conter a categoria"12
Esta reação somada ao crescimento exponencial da Uber e à ameaça que ela trazia a
reboque, intensificaram a ânsia por parte de todos por um modelo regulatório para o setor.
O Efeito Uber na Regulação do Mercado
Segundo Frederico Meinberg Ceroy, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital, a
estratégia de entrada da Uber no Brasil tinha um preço:
“A entrada abrupta e ansiosa da Uber tem um preço. O preço é a aversão dos governos que se
sentem desrespeitados”.
A rápida entrada e crescimento da Uber nas cidades teve um efeito adverso do ponto de
vista de regulação. Em primeiro lugar, por um lado, a Uber era capaz de atender qualquer
pessoa portando um smartphone, tornando-se um substituto muito próximo ao táxi, ao menos
para esse público. Entretanto, o serviço da Uber não era um serviço de táxi, já que os
motoristas não aceitam passageiros na rua por um sinal por gesto, por exemplo. Tampouco
tinham os motoristas cadastrados na plataforma direito ao usufruto dos privilégios
tributários a que faziam jus os taxistas. Em outras palavras, o serviço da Uber não era um
transporte público individual, pois, de fato, o serviço não era “aberto ao público em geral”.
A conclusão era que a Uber operava em um segmento do mercado legal, até então
inexistente, mas que passou a ser economicamente viável por meio da difusão de
smartphones com GPS e uma plataforma tecnológica que aproximava motoristas a
passageiros. Neste contexto, a entrada da empresa no mercado era transformadora e não
havia regulações ou experiências prévias para guiar as autoridades públicas. A ausência de
regulamentação incontroversa se juntou aos fortes interesses organizados daqueles que
exploravam o mercado de transporte por taxis, sobretudo os detentores de licenças, tendo
por reação dominante a votação de lei municipal proibindo o uso do aplicativo. Por exemplo,
várias cidades brasileiras possuíam projetos de lei para proibição da Uber antes mesmo da
entrada da empresa na cidade, tais como Curitiba-PR, Vitória-ES, Goiânia-GO, Joinville-SC e
Manaus-AM.
11
Fonte: Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1644905-vai-ter-
morte-diz-taxista-sobre-regulamentacao-do-aplicativo-uber.shtml. Acessado em 20 de junho de 2015. 12
Op. Cit.
10
Nas cidades em que a Uber estava atuando, havia muitas visões divergentes e mesmo
soluções e caminhos diferentes entre as cidades. Em São Paulo, o prefeito fez declarações em
favor da regulamentação da nova tecnologia, o que ia contra a decisão da Câmara de
Vereadores, mas a prática inicial foi restritiva ao aplicativo, incluindo multa e apreensão de
veículos. No Rio de Janeiro, a Câmara dos Vereadores já havia aprovado a lei que proibia a
Uber, sancionada pelo prefeito, mas o judiciário havia concedido liminar autorizando a sua
operação. Em Belo Horizonte, um projeto de lei buscava restringir a operação do aplicativo,
utilizando o novo serviço apenas para suprir a demanda não atendida pelos taxistas.
Rodrigo Rollemberg, governador do Distrito Federal, vetou o texto da Câmara Distrital de
Brasília que proibia o serviço, e na sequência enviou ao Legislativo local uma regulação
inovadora para enfim definir as bases de prestação do serviço localmente, mas que não havia
ainda sido aprovada pela Câmara Distrital. Até o momento da conclusão deste estudo de
caso, apenas a Prefeitura de São Paulo tinha apresentado, por meio de decreto, um modelo
de regulação de transporte individual que contemplava serviços como o prestado pela Uber.
Nesse quadro, o contexto é de incerteza, o que afeta diretamente o processo de tomada de
decisão da empresa, bem como de concorrentes potenciais.
Chegando ao Escritório em São Paulo
A conversa com representantes do Poder Público tinha sido intensa e Daniel Mangabeira
estava preocupado na chegada à sala de reuniões do escritório da Uber, em São Paulo. O
modelo de negócios da Uber pautado pela rápida entrada em novos mercados não condizia
com a espera pelo estabelecimento de regulação específica aos seus serviços, ou mesmo pelo
ingresso limitado a nichos de mercado que não incomodassem os prestadores já
estabelecidos. Contudo, apesar dos benefícios do rápido ganho de massa crítica, esta
velocidade era a fonte principal das reações adversas enfrentadas pela empresa. Daniel
Mangabeira era o principal interlocutor com as autoridades públicas, sendo assim, tinha
papel fundamental no arrolar dos próximos passos da Uber: quais estratégias de crescimento
a Uber deveria adotar para os próximos anos? Seria possível viabilizar o seu crescimento sem
despertar a forte oposição dos taxistas?
Anexos
Anexo 1 – Fotos do Aplicativo e do Serviço da Uber
11
Nota: À direita, foto do aplicativo no momento de solicitação do carro. À esquerda, foto do
serviço uberX.
Fonte: Uber
Anexo 2 – Curva de Adoção de novas tecnologias
Fonte: Rogers, E (1995). Diffusion of Innovations. New York: Free Press.
