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Sujeira Felippe Regazio de Moraes

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Sujeira

Felippe Regazio de Moraes

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Sumário

5  Prólogo

9  Sobre Cores e Cafetinas

16 Borboletas Noturnas

21 Trevo De Quatro Folhas

25 Whiskey Com Café

28 Hemograma

31 Avulsas

39 Artificial

46 Papo De Cozinha

49 Lady Maria

55 Presente Contínuo

61 Natureza Humana

67 Feliz Aniversário

73 Outras Avulsas

80 Destilas

84 Sobre O Autor

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Prólogo

Independente do caminho que tenhas tomado ou de como tais páginas lhe chegaram às mãos, vira­las é sempre uma escolha. Tudo aquilo que se  registra  do  cotidiano,  as  flores  tais  que morrem, os seres tais que antes envelhecem, os erros  absurdos  e  toda  a  escória  que aprendestes  a  ignorar,  a  ser  indiferente  e fugir, bailam por entre estes parágrafos com a mesma  graça  das  mentiras  que  lhe  foram contadas  quando  criança  para  que  sorrisse. Daqui  e  aqui  o  olhar  consiste  no  que  há  de belo  no  horror,  onde  o  bom  senso  vendado  da tradição,  ou  como  queira  chamar  tal indiferença visual por dentro da história, não nos permitiu notar com clareza de entendimento ou  sem  prévios  julgamentos.  O  que  há  de  belo desde  a  dolorida  partida  até  o  bicho consciente que vende o corpo nas esquinas não é melhor ou pior que uma flor ou um alvorecer, necessita  apenas  atenção  aguçada  privada  do julgamento  social  para  que  vejas  que  toda  a vida é bela, e que ser belo não é sinônimo de fazê­lo  feliz  ou  obra­prima  para  um  sorriso. Os seres que vivem suas vidas estacionadas na existência  a  qual  tu  não  notas,  aqueles  os quais  poderiam  viver  e  morrer  sem aparentemente lhe afetar, brilham discretos em seus  mundos,  constroem  castelos  de  cartas marcadas  e  assopram  uns  aos  outros  por diversão.  Tudo  aquilo  o  quanto  evitaram, fingiram  a  inexistência,  tudo  aquilo  o  quanto tu  sentiria  pena,  remorso  ou  repulsa,  aqui estão descritos com toda a serenidade de forma que  não  sejam  inferiores  e  nem  superiores, apenas  verdadeiros  a  quem  os  lê  e  a  quem  os cria.  O  laboratório  bizarro  da  vida  se encarregou  de  rechear  tais  páginas  que nasceram de uma visão não menos problemática e não menos lúcida, pois tudo aquilo o que sofre 

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e  é  ameaçado  aguça  a  visão  e  o  instinto  em busca  de  paz.  Os  personagens,  os  versos,  as figuras  que  aqui  dormem  também  dormem  nas calçadas,  nas  casas  humildes,  no  coração  que já  se  cansou  de  amar,  no  adeus  da  partida, aqui dorme em sono leve a beleza convencida de que  não  seria  bela  de  se  ver,  aqui  dorme  a sujeira. 

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“A história dessas estórias só eu conheço.                      E é melhor que só eu 

continue a conhecer”.

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Sobre Cores e Cafetinas

Estendem­se  como  uma  colcha  a  cobrir  a sociedade  diversos  boatos  sobre  Madame Bernadete. Ao certo não é provada a veracidade de nenhum deles, mas ninguém os desmente, nem mesmo  a  mesma,  que  sai  religiosamente  toda manhã  da  Casa  Vienense  para  comprar  os primeiros  pães  e  ouvir  críticas  ácidas  em vozes  baixas  e  quem  sabe  algumas  mentiras  em voz  de  veludo.  O  fato  é  que  quem  vos  escreve pode  separar  o  carvalho  do  álcool  desse Bourbon  que  chamamos  de  vida  e  narrar  Madame Bernadete  não  como  Casa  Vienense,  mas  como mulher.

Nascida em família rica no norte de Minas Gerais  ainda  muito  nova  já  levava  o  tato  aos mais  diversos  corpos,  homens,  mulheres, meninas, e qualquer um que se descrevesse como intelectualmente  atraente.  Apesar  dos protestos  da  família,  casou­se  aos  dezessete anos  com  Carlos,  o  pintor  fracassado  que ganhava a vida decorando lameiras de caminhões para  os  que  pausavam  a  viagem  nas  beiras  da estrada.  Os  primeiros  anos  de  bom relacionamento  renderam  ao  casamento  um herdeiro,  o  mesmo  que  desenha  os  fatos  com essas palavras, porém o tempo se encarregou de levar junto da sanidade de Bernadete também o casamento  o  qual,  Antônio  que  sou  eu  e herdeiro já relatado, sofreu as represálias da consciência  paraplégica  da  mãe.  Diante  das crises  o  pai  era  indiferente  e  forte  demais para  ser  jogado  no  vaso  sanitário  e  a  essas alturas  Bernadete  já  havia  fugido  para  uma cidade no interior do Rio de Janeiro deixando o filho com um casal de idosos, antigos amigos da família desses com o corpo na cova e a boa vontade  no  mundo.  Em  Teresópolis  Bernadete passou meses em uma vida pacata à custa do que restara  da  herança  do  falecimento  de  seus 

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pais,  e  como  toda  garrafa  esvazia  também  se esvai a embriagues e todo o dinheiro herdado. Para produzir fundos para o vinho barato e os pães  da  manhã  Bernadete  foi  artesã,  tentou simples  ramos  da  culinária  como  venda  de pastéis  e  acabou  como  acompanhante  de  um senhor  aposentado  que  gastava  as  últimas cifras de dinheiro e vida no jogo do bicho. Ao acompanhar  as  reuniões  na  casa  do  aposentado as quais se reuniam outros idosos aposentados, bicheiros,  e  prostitutas,  madame  Bernadete apaixonou­se  pela  voz  de  Dirceu,  o  famoso cafetão  de  Teresópolis  que  se  apaixonara  pela beleza  de  Bernadete  como  fizera  com  tantas outras  semanas  atrás.  Com  Dirceu  Bernadete conheceu o dinheiro e também o desprazer e em pouco  tempo  era  uma  das  prostitutas  mais procuradas  da  cidade,  a  contratar  seu  corpo destacavam­se  políticos,  artistas,  e  pessoas de certa influência social, a vida fácil deu a madame Bernadete fama, dinheiro e inimigos. 

O  cheiro  do  sucesso  aguçava  os  mais excêntricos  paladares,  o  que  haveria  na  bela prostituta  do  interior  de  Minas  Gerais  que satisfazia  até  os  mais  exóticos  clientes? Costumava  dizer  o  prefeito  da  cidade  em encontros às escondidas por entre uma carta e outra, um drink na mão e o olhar cerrado para Dirceu  que  Bernadete  era  capaz  de  satisfazer um  cão  sarnento  por  um  longo  tempo.  Os comentários  a  respeito  da  jovem  prostituta arrastaram­se  por  diversas  cidades  vizinhas trazendo de volta também o seu passado. Carlos ficou  sabendo  do  novo  ofício  da  ex­mulher  e alcoólatra,  doente  e  falido  chegou  a  ir  até Teresópolis  reivindicar  a  Bernadete  parte  da herança  que  supostamente  lhe  cabia  do rompimento do casamento. No trágico reencontro e  já  com  venéreas  passeando  por  entre  os dentes  Carlos  matou  a  facadas  Dirceu  que tentava  defender  Bernadete  das  acusações  e reivindicações  do  pintor  falido.  Na  manhã  do 

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dia  seguinte  enquanto  o  corpo  de  Carlos  era removido  totalmente  mutilado  e  deformado  das águas do Lago Iacy, Bernadete tomava o ônibus rumo à Araras com o dinheiro da semana, pois o dinheiro nunca durava mais do que esse tempo, roupa  limpa  para  alguns  dias, anticoncepcionais  e  uma  mexerica  para  não sentir  fome  durante  a  viagem.  A  partida  não planejada se deu ao fato de que foi atribuída a Bernadete a culpa da morte de Dirceu e suas então  companheiras  de  trabalho  tramavam  para Bernadete  o  mesmo  destino  de  Carlos,  movidas metade  por  vingança  metade  por  medo  de  que, influente  e  atraente,  a  moça  pudesse  tomar posse dos negócios do falecido cafetão. Após a fuga para Araras a vida de Bernadete se tornou durante  muitos  meses  uma  costura  entre prostituição e viagens até finalmente fixar­se na  cidade  do  Rio  de  Janeiro.  No  Rio  madame Bernadete  trabalhou  durante  cinco  anos vendendo­se  nos  bares,  nas  esquinas  e  nos acostamentos,  a  rua  suja  e  movimentada  era  a sua  vitrine  e  após  todo  o  tipo  de  cliente  a deslizar  a  língua  áspera  e  dedos  sujos  por suas  coxas  madame  Bernadete  resolveu  abrir  o seu próprio bordel com a única coisa que tinha aprendido a poupar nos últimos anos, dinheiro.

Em menos de um ano a Casa Vienense era um dos  mais  freqüentados  puteiros  do  Rio  de Janeiro,  seres  de  todos  os  lugares  vinham  à casa  de  madame  Bernadete  para  provar  seus diversos sabores. A música ao vivo e as belas prostitutas  eram  destaque  e  motivo  do  retorno da maioria dos clientes que, somados ao lucro e  boa  administração,  logo  fizeram  da disfarçada  casa  uma  imponente  construção chamando  a  atenção  de  quem  quer  que  passasse em frente. Com decoração clássica e aspecto de pensão  Portuguesa,  a  Casa  Vienense  era freqüentemente  fotografada  por  turistas  que passavam  por  perto,  quando  não  experimentada também.  Após  o  sucesso  de  seu  bordel  Madame 

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Bernadete  não  fez  mais  programas,  ficando apenas  com  a  tarefa  de  administrar  a  casa, estava sempre na cozinha com aspecto calmo ou, vez em quando, áspero e indiferente, usava um linguajar  forte  e  levemente  vulgar.  A  Casa Vienense dispunha de uma sala ampla com mesas para  jogos  e  drinks,  e  diversas  cadeiras  e sofás  onde  as  senhoritas  que  tinham  seus preços  tabelados  poderiam  se  oferecer  ao  som de  música  ao  vivo,  quase  sempre  Jazz.  Quando ganhava  um  cliente,  constantemente  a  moça amarrava  a  gravata  do  mesmo  no  pescoço  ou  no próprio  punho  e  desfilava  discretamente  pela casa  de  forma  a  mostrar  que  a  noite  estava garantida  e  não  faltaria  dinheiro  no  dia seguinte,  isso  também  ajudava  a  evitar  que dois  senhores  cobiçassem  a  mesma  dama.  Madame Bernadete  jamais  voltou  a  se  relacionar formalmente  e  quase  sempre  era  vista acompanhada de diversos rapazes de aspecto bem mais novo do que se encontrava a mesma agora, envelhecida,  porém  marcada  mais  pela  vida  do que pelo tempo.

­ Obrigado por chamar o táxi, avise as outras que volto à noite e quero encontrá­las já vestidas e de sorriso na face. Boa tarde, me leve para Belmont em Ipanema por gentileza.

­ Sim senhora ­ Após minutos de silêncio e leve olhada no retrovisor o Taxista tenta um entrosamento ­ A senhora é do Rio de Janeiro mesmo?

­ Não senhor, sou de Minas Gerais.

­ Fato que lastimo em minha vida é o de nunca ter visitado Minas Gerais.

­ Não está perdendo nada. 

­ É que falam tão bem de lá, e... 

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­ O senhor deveria olhar bem para os lados antes de atravessar um diálogo. 

­ A senhora me perdoe, eu estava apenas sendo gentil. 

­ O senhor não considera uma ofensa uma pessoa conversar com a outra por mera obrigação?

Com o semblante um tanto quanto envergonhado o homem responde ­ A senhora talvez não tenha tido uma boa manhã. 

­ Ora meu bom homem, todas as minhas manhãs são iguais ao seu ponto de vista. 

­ A senhora não me conhece tão bem para saber se eu acharia as manhãs todas iguais. E olha, para quem dirige nenhuma manhã é igual à outra ­ Terminou sorrindo pausadamente. 

O silêncio abraçou a situação e o taxista continuava a dirigir como quem vasculhava o cérebro em busca de um assunto, um sorriso, ou qualquer tipo de interação, porém Madame Bernadete continuava imóvel no banco de trás elegantemente sentada, parecia indiferente ao homem até que, estacionando em frente ao destino, o silêncio é quebrado. 

­ Chegamos ­ Anunciou o taxista enquanto ainda parava o veículo. 

Madame Bernadete se aproximou da porta e disse ­ A calçada está pela direita ou pela esquerda?

­ Já disseram que a senhora é um pouco engraçada? Com todo respeito é claro ­ Exclamou sorrindo o taxista e continuou ­ A calçada está para esquerda. 

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Madame Bernadete abriu a bolsa discretamente, demorou alguns segundos e perguntou ainda com a mão na bolsa ­ Quanto custou?

­ Quanto custou o que?

­ O seu corpo ­ Nesse momento ficou corado o rosto do taxista e madame Bernadete emendou ­ Ora, claro que falo da corrida, o que mais seria?

­ Para a senhora é vinte reais. 

­ Aposto que diz isso para todas. 

Enquanto contava o troco o taxista aproveitou pra se despedir ­ Antes que a senhora se vá, por que me perguntou se a calçada era pela esquerda ou pela direita?

Já em pé a cafetina respondeu ­ É que nasci cega e tenho plena consciência de que morrerei assim. Mas morrerei cega dos olhos, hoje meu coração enxerga e muito bem.

