Sujeira
Felippe Regazio de Moraes
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Sumário
5 Prólogo
9 Sobre Cores e Cafetinas
16 Borboletas Noturnas
21 Trevo De Quatro Folhas
25 Whiskey Com Café
28 Hemograma
31 Avulsas
39 Artificial
46 Papo De Cozinha
49 Lady Maria
55 Presente Contínuo
61 Natureza Humana
67 Feliz Aniversário
73 Outras Avulsas
80 Destilas
84 Sobre O Autor
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Prólogo
Independente do caminho que tenhas tomado ou de como tais páginas lhe chegaram às mãos, viralas é sempre uma escolha. Tudo aquilo que se registra do cotidiano, as flores tais que morrem, os seres tais que antes envelhecem, os erros absurdos e toda a escória que aprendestes a ignorar, a ser indiferente e fugir, bailam por entre estes parágrafos com a mesma graça das mentiras que lhe foram contadas quando criança para que sorrisse. Daqui e aqui o olhar consiste no que há de belo no horror, onde o bom senso vendado da tradição, ou como queira chamar tal indiferença visual por dentro da história, não nos permitiu notar com clareza de entendimento ou sem prévios julgamentos. O que há de belo desde a dolorida partida até o bicho consciente que vende o corpo nas esquinas não é melhor ou pior que uma flor ou um alvorecer, necessita apenas atenção aguçada privada do julgamento social para que vejas que toda a vida é bela, e que ser belo não é sinônimo de fazêlo feliz ou obraprima para um sorriso. Os seres que vivem suas vidas estacionadas na existência a qual tu não notas, aqueles os quais poderiam viver e morrer sem aparentemente lhe afetar, brilham discretos em seus mundos, constroem castelos de cartas marcadas e assopram uns aos outros por diversão. Tudo aquilo o quanto evitaram, fingiram a inexistência, tudo aquilo o quanto tu sentiria pena, remorso ou repulsa, aqui estão descritos com toda a serenidade de forma que não sejam inferiores e nem superiores, apenas verdadeiros a quem os lê e a quem os cria. O laboratório bizarro da vida se encarregou de rechear tais páginas que nasceram de uma visão não menos problemática e não menos lúcida, pois tudo aquilo o que sofre
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e é ameaçado aguça a visão e o instinto em busca de paz. Os personagens, os versos, as figuras que aqui dormem também dormem nas calçadas, nas casas humildes, no coração que já se cansou de amar, no adeus da partida, aqui dorme em sono leve a beleza convencida de que não seria bela de se ver, aqui dorme a sujeira.
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“A história dessas estórias só eu conheço. E é melhor que só eu
continue a conhecer”.
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Sobre Cores e Cafetinas
Estendemse como uma colcha a cobrir a sociedade diversos boatos sobre Madame Bernadete. Ao certo não é provada a veracidade de nenhum deles, mas ninguém os desmente, nem mesmo a mesma, que sai religiosamente toda manhã da Casa Vienense para comprar os primeiros pães e ouvir críticas ácidas em vozes baixas e quem sabe algumas mentiras em voz de veludo. O fato é que quem vos escreve pode separar o carvalho do álcool desse Bourbon que chamamos de vida e narrar Madame Bernadete não como Casa Vienense, mas como mulher.
Nascida em família rica no norte de Minas Gerais ainda muito nova já levava o tato aos mais diversos corpos, homens, mulheres, meninas, e qualquer um que se descrevesse como intelectualmente atraente. Apesar dos protestos da família, casouse aos dezessete anos com Carlos, o pintor fracassado que ganhava a vida decorando lameiras de caminhões para os que pausavam a viagem nas beiras da estrada. Os primeiros anos de bom relacionamento renderam ao casamento um herdeiro, o mesmo que desenha os fatos com essas palavras, porém o tempo se encarregou de levar junto da sanidade de Bernadete também o casamento o qual, Antônio que sou eu e herdeiro já relatado, sofreu as represálias da consciência paraplégica da mãe. Diante das crises o pai era indiferente e forte demais para ser jogado no vaso sanitário e a essas alturas Bernadete já havia fugido para uma cidade no interior do Rio de Janeiro deixando o filho com um casal de idosos, antigos amigos da família desses com o corpo na cova e a boa vontade no mundo. Em Teresópolis Bernadete passou meses em uma vida pacata à custa do que restara da herança do falecimento de seus
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pais, e como toda garrafa esvazia também se esvai a embriagues e todo o dinheiro herdado. Para produzir fundos para o vinho barato e os pães da manhã Bernadete foi artesã, tentou simples ramos da culinária como venda de pastéis e acabou como acompanhante de um senhor aposentado que gastava as últimas cifras de dinheiro e vida no jogo do bicho. Ao acompanhar as reuniões na casa do aposentado as quais se reuniam outros idosos aposentados, bicheiros, e prostitutas, madame Bernadete apaixonouse pela voz de Dirceu, o famoso cafetão de Teresópolis que se apaixonara pela beleza de Bernadete como fizera com tantas outras semanas atrás. Com Dirceu Bernadete conheceu o dinheiro e também o desprazer e em pouco tempo era uma das prostitutas mais procuradas da cidade, a contratar seu corpo destacavamse políticos, artistas, e pessoas de certa influência social, a vida fácil deu a madame Bernadete fama, dinheiro e inimigos.