Anexo 3 – Exemplo de forma alternativa para a comercialização de licença/alvará de taxi
Fonte: Mercado Livre. Disponível em: http://apartamento.mercadolivre.com.br/MLB-
705471096-troco-apartamento-em-licenca-de-taxi-_JM. Acessado em 06 de outubro de 2015.
12
Anexo 4– VPL estimado de um alvará de taxi nas cidades em que a Uber opera
Cidade
Custo Médio
da Diária 8h
(R$/dia)* VPL do Alvará
Custo
Médio
Veículo
(R$)
Número
de Dias
no Ano
(dias)
Desconto
Médio IPI +
ICMS para
Taxistas
(%) **
Taxa Selic
Real (%
a.a.) ***
Belo Horizonte R$ 140,00 R$ 505.071,50
R$
50.000,00 365 30,00% 4,22%
Brasília R$ 200,00 R$ 811.363,57
Rio de Janeiro R$ 220,00 R$ 913.460,93
São Paulo R$ 175,00 R$ 683.741,87
Fontes:
*Fonte: Folha; Acat.taxi;
** Desconto pode variar de estado para estado;
*** Fonte: Banco Central do Brasil. Disponível em:
<http://www.bcb.gov.br/htms/selic/selicdia.asp>. Acessado em 23 de setembro de 2015.
Descontada inflação de 9,53% acumulado 12 meses.
**** Fonte: Receita Federal
Anexo 5 - Fluxo de caixa de um taxista de São Paulo
Taxa Legal
de
Depreciaçã
o Anual
(%)*
Média
Número de
Dias Úteis por
Ano (dias)**
Custo
Diária 8h
em São
Paulo
(R$/dia)***
Custo diário com
Combustível 8h
(R$/dia)
Taxa
Selic****
(% a.a.)
Taxa Selic (Fator
diário)****
Receita Líquida
Taxi por hora
(R$/h)
20% 253
R$
175.00
R$
60.00 14.15% 0.0100052531%
R$
31.25
Custo
Médio
Veículo
(R$)
Desconto
Médio IPI +
ICMS para
Taxistas ****
(%)
Custo
Médio
Veículo
para
Taxista
(R$)
Despesa Anual
Aproximada
(diária média e
combustível)(R$)
Média de
número de
horas
trabalhada
s por dia
(h)
Receita Anual
Aproximada
Amortização Anual
(R$)
VPL Anual
Aproximado (5
anos)
R$
50,000.00 30%
R$
35,000.00
R$
59,455.00 8
R$
63,250.00
R$
7,000.00 R$ 6,265.48
R$
118,910.00 16
R$
126,500.00
R$
7,000.00 R$ 19,247.19
R$
178,365.00 24
R$
189,750.00
R$
7,000.00 R$ 32,228.90
Fontes:
* Fonte: Receita Federal
** Não considerados finais de semana e feriados
*** Fonte: Sebrae; G1 e Acat.taxi
13
**** Fonte: Banco Central do Brasil. Disponível em:
<http://www.bcb.gov.br/htms/selic/selicdia.asp>. Acessado em 23 de setembro de 2015.
**** Desconto pode variar de estado para estado.
Anexo 6 - VPL Total da Licenças
Cidade
Numero de
licenças VPL da licença (R$) VPL em licença/município (mil R$)
Belo Horizonte 6.992 R$ 505.071,50 R$ 3.531.459,92
Brasilia 3.400 R$ 811.363,57 R$ 2.758.636,14
Rio de Janeiro 32.000 R$ 913.460,93 R$ 29.230.749,70
São Paulo 34.000 R$ 683.741,87 R$ 23.247.223,72
Total R$ 58.768.069,48
Fontes:
Prefeitura SP. Disponível em: <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/transportes>.
Acessado em 12 de outubro de 2015.
IG. Disponível em: <economia.ig.com.br/empresas/comercioservicos/prefeitura-do-rio-
discute-excesso-de-taxis-nas-ruas/n1237859584647.html>. Acessado em 12 de outubro de
2015.
G1. Disponível em: <g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/07/apos-acordo-gdf-
anuncia-700-novas-autorizacoes-imediatas-para-taxistas.html>. Acessado em 12 de outubro
de 2015.
Câmara Municipal de Belo Horizonte. Disponível em:
<www.cmbh.mg.gov.br/chapeu/servico-de-taxi>. Acessado em 12 de outubro de 2015.
Anexo 7 – Serviços da Uber Disponíveis por Cidades Brasileiras
Cidade uberX UberBLACK UberBIKE
Rio de Janeiro - RJ Sim Sim Não
São Paulo - SP Sim Sim Sim
Belo Horizonte - MG Sim Sim Não
Brasília - DF Sim Sim Não
Fonte: Site da Uber. Acesso em 15 de outubro de 2015.
14
Anexo 8 - Manifestação Taxistas contra Uber
Fonte: Portal G1. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2015/09/manifestacao-de-taxistas-contra-uber-trava-ruas-importantes-do-
centro-de-sp.html. Acessado em 06 de outubro de 2015. Fotos de: Carolina Dantas/G1.