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Borboletas Noturnas

Que Deus vos abençoe na volta para casa. Assim terminou mais uma missa de padre Giulio e é de se desconfiar que continuem terminando até  o  fim  de  seus  dias.  Nascido  em  Verona  na Itália, veio com a mãe para o Brasil aos oito anos de idade devido à morte do pai, já que os avós por parte de mãe moravam no Brasil seria melhor  que  a  mãe  enfrentasse  o  problema estando  próximo  da  família.  Assim  que completou  dezoito  anos  sua  mãe  também  veio  a falecer  e  um  ano  após  o  falecimento  da  mãe Giulio  entrou  para  o  mosteiro  São  Damião  em Porto  Alegre,  a  partir  de  então  adotou  um estilo de vida celibatário e de fato, talvez o Concílio  de  Trento  foda  a  vida  de  certas pessoas.

Na  noite  anterior  Madalena  se  preparava para  subir  ao  palco  e  apresentar  seu  show erótico  em  uma  boate  dessas  que  só  tem  um banheiro  e  até  quem  freqüenta  fala  mal,  mas mesmo  assim  é  bem  freqüentada.  Madalena chegava  sempre  minutos  antes  de  começar  seu show,  sempre  muito  bem  arrumada,  nunca  se embelezava esteticamente no local, mas passava longos  minutos  embelezando  a  mente  na companhia  de  algum  destilado.  Nessa  noite  o espartilho  listrado  que  lhe  vestia  conversava com  a  cinta  liga  e  pensava  ela  em  uma  dieta, não  seria  ético,  mas  imoral  pode.  De  longos cabelos presos subiu ao palco para cantar alto numa voz grave em corpo de mulher.

Talvez pelo sentimento que transpareciam, as missas de padre Giulio eram muito elogiadas na cidade, o elegante italiano no alto de seus 50  anos  era  referência  para  os  cristãos  e talvez  não  houvesse  religioso  que  não defendesse  junto  a  todos  os  dogmas  da  igreja também a beleza de tais missas, o padre era o argumento  de  pessoas  como  aquelas  senhoras 

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mais conservadoras quando atacavam os costumes da  sociedade  moderna  ou  algum  comportamento que  desaprovassem.  Após  a  missa  e  o cumprimento  dos  deveres  de  seu  ofício  Giulio costumava ir para casa sem fazer parada, e foi como  fez  de  fato.  Morava  em  um  apartamento simples,  não  tinha  animais  de  estimação  e apesar  de  ser  muito  querido  pela  população  e ter  diversos  amigos,  nunca  recebia  visitas, era  uma  pessoa  muito  tranqüila  e  liberal, costumava falar  do  amor, da tranqüilidade, da sociedade,  sempre  com  críticas  de  forte embasamento,  porém  sem  ferir  nenhum  tipo  de liberdade  ou  impor  algum  dogma  religioso. Apenas  pela  feição  era  possível  notar  que padre Giulio era um homem muito vivido e muito sábio, exímio leitor, vegetariano e apreciador de  bons  vinhos  quase  nunca  era  visto  na cidade,  era  geralmente  calado,  porém  convicto quando  falava.  Nesse  sábado  havia  acabado  a missa da tarde e era possível dormir um pouco até  a  noite,  após  um  banho  quente  e  algumas páginas  de  um  livro  qualquer  Giulio  entregou­se ao sono.

Na  noite  anterior  Madalena  cantou canções, excitou a platéia e como sempre saiu sem  se  despedir.  Seus  shows  eram  admirados pela  sensualidade,  certo  desprezo  e  também pela  musicalidade.  É  claro  que  a  platéia também  gostava  da  sedução  e  da  perversão  que os shows de Madalena continham, da masturbação ao  vivo,  da  dança  e  da  ousadia.  Madalena provocava desejos com a liberdade e o ódio que demonstrava  no  palco,  era  como  se  todos quisessem  laçá­la,  dominá­la,  porém  sequer  se aproximavam.  E  em  meio  a  toda  a  perversidade havia toda uma tristeza, toda uma carência em seu  olhar,  um  piscar  lento  e  o  rosto  pintado de  branco,  Madalena  tinha  sexo  nos  lábios  e toda  tranqüilidade  nos  gestos.  Depois  de terminado  o  show  e  uma  conversa  com  Anna Belle, sua confidente e dona da casa, Madalena 

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saiu com o carro. Muito do sucesso de Madalena devia­se  também  aos  clientes  que  iam  toda noite de Sexta assistir seus shows para tentar descobrir,  decifrar  o  ser  que  se  apresentava, porém  nunca  estava  acompanhada,  nunca conversava, nunca ficava para o fim de noite. Era  como  se  as  pessoas  fossem  assistir Madalena e Madalena fosse se apresentar para a noite.

Devido ao sono da tarde Giulio acordou na boca  da  madrugada,  com  os  olhos  e  a  mente aberta,  contava  pensamentos  que  saltavam  por sobre  a  cerca  de  seus  hemisférios  cerebrais, pensava  sobre  o  homem  o  qual  vive  como  ser pleno  apenas  quando  está  sozinho,  mas considera ser pleno apenas quando em companhia de  outro  ser,  aquele  que  vive  seus  sonhos  e suas  realizações  apenas  atrás  de  uma  máscara como  se  seu  eu  fosse  uma  âncora  na  imensidão do  mar  onde  apenas  os  que  se  dispusessem  a mergulhar  no  ventre  abissal  de  seus  medos  é que  poderiam  enxergar  alguma  coisa.  Já  é domingo  pensava  o  velho  padre,  e  com  seu pensamento  vinha  também  uma  tentativa  de conspurcar  o  motivo  dos  seres  que  buscam  a felicidade tentando ser algo o qual os outros admiram. Colocamos as nossas máscaras de seres corretos, de quem quer o bem, de altruístas e saudáveis  ainda  crianças,  controlamos  o colesterol,  escovamos  os  dentes,  vamos  à academia  para  ir  à  praia  no  verão,  rezamos antes de dormir e vamos à igreja por achar que existe  céu  e  inferno.  Ainda  pensativo  sentado na  beira  da  cama  calçou  os  chinelos  e  se dirigiu  à  cozinha,  quem  sabe  algo  de  agrado esteja esperando na geladeira.

E o que era sexta­feira se transformou em uma madrugada de sábado, enquanto dirigia para casa Madalena pensava se convinha aos olhos se ver assim, se convinha aos neurônios manterem­se avulsos a qualquer julgamento e não julgar qualquer  outro  ser  que  esteja  avulso  à  sua 

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fronte.  Não  me  venha  forçar  a  simpatia  ou aguçar  a  curiosidade  na  esperança  de  saciá­la com minhas palavras, não é senão homem aquele que  domestica  os  sentimentos,  aquele  que domestica  as  vontades.  Não.  O  que  enjaula  os desejos  é,  pois  um  fantasma  a  assombrar  a  si mesmo,  não  é  nada  senão  uma  sombra  de  seu verdadeiro  eu  escondido,  mostra  tua  sombra para  quem  te  quer  bem  e  não  saberá  do  teu choro abafado pelo banho. Se pausar a ação não espere  de  teus  sonhos  nada  além  de  impulsos neurais,  e  se  assim  me  vejo  no  espelho  de manhã,  me  escondo  que  é  pra  não  me  aceitar demais.  Assim  flutuavam  os  pensamentos  de Madalena  que  enquanto  refletia  ao  dirigir, virava  a  esquina  mais  próxima  de  seu apartamento.  Parou  na  beira  da  calçada  numa rua  ainda  vazia,  aquela  neblina  que  iria embora  assim  que  o  sol  começasse  a  se despreguiçar  a  assistiu  despir­se  no  carro  e rumar  para  casa.  Madalena  morava  em  um apartamento  simples,  não  tinha  animais  de estimação  e  nunca  recebia  visitas,  era  uma pessoa  muito  tranqüila  e  liberal.  Assim  que abriu a porta do sétimo andar tirou a fantasia de  mulher  e  se  tornou  novamente  Giulio, descansou,  tomou  um  banho  e  após  um  drink pensou  durante  alguns  minutos  na  noite anterior, homem no corpo de mulher ou seria o contrário?  Dançar  para  uma  platéia  de  hienas tristes,  não  deu  muita  atenção  a  si  mesmo,  é sábado, hoje tem a missa da tarde e era só o que se passava pelas vias de suas preocupações agora.  Pensou  pouco,  sonhou  pouco  e  dormiu bem.

Que Deus vos abençoe na volta pra casa. Assim  terminou  a  missa  de  Padre  Giulio  como terminaram todas as outras de sua vida, e é de se  desconfiar  que  continuem  terminando  até  o fim de seus dias.

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Trevo de Quatro Folhas

Ah  o  amor,  não  pra  mim,  eu  até  poderia sair  por  aí  amando  sabe  cara,  mas  amor  é  uma coisa  que  realmente  me  chateia,  eu  gosto disso,  só  não  gosto  mais  do  que  essa  nossa interação  constante,  eu  falo  e  você  fica  aí com essa cara de otário pra mim, e aí eu falo mais e quando acho que não tem mais como você fica com mais cara de otário ainda. Você sim! Você  me  diverte  sabia?  Eu  gosto  mais  de  você do  que  de  amor,  amor  não  tem  pênis,  você  tem eu suponho. Mas não é por mal, entra uma grana boa e eu nem me esforço muito, a arte está em um  bom  cianureto,  não  dá  pra  reclamar  de morrer nos braços de uma mulher feito oficial nazista. Você parece um porco babando por sexo aí me olhando, está com a mesma cara de quando encomendam  flores  comigo,  eu  sempre  digo  que sou  vendedora  de  flores,  e  afinal  não  sou? Note  as  semelhanças  entre  nós  cara,  eu  digo, eu e os vendedores de flores. Sabe, as pessoas vão  sempre  gostar  de  você  desde  que  você  não esteja  melhor  do  que  elas,  elas  sempre  vão pagar  o  que  for  pra  ver  quem  elas  odeiam  na merda.  Mas  olha,  peça  o  que  você  quiser  de mim,  por  favor,  sem  essa  de  agradecer,  coisa boa não se agradece, comemora­se. E pense, sua mãe o ensinou como agradecer e como se portar, mas não é isso que me interessa e nem é o que te  interessava,  tenho  certeza  que  as  coisas mais legais as mães não ensinam. Você até que finge  bem  ser  o  que  não  é  pra  conquistar  uma mulher,  é  bonito,  deve  ser  casado,  ter família,  um  filhinho  e  quem  sabe  socar  a pancada  na  mulher  quando  está  irritado  né? Nossa  calma!  Senta  aí,  não  fica  bravo  assim não,  assim  você  me  diverte.  Então,  sempre  é gente  importante  que  pede,  quantos  caras  já não  vi  a  cara  estampada  no  jornal  que  tinha enfiado  o  dedo  sujo  nos  meus  peitos  na  noite 

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passada,  mas  nem  chegou  a  tirar  o  pau  pra fora,  vestiu  o  paletó  de  madeira  na  manhã seguinte de pau duro mesmo, alguns, outros nem isso. Sabe o que acho mais cínico nisso tudo? Óbvio  que  você  não  sabe.  O  idiota  que  está agonizando  na  minha  frente  nem  sequer  pagou pelo  serviço,  outro  que  o  odeia  o  fez,  pagou pra ele morrer, ou seja, você odeia a pessoa e ainda  faz  um  enorme  favor  pra  ela,  vai entender,  me  faz  rir  às  vezes,  não  sei  se tenho mais pena de mim ou deles. Triste eu? Só se for por mim, não tem anjo aqui não colega e como  mulher  eu  posso  te  garantir  que  sou  a primeira e a última. Mas triste mesmo eu fico é  por  esse  bando  de  idiotas  ao  redor,  vai olha,  sei  que  é  brega  olhar  em  volta,  mas foda­se,  ainda  mais  você  que  deve  estar entrando pela primeira vez num lugar como esse não é? Deve estar morrendo de curiosidade, vai olha  que  eles  olham  pra  você  como  se  você fosse  um  doente,  olham  com  pena  de  você,  mas não é uma pena humana, é do tipo de sentimento que  só  aflora  pra  que  eles  continuem  se sentindo  superiores.  Por  favor,  não  me  faça essa  cara  de  espantado,  até  parece  que  você não percebeu, te olham com essa cara de falsa piedade  julgando  interiormente  que  você realmente é um ser triste ou inferior por não ser como eles, andar na linha, deitar do lado da  esposa  enrugada  todas  as  noites  e  se masturbar  enquanto  ela  dorme.  Casamento  é  o que fode com tudo isso, mas eu estava falando deles, aqueles que nós estamos morrendo de dó agora, todos envolta sorrindo que é pra chegar em casa e segurar melhor o choro. Não me fale de carinho, de mudar de vida, não seja piegas, certa  vez  estive  com  alguém  e  foram  apenas algumas  semanas,  mas  as  pessoas  se  confundem, não  é  culpa  delas  cara,  não  é  culpa  minha  e nem sua é que puro hoje em dia é só bebida de alambique e ainda se não misturaram água, não dá pra esperar mais nada de ninguém a não ser 

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uma cara horrível de manhã após provar você. E sabe,  depois  de  uma  noite  dessas  eu  gosto mesmo é de ver a minha cara de manhã e saber que eu vou estar inteira ainda. Eu já pedi pra você  parar  de  rir?  Mas  eu  estive  sim  com alguém  melhor  do  que  você,  com  menos  cara  de otário que você e tenho certeza que ele tinha um pau bem maior também, mas então eu acordei e  é  sempre  assim,  acorda  você  e  o  lençol  na cama  e  nada  mais,  quem  está  com  você  sempre vai  dar  um  jeito  de  ir  embora  e  se  quiser ficar a vida dá cabo. Aquela coisa de olhar e sentir  um  frio  na  barriga,  de  ficar  perto  e ter o coração na boca eu já nem sei mais como é,  a  graça  de  amar  era  ter  medo.  Eu  fiz  do coração  as  tripas  e  foi  só  isso,  e  você continua  aí  me  olhando  como  um  otário,  na verdade,  no  fundo  mesmo  eu  só  queria  amar cara.