O cheiro do sucesso aguçava os mais excêntricos paladares, o que haveria na bela prostituta do interior de Minas Gerais que satisfazia até os mais exóticos clientes? Costumava dizer o prefeito da cidade em encontros às escondidas por entre uma carta e outra, um drink na mão e o olhar cerrado para Dirceu que Bernadete era capaz de satisfazer um cão sarnento por um longo tempo. Os comentários a respeito da jovem prostituta arrastaramse por diversas cidades vizinhas trazendo de volta também o seu passado. Carlos ficou sabendo do novo ofício da exmulher e alcoólatra, doente e falido chegou a ir até Teresópolis reivindicar a Bernadete parte da herança que supostamente lhe cabia do rompimento do casamento. No trágico reencontro e já com venéreas passeando por entre os dentes Carlos matou a facadas Dirceu que tentava defender Bernadete das acusações e reivindicações do pintor falido. Na manhã do
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dia seguinte enquanto o corpo de Carlos era removido totalmente mutilado e deformado das águas do Lago Iacy, Bernadete tomava o ônibus rumo à Araras com o dinheiro da semana, pois o dinheiro nunca durava mais do que esse tempo, roupa limpa para alguns dias, anticoncepcionais e uma mexerica para não sentir fome durante a viagem. A partida não planejada se deu ao fato de que foi atribuída a Bernadete a culpa da morte de Dirceu e suas então companheiras de trabalho tramavam para Bernadete o mesmo destino de Carlos, movidas metade por vingança metade por medo de que, influente e atraente, a moça pudesse tomar posse dos negócios do falecido cafetão. Após a fuga para Araras a vida de Bernadete se tornou durante muitos meses uma costura entre prostituição e viagens até finalmente fixarse na cidade do Rio de Janeiro. No Rio madame Bernadete trabalhou durante cinco anos vendendose nos bares, nas esquinas e nos acostamentos, a rua suja e movimentada era a sua vitrine e após todo o tipo de cliente a deslizar a língua áspera e dedos sujos por suas coxas madame Bernadete resolveu abrir o seu próprio bordel com a única coisa que tinha aprendido a poupar nos últimos anos, dinheiro.
Em menos de um ano a Casa Vienense era um dos mais freqüentados puteiros do Rio de Janeiro, seres de todos os lugares vinham à casa de madame Bernadete para provar seus diversos sabores. A música ao vivo e as belas prostitutas eram destaque e motivo do retorno da maioria dos clientes que, somados ao lucro e boa administração, logo fizeram da disfarçada casa uma imponente construção chamando a atenção de quem quer que passasse em frente. Com decoração clássica e aspecto de pensão Portuguesa, a Casa Vienense era freqüentemente fotografada por turistas que passavam por perto, quando não experimentada também. Após o sucesso de seu bordel Madame
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Bernadete não fez mais programas, ficando apenas com a tarefa de administrar a casa, estava sempre na cozinha com aspecto calmo ou, vez em quando, áspero e indiferente, usava um linguajar forte e levemente vulgar. A Casa Vienense dispunha de uma sala ampla com mesas para jogos e drinks, e diversas cadeiras e sofás onde as senhoritas que tinham seus preços tabelados poderiam se oferecer ao som de música ao vivo, quase sempre Jazz. Quando ganhava um cliente, constantemente a moça amarrava a gravata do mesmo no pescoço ou no próprio punho e desfilava discretamente pela casa de forma a mostrar que a noite estava garantida e não faltaria dinheiro no dia seguinte, isso também ajudava a evitar que dois senhores cobiçassem a mesma dama. Madame Bernadete jamais voltou a se relacionar formalmente e quase sempre era vista acompanhada de diversos rapazes de aspecto bem mais novo do que se encontrava a mesma agora, envelhecida, porém marcada mais pela vida do que pelo tempo.
Obrigado por chamar o táxi, avise as outras que volto à noite e quero encontrálas já vestidas e de sorriso na face. Boa tarde, me leve para Belmont em Ipanema por gentileza.
Sim senhora Após minutos de silêncio e leve olhada no retrovisor o Taxista tenta um entrosamento A senhora é do Rio de Janeiro mesmo?
Não senhor, sou de Minas Gerais.
Fato que lastimo em minha vida é o de nunca ter visitado Minas Gerais.
Não está perdendo nada.
É que falam tão bem de lá, e...
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O senhor deveria olhar bem para os lados antes de atravessar um diálogo.
A senhora me perdoe, eu estava apenas sendo gentil.
O senhor não considera uma ofensa uma pessoa conversar com a outra por mera obrigação?
Com o semblante um tanto quanto envergonhado o homem responde A senhora talvez não tenha tido uma boa manhã.
Ora meu bom homem, todas as minhas manhãs são iguais ao seu ponto de vista.
A senhora não me conhece tão bem para saber se eu acharia as manhãs todas iguais. E olha, para quem dirige nenhuma manhã é igual à outra Terminou sorrindo pausadamente.
O silêncio abraçou a situação e o taxista continuava a dirigir como quem vasculhava o cérebro em busca de um assunto, um sorriso, ou qualquer tipo de interação, porém Madame Bernadete continuava imóvel no banco de trás elegantemente sentada, parecia indiferente ao homem até que, estacionando em frente ao destino, o silêncio é quebrado.
Chegamos Anunciou o taxista enquanto ainda parava o veículo.
Madame Bernadete se aproximou da porta e disse A calçada está pela direita ou pela esquerda?
Já disseram que a senhora é um pouco engraçada? Com todo respeito é claro Exclamou sorrindo o taxista e continuou A calçada está para esquerda.
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Madame Bernadete abriu a bolsa discretamente, demorou alguns segundos e perguntou ainda com a mão na bolsa Quanto custou?
Quanto custou o que?
O seu corpo Nesse momento ficou corado o rosto do taxista e madame Bernadete emendou Ora, claro que falo da corrida, o que mais seria?
Para a senhora é vinte reais.
Aposto que diz isso para todas.
Enquanto contava o troco o taxista aproveitou pra se despedir Antes que a senhora se vá, por que me perguntou se a calçada era pela esquerda ou pela direita?
Já em pé a cafetina respondeu É que nasci cega e tenho plena consciência de que morrerei assim. Mas morrerei cega dos olhos, hoje meu coração enxerga e muito bem.
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Borboletas Noturnas
Que Deus vos abençoe na volta para casa. Assim terminou mais uma missa de padre Giulio e é de se desconfiar que continuem terminando até o fim de seus dias. Nascido em Verona na Itália, veio com a mãe para o Brasil aos oito anos de idade devido à morte do pai, já que os avós por parte de mãe moravam no Brasil seria melhor que a mãe enfrentasse o problema estando próximo da família. Assim que completou dezoito anos sua mãe também veio a falecer e um ano após o falecimento da mãe Giulio entrou para o mosteiro São Damião em Porto Alegre, a partir de então adotou um estilo de vida celibatário e de fato, talvez o Concílio de Trento foda a vida de certas pessoas.
Na noite anterior Madalena se preparava para subir ao palco e apresentar seu show erótico em uma boate dessas que só tem um banheiro e até quem freqüenta fala mal, mas mesmo assim é bem freqüentada. Madalena chegava sempre minutos antes de começar seu show, sempre muito bem arrumada, nunca se embelezava esteticamente no local, mas passava longos minutos embelezando a mente na companhia de algum destilado. Nessa noite o espartilho listrado que lhe vestia conversava com a cinta liga e pensava ela em uma dieta, não seria ético, mas imoral pode. De longos cabelos presos subiu ao palco para cantar alto numa voz grave em corpo de mulher.
Talvez pelo sentimento que transpareciam, as missas de padre Giulio eram muito elogiadas na cidade, o elegante italiano no alto de seus 50 anos era referência para os cristãos e talvez não houvesse religioso que não defendesse junto a todos os dogmas da igreja também a beleza de tais missas, o padre era o argumento de pessoas como aquelas senhoras
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mais conservadoras quando atacavam os costumes da sociedade moderna ou algum comportamento que desaprovassem. Após a missa e o cumprimento dos deveres de seu ofício Giulio costumava ir para casa sem fazer parada, e foi como fez de fato. Morava em um apartamento simples, não tinha animais de estimação e apesar de ser muito querido pela população e ter diversos amigos, nunca recebia visitas, era uma pessoa muito tranqüila e liberal, costumava falar do amor, da tranqüilidade, da sociedade, sempre com críticas de forte embasamento, porém sem ferir nenhum tipo de liberdade ou impor algum dogma religioso. Apenas pela feição era possível notar que padre Giulio era um homem muito vivido e muito sábio, exímio leitor, vegetariano e apreciador de bons vinhos quase nunca era visto na cidade, era geralmente calado, porém convicto quando falava. Nesse sábado havia acabado a missa da tarde e era possível dormir um pouco até a noite, após um banho quente e algumas páginas de um livro qualquer Giulio entregouse ao sono.