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Whiskey com Café

Estive cometendo todos os atos dos quais sei  que  deveria  estar  evitando,  ou  ao  menos guardando. Quando nos sentimos bem na presença de alguém toda tentativa de aproximação é uma futura  distância,  toda  a  necessidade  de plantar sentimentos para colher sorrisos, para se fazer sorrir, é também semear o comodismo. O fato é que ela sabe me dar o silêncio quando eu  preciso  dele,  o  olhar  calmo  de  manhã  e  o respirar  mansinho  de  madrugada.  Eu  sei  que nunca entendi como eu vim parar aqui, pois eu planejei  nunca  voltar,  mas  o  fato  é  que  eu sequer  fui.  Estive  pensando  sobre  pensar  em você  e  essa  mania  que  desenvolvi  de  ocupar  o tédio  com  pequenas  lembranças  de  nossos momentos, o que de fato me permitiria produzir quem  sabe  um  filme  considerando  que  eu  estou quase  sempre  entediado.  Não  estava  nos  planos que  fosse  assim  e  por  isso  é  que  é  tão diferente.

Estive observando­a tomando café amargo e lendo  na  mesa  da  cozinha  com  o  cigarro  entre os  dedos,  as  pernas  próximas  e  os  olhos cravados  em  letras  miúdas  espalhadas  pelas páginas  amareladas.  Não  adianta,  eu  já  me conformei e por mais que eu tente eu não leio o que o seu olhar me diz, e entre uma mensagem e  outra  chego  a  suspeitar  que  na  verdade  ele não  me  diga  nada.  “Seus  olhos  andam  mais brilhantes”,  eu  digo  “Passei  a  pingar  colírio neles,  estão  secos,”  você  me  responde. Enquanto  eu  estive  deitado  tentava  entender algumas  páginas  de  todos  aqueles  textos  que você  disse  que  eu  deveria  ler  para  comentar contigo  ou  simplesmente  porque  estava dividindo  comigo  o  que  te  faz  ter  impressões do  mundo,  e  eu  só  pensava  que  a  cada  minuto entregava­lhe  um  pouco  do  que  eu  relutava  a desenvolver  dentro  de  mim,  eu  sentia  como  se 

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estivesse  a  empurrar­lhe  um  pouco  mais  para longe ao sentir­me assim, como se tivesse que manter­me escondido para fazê­la procurar­me e essa  seria  minha  maneira  de  mantê­la  por perto. Eu sei que eu não queria pensar, estar, me  importar  e  então  descubro  que  não  é necessidade,  é  querer.  Não  necessito,  mas quero,  todos  somos  inseguros  sem  exceção  e como  tudo  o  que  é  novo,  naturalmente  eu  vou precisar  de  exemplos,  de  aprovações,  de impressões que só eu posso me dar. Precisarei fazer  questões  certas  no  tempo  errado  só  pra me surpreender no final, porque é assim que as coisas  são,  um  fluxo  constante  de  fatos desconexos. 

O meu olhar transparente faz­me enxergar no  meu  medo  o  paradoxo  de  finitude  do universo, finjo que não me importo por medo de não ter importância, e como aceitar ainda dói a  minha  morfina  é  a  negação  de  que  necessito sorrir  com  a  sua  simples  presença,  e  as palavras são amigas sádicas quando não o faço. Nessa  de  interpretar  tudo  o  que  você  diz,  de ver  significado  e  tentar  decifrar  em  cada palavra um começo ou um fim temo que um dia eu acerte.  E  aí  está  toda  a  coragem,  pois  como cego que sou, apalpo o teu corpo na esperança de saber onde estou.

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Hemograma

O enganaria, pois se nem sei de certo do que  falo  como  posso  gritar  a  teus  ouvidos  o que  ainda  não  tomo  como  grito?  Amor  não  tem medida,  não  tem  quantidade,  tem  possibilidade e  nessa  altura  acho  que  já  falei  de  amor, merda.  A  ausência  é  um  carrasco  cruel, cúmplice da imaginação tortura­o, brinca com a atenção de quem se atreve a notá­la, e aí fico jogado  a  imaginar  se  você  está  bem,  se  saiu, se  divertiu­se,  se  conheceu  alguém.  Nesses momentos  me  odeio,  me  repudio  e  tento distrair­me  com  qualquer  livro,  com  qualquer música,  com  qualquer  inseto  que  esteja  a rodear  a  lâmpada  e  como  um  inseto  a  tua ausência  volta  a  rodear  a  minha  imaginação, assim  como  a  minha  força,  cresce  também  o incômodo  de  se  notar  só.  Chamo­a  de  solidão exclusiva  já  que  tem  antídoto  também exclusivo.  Não  durmo  arquitetando  planos  para destruí­la,  não  durmo  arquitetando  um  meio, uma  ponte,  uma  estrada  que  me  leve  à tranqüilidade. Às vezes me vem o desejo idiota de que você sem saber me visse e eu sem saber que  me  vê  sentisse  a  sua  falta  pra  que soubesses  como  fico  perdido  longe  de  ti. Fracasso, desespero­me e digo a mim mesmo que isso é saudade, bebo um pouco, fumo um cigarro e tento dormir que vai passar, esse sentir­se caindo  com  os  pés  no  chão  passa.  Pois  tudo acaba  numa  ponta  de  cigarro,  os  sorrisos,  as brigas,  os  abraços,  as  reconciliações,  as viagens,  os  dias  acordando  juntos,  o  choro abafado no travesseiro ou pelo abraço de quem você  julgou  teu  reino,  tua  muralha,  a  quem entregou  teus  planos  e  tua  saudade.  Tudo termina  no  fundo  do  copo.  Nos  dias  de  sol enquanto eu franzia a testa sentindo pena dos casais  alegres  no  parque  enquanto  os  casais alegres no parque sentiam pena de mim. Seja a 

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minha  morada  só  enquanto  eu  souber  o  caminho de casa e quando eu me perder que o meu novo destino  seja  belo  ainda  que  solitário.  De tanto  buscar  repostas  para  tua  partida  me  vi sem  sequer  lembrar­me  de  quando  você  se  foi, sabia  apenas  que  tinha  ido,  passou  a  ser  um sentimento  egoísta  o  fato  de  eu  me  importar apenas com a dor que tua ausência me causava e não com tua ausência em si. Tem noites em que me  apego  ao  vento,  às  lagartixas  passeando pelos  cantos  do  quarto  ou  qualquer  distração, mas  fica  tudo  bem  com  um  copo  de  rum,  alguns cigarros  e  algumas  palavras  tortas.  Quando  te vi eu não tinha estrada, mas tinha destino.

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Avulsas

I

Eu  vivo  tão  rodeado  de  excessos  que sequer  sei  diferenciar  o  que  é  bom  do  que  é necessário para mim, eu deveria olhar para as pessoas  estúpidas  e  ficar  calado,  eu  me  calo nas horas erradas. Estamos sempre buscando ser alguém,  encontrar  alguém,  amar  alguém,  e  nos esquecemos de quem somos, de quem temos e quem amamos.  Eu  queria  poder  olhar  os  seus  olhos novamente  às  duas  da  manhã  lentamente  se fechando  em  frente  à  TV,  de  sentir  o  limite entre o seu umbigo e o zíper, a leve curva no canto  dos  seus  lábios  ao  sorrir,  o  modo levemente  charmoso  com  que  você  segura  as flores e a maneira completamente leve que você sorri.  Eu  ainda  sei  exatamente  até  onde  vai minha ousadia e vou continuar sabendo até que ela  me  surpreenda  novamente.  Eu  parecia  tão distante  quando  era  para  ter  medo  talvez porque  eu  sempre  tivesse  uma  solução,  mas agora  eu  tenho  medo  de  que  não  exista  uma solução,  sempre  me  disseram  que  não  existe solução  para  tudo  e  eu  prefiro  acreditar  que ainda  não  conhecemos  a  solução  pra  tudo. Quando  eu  pensei  que  estaria  tudo  certo, estava  tudo  errado,  talvez  ao  invés  de  dizer que  havia  um  erro  eu  deveria  me  perguntar  se havia  um  motivo,  ao  invés  de  dizer  que  havia um  problema  eu  deveria  me  perguntar  se  havia uma  solução.  Talvez  se  eu  tivesse  feito  tudo diferente, o fim seria o mesmo.

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II

Sem  casa,  sem  rumo,  nada  entre  eu  e  a chuva. Esperei o momento certo achando que eu teria  muito  a  dizer  e  então  eu  não  consegui emitir  sequer  um  ruído,  a  luz  entrava  pela janela  e  iluminava  o  quarto  escuro,  este  já nem  sou  mais  eu,  eu  sou  qualquer  outra  coisa ou  eu  gostaria  de  ser.  Você  pode  usar  um desses copos jogados no chão de cinzeiro ou me usar  se  quiser.  As  sombras  projetam­se  nas paredes  como  os  sentimentos  em  nossos corações,  elas  são  voláteis,  mudam  de  acordo com  a  luminosidade  e  às  vezes  tomam  formas, nos  dão  medo  ou  fazem  rir,  mas  no  fim  são apenas  sombras  e  todas  se  vão.  Eu  não  sei lavar roupa e não sei cozinhar, mas não conta pra  ninguém  tudo  bem?  Longe  de  casa  tudo parece  maior  e  fica  mais  difícil  distinguir quem finge que o ama de quem te odeia. Os meus olhos  enxergam  um  pouco  além  do  seu  rostinho bonito e eu vou saber quando você fingir, mas vou  ignorar  e  você  sabe,  as  pérolas  derretem no vinagre então pra que essa prepotência? Eu evito pessoas com fones de ouvido e eu sei que no  fim  eu  só  evito  a  mim  mesmo,  escrevo  a minha alma e você lê a sua e ainda assim não te  fiz  sonhar  com  a  vida  que  levo.  Eu  tenho essa  cara  pálida  porque  não  me  alimento direito,  e  o  pior,  não  por  necessidade,  é apenas  falta  de  talento  culinário  mesmo.  É mais fácil fumar um cigarro e tomar uma xícara de café.

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III

Não  me  importa  nenhuma  razão,  outra  vez eu abro a porta e desço um degrau para rua, o sol  socando  meus  olhos  e  aquela  seriedade  no olhar  serrado  de  quem  acaba  de  se  lembrar  de alguma  merda  que  fez  de  madrugada,  acendo  um cigarro e penso, ou finjo que penso. Diga­me, você já foi alguém para alguém para querer que alguém  seja  alguém  para  você?  Ontem  eu  achei uma  carta,  algo  o  qual  me  escreveram  anos atrás,  estava  amarelada  e  dobrada  embaixo  de um maço de cigarros vazio, afinal quem guarda maços de cigarros vazios quando se tem cartas? Foi  escrita  para  mim  no  momento  mais  sutil  e mais tranqüilo, no momento em que pude chamar minha existência de vida. A cada manhã eu tiro braços  diferentes  do  meu  corpo  e  toco  corpos diferentes  ao  amanhecer,  aquela  facilidade  e ilusão  excessiva  que  a  vida  te  joga  na  cara para  anestesiar  suas  mágoas.  Viraram  a  minha vida de cabeça pra baixo, não, na verdade acho que  eu  fiz  isso  sozinho,  não  se  trata  de dinheiro,  de  estudo  ou  de  vida,  esse  não  é  o problema. Eu vou tomar um banho e deixar que o sereno  da  madrugada  caia  sobre  mim,  eu  vou vender meu cérebro e deixar a minha vida rolar como  água  pelo  vão  dos  dedos  de  quem  eu  nem conheço.

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IV

Tem  uma  pilha  de  gente  com  os  mesmos problemas  que  você  pra  te  dizer  o  que  fazer quando  você  está  literalmente  fodido.  Não  vou mentir,  não  vou  esconder  que  nem  tudo  passou da  maneira  que  deveria,  eu  não  sou  e  nunca mais serei o mesmo de alguns anos atrás e pra ser  sincero,  melhoramos  a  maturidade  para piorarmos a intensidade. E como não pude dizer adeus  eu  tenho  a  impressão  de  que  não  foi finalizado,  como  quando  você  perde  um  ente querido e não pode enterrá­lo, te dá sempre a impressão  de  que  o  mesmo  entrará milagrosamente  pela  porta  a  qualquer  momento. Não  vai  funcionar.  Melhor  do  que  dizer  algo que  alguém  deveria  fazer  é  ficar  calado  e fazer algo, eu vejo sempre os mesmos problemas com  as  mesmas  soluções  que  não  solucionam nada, mas não as trato assim, creio que sejam cortinas  temporárias  para  o  que  não conseguimos  encarar  ou  admitir,  me  parece ainda que não nos escondemos do que nos causa medo  e  sim  o  que  nos  causa  medo.  Não  há Fisioterapia  para  as  minhas  deficiências emocionais,  eu  sou  assim,  eu  me  sinto  assim. Só não sei assim como.

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V

Eu  acordo  sozinho  e  deixo  a  cama  sem arrumar, faço um café forte, adoço pouco, vou até  a  varanda  e  acendo  um  cigarro  e  deixo alguma  música  tocando.  Ainda  de  pijama,  com sono  e  os  olhos  cerrados  por  causa  dos  raios de sol eu aprisiono o meu mau humor típico no meu  silêncio  mais  típico  ainda.  Continua  tudo igual,  só  que  sem  você.  Honestamente  eu preciso  ser  assim,  um  pouquinho  estranho, maluco  mesmo  sabe.  Eu  preciso  dar  uma  fugida da minha e da sua realidade de vez em quando. Preciso  me  dar  problemas  que  antes  não existiam e talvez nem existissem se não fosse eu  os  criar.  Eu  preciso  estar  sozinho, desacompanhado até de mim que é pra quando eu te encontrar eu já ter me encontrado, porque a gente  não  pode  se  encontrar  sem  antes  se perder.