Na noite anterior Madalena cantou canções, excitou a platéia e como sempre saiu sem se despedir. Seus shows eram admirados pela sensualidade, certo desprezo e também pela musicalidade. É claro que a platéia também gostava da sedução e da perversão que os shows de Madalena continham, da masturbação ao vivo, da dança e da ousadia. Madalena provocava desejos com a liberdade e o ódio que demonstrava no palco, era como se todos quisessem laçála, dominála, porém sequer se aproximavam. E em meio a toda a perversidade havia toda uma tristeza, toda uma carência em seu olhar, um piscar lento e o rosto pintado de branco, Madalena tinha sexo nos lábios e toda tranqüilidade nos gestos. Depois de terminado o show e uma conversa com Anna Belle, sua confidente e dona da casa, Madalena
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saiu com o carro. Muito do sucesso de Madalena deviase também aos clientes que iam toda noite de Sexta assistir seus shows para tentar descobrir, decifrar o ser que se apresentava, porém nunca estava acompanhada, nunca conversava, nunca ficava para o fim de noite. Era como se as pessoas fossem assistir Madalena e Madalena fosse se apresentar para a noite.
Devido ao sono da tarde Giulio acordou na boca da madrugada, com os olhos e a mente aberta, contava pensamentos que saltavam por sobre a cerca de seus hemisférios cerebrais, pensava sobre o homem o qual vive como ser pleno apenas quando está sozinho, mas considera ser pleno apenas quando em companhia de outro ser, aquele que vive seus sonhos e suas realizações apenas atrás de uma máscara como se seu eu fosse uma âncora na imensidão do mar onde apenas os que se dispusessem a mergulhar no ventre abissal de seus medos é que poderiam enxergar alguma coisa. Já é domingo pensava o velho padre, e com seu pensamento vinha também uma tentativa de conspurcar o motivo dos seres que buscam a felicidade tentando ser algo o qual os outros admiram. Colocamos as nossas máscaras de seres corretos, de quem quer o bem, de altruístas e saudáveis ainda crianças, controlamos o colesterol, escovamos os dentes, vamos à academia para ir à praia no verão, rezamos antes de dormir e vamos à igreja por achar que existe céu e inferno. Ainda pensativo sentado na beira da cama calçou os chinelos e se dirigiu à cozinha, quem sabe algo de agrado esteja esperando na geladeira.
E o que era sextafeira se transformou em uma madrugada de sábado, enquanto dirigia para casa Madalena pensava se convinha aos olhos se ver assim, se convinha aos neurônios manteremse avulsos a qualquer julgamento e não julgar qualquer outro ser que esteja avulso à sua
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fronte. Não me venha forçar a simpatia ou aguçar a curiosidade na esperança de saciála com minhas palavras, não é senão homem aquele que domestica os sentimentos, aquele que domestica as vontades. Não. O que enjaula os desejos é, pois um fantasma a assombrar a si mesmo, não é nada senão uma sombra de seu verdadeiro eu escondido, mostra tua sombra para quem te quer bem e não saberá do teu choro abafado pelo banho. Se pausar a ação não espere de teus sonhos nada além de impulsos neurais, e se assim me vejo no espelho de manhã, me escondo que é pra não me aceitar demais. Assim flutuavam os pensamentos de Madalena que enquanto refletia ao dirigir, virava a esquina mais próxima de seu apartamento. Parou na beira da calçada numa rua ainda vazia, aquela neblina que iria embora assim que o sol começasse a se despreguiçar a assistiu despirse no carro e rumar para casa. Madalena morava em um apartamento simples, não tinha animais de estimação e nunca recebia visitas, era uma pessoa muito tranqüila e liberal. Assim que abriu a porta do sétimo andar tirou a fantasia de mulher e se tornou novamente Giulio, descansou, tomou um banho e após um drink pensou durante alguns minutos na noite anterior, homem no corpo de mulher ou seria o contrário? Dançar para uma platéia de hienas tristes, não deu muita atenção a si mesmo, é sábado, hoje tem a missa da tarde e era só o que se passava pelas vias de suas preocupações agora. Pensou pouco, sonhou pouco e dormiu bem.
Que Deus vos abençoe na volta pra casa. Assim terminou a missa de Padre Giulio como terminaram todas as outras de sua vida, e é de se desconfiar que continuem terminando até o fim de seus dias.
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Trevo de Quatro Folhas
Ah o amor, não pra mim, eu até poderia sair por aí amando sabe cara, mas amor é uma coisa que realmente me chateia, eu gosto disso, só não gosto mais do que essa nossa interação constante, eu falo e você fica aí com essa cara de otário pra mim, e aí eu falo mais e quando acho que não tem mais como você fica com mais cara de otário ainda. Você sim! Você me diverte sabia? Eu gosto mais de você do que de amor, amor não tem pênis, você tem eu suponho. Mas não é por mal, entra uma grana boa e eu nem me esforço muito, a arte está em um bom cianureto, não dá pra reclamar de morrer nos braços de uma mulher feito oficial nazista. Você parece um porco babando por sexo aí me olhando, está com a mesma cara de quando encomendam flores comigo, eu sempre digo que sou vendedora de flores, e afinal não sou? Note as semelhanças entre nós cara, eu digo, eu e os vendedores de flores. Sabe, as pessoas vão sempre gostar de você desde que você não esteja melhor do que elas, elas sempre vão pagar o que for pra ver quem elas odeiam na merda. Mas olha, peça o que você quiser de mim, por favor, sem essa de agradecer, coisa boa não se agradece, comemorase. E pense, sua mãe o ensinou como agradecer e como se portar, mas não é isso que me interessa e nem é o que te interessava, tenho certeza que as coisas mais legais as mães não ensinam. Você até que finge bem ser o que não é pra conquistar uma mulher, é bonito, deve ser casado, ter família, um filhinho e quem sabe socar a pancada na mulher quando está irritado né? Nossa calma! Senta aí, não fica bravo assim não, assim você me diverte. Então, sempre é gente importante que pede, quantos caras já não vi a cara estampada no jornal que tinha enfiado o dedo sujo nos meus peitos na noite
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passada, mas nem chegou a tirar o pau pra fora, vestiu o paletó de madeira na manhã seguinte de pau duro mesmo, alguns, outros nem isso. Sabe o que acho mais cínico nisso tudo? Óbvio que você não sabe. O idiota que está agonizando na minha frente nem sequer pagou pelo serviço, outro que o odeia o fez, pagou pra ele morrer, ou seja, você odeia a pessoa e ainda faz um enorme favor pra ela, vai entender, me faz rir às vezes, não sei se tenho mais pena de mim ou deles. Triste eu? Só se for por mim, não tem anjo aqui não colega e como mulher eu posso te garantir que sou a primeira e a última. Mas triste mesmo eu fico é por esse bando de idiotas ao redor, vai olha, sei que é brega olhar em volta, mas fodase, ainda mais você que deve estar entrando pela primeira vez num lugar como esse não é? Deve estar morrendo de curiosidade, vai olha que eles olham pra você como se você fosse um doente, olham com pena de você, mas não é uma pena humana, é do tipo de sentimento que só aflora pra que eles continuem se sentindo superiores. Por favor, não me faça essa cara de espantado, até parece que você não percebeu, te olham com essa cara de falsa piedade julgando interiormente que você realmente é um ser triste ou inferior por não ser como eles, andar na linha, deitar do lado da esposa enrugada todas as noites e se masturbar enquanto ela dorme. Casamento é o que fode com tudo isso, mas eu estava falando deles, aqueles que nós estamos morrendo de dó agora, todos envolta sorrindo que é pra chegar em casa e segurar melhor o choro. Não me fale de carinho, de mudar de vida, não seja piegas, certa vez estive com alguém e foram apenas algumas semanas, mas as pessoas se confundem, não é culpa delas cara, não é culpa minha e nem sua é que puro hoje em dia é só bebida de alambique e ainda se não misturaram água, não dá pra esperar mais nada de ninguém a não ser
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uma cara horrível de manhã após provar você. E sabe, depois de uma noite dessas eu gosto mesmo é de ver a minha cara de manhã e saber que eu vou estar inteira ainda. Eu já pedi pra você parar de rir? Mas eu estive sim com alguém melhor do que você, com menos cara de otário que você e tenho certeza que ele tinha um pau bem maior também, mas então eu acordei e é sempre assim, acorda você e o lençol na cama e nada mais, quem está com você sempre vai dar um jeito de ir embora e se quiser ficar a vida dá cabo. Aquela coisa de olhar e sentir um frio na barriga, de ficar perto e ter o coração na boca eu já nem sei mais como é, a graça de amar era ter medo. Eu fiz do coração as tripas e foi só isso, e você continua aí me olhando como um otário, na verdade, no fundo mesmo eu só queria amar cara.
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Whiskey com Café
Estive cometendo todos os atos dos quais sei que deveria estar evitando, ou ao menos guardando. Quando nos sentimos bem na presença de alguém toda tentativa de aproximação é uma futura distância, toda a necessidade de plantar sentimentos para colher sorrisos, para se fazer sorrir, é também semear o comodismo. O fato é que ela sabe me dar o silêncio quando eu preciso dele, o olhar calmo de manhã e o respirar mansinho de madrugada. Eu sei que nunca entendi como eu vim parar aqui, pois eu planejei nunca voltar, mas o fato é que eu sequer fui. Estive pensando sobre pensar em você e essa mania que desenvolvi de ocupar o tédio com pequenas lembranças de nossos momentos, o que de fato me permitiria produzir quem sabe um filme considerando que eu estou quase sempre entediado. Não estava nos planos que fosse assim e por isso é que é tão diferente.