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VI

Hoje eu vou beber as mágoas, as saudades, eu vou esquecer a vida no fundo do copo. Eu já senti o gosto dessa situação antes, quando eu acordo  de  manhã  e  não  quero  me  levantar  da cama ou de lugar nenhum. Hoje eu vou beber as críticas,  as  brigas,  as  memórias,  a  falta  de ritmo, o meu estilo de vida torto e amanhã eu acordo com dor de cabeça, com um gosto de vela na boca e abro a janela para me machucar com a claridade.  Quando  eu  acordar  tudo  parecerá  um coma,  acendo  um  cigarro  e  sigo  em  frente,  na verdade nada aconteceu. Os abraços, os beijos, as brigas, os olhares, os planos, o fingimento de que tudo está e ficará bem, nada aconteceu de verdade, é como se tivéssemos encenado todo o tempo. Estou cheio de começos inacabados, de tentativas  não  tentadas,  de  sonhos  não sonhados,  de  amores  não  vividos,  mas  ainda sinto que tive tudo isso em mim mais do que em qualquer outra pessoa.   De onde vem tudo isso que  toda  gente  faz  igual?  De  onde  vem  tudo isso  que  se  olha  e  se  refaz  diante  de  outra perspectiva?  E  premia­se  por  isso?  Elogia­se por  isso,  dá­se  o  rabo  por  isso.  É  tudo  um lado diferente do mesmo cubo, é tudo janela do mesmo  quarto  que  olhando  de  dentro  para  fora cada  paisagem  se  desenha  como  se  designou, norte,  sul,  leste  ou  oeste,  mas  olhando  de fora para dentro é tudo o mesmo quarto, é tudo a mesma janela, é tudo o mesmo norte.

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VII

Sabe, pode chamar de piegas, mas todas as pessoas  que  passaram  por  minha  vida  foram  as últimas  pessoas.  É  que  eu  preciso  disso,  eu preciso  imaginar  mesmo  que  o  meu  racional  me grite lá no fundo que não, que essa é a última pessoa,  que  eu  vou  estar  só  com  ela  agora  e não vou mais precisar buscar ninguém, que ela tem  os  defeitos  e  as  qualidades  necessárias para  minha  tranqüilidade,  eu  preciso  imaginar essa  pessoa  dentro  do  que  sonhei  para  mim, ficar  imaginando  aquelas  cenas  que  nunca  vão acontecer,  aqueles  lugares  que  nunca  vamos visitar e situações que nunca vamos passar. Eu sei que nada disso é real e que sonho demais, imagino,  espero  demais,  nunca  é  a  última pessoa, mas eu gosto de fingir que sim, me faz feliz.  É  que  se  não  for  assim  eu  vou  embora sumo  no  mundo  e  paro  na  primeira  esquina, entro  no  primeiro  boteco  que  me  parecer acolhedor,  pois  se  não  me  faz  sonhar,  se  não me  faz  idiota,  piegas,  se  não  estupra  minha racionalidade  qualquer  bar  me  fará  mais  feliz do que a tua companhia.  

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Artificial

Descansa no meu corpo a alma em prantos e em  minha  mente  a  lembrança  do  que  finjo  que esqueci.  Após  um  corredor  estreito  com  as lesmas a escalar as úmidas paredes encontra­se meu lar, as pesadas portas de ferro e madeira lacram  meu  reino,  lacre  o  qual  apenas  o inimigo  tem  as  chaves  e  as  paredes  escuras cheias  de  nomes  escritos  cercam­me  como  uma lápide,  lar  de  insetos,  paredes  do  meu aquário, espectadoras do meu horror. O chão de cimento áspero como meu humor é a base para um enorme pilar cilíndrico que se ergue do centro da  cela  até  o  teto,  teto  este  o  qual  através das  frestas  e  buracos  podemos  observar  as barras de ferro que formam o cubículo, lar de murídeos  que  assistem  ao  concerto  de  gritos toda noite. Atrás do pilar existe uma fenda a qual  é  possível  passar  apenas  uma  pessoa  por vez  e  dá  acesso  a  um  estreito  corredor, impossível  que  duas  pessoas  coabitem,  no  fim do  corredor  há  um  buraco,  mais  precisamente uma  fossa  para  nossas  necessidades fisiológicas  e  um  cano  pelo  o  qual  desce timidamente a água que bebemos e nos banhamos. Lembro­me até que certa vez cortaram a água do tal cano durante três dias e ficamos sem tomar água  e  sem  tomar  banho.  Do  lado  esquerdo  da porta  há  um  colchão  no  chão  que  se  tirarmos dois centímetros de espessura parecerá mais um tapete  velho  e  sujo,  há  também  uma  caneca  de plástico  que  me  lembra  muito  meus  tempos  de escola. Do lado direito da sala há um banco de madeira  que  se  estende  de  uma  extremidade  a outra  da  parede  o  qual  passo  muito  tempo deitada  embaixo,  parece  que  me  sinto  mais protegida.  Costumava  antes  ficar  sentada esperando  algum  nem  eu  sei  o  que  vir  me buscar. 

Jogada  aos  cantos  com  as  feridas 

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atritando contra a parede e os olhos inundados lembro­me  de  minha  infância,  só  ouço  minha respiração e o medo que me grita de dentro do estômago, e que ninguém me venha violar agora. Eu  não  sou  mulher,  eu  não  sou  mulher,  eu  sou só  uma  criança.  Lembro­me  de  quando brincávamos eu e meu irmão no jardim em frente a nossa casa, nesse mesmo jardim situava­se a notável  laranjeira  a  qual  meu  pai  passava horas lendo na tranqüilidade de sua sombra, em tempos  de  natal  a  enfeitávamos  como  se  fosse nosso  pinheiro  e  talvez  ficasse  até  mais bonita,  meu  pai  costumava  pendurar  nossos presentes nela e apesar de mais novo meu irmão sempre pegava o dele e o meu lá no alto, ele sempre  foi  muito  alto  e  de  coração  de proporcional  tamanho,  nunca  negou  ajuda  a qualquer  um  que  lhe  erguesse  olhos  tristes. Meu  pai  costumava  nos  dizer  que  em  nossa laranjeira  brotavam  todos  os  presentes  de todas  as  crianças  do  mundo  e  que  por  isso, tínhamos  que  cuidá­la  com  máximo  esmero  para que  as  crianças  menos  afortunadas  também tivessem  seus  presentes  no  natal.  Só  eu  sei como me sentia importante por ter a árvore dos presentes  do  mundo  inteiro  e  que  ainda  dava frutos.  Tenho  a  imagem  de  meu  irmão  lá  no alto, sentado no galho com os pés a balançar, sorrindo e pedindo para que eu subisse, cabelo castanho  como  os  olhos,  lábios  finos  e  rosto quadrado,  muito  alto  e  magro,  foi  quem  por muito tempo impediu minhas lágrimas de tocar o chão. Em dias como estes eu invento a presença do meu irmão para firmar­me melhor, mas a essa altura  não  posso  vê­lo  nem  em  meus pensamentos, minha garganta seca não pronuncia mais  seu  nome  e  os  meus  olhos  quase  fechados devido  ao  inchaço  o  enxergam  apenas  em  minha memória,  apagado,  ao  longe,  sempre  se despedindo.

No dia em que Eduardo, meu irmão, saiu de casa  para  estudar  em  São  Paulo  minha  mãe  não 

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se  acanhou  em  chorar  em  minha  frente  e  pedir para  que  eu  não  fizesse  como  ele,  pois  ela traria São Paulo para dentro de casa para que Eduardo  pudesse  dar  continuidade  aos  estudos. Meu irmão tinha dezenove anos quando partiu e eu  vinte.  Em  São  Paulo  Eduardo  conheceu  a boêmia  e  se  envolveu  com  o  Partido  Comunista Brasileiro  passando  a  liderar  diversos protestos e ajudar vítimas, presos políticos e companheiros  comunistas,  com  o  tempo  tomou notoriedade  até  ser  publicada  uma  entrevista prestada  por  ele  no  jornal  da  faculdade. Eduardo  acabou  sendo  chamado  por  agentes  do Exército para depor acusado de ligações com o Partido Comunista, estranhamente foi liberado, porém  jamais  retornou  para  casa,  para  a faculdade,  ou  para  lugar  algum.  Alegaram  mais tarde  que  meu  irmão  e  outros  três  comunistas haviam  se  envolvido  em  um  confronto  com militares,  foram  baleados  e  acabaram  morrendo no  local.  Naturalmente  essa  foi  a  versão  que os filhos de uma puta arrumaram para explicar o sumiço repentino de Eduardo.

Sem notícias a quase três meses meus pais estavam  à  beira  de  um  surto,  então  decidi  ir até  São  Paulo  investigar  o  paradeiro  de  meu irmão,  fiz  as  malas  e  em  duas  semanas  tomei posse de meu rumo. Tudo depois dos degraus da porta  de  minha  casa  era  tristeza,  tudo  que havia  depois  do  horizonte  me  desapontava,  era sempre  mais  horrendo  do  que  o  que  imaginei. Após  me  instalar,  conversei  com  amigos, conhecidos, cheguei até mesmo a sondar algumas pistas  com  trabalhadores  dos  caixas  de supermercados  e  comerciantes  próximos  da residência  sobre  o  paradeiro  de  meu  irmão, porém  sem  sucesso.  Depois  de  quase  um  mês  de procura  uma  amiga  de  Eduardo  veio  até  mim, garota baixa, quase de minha estatura, cabelos bem  pretos  até  o  ombro,  olhos  grandes,  nariz bem fino, lábios bem definidos e magra como o rosto  que  tem  disse­me  que  Eduardo  estava 

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demais  envolvido  com  o  ativismo  e  que  o paradeiro  dele  era  desconhecido  também  pra ela, até mesmo por questões de segurança, com muita  insistência  consegui  com  a  garota,  que se  identificava  como  Kely  o  telefone  de Vladimir  que  segundo  ela,  encabeçava  algumas ações  do  Grupo  Comunista  e  com  certeza  teria alguma  informação  relevante  sobre  Eduardo.  Ao telefonar  para  Vladimir  e  explicar­lhe  o  que ocorria  fui  imediatamente  reconhecida,  pois segundo  ele  Eduardo  falava  muito  de  mim, Vladimir disse­me que não tinha boas notícias, mas  mesmo  assim  não  as  diria  no  telefonema, era  arriscada  demais  a  troca  de  informações desse  cunho  via  telefone,  acertamos  então  que nos  veríamos  onde  eu  estava  instalada  após três  dias  desde  a  data  do  telefonema.  Não  me alimentei  direito  nos  dias  em  que  se decorreram,  passei  a  maior  parte  do  tempo  em frente à televisão, pois tudo o que me exigia raciocínio, ainda que mínimo, era deixado para segundo plano, no momento preocupava­me apenas em encontrar meu irmão e convencê­lo a voltar para casa até que os tempos melhorassem. Nesse intervalo  de  alguns  dias  me  alimentei basicamente  de  café  e  pães  com  os  mais diversos  acompanhamentos,  salada,  manteiga, requeijão, etc. 

Finalmente  ouvi  a  campainha  do  precário edifício  tocar,  era  Vladimir,  ele  entrou,  me cumprimentou com a cabeça, deu alguns passos e parou  no  meio  do  cômodo,  me  esperou  fechar  a porta e então o pedi que se sentasse, ofereci um  café  que  Vladimir  tomou  calado,  me  olhou sério  e  despejou  a  tragédia.  Eduardo  havia sido  preso  logo  após  ter  prestado  depoimento, mas  divulgaram  sua  falsa  soltura  para  evitar maiores  indagações  da  população,  segundo Vladimir,  na  verdade,  após  o  interrogatório meu irmão foi preso, torturado e não resistiu. Enquanto  Vladimir  me  falava,  eu  apenas chorava,  chorava,  soluçava  e  as  lágrimas 

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vinham  apressadas,  agressivas,  uma  empurrando a  outra,  as  pernas  não  sustentavam  o  corpo agora inóspito à felicidade e vagarosamente eu me sentava na cadeira à minha frente para não cair.  Vladimir  parado  com  a  cabeça  baixa chorava mansinho, e eu ali, gélida, pálida, só queria gritar, espernear aos ventos! É como se esse  dia  nunca  tivesse  existido  na  minha mente, é como se eu o tivesse inventado, como se  tivesse  doído  tanto  a  ponto  da  dor  ser gigantesca demais para ser real. Enquanto isso alguém batia na porta, e eu puxava e deslizava a  mão  pelos  cabelos,  abaixada  com  os  olhos fechados  escutava  as  batidas  na  porta,  eu estava  muito  transtornada  para  pensar  nisso, quanto  a  Vladimir,  creio  que  o  pobre  tenha ficado envergonhado para abri­la e também para me  dizer  algo  naquele  momento.  A  porta  mais uma  vez  chamava,  depois  mais  forte  e  mais forte,  e  meu  choro  descontrolado  era  a  mais bela  trilha  sonora  do  momento.  Lembro­me  da porta vindo ao chão, de cenas rápidas, do meu choro,  de  Vladimir  se  levantando  assustado  e pegando  no  bolso  um  frasco  com  veneno,  me lembro dos dois oficiais do exército com ódio nos  olhos  e  eu  sentada,  imóvel,  chorando  sem entender nada, quando me dei conta me vi sendo algemada,  o  corpo  de  Vladimir  no  chão convulsionava  e  se  retorcia  enquanto  um oficial o observava e acendia um cigarro, e eu convulsionava  e  me  retorcia  por  dentro,  o coração  epilético  só  bombeava  dor  para  o cérebro,  lembranças,  revoltas,  e  eu  gritava  e chorava,  tinha  nojo  de  ser  tocada  por  eles, mataram meu irmão, mataram meu anjo. Fui presa acusada  de  abrigar  comunistas  em  minha residência.  Quando  me  torturava  o  carrasco olhava­me nos olhos como se me conhecesse, não sei o motivo, mas sinto que foi o mesmo porco de que torturou meu irmão.

Tive  as  unhas  arrancadas,  insetos inseridos  nas  genitálias,  tomei  choques 

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elétricos e surras toda tarde, como um chá das cinco.  A  única  coisa  de  que  sei  é  que  estou apenas a carne, já não sinto, já não vejo, já não falo, apenas observo e não consigo sequer negar  quando  sou  arrastada  corredores  à  fundo para  pagar  por  pecados  que  sequer  cometi. Quando  perdi  a  capacidade  de  viver  e  passei apenas  a  existir  como  uma  cadeira  jogada inerte  no  canto,  quando  a  poeira  passou  a tomar  conta  do  meu  coração  as  torturas cessaram  e  recebi  a  notícia  que  estaria liberada dentro de um mês, mas não fui forte, sobrevivi,  ser  forte  é  outra  coisa,  é  não  se corromper, não sei como fiquei até então aqui, eu  quis  morrer,  eu  achei  que  iria  morrer,  eu quis  não  suportar  e,  no  entanto  o  corpo  foi mais forte que meu desejo. Quando o sol tocar a  minha  carcaça  na  rua  não  quero  minha  casa, não  quero  minha  mãe,  eu  não  quero  o  mundo  de volta.  Quando  meus  pés  tocarem  a  rua  não saberei mais para onde ir, nesse tempo em que estive  longe  de  casa  eu  desci  de  minha fortaleza,  de  meu  mirante  de  maturidade.  Não quero  rever,  não  quero  ver,  não  quero  falar, não  quero  contar  para  minha  família  que  um anjo  voltou  para  casa  esse  ano,  e  que  outro mora  agora  em  meu  ventre  e  chegará  dentro  de alguns  meses,  e  por  ambos,  a  culpa  é  minha. Mãe, eu estou grávida.

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Papo de Cozinha

Não, eu não estou espantado, e creio que isso  espante  você.  Eu  não  preciso  de explicações, mas se quiser eu ouço também. Só preciso de um copo d'água pra tirar esse gosto de  vela  da  boca  e  essa  ressaca  debaixo  dos olhos, engraçado é que você não mudou nada, os cabelos  cacheados,  o  rosto  tranqüilo  e  o coração  ao  longe.  Olha,  a  casa  é  minha  e  eu arrumo  se  eu  quiser,  pinto  as  paredes  se  eu quiser e até derrubo ela se eu quiser, façamos assim,  você  vai  embora  pra  não  voltar  dessa vez  e  eu  penso  se  arrumo  a  cozinha  tudo  bem? Eu  só  não  entendi  qual  a  finalidade  de desenterrar  tudo  isso,  você  veio  aqui  pra descobrir  como  você  se  sentiria  me  vendo sorrir?  Você  não  sabe  o  problema  que  a  tua ausência repentina foi pra mim, às vezes fico feliz em descobrir que a tranqüilidade que se recebe é proporcional ao tamanho do vazio que a  gente  sente,  das  noites  em  claro,  daqueles choros  descontrolados  de  madrugada,  das fronhas de travesseiro molhadas e um monte de cerveja na geladeira, whiskey em cima da mesa, maços e maços de cigarros e o filho da puta do pensamento  em  você,  mas  obrigado  por  oferecer desculpas,  aprecio  sua  tremenda  inclinação natural para a falta de bom senso, é quase um talento.  Sabe,  quando  acordei  sozinho  demorei uns  dias  pra  entender  que  você  tinha  ido embora, no começo foi um horror, uma fossa sem tamanho, o tempo ia passando e parecia que eu só  ia  piorando,  chorei  muito  sozinho,  me escondia  no  canto  da  sala  com  copo  e  cigarro entre os dedos, então foi passando e eu fui me reconstruindo  muito  melhor,  muito  mais  forte do que antigamente. Depois que eu tive certeza que  você  não  voltava  e  a  fossa  estava  mais longe, eu trepei com muita mulher nessa sala, nessa cozinha, nesse quarto, e se pensar, até 

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nesse  teto.  Eu  enchi  a  cara,  escrevi  durante madrugadas  e  vi  gente  quando  conveniente apenas.  E  com  o  tempo  você  ia  diminuindo,  ia embaçando  no  meu  olhar  e  só  ia  ficando  o necessário  pra  eu  me  lembrar  com  alegria  e respeito  de  ti,  mas  sem  mágoa,  sem  dor,  sem saudade, apenas lembrar. Com o tempo eu já não me sentia mal quando alguém falava de ti perto de mim, eu me pegava rindo da minha fossa, de você,  do  passado  e  nem  te  achando  tudo  isso, achava­me  bobo  e  ria,  passei  várias  noites comparando  a  visão  que  o  meu  novo  eu  havia criado  de  você  com  a  que  eu  tinha anteriormente. Foi tudo um grande aprendizado, e  quer  saber,  poderia  ser  você  ou  uma  puta qualquer de dois quarteirões abaixo, eu não me importo mais, seria tudo igual, não foi você, fui  eu.  Se  é  o  que  você  queria  saber  por incrível  que  pareça,  eu  tô  bem  pra  caralho  e se me permite um palpite, com o próximo cara, vê se avisa ao menos que vai partir assim ele antecipa  a  fossa  e  antecipa  também  a  cura  já que  amar  não  é  nada  além  de  estar  doente  dos sonhos. Pega essa colher aí do teu lado, isso essa mesma, obrigado. Quanto à casa, a mim, a você,  pode  ficar  o  tempo  que  lhe  for necessário,  as  portas  estão  abertas,  na verdade  elas  estão  fechadas  agora,  mas  você sabe o que eu quis dizer, quis dizer que pode contar  comigo,  que  se  precisar  vai  encontrar um  ombro  amigo,  um  afago  e  um  teto  aqui,  mas não  conta  com  a  sorte  não,  a  vontade  de  te mandar  tomar  no  cu  ainda  é  grande  e  não  vai passar  disso,  não  vai  passar  de  conveniência, bem  querer  e  um  toque  de  consideração.  Você pode  dormir  no  sofá  ou  no  quarto  que  era  meu escritório,  eu  não  uso  mais,  só  não  toque  em assuntos  do  passado,  não  me  toque  e  não  mexa nos doces de figo que estão na geladeira.

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Lady Maria

Deu  entrada  no  Hospital  numa  fria  noite de vinte e quatro de Dezembro, muito magra, de cabelos curtos e pele negra trajava uma calça cinza  de  moletom,  chinelos  de  dedo  e  uma camiseta  preta  de  alcinhas  que  escondia parcialmente  a  barriga  a  qual  abrigava  outra vida.  Chegou  em  trabalho  de  parto  com  fortes sinais de uso de drogas, mas ainda lúcida e um começo  de  pneumonia  diagnosticado  mais  tarde. A realidade, o sofrimento, a queda dos valores que se esconde atrás de todo o concreto da rua eram  visíveis  no  olhar  daquela  mulher,  Maria, como  disse  que  se  chamava,  não  possuía documentos  que  provassem  sua  identidade  e  não conseguimos  referências  suficientes  para confirmá­la.  Ficou  durante  alguns  minutos deitada  numa  maca  no  corredor  coberta  com  um fino lençol azul em posição fetal virada para a  parede,  era  possível  notar  sua  magreza  nos ossos  salientes  por  baixo  do  lençol,  da chegada à partida Maria falou muito pouco, na maior parte do tempo fazia apenas sinais com a cabeça, era usuária de crack, morava nas ruas desde criança e eram claros nela os sinais de profunda  depressão  ao  conversarmos.  Pelo  que soube por ela mesma, Maria nasceu no Grajaú em São  Paulo,  o  pai  era  chaveiro  e  a  mãe diarista,  fugiu  de  casa  ainda  com  doze  anos quando  a  mãe  se  envolveu  com  traficantes locais,  desde  então  foi  criada  pela  rua. Contou que se prostituiu algumas vezes mas não o fazia sempre, apenas em situações de extrema necessidade  e  que  provavelmente  engravidou  em uma  dessas  situações,  agora  mais  freqüentes para  sustentar  o  vício  do  crack.  Era  difícil traçar uma possível teoria sobre a gravidez de Maria,  pois  os  hábitos  da  moça  levavam  a diferentes  conclusões,  poderia  ser  devido  à prostituição, as próprias relações sexuais que 

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tinha  passivamente  com  alguns  parceiros  ou devido aos abusos que sofria quando estava sob forte  efeito  das  drogas,  como  já  dito,  era muito  complexo  tentar  desenvolver  uma conclusão. 

Na noite em que Maria dava luz, um senhor apareceu  muito  nervoso  e  ansioso  no  hospital, de  aspecto  muito  velho  aparentando  sessenta anos ou mais, tirando os traços de sofrimento que  a  vida  o  dera.  Como  eu  fazia  o  parto  no momento  apenas  ouvi  comentários  do  escândalo armado  pelo  homem  para  que  liberássemos  Maria e da discussão até que ele fosse convencido de que  não  faríamos  mal  à  moça  e  de  que  não chamaríamos  nenhum  órgão  público,  porém precisávamos  de  informações  para  liberá­la,  e curiosamente o homem tinha o RG da paciente no bolso.  Sentou­se  e  esperou  roendo  as  unhas  e tamborilando  no  encosto  do  banco  da  recepção do  hospital  durante  todo  o  parto.  Às  duas horas  da  manhã  do  dia  vinte  e  cinco  de Dezembro Maria deu a luz a um lindo menino de dois  quilos  e  meio,  o  que  espantou  muito  os médicos  devido  à  qualidade  de  vida  totalmente precária  e  o  envolvimento  da  paciente  com  as drogas.  Após  o  parto  fui  informada  do  senhor que  havia  chego  e  decidi  conhecê­lo, conversamos  durante  quase  uma  hora  e  ele disse­me  que  procurava  Maria  fazia  tempo, apaixonado pela moça que sumiu no mundo disse ter ouvido muitos boatos de que talvez ela já estivesse  morta  e  quando  obteve  a  informação de  que  Maria  vivia  nas  ruas  em  torno  da Estação da Luz se dirigiu até lá na esperança de  encontrá­la,  explicou­me  que  passaria  a noite  de  Natal  sozinho,  mas  nunca  perdeu  a esperança  de  reencontrar  a  moça,  pois  seria maravilhoso  que  passassem  o  Natal  juntos.  O senhor  havia  tido  muito  pouco  contato  com Maria desde sua partida, se conheceram na rua enquanto  ele  vendia  seus  artesanatos, brinquedos  infantis  de  madeira  confeccionados 

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por  ele  mesmo,  se  viam  sempre  no  mesmo  local até  que  ela  não  estivesse  mais  lá.  A  essa altura  o  homem  se  apresentou  para  mim  como “Seu  Zé”,  apelido  de  rua  para  o  verdadeiro nome  de  José.  Continuou  a  explicar­me  que assim  que  chegou  à  estação  e  não  encontrou Maria  começou  a  angariar  informações  com  os moradores  de  rua  do  perímetro  e  então  ficou sabendo  que  a  moça  havia  sido  levada  por  uma ambulância,  o  homem  que  cedeu  as  informações deu­lhe  uma  sacola  dizendo  que  eram  os pertences de Maria e que ele entregasse a ela caso  encontrasse­a,  na  sacola  havia  alguns documentos,  uma  calça  e  uma  camiseta  velha. José  ligou  durante  horas  em  vários  hospitais procurando  registros  de  entrada  de  Maria,  com os  documentos  da  moça  em  mãos,  não  demorou  a encontrar.  Disse­me  que  quando  obteve  uma resposta  se  sentiu  ao  mesmo  tempo  em  que aliviado  extremamente  angustiado,  pois  pensou que Maria tivesse sido levada ao hospital por causa  de  drogas  ou  agressões,  explicando  o nervosismo  com  que  chegou  ao  hospital,  mas quando  soube  da  gravidez,  ficou  perplexo, emocionado e muito feliz, tamanho era o tempo que  não  se  viam  que  José  sequer  sabia  da gravidez surpresa.

José se levantou com os olhos cheios de lágrimas  ao  ver  Maria  que  vinha  com  o  filho nos  braços,  não  disseram  nada  de  início, apenas  permaneceram  longos  minutos  levemente abraçados  entre  o  menino  que  dormia,  já  era manhã de vinte e cinco de Dezembro e os raios de  sol  começavam  a  passear  pela  recepção,  as janelas  estavam  todas  coloridas  de  laranja  e pareciam vitrais a rodear o recinto, uma manhã tranqüila  e  silenciosa,  alguns  pacientes dormiam,  outros  esperavam  e  cochilavam  nos bancos,  pessoas  entravam,  e  pessoas  saiam  e mesmo  assim  parecia  tudo  calmo,  fazia  muito frio  e  o  vento  que  entrava  castigava  os  que estivessem  desagasalhados.  Maria  se  mostrou 

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envergonhada  quando  olhou  José,  os  dois conversaram durante longos minutos, José ficou a observar o garoto e também Maria durante um bom tempo e contar para ela suas impressões e o  quanto  os  queria  bem,  não  o  interessava como, o motivo de Maria haver engravidado, não o  interessava  o  pai  biológico  ou  as dificuldades,  José  os  amava.  O  menino  dormia tranquilamente em meio a cobertores e lençóis, os  olhos  fechados,  o  cabelo  ralo,  a  pele puramente  negra,  repousava  no  braço  da  mãe como um anjo, trazia consigo toda a inocência e  a  pureza  ao  respirar  mansinho  e  fechar vagarosamente a mão por entre o emaranhado de panos  e  cobertas.  O  filho  trouxe  a  Maria  uma perspectiva  completamente  diferente  de  si mesma,  ou  ao  menos  parecia  ser,  José  decidiu se  casar  com  a  moça  e  assumir  a  criança,  não como  marido,  mas  como  um  pai  de  ambos.  Todos sabiam  que  seria  difícil,  que  a  vida continuaria  fria,  amarga  e  dura,  que  o  mundo não  para  nem  quando  os  anjos  nascem,  mas  não era preciso pagar para sorrir naquele momento, não  era  preciso  pagar  para  amar.  Talvez  não fosse,  mas  era  um  clima  de  despedida,  e  me apaguei a imaginar que Maria se despedia de si mesma  para  se  reconstruir  melhor  a  partir daquela  manhã.  Os  dois  se  aconchegaram  no banco  a  espera  de  amigos  de  José  que  viriam buscar a moça, sorriam, conversavam, fitavam o menino, e às vezes ficavam silenciosos olhando para  os  lados  para  então  voltar  a  conversar sobre  ninguém  sabia  o  que.  Depois  de  algum tempo  três  homens  de  extrema  simplicidade  e muito  sorridentes  chegaram  à  procura  de  José, quando  o  notaram  do  balcão  da  recepção  se dirigiram  calorosamente  para  abraçá­lo  e conhecer  Maria  e  seu  filho.  Os  três  traziam doces  do  sítio  para  Maria  e  o  menino  como  um simbolismo  apenas,  trouxe  cada  um  seu  doce favorito,  abóbora,  cidra  e  figo.  Conversaram um  tempo  e  decidiram  partir,  Maria  e  José 

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pediram alguns minutos e vieram se despedir de mim  que  no  momento  conversava  com  a recepcionista  e  fingia  que  não  estava  notando nada, até simulei certo espanto quando os vi. Realmente não sei qual o fim se deu, e já faz alguns  meses  que  os  quadros  desses acontecimentos  não  deixam  minhas  lembranças, me  lembro  da  imagem  de  Maria  e  José despedindo­se  de  mim,  ela  com  o  filho  nos braços,  ele  cansado,  de  camisa  branca, sorrindo e me pedindo que fosse tomar um café dia desses com eles, tudo parecia tão fácil e tão  distante  de  ser  real.  Na  rua  um  senhor profetizava  aos  berros  o  apocalipse  e  frases sem  sentido,  algumas  extraídas  da  bíblia, enquanto  isso  Maria  descia  os  corredores acompanhada  de  José  e  os  três  rapazes  muito divertidos  e  animados,  falavam  muito  alto  e antes  que  partissem  pudemos  ouvir  um  que perguntava “Mas qual é a graça do menino dona Maria? Nem perguntamos ainda, já acertou com o Zé?”  e  Maria  após  olhar  para  seu  filho, voltou­se para o homem e respondeu, “É Jesus”. 