Estive observandoa tomando café amargo e lendo na mesa da cozinha com o cigarro entre os dedos, as pernas próximas e os olhos cravados em letras miúdas espalhadas pelas páginas amareladas. Não adianta, eu já me conformei e por mais que eu tente eu não leio o que o seu olhar me diz, e entre uma mensagem e outra chego a suspeitar que na verdade ele não me diga nada. “Seus olhos andam mais brilhantes”, eu digo “Passei a pingar colírio neles, estão secos,” você me responde. Enquanto eu estive deitado tentava entender algumas páginas de todos aqueles textos que você disse que eu deveria ler para comentar contigo ou simplesmente porque estava dividindo comigo o que te faz ter impressões do mundo, e eu só pensava que a cada minuto entregavalhe um pouco do que eu relutava a desenvolver dentro de mim, eu sentia como se
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estivesse a empurrarlhe um pouco mais para longe ao sentirme assim, como se tivesse que manterme escondido para fazêla procurarme e essa seria minha maneira de mantêla por perto. Eu sei que eu não queria pensar, estar, me importar e então descubro que não é necessidade, é querer. Não necessito, mas quero, todos somos inseguros sem exceção e como tudo o que é novo, naturalmente eu vou precisar de exemplos, de aprovações, de impressões que só eu posso me dar. Precisarei fazer questões certas no tempo errado só pra me surpreender no final, porque é assim que as coisas são, um fluxo constante de fatos desconexos.
O meu olhar transparente fazme enxergar no meu medo o paradoxo de finitude do universo, finjo que não me importo por medo de não ter importância, e como aceitar ainda dói a minha morfina é a negação de que necessito sorrir com a sua simples presença, e as palavras são amigas sádicas quando não o faço. Nessa de interpretar tudo o que você diz, de ver significado e tentar decifrar em cada palavra um começo ou um fim temo que um dia eu acerte. E aí está toda a coragem, pois como cego que sou, apalpo o teu corpo na esperança de saber onde estou.
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Hemograma
O enganaria, pois se nem sei de certo do que falo como posso gritar a teus ouvidos o que ainda não tomo como grito? Amor não tem medida, não tem quantidade, tem possibilidade e nessa altura acho que já falei de amor, merda. A ausência é um carrasco cruel, cúmplice da imaginação torturao, brinca com a atenção de quem se atreve a notála, e aí fico jogado a imaginar se você está bem, se saiu, se divertiuse, se conheceu alguém. Nesses momentos me odeio, me repudio e tento distrairme com qualquer livro, com qualquer música, com qualquer inseto que esteja a rodear a lâmpada e como um inseto a tua ausência volta a rodear a minha imaginação, assim como a minha força, cresce também o incômodo de se notar só. Chamoa de solidão exclusiva já que tem antídoto também exclusivo. Não durmo arquitetando planos para destruíla, não durmo arquitetando um meio, uma ponte, uma estrada que me leve à tranqüilidade. Às vezes me vem o desejo idiota de que você sem saber me visse e eu sem saber que me vê sentisse a sua falta pra que soubesses como fico perdido longe de ti. Fracasso, desesperome e digo a mim mesmo que isso é saudade, bebo um pouco, fumo um cigarro e tento dormir que vai passar, esse sentirse caindo com os pés no chão passa. Pois tudo acaba numa ponta de cigarro, os sorrisos, as brigas, os abraços, as reconciliações, as viagens, os dias acordando juntos, o choro abafado no travesseiro ou pelo abraço de quem você julgou teu reino, tua muralha, a quem entregou teus planos e tua saudade. Tudo termina no fundo do copo. Nos dias de sol enquanto eu franzia a testa sentindo pena dos casais alegres no parque enquanto os casais alegres no parque sentiam pena de mim. Seja a
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minha morada só enquanto eu souber o caminho de casa e quando eu me perder que o meu novo destino seja belo ainda que solitário. De tanto buscar repostas para tua partida me vi sem sequer lembrarme de quando você se foi, sabia apenas que tinha ido, passou a ser um sentimento egoísta o fato de eu me importar apenas com a dor que tua ausência me causava e não com tua ausência em si. Tem noites em que me apego ao vento, às lagartixas passeando pelos cantos do quarto ou qualquer distração, mas fica tudo bem com um copo de rum, alguns cigarros e algumas palavras tortas. Quando te vi eu não tinha estrada, mas tinha destino.
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Avulsas
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Eu vivo tão rodeado de excessos que sequer sei diferenciar o que é bom do que é necessário para mim, eu deveria olhar para as pessoas estúpidas e ficar calado, eu me calo nas horas erradas. Estamos sempre buscando ser alguém, encontrar alguém, amar alguém, e nos esquecemos de quem somos, de quem temos e quem amamos. Eu queria poder olhar os seus olhos novamente às duas da manhã lentamente se fechando em frente à TV, de sentir o limite entre o seu umbigo e o zíper, a leve curva no canto dos seus lábios ao sorrir, o modo levemente charmoso com que você segura as flores e a maneira completamente leve que você sorri. Eu ainda sei exatamente até onde vai minha ousadia e vou continuar sabendo até que ela me surpreenda novamente. Eu parecia tão distante quando era para ter medo talvez porque eu sempre tivesse uma solução, mas agora eu tenho medo de que não exista uma solução, sempre me disseram que não existe solução para tudo e eu prefiro acreditar que ainda não conhecemos a solução pra tudo. Quando eu pensei que estaria tudo certo, estava tudo errado, talvez ao invés de dizer que havia um erro eu deveria me perguntar se havia um motivo, ao invés de dizer que havia um problema eu deveria me perguntar se havia uma solução. Talvez se eu tivesse feito tudo diferente, o fim seria o mesmo.