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Presente Contínuo

Catarina  todos  os  dias  descia  o  morro rumo à padaria de Heitor, o senhor que sabendo das  dificuldades  da  moça  lhe  vendia  produtos por  um  preço  menor.  Os  pães  de  Heitor  eram todos os dias o café da manhã dos dois filhos de Catarina, Leandro e Alex. Leandro com cinco anos  estava  na  pré­escola  e  gostava  das torradas  que  a  mãe  fazia  com  os  pães  que  se acumulavam dos dias anteriores, de dinossauros de  brinquedo,  do  mar,  embora  o  tivesse  visto apenas  pela  televisão,  de  insetos  que  se escondiam  nos  gramados  dos  terrenos  baldios  e acreditava  que  as  árvores  possuíam  antenas invisíveis  que  as  permitiam  comunicar­se  numa língua secreta de árvores. Todos os dias a mãe caminhava o árduo caminho até a pré­escola com Leandro  adormecido  no  colo  e  o  deixava pontualmente  às  sete  horas  no  portão  de entrada.  Alex  tinha  doze  anos  e  cursava  a sétima  série,  punha­se  a  caminhar  sozinho pontualmente  às  seis  e  meia  da  manhã  de segunda a sexta rumo à escola, Alex gostava de assistir televisão, empinar pipa, ouvir música sozinho  em  seu  quarto,  o  que  não  era  muito freqüente, pois o dividia com o irmão, gostava da garota da sala de aula ao lado embora nunca tenha conversado com ela, de filmes de ação e de  desenhar.  Ana  morava  em  Londres  e  ligava todos os dias para o namorado Pedro no Brasil exatamente às seis horas da manhã enquanto se preparava  para  ir  trabalhar,  Pedro  era  todos os dias acordado pelo telefonema de Ana e saia logo  após  para  comprar  o  café  da  manhã,  ele gostava  de  pães  recheados,  suco  de  tangerina, coxinha,  de  beber  sozinho  de  madrugada, colecionar  maços  de  cigarros  do  mundo  todo  e de literatura, ultimamente sentia­se deprimido devido  à  falta  da  namorada  que  cumpria  um estágio de seis meses no exterior. Alan dormia 

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o  dia  todo  e  acordava  quando  estava anoitecendo  para  cumprir  religiosamente  seu ponto  no  trailer  de  lanches  como  vendedor  de drogas, cocaína, crack, maconha dentre outras. Alan  gostava  de  futebol,  de  cigarros  Lucky Strike,  carros  importados,  embora  sequer tivesse tirado a carta de motorista, de ver o sol nascer e de fumar maconha antes de dormir, ultimamente  sentia­se  realizado  com  o  tênis novo  que  havia  comprado  com  algumas  economias de assaltos e da venda de drogas. 

E os dias se desenrolam em uma infinita reestruturação,  o  universo  se  reestrutura  a cada  fragmento  que  resta  entre  cada  segundo, as  infinitas  combinações  dos  acontecimentos estão  contidas  no  finito  e  inconstante  número de  átomos,  dentro  de  cada  segundo  que  já passou  até  o  fim  dessa  palavra  e  que  conteve milhares de mudanças, das escolhas que não foi você quem fez e cada impulso elétrico que você não sentiu dentro da sua cabeça para poder ler esta  frase  até  o  fim,  o  que  nunca  muda  é  a mudança  constante  das  coisas.  Ana  que  gostava de  café  com  conhaque  não  acordou  a  tempo  de ligar  para  Pedro  devido  ao  porre  da  noite passada,  e  Pedro  não  acordou  no  horário costumeiro,  pois  Ana  não  havia  ligado. Catarina  que  não  podia  dar­se  ao  luxo  do atraso  já  que  o  trabalho  aguardava  às  oito horas,  se  levantou  pontualmente  às  cinco  e meia  e  pôs­se  a  acordar  os  filhos,  pediu  que se  vestissem  enquanto  tomava  banho  e  pensava em  como  contar  aos  filhos  sobre  o  novo namorado. Alberto, o pacato dono do trailer de lanches agora já dominado por Alan fechou mais cedo,  gostava  de  pescar,  de  sapatos  de  cor marrom  e  de  estar  com  a  família,  embora  não tivesse  uma.  Se  Ana  não  tivesse  brigado  com Pedro  no  dia  anterior  e  enchido  a  cara  de conhaque  durante  a  noite  provavelmente  teria ligado  de  manhã  no  horário  correto,  se  Ana tivesse  ligado  Pedro  provavelmente  teria 

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levantado  minutos  depois  para  comprar  café  da manhã  na  padaria  de  Heitor  e  não  teria  se atrasado  para  um  evento  que  mesmo  ele  jamais saberá que se atrasou. Embalada em pensamentos Catarina  acordou  da  viagem  por  dentro  de  si mesma  no  banho  e  notou  o  tempo  transcorrido, apressada  pôs­se  a  descer  rapidamente  até  a padaria  comprar  os  pães  para  que  os  filhos fossem  alimentados  para  a  escola.  Heitor,  que gostava de tocar os pães quentes de manhã, do entardecer frente a seu estabelecimento com as crianças jogando bola na rua e do barulho que fazia o vento nas folhas das árvores estranhou Catarina não ter aparecido e saiu em frente ao estabelecimento  para  olhar  se  a  moça  estava vindo,  inclusive  a  vizinhança  sempre desconfiou  de  um  amor  platônico  da  parte  de Heitor  por  Catarina  que,  convenhamos,  apesar da idade não era de se jogar fora. Alan pôs­se a caminhar em busca de qualquer perda de tempo e  com  certo  mau  humor  já  que  Alberto  havia fechado  o  trailer  mais  cedo,  foi  até  seu esconderijo,  escondeu  a  carga  que  estava consigo, guardou na cintura o revolver calibre 38  que  recentemente  havia  conseguido  e  pôs­se a  ir  para  casa  por  uma  rota  diferente especialmente  naquele  dia,  talvez  movido  pela manhã  que  já  havia  começado  de  maneira diferente  ou  qualquer  outro  motivo desconhecido.  Assim  que  passou  em  frente  à padaria  de  Heitor,  o  primeiro  pensamento  que sucedeu  a  Alan  ao  ver  a  rua  vazia,  o  homem parado na calçada distraído e o recinto vazio foi um singelo “Eu poderia?”, as drogas ainda reagentes  em  sua  cabeça  ou  apenas  a  índole ruim  do  rapaz  gritavam­no  que  seria  de  bom grado  roubar  a  padaria  de  Heitor  naquele momento,  estava  convidativo  demais  segundo  a consciência  do  próprio  Alan  –   “Quieto  tio! Melhor não tentar nada senão é daqui pra baixo da  terra,  entendeu?”  ­  Heitor  foi  rendido carinhosamente  por  Alan  em  meio  a  calçada  e 

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forçado  a  entrar  na  padaria  disfarçadamente, nervoso  e  trêmulo  procurava  em  meio  a  tantas outras a chave que abria o caixa enquanto Alan o  apressava,  enquanto  isso  Catarina  descia  as pressas  o  morro,  paralelepípedo  por paralelepípedo  para  não  se  atrasar  para  o trabalho,  um  passo  na  poça,  um  passo  na calçada, um passo à frente e um para dentro da padaria.  Catarina  disse  ­  “Seu  Heitor!”  E calou­se  para  sempre.  Alan  foi  pego  de surpresa  com  a  entrada  repentina  de  Catarina na padaria, assim tão de repente e apressada, o rapaz se virou assustado e atirou sem olhar para onde, Catarina foi atingida no pescoço e caiu  agonizante  quase  ao  mesmo  tempo  em  que Alan  saiu  correndo  e  sumiu  no  ângulo  entre  a esquina  e  os  prédios  que  ocultavam  a  rua paralela. Heitor em estado de choque chorava e pronunciava “Filho da puta, eu a amava, filho da puta!”. 

Com o barulho Pedro correu até a Janela que dava de frente para a padaria e observou o tumulto,  lá  de  cima  via­se  as  pessoas  se aproximando  e  formando  um  emaranhado  de  gente e boatos, o celular vibrava em seu bolso, era Anna,  “Alô,  estou  bem  sim.  Não,  não  estou estranho.  É  que  acho  que  mataram  uma  mulher aqui  em  frente,  nossa.  Por  que  você  não  me ligou?  Tudo  bem...  só  acho  que  deveria  ter ligado”.  Os  filhos  de  Catarina  esperavam estranhos  à  ausência  da  mãe,  sentados  na cozinha  escutavam  o  ruído  compassado  do relógio.   Alberto,  o  dono  do  trailer  o  qual Alan  fazia  o  ponto  para  venda  de  drogas meditava  naquele  exato  momento,  “Catarina disse que me ligaria para contar a reação dos meninos, talvez eles não tenham reagido bem ao nosso namoro. Deus, mais uma que não der certo e começarei a crer que o amor não é para mim”. E  o  sol,  bem,  o  sol  estava  nascendo.  Somos amarrados  ao  tempo,  a  margem  de  nossas escolhas  é  assombrada  por  cada  número  no 

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relógio,  somos  indiretamente  escravos  das escolhas  que  não  são  nossas  e  de  acidentes planejados pela vida a cada fração de segundo.

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Natureza Humana

Que me importa o planeta? Cães, plantas, pedras,   leões,   zebras,   eu   sei   lá   que   porra mais também não se importam, todas as coisas no mundo não se importam, por que eu haveria de me importar? Na verdade ninguém também se importa,   as   pessoas   querem   apenas   um   lugar melhor para elas viverem, não se importam com as outras coisas ou com mais nada além do seu bem estar. No meu olhar tem uma fada, uma fada azul, e fadas nem existem, mas no meu olhar tem   uma   fada   azul,   mãe.   Mas   é   assim,   os animais não precisam ser salvos, o mundo não precisa ser salvo, a humanidade quer salvar só a si mesma, mesmo que isso dependa de salvar outras   coisas,   outras   existências,   outras humanidades. Mas olha, mãe, tudo aqui acaba e nós também teremos que acabar, isso é só outra tentativa   frustrada   de   ser   maior   do   que   a natureza,   a   humanidade   queria   controlar   a natureza,   mas   agora   não,   os   homenzinhos   que tem   armas,   cérebro,   dinheiro   e   consciência querem ser maiores que a natureza, querem ser a   própria   natureza,   querem   sim!   Ah,   que   me importa? Natureza das coisas é a minha fada azul que nem existe. Não há nada de mal em querer salvar a si mesmo, não é? Não há, você sabe que não há, só não precisa mentir, mãe, mentir que é para algo além de ti mesmo, não é, você só está tornando a tua existência mais agradável forçando as coisas a serem como você quer, isso vai dar encrenca, vai sim! Dizem dos   homens   grandes,   dos   homens   sábios,   dos homens   maus,   homens,   homens,   homens!   Que   me importa os homens, se são bons ou maus, são homens, e isso está além do bem o do mau, isso é uma falha.

Já imaginou que os animais, as plantas, as coisas aqui não tem valor nenhum? Foda­se as   plantas   e   os   animais,   nós   é   que   os 

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valorizamos,   as   coisas   nem   foram   feitas   pra que tivessem valor algum visto que todas as coisas são iguai, por isso minha fada azul não é uma planta, e nem um animal e nem humana, por isso ela nem existe e por isso eu amo ela mais   do   que   a   minha   mãe.   Tem   milhares   de planetas e de coisas e o exagero trabalha para o crescimento da insignificância, pra ser raro é só ser pouco, que merda, que merda mesmo! A natureza também pode ser ruim, e se o planeta não   gostar   da   natureza?   Mas   se   o   planeta gostasse de algo não seria o planeta, seria alguma coisa que gosta ou não das coisas e por isso não as tem, esses nós que me dão meus pensamentos, nós nós nós nós e estou amarrado a vocês filhos da puta! A gente nem contempla nada, a gente nem vê nada, nada! Olha a merda da flor e acha bonito a sensação de bem estar que   a   flor   proporciona   e   só,   por   isso   há pessoas que gostam de flores e há pessoas que não  gostam   mas  não  admitem,  você  não  tem   o direito de não gostar da flor. E falaram tanto de flores em poesia e prosa que hoje em dia parece um crime não gostar das flores, e se eu achar as flores feias? E se as flores não me disserem nada? São as merdas das flores, e por isso há quem faça botânica, biologia e essas coisas. Sinceramente olho uma flor e acho belo como   quando   vejo   um   desenho,   uma   pintura   e depois esqueço como ela é e da sensação que me proporcionou, e o meu bem estar nada teve a ver com a flor, e o meu contemplar nada teve a ver com a flor. Por isso amo a fada azul, ela não precisa existir, eu não preciso vê­la e nem tocá­la e por isso saio da minha prisão de mim mesmo. O ser humano vive nessa merda de prisão   de   si   mesmo,   tudo   está   nele,   todo sentir, toda vontade, toda própria existência, e   até   coisas   que   odeia   porque   essas   coisas também odeiam, é impossível sair de si mesmo ou   arrancar   as   cosias   que   sentimos, impossível,   até   parar   de   sentir   é   sentir 

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alguma coisa e isso às vezes me faz desejar a morte,   é   um   caminho   sem   curvas   ao   egoísmo natural,   naturalmente   arrogantes   e   egoístas travestidos de anjos, suicídio é egoísmo. Me basta, tuas asas são negras e não o ajudam a voar, tens que voar com ferro, matemática e vento. A fada azul voa, e o faz sem que ela mesmo queira, apenas voa, mãe, ela voa!

Olha   só,   tudo   evolui   junto   ou   tudo evolui separado, ah eu não sei, mas as coisas evoluem de acordo com todas as outras coisas, nem que esse seja um acordo de separação. E o ser humano primeiro temia ficar para trás e corria,   depois   temia   ser   igual   e   corria, depois   queria   ser   melhor   e   corria,   depois queria controlar e corria, e depois queria ser maior e corre, corre, corre, e é humano! Ah que merda! Tudo evoluiu de acordo, mesmo que evoluindo   para   si,   evoluiu   também   para   os outros,   de   acordo   com   a   necessidade.   O   que fodeu foi o querer, os humanos evoluindo para si e de acordo com a sua vontade que sempre ultrapassa as necessidades, e assim vai tudo tordo, latinhas, latinhas mãe, que me importam as latinhas? Tem problemas maiores que seres humanos no planeta, e quando tudo isso morrer nada vai mudar, virão outras coisas e outras coisas   porque   é   assim,   nada   muda   nem   se transforma, fragmentando, é tudo igual, é tudo átomo! Só minha fada azul não é átomo. 

E se Deus for o tempo? Ele está em todos os   lugares,   sem   ele   nada   existe,   ele   não termina   e   nem   principia,   vê   todos,   sabe   de tudo   no   universo,   o   tempo   criou   o   universo pois sem o tempo a existência do universo não se encaixaria, não caberia, a existência não teria um berço. O tempo não julga e por isso se recusam a aceitar o tempo como Deus pois o tempo também não manda nada para o inferno, e se o tempo não manda para o inferno qual seria a nossa coleira? Não temos nada, pois ter é reconhecer   a   algo   que   necessite   nossa 

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existência para existir também, mãe. Então o tempo nos tem, e tem a tudo! Tudo mesmo! E nós não temos nada, chamamos de ter apenas aquilo o que nos é prático ou agradável ou seja lá mais o que for, só sei que não tenho, mãe! Não tenho mãe, não temos! Que porra usaríamos uns contra   os   outros   para   controlarmo­nos?   Que engraçado, queremos saber quando chove antes de chover, controlar o céu, a terra e a nós mesmos e parecemos formigas idiotas correndo apressadas numa enorme imensidão que elas não podem ver e sequer sabem que existe. Acho que elas   nem   sabem   que   existem,   e   nem   nós. Formiguinha!   Formiguinha!   Formiguinha! Formiguinha...

–   Por   que   esse   garoto   está   gritando “formiguinha”? Faça­o parar!

– Sabes que não posso brigar com ele, o médico disse   que   ele   sofre   de   esquizofrenia   e   não compreende   o   mundo   como   nós,   por   isso   fica assim, a visão dele é diferente da nossa. Não poderia brigar com o menino, seria crueldade. Estou providenciando a internação dele.

– Eu sei da esquizofrenia e não acho certo que o internemos, mas se o doutor acha bom que o façamos. Só fiquei irritado com o barulho, me perdoe Ana.

–   Eu   o   entendo   meu   bem,   deixo­o   falando asneiras sozinho, não faz mal a ninguém, às vezes até me diverte com as besteiras que diz, ele não é agressivo e é muito novo, mesmo que fosse não faria grande coisa. 

– Você falando assim até parece que não é seu filho, quando nos conhecemos me dissestes que era divorciada mas não contou a respeito do menino.

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– Não contei a respeito do menino pois temi que tu fosses embora Basílio, achei que não se interessaria por uma divorciada que cuida de um menino louco. E não, não é meu filho. Não sou a mãe dele.

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Feliz Aniversário

– Silêncio, agora ouça...

E   por   um   instante   os   dois   ficaram quietos   olhando   atentos   um   para   o   outro próximos da parede, Sofian sorriu um daqueles maravilhosos   sorrisos   de   criança,   sorriso silencioso  e  puro  que  vem   de  um  não  querer sorrir mas ao achar tudo tão belo, o sorriso torna­se   inevitável.   A   casa   era   apenas   três cômodos,   cozinha,   quarto   e   um   banheiro,   a cozinha também servia de sala, não havia mais luzes e começava a entardecer e a casa estava toda cinza, era possível apenas ver os objetos grandes   e   para   as   coisas   menores   era necessário forçar um pouco a vista. Sofian é um   garoto   quieto,   de   gestos   naturais,   quase não fala e nunca viu o pai, tem apenas quatro anos e gosta muito da mãe, por ela ser o seu único   bem   ele   jamais   se   distância.   Atifa   o olha de maneira amável e orgulhosa, quase se esquece do que ocorre no momento ao olhar para o   filho,   como   quando   estamos   preocupados   e passa   por   nós   uma   brisa   tão   leve   que descobrimos   que   não   vimos   a   brisa   passar quando   ela   passou,   mas   nos   lembramos   dela mesmo   assim,   mesmo   não   querendo,   mesmo   não sabendo.   Preocupadamente   nesse   instante   os olhos de Atifa estremessem e as lágrimas os empurram as costas de forma que chega a doer, ela então abraça Sofian de súbito, calada. É o aniversário do menino.

– Mãe, quando eles virão?

– Eu não sei meu filho, são muitos deles.

– Estou curioso. Não podemos abrir a janela? – Perguntou Sofian animando­se momentaneamente.

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–   Não,   não   podemos,   estragaria   a   surpresa. Quando vierem você saberá.

Sofian   ficou   um   instante   com   um semblante curioso e observava em volta a todo momento,   estava   muito   curioso   para   saber   de sua surpresa de aniversário e muito orgulhoso da   mãe.   De   certo   que   seria   algo   muito importante pois havia muita gente andando lá fora e não o era permitido olhar pela janela, tinha também muito barulho, barulhos agudos, estouros   e   gente   falando   longe   e   não   era possível saber o que. 

A   cidade   estava   sendo   tomada   e   havia tropas   inimigas   por   toda   a   parte,   cidades inteiras estavam sendo saqueadas e a população na maioria das vezes era posta em caminhões e transportada   feito   gado   até   a   orla   de   uma praia   onde   então   era   fuzilada.   Mulheres, idosos,   crianças   e   até   os   cães   perdiam   a essência   e   naquele   momento   não   eram   vidas, eram carne úmida sobre ossos que se animavam quase   que   roboticamente,   poderiam   até   ser pedras, mas não eram vidas, era a humanidade nua   de   suas   próprias   máscaras   caminhando   em fila para o destino que todos temos em comum.

– Mãe, o vovô também vem?

– Sim, o vovô também vem

– Quando ele chegar, direi a ele que já sei contar até cem!

– Belíssimo, meu anjo

– Mãe, por que as pessoas constroem paredes?

Atifa   pensou   um   instante   e   seu raciocínio   foi   interrompido   por   barulhos   de tiros, ela ficou um pouco assustada mas tentou não demonstrar o medo para Sofian. Atifa fez 

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uma   escolha,   ou   deixaria   o   filho   que   não compreendia   que   as   borboletas   e   os   aviões voavam de formas diferente saber do horror da morte ainda muito pequeno ou deixa­lo saber do quanto   é   bom   quando   os   nossos   sonhos   se realizam,   e   de   qualquer   forma   talvez   o   fim fosse   o   mesmo.   Olhava   doce   e   internamente triste para o garoto quieto e paciente próximo da   parede   como   quem   olha   uma   pintura   ou qualquer   tipo   de   obra   de   arte,   para   Atifa, Sofian era sua obra de arte, e ninguém teria poder para tira­lo dela, ninguém.

– Mãe! Porque as pessoas constroem muros? – Tornou   a   perguntar   Sofian   de   maneira   mais acelerada e em tom de urgência.

– Ora, para se sentirem livres meu filho.

–  Livres  de  quem?  E  por  que  esses  barulhos estranhos?

– Sofian, a mamãe chamou gente de todo o mundo para vir ao seu aniversário, e vem até gente de   outro   continente,   pois   você   é   muito importante   sabia?   E   eles   vão   vestir   roupas diferentes e talvez até estranhas, e vão dizer coisas   que   talvez   a   sua   cabeça   possa   não compreender   e   não   dar   significado,   mas   é melhor que você não dê, e você não deve ser indiferente ou julgá­los mal, e assim eles não poderão jamais fazer algo contra você. Quando você   nasceu   a   mamãe   entendeu   que   anjos   não tinham   asas,   e   não   olhavam   pela   vida   de ninguém   e   quanto   menos   moravam   nos   céu.   Os anjos tem lindos olhinhos pretos que parecem sempre ver o que é despercebido, e os anjos nos  abraçam  forte  e  dão  boa  noite  antes  de dormir,   deitam­se   mais   leves   que   o   vento   e dormem   tão   naturalmente   quanto   a   chegada   da noite após o dia, pois é essa a sina da noite, ser negra assim que acaba o dia, assim como é 

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tua sina ser anjo apenas por existir meu filho – Enquanto falava Atifa começou a tremer as palavras e seus olhos começaram a inundar de sentimentos,   o   tom   da   voz   parecia   agora deformado   por   emoções   e   ela   falava   mais apressada   e   aflita   –   Nada   de   mau   pode   lhe acontecer meu filho, pois os anjos não sofrem e   por   isso   são   anjos.   Hoje   vai   vir   toda   a gente   saber   o   quanto   tu   és   grande   e   sábio apenas por não saber como fazer mal. Ouve os barulhos lá fora? É uma festa! E comemoram o seu aniversário! Logo estarão aqui também e a mamãe   terá   que   vê­los   primeiro,   são   nossos primeiros convidados. E toda a cidade também virá   e   logo   iremos   todos   almoçar   juntos   e cantar parabéns para você e será a festa mais bonita de todo o mundo.

– Uau, me parece maravilhoso. E a senhora não acha que também parecemos estranhos aos olhos dos moços que vem de longe, mãe? Não ligo para o   que   possam   pensar,   de   qualquer   forma   são sempre   pensamentos   e   não   podem   ser   feios porque são pensamentos, só os atos podem feios –   Sofian   sorriu   alegremente   enquanto   olhava para Atifa.

Atifa   o   olhou   emocionada   e   o   abraçou forte, agachada encostou a bochecha na cabeça de Sofian e deixou que uma lágrima escorresse por   ela   até   morrer   nos   negros   cabelos   do garoto   –   Feliz   aniversário,   meu   anjo.   Antes que cheguem os convidados, vou buscar o teu presente   –   Assim   que   Atifa   se   levantou, enxugou as lágrimas com os cantos das mãos e ouviu o bater na porta – Deve ser teu avô – Disse   para   Sofian,   e   então   ouviu   alguns murmúrios   que   vinham   de   fora,   olhou   para   o embrulho em cima da mesa e se dirigiu até ele, entregou o presente a Sofian e pediu que não abrisse até que ela voltasse. Atifa abriu a porta o mínimo possível para evitar que Sofian 

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espiasse, o menino apenas pôde ver o braço de um homem com roupa marrom que falava engraçado na porta e pelas vozes sabia que haviam mais deles – Chegaram – Disse ele em baixo tom para si mesmo agarrando o pequeno embrulho que a mãe o dera, estava ansioso para saber o que é. 

Um   tiro   foi   disparado   e   todos   os pássaros que se escondiam debaixo do telhado da   pequena   casa   voaram   fazendo   um   leve   e compassado som de chocalho junto ao vento – Mãe? – Disse Sofian perplexo e confuso, nesse momento sentiu o sabor estranho do que era o medo,   olhou   para   os   lados   e   assim   que   se levantou   dois   homens   com   trajes   militares portanto   armas   entraram   rapidamente   no recinto, Sofian se abaixou e pegou o embrulho com   muito   medo   no   olhar   e   então   fitou   os homens curioso sobre a mãe.

–   Os   senhores   são   convidados   da   minha   mãe? Sabem para onde ela foi? É que ela disse que haveriam   convidados   pois   é   o   meu...  

O som do embrulho era o mesmo do corpo ao tocar o chão. Silêncio após o solitário eco da pólvora. 

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Outras Avulsas

I

Eu não desisti, eu ainda te quero, mas eu   só   decidi   não   forçar   mais.   Quero   assim naturalmente, como colocar uma flor num copo d'água e torcer para ela durar mesmo sabendo que ela vai morrer, torço pra você se tocar e vir correndo de volta pra mim sabe, pra você pensar em mim como eu penso em você, mas eu não   posso   ficar   esperando   isso   acontecer, contando   com   a   sorte   assim   enquanto   a   vida passa   pelos   meus   olhos.   As   ultimas   semanas foram difíceis até eu me acostumar com a tua ausência,  até  eu  dar  a  tua  falta  como  algo comum e não como uma exceção no meu dia. Ai eu acordo   e   levanto   com   uma   disposição,   uma vontade de estudar, de trabalhar, de escrever, conhecer   gente   nova   e   até   me   mudar   daqui, nasce um otimismo lá do fundo do meu estômago, e   eu   penso,   porra   ainda   bem   que   isso   tudo passou e agora eu estou bem. E isso dura o dia todo,   e   conforme   vai   passando   as   pequenas coisas vão levando isso de mim, um lugar que eu passo que marcou, uma flor, um objeto seu esquecido   na   minha   gaveta,   uma   carta,   um cheiro   no   meu   travesseiro.   E   ai   tudo   fica pior, pior do que estava mas melhor que ontem. Parece que estou me cansando, não de você, mas me cansando de sentir a tua falta.