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II
Sem casa, sem rumo, nada entre eu e a chuva. Esperei o momento certo achando que eu teria muito a dizer e então eu não consegui emitir sequer um ruído, a luz entrava pela janela e iluminava o quarto escuro, este já nem sou mais eu, eu sou qualquer outra coisa ou eu gostaria de ser. Você pode usar um desses copos jogados no chão de cinzeiro ou me usar se quiser. As sombras projetamse nas paredes como os sentimentos em nossos corações, elas são voláteis, mudam de acordo com a luminosidade e às vezes tomam formas, nos dão medo ou fazem rir, mas no fim são apenas sombras e todas se vão. Eu não sei lavar roupa e não sei cozinhar, mas não conta pra ninguém tudo bem? Longe de casa tudo parece maior e fica mais difícil distinguir quem finge que o ama de quem te odeia. Os meus olhos enxergam um pouco além do seu rostinho bonito e eu vou saber quando você fingir, mas vou ignorar e você sabe, as pérolas derretem no vinagre então pra que essa prepotência? Eu evito pessoas com fones de ouvido e eu sei que no fim eu só evito a mim mesmo, escrevo a minha alma e você lê a sua e ainda assim não te fiz sonhar com a vida que levo. Eu tenho essa cara pálida porque não me alimento direito, e o pior, não por necessidade, é apenas falta de talento culinário mesmo. É mais fácil fumar um cigarro e tomar uma xícara de café.
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III
Não me importa nenhuma razão, outra vez eu abro a porta e desço um degrau para rua, o sol socando meus olhos e aquela seriedade no olhar serrado de quem acaba de se lembrar de alguma merda que fez de madrugada, acendo um cigarro e penso, ou finjo que penso. Digame, você já foi alguém para alguém para querer que alguém seja alguém para você? Ontem eu achei uma carta, algo o qual me escreveram anos atrás, estava amarelada e dobrada embaixo de um maço de cigarros vazio, afinal quem guarda maços de cigarros vazios quando se tem cartas? Foi escrita para mim no momento mais sutil e mais tranqüilo, no momento em que pude chamar minha existência de vida. A cada manhã eu tiro braços diferentes do meu corpo e toco corpos diferentes ao amanhecer, aquela facilidade e ilusão excessiva que a vida te joga na cara para anestesiar suas mágoas. Viraram a minha vida de cabeça pra baixo, não, na verdade acho que eu fiz isso sozinho, não se trata de dinheiro, de estudo ou de vida, esse não é o problema. Eu vou tomar um banho e deixar que o sereno da madrugada caia sobre mim, eu vou vender meu cérebro e deixar a minha vida rolar como água pelo vão dos dedos de quem eu nem conheço.
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IV
Tem uma pilha de gente com os mesmos problemas que você pra te dizer o que fazer quando você está literalmente fodido. Não vou mentir, não vou esconder que nem tudo passou da maneira que deveria, eu não sou e nunca mais serei o mesmo de alguns anos atrás e pra ser sincero, melhoramos a maturidade para piorarmos a intensidade. E como não pude dizer adeus eu tenho a impressão de que não foi finalizado, como quando você perde um ente querido e não pode enterrálo, te dá sempre a impressão de que o mesmo entrará milagrosamente pela porta a qualquer momento. Não vai funcionar. Melhor do que dizer algo que alguém deveria fazer é ficar calado e fazer algo, eu vejo sempre os mesmos problemas com as mesmas soluções que não solucionam nada, mas não as trato assim, creio que sejam cortinas temporárias para o que não conseguimos encarar ou admitir, me parece ainda que não nos escondemos do que nos causa medo e sim o que nos causa medo. Não há Fisioterapia para as minhas deficiências emocionais, eu sou assim, eu me sinto assim. Só não sei assim como.
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V
Eu acordo sozinho e deixo a cama sem arrumar, faço um café forte, adoço pouco, vou até a varanda e acendo um cigarro e deixo alguma música tocando. Ainda de pijama, com sono e os olhos cerrados por causa dos raios de sol eu aprisiono o meu mau humor típico no meu silêncio mais típico ainda. Continua tudo igual, só que sem você. Honestamente eu preciso ser assim, um pouquinho estranho, maluco mesmo sabe. Eu preciso dar uma fugida da minha e da sua realidade de vez em quando. Preciso me dar problemas que antes não existiam e talvez nem existissem se não fosse eu os criar. Eu preciso estar sozinho, desacompanhado até de mim que é pra quando eu te encontrar eu já ter me encontrado, porque a gente não pode se encontrar sem antes se perder.