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II

Eu   fico   imaginando   como   teriam   sido esses dias se nada disso tivesse acontecido e você   ainda   estivesse   aqui   dentro   de   mim, inteira sabe, viva e latejante. Mas não, agora não   tem   mais   você,   tem   umas   imagens   meio borradas de café e um cheiro meio sobreposto pela fumaça dos meus cigarros. E eu não quero pensar  assim,  eu  quero   é me  livrar  logo  de você e poder tocar em frente sozinho, eu quero mesmo é ser forte e parar com isso. Eu tenho que deixar essas minhas esperanças idiotas de você voltar, de tudo se ajeitar, de ir buscar lá  no  fundo  tudo   aquilo  de  novo,  tenho  que parar   de   querer   carregar   a   minha   e   a   tua felicidade nas costas. Essa minha ingenuidade, esse meu jeito infantil de sonhar me irrita, cara   isso   me   deixa   doente,   e   ai   eu   fico esperando,   contando   as   horas   e   pensando   que você   vai   aparecer   do   nada   me   pedindo   um abraço,   mas   se   não   aparecer   eu   torço   pra passar também. Tenho que parar de ser idiota e enfiar na cabeça de uma vez que você não vem, mas essa esperança insiste em me perturbar e me fazer pensar em fazer tudo certo pra quando você voltar, mas não tem “você voltar”, tem eu ficar sozinho e esquecer que posso ter você, lidar que te tive que foi bom e acabou. Tô no meio do trilho do trem querendo ser atropelado mas torcendo pra linha estar desativada.

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III

Me dava uma vontade tão grande de fazer tudo   certo   quando   estávamos   juntos   entende, uma   vontade   de   ser   grande   pra   não   te decepcionar, de realmente colocar meus sonhos em  prática   pra  te  mostrar   o que   eu  sonhava quando você não tinha chego. Eu queria mesmo era   poder   ler   pra   você   as   asneiras   que   eu escrevo   de   madrugada   e   ir   dormir.   E   ai   eu aceitei a tua partida, é assim que gente forte faz não é mesmo? Ou dizem que faz. Saio do trabalho de noite, a rua vazia e o barulho dos carros que passam por perto e a gente não vê, os   bueiros   cuspindo   fumaça   e   as   luzes amareladas   dos   postes   beijando   o   chão,   me ponho   a   caminhar   até   a   padaria   e   pedir   um cappuccino,   tô   me   enchendo   de   hábitos,   de vícios pra me desintoxicar de você.

IV

Cheguei em casa depois de ver gente, de sair,   de   caminhar,   de   colocar   a   máscara   de feliz,   a   fantasia   de   que   já   superou.   Eu cheguei tão exausto de fingir pra mim mesmo que está tudo bem que fui direto para o quarto e me deitei na cama, fiquei horas olhando para o teto pensando em qualquer coisa que não me lembro, ai me levantei, fui pra cozinha pegar um copo de coca cola e quando voltei me pus a escrever. Cara, eu escrevo feito um retardado nessas horas que é pra ver se te esqueço, se te expulso de mim. Eu não queria sair dali, não queria ir tomar banho, não queria comer, ter que conversar ou fazer qualquer coisa. Mas 

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não posso morrer para o resto das coisas, já está tudo uma merda e se a gente larga assim a coisa só piora, a gente tem que ser forte que é pra não piorar, porque melhorar mesmo, sabe­se lá quando. Entrei no banho e não me mexi, eu   só   sentia   a   água   caindo,   o   barulho   do vizinho conversando, o vapor subindo, e ai o cachorro começou a latir, um barulho lá fora e eu logo fui pensando e fantasiando se fosse você no portão, se você tivesse sentido minha falta,   acabado   com   tudo   isso   de   ruim   que rodeava   a   gente   e   tivesse   vindo   me   buscar, assim   de   surpresa,   sem   ligar,   sem   avisar, dizer   que   estava   com   saudade.   E   o   cachorro continuava   latindo,   pensei   em   fechar   o chuveiro me enrolar na toalha e correr para o portão,   mas  algo  em  mim  dizia  que  isso  era coisa  minha,  não  da  vida,   que  não  era  nada disso. Terminei o banho e fui para o quarto da frente, abri a janela que dá para o portão e dei   de   cara   com   a   rua   vazia,   escura   e   o cachorro   dormindo.   Sabe,   é   com   isso   que   eu tenho que parar, com esse meu idiotismo, esses meus   sonhos   que   nunca   acontecem   e   não   vão acontecer.

V

Penso um tanto de coisas inúteis entre um  cigarro   e outro  e  entre  um  pensamento   e outro penso em ti. Pensei hoje nas pessoas que agora   conhecerei,   nas   diferentes   formas   que entenderei o mundo. Mas eu gostava de você, dos   teus   erros,   dos   teus   defeitos,   do   teu jeito   de   ser   inteira,   sem   esperar   ou acrescentar nada, eu gostava de você, só você 

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que tinha esse jeito de sorrir. Agora me dá um medo de te ver, de saber como você está, de encarar   que  não  é  mais  aquela  coisa  que  eu achava tão bonita e também uma pontinha de dor por saber que você vai estar bem sem mim.

VI

Eu   te   quis   numa   dessas   madrugadas solitárias em que o meu mundo estava espremido entre eu e o copo, e o cigarro ha muito havia se   mudado   da   caixa   para   agora   morar temporariamente nos meus lábios. Porra, e como essa saudade dá porrada forte, eu me lembrei de você, do seu sorriso, de papos, fiquei um tempo inerte, quieto, e parecia que passavam apenas   nuvens,   vagarosas   nuvens   dentro   da minha cabeça, e algumas não me diziam nada, outras   formavam   teu   rosto,   teu   nome,   tua sombra.   Foi   uma   merda,   e   bem   sei   que   se houvesse cabimento no meu querer eu correria de encontro a ti, e se não houvesse cabimento eu   correria   também.   Mas   não   havia   nem   você mais. Então fui dormir pra amortecer a queda. Acordei   e   me   lembrei   da   noite   passada,   e naquele momento você era o que me faltava, e ainda bem que eu não fiz nada, ainda bem que tu faltava e vai continuar faltando, porque só naquele momento eu precisava de você. Hoje eu acordei inteiro.

VII

Se amar é toda essa felicidade, esse abraço correspondido,   então   eu   não   amo   ninguém.   Se amar é uma tranquilidade tibetana, um desejo de estar mais perto mesmo abraçado de ambas as partes, então eu não amo ninguém. Ainda que amar   seja   fazer   diferente   do   que   a   gente sempre faz, senhorita, estou certo de que não 

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amo ninguém. O coração a fôrma de gelo que ela esquece todos os dias de por no congelador, os olhos cansados e a pálpebra pesada de olhar e não ver nada, se o amor é mesmo essa neblina, ah dona, eu não amo ninguém. Comigo é amizade, insanidade e um café à tarde na padaria mais bonita, é um abraçar sem esperar retorno, dar o coração de graça por achar graça no sorriso do outro. Ah senhorita, o meu amor é torto.

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Destilas

Vim cambaleando sem pensar em nada, vim pelo corredor arrastando o que sobrou de mim e o meu crânio inundado de vômito, o meu crânio era   uma   piscina   de   vômito   com   você   nadando dentro. Vim me batendo por entre as paredes até o banheiro, ai eu me ajoelhei e enfiei a minha cara no vaso e tudo era pesado, meu olho parecia uma esfera de chumbo pesando contra a minha   pele,   apertei   o   olhar   e   vomitei   até doer, te coloquei pra fora junto com tudo o que eu havia bebido umas horas atrás. Sinto a minha testa dormente e não tenho forças pra levantar do chão, inclusive eu já desisti de tentar. Eu deveria me matar, isso, eu deveria me   matar   pra   te   castigar   e   te   fazer   ficar culpada e te ver triste por mim, e ficar feliz por  você  estar  triste  por   mim  pro  resto  da vida,  eu  ia  rir  pra   caralho.   Eu  queria  ter brincado com você, ter te pisado enquanto você sorria sem saber e fingia gostar de ser pisada só pra estar comigo, eu deveria ter cortado suas pernas brancas enquanto você dormia e ter sorrido pra você depois de ter te chamado de infantil, carente e puta para os teus amigos, assim   como   você   fez   comigo.   Eu   deveria   ter esquecido essa porra de ética, de querer bem, amar   e   o   escambau   e   feito   da   tua   vida   um inferno, talvez ter jantado tuas bochechas num dia de domingo.

E eu sei que só estarei bem quando eu parar   com   isso,   não   de   ficar   bêbado,   ai estarei morto, eu estarei bem quando precisar me esforçar pra lembrar de ti. E lá fora há guerras,   crianças   sendo   assassinadas   antes mesmo de saberem o que é a morte, as pessoas estão sendo roubadas, ah sim, é verdade que outras estão fazendo sexo e se comendo por ai, mercado   de   trabalho   e   gente   prestando vestibular, gente dormindo, deve ter de tudo, 

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acho que difícil é falar do que não tem, mas e daí? A humanidade precisa disso, de gente que morre, de gente que mata, de gente que odeia de verdade, de gente que se fode pra servir de exemplo,   pra   sentir,   pra   nascer   literatura, pinturas   e   os   altruístas,   ambientalistas   e toda   essa   corja   do   caralho,   precisamos   das coisas   horríveis   pra   termos   certeza   que podemos   ser  bons.  Eu  quero  mais  é  que  tudo isso se foda, eu estou com saudade e só o meu egoísmo   que  me  valha  hoje,  dona.  Eu  ia  pra todo o tipo de lugar pra fugir de você, pra não ter que encarar a tua ausência cantando canções cínicas no meu ouvido de madrugada, me enchi   de   hábitos,   de   vícios,   de   pequenas distrações   pra   fugir   de   ti,   sim,   estive fugindo,   mas   todo   o   lugar   que   eu   ia   eu   me encontrava com você, e o pior, na verdade você nunca esteve lá. Mas agora não, eu resolvi te encarar, não bem resolvi, na verdade eu não tive escolha, se você não sair de dentro de mim eu me viro no avesso! Tem que ser muito forte pra deixar o que a gente ama ser feliz sem a gente, e eu te odeio, te odeio porque te amo! Tenho sono e minha alma pesa dentro do meu corpo e me faz não querer levantar, e o meu sangue denso corre sem que eu sinta no meu braço.  Paranoia garota, paranoia!

Às vezes eu como e guardo as embalagens vazias   no   armário,   pois   é,   parece   meio   com pessoas né? A gente usa e guarda os restos em nós mesmos e depois pra se livrar é foda. Mas do que é que eu estou falando? Penso que tenho que me levantar, ser mais forte, mas não estou tão determinado, posso pensar nisso amanhã, e depois, e depois também. Vi uma atriz pornô que era a tua cara esses dias, trepava como você   também,   com   aquela   mania   de   sentar   e sorrir entre um gemido e outro, vira e meche me lembro de umas transas nossas e me assusto. Me assusto, me assusto quando acaba a energia elétrica de repente, me assusto com um monte 

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de coisas que na verdade nunca saíram da minha cabeça, com o meu cansaço, eu sempre tive medo do   que   eu   pudesse   fazer   com   os   meus pensamentos desviados, eu imaginava que coisas ruins andavam no meu quintal de madrugada, ou que minha avó seria possuída no quarto ao lado e começaria a gritar e se torcer no chão e dizer palavras em línguas que eu não conheça, imagine   sua   mãe   na   sala   caindo   no   tapete tremendo e espumando pela boca enquanto grita pra você “Me mata! Me mata!”. Tinha medo de olhar pela janela no banco do passageiro do carro,   abrir   a   porta   à   120   quilômetros   por hora   sempre   me   pareceu   boa   ideia,   não   por drama,   por   morte,   nada   disso,   apenas curiosidade   com   a   situação,   com   o   que   se sente. Com que velocidade eu seria capaz de morrer? Todos querem uma morte tão rápida que não dê margem ao sentir e o mínimo possível da consciência   de   se   estar   morrendo,   que experiência   incrível   devem   estar   perdendo, penso eu. Essas coisas só acontecem uma vez na vida da gente moça, feito você na minha vida, só acontece uma vez.

A lâmpada acesa está esfolando as minhas retinas   e   estou   começando   a   babar,   sinto   a saliva quente deslizar densa e lenta por sobre minha bochecha até tocar o chão, a minha boca entre   aberta   e   a   cabeça   repousada   no   braço estendido em direção a porta, meu corpo mal cabe entre o vaso sanitário e a parede, quero apagar a luz e não consigo me levantar, quero apagar a luz, a luz a luz, você...

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Sobre o autor

“Bom, eu nasci em Muriaé em Minas Gerais, não  conheci  a  minha  mãe  e  por  isso  morei  com meu  avô  e  sua  mulher  na  cidade  de  Lajes  no mesmo estado até os cinco anos de idade. Com a mesma idade vim morar em Jacareí no estado de São Paulo com a minha avó, mãe de meu pai, e minha  tia,  irmã  do  mesmo.  Tive  uma  infância tranqüila,  uma  juventude  conturbada,  marcada um  pouco  por  drogas,  uma  certa  revolta  que creio  ser  comum  da  idade  e  acidentes envolvendo  minhas  capacidades  motoras retomadas  mais  tarde.  Completei  o  ensino médio,  embora  não  simpatizasse  muito  com  a escola,  e  diversos  cursos  e  técnicos  na  área de  tecnologia.  Ingressei  na  faculdade  de Ciências  da  Computação  no  mesmo  ano  em  que escrevi  “Sujeira”  e  recebi  o  meu  diagnóstico descrevendo meus problemas emocionais. Tenho o hábito de escrever desde muito criança, e acho que escrevo para me compreender, para fixar as minhas  impressões  do  mundo,  das  coisas,  das pessoas em geral. Acho que eu escrevo para não ficar solteiro da sanidade”.

­O autor.

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Revisado por Mayara S. Prado

Os direitos desta obra pertencem ao autor;Felippe Regazio de Moraes

Quinta­Feira, 20 de outubro de 2011

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