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VI
Hoje eu vou beber as mágoas, as saudades, eu vou esquecer a vida no fundo do copo. Eu já senti o gosto dessa situação antes, quando eu acordo de manhã e não quero me levantar da cama ou de lugar nenhum. Hoje eu vou beber as críticas, as brigas, as memórias, a falta de ritmo, o meu estilo de vida torto e amanhã eu acordo com dor de cabeça, com um gosto de vela na boca e abro a janela para me machucar com a claridade. Quando eu acordar tudo parecerá um coma, acendo um cigarro e sigo em frente, na verdade nada aconteceu. Os abraços, os beijos, as brigas, os olhares, os planos, o fingimento de que tudo está e ficará bem, nada aconteceu de verdade, é como se tivéssemos encenado todo o tempo. Estou cheio de começos inacabados, de tentativas não tentadas, de sonhos não sonhados, de amores não vividos, mas ainda sinto que tive tudo isso em mim mais do que em qualquer outra pessoa. De onde vem tudo isso que toda gente faz igual? De onde vem tudo isso que se olha e se refaz diante de outra perspectiva? E premiase por isso? Elogiase por isso, dáse o rabo por isso. É tudo um lado diferente do mesmo cubo, é tudo janela do mesmo quarto que olhando de dentro para fora cada paisagem se desenha como se designou, norte, sul, leste ou oeste, mas olhando de fora para dentro é tudo o mesmo quarto, é tudo a mesma janela, é tudo o mesmo norte.
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VII
Sabe, pode chamar de piegas, mas todas as pessoas que passaram por minha vida foram as últimas pessoas. É que eu preciso disso, eu preciso imaginar mesmo que o meu racional me grite lá no fundo que não, que essa é a última pessoa, que eu vou estar só com ela agora e não vou mais precisar buscar ninguém, que ela tem os defeitos e as qualidades necessárias para minha tranqüilidade, eu preciso imaginar essa pessoa dentro do que sonhei para mim, ficar imaginando aquelas cenas que nunca vão acontecer, aqueles lugares que nunca vamos visitar e situações que nunca vamos passar. Eu sei que nada disso é real e que sonho demais, imagino, espero demais, nunca é a última pessoa, mas eu gosto de fingir que sim, me faz feliz. É que se não for assim eu vou embora sumo no mundo e paro na primeira esquina, entro no primeiro boteco que me parecer acolhedor, pois se não me faz sonhar, se não me faz idiota, piegas, se não estupra minha racionalidade qualquer bar me fará mais feliz do que a tua companhia.
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Artificial
Descansa no meu corpo a alma em prantos e em minha mente a lembrança do que finjo que esqueci. Após um corredor estreito com as lesmas a escalar as úmidas paredes encontrase meu lar, as pesadas portas de ferro e madeira lacram meu reino, lacre o qual apenas o inimigo tem as chaves e as paredes escuras cheias de nomes escritos cercamme como uma lápide, lar de insetos, paredes do meu aquário, espectadoras do meu horror. O chão de cimento áspero como meu humor é a base para um enorme pilar cilíndrico que se ergue do centro da cela até o teto, teto este o qual através das frestas e buracos podemos observar as barras de ferro que formam o cubículo, lar de murídeos que assistem ao concerto de gritos toda noite. Atrás do pilar existe uma fenda a qual é possível passar apenas uma pessoa por vez e dá acesso a um estreito corredor, impossível que duas pessoas coabitem, no fim do corredor há um buraco, mais precisamente uma fossa para nossas necessidades fisiológicas e um cano pelo o qual desce timidamente a água que bebemos e nos banhamos. Lembrome até que certa vez cortaram a água do tal cano durante três dias e ficamos sem tomar água e sem tomar banho. Do lado esquerdo da porta há um colchão no chão que se tirarmos dois centímetros de espessura parecerá mais um tapete velho e sujo, há também uma caneca de plástico que me lembra muito meus tempos de escola. Do lado direito da sala há um banco de madeira que se estende de uma extremidade a outra da parede o qual passo muito tempo deitada embaixo, parece que me sinto mais protegida. Costumava antes ficar sentada esperando algum nem eu sei o que vir me buscar.
Jogada aos cantos com as feridas
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atritando contra a parede e os olhos inundados lembrome de minha infância, só ouço minha respiração e o medo que me grita de dentro do estômago, e que ninguém me venha violar agora. Eu não sou mulher, eu não sou mulher, eu sou só uma criança. Lembrome de quando brincávamos eu e meu irmão no jardim em frente a nossa casa, nesse mesmo jardim situavase a notável laranjeira a qual meu pai passava horas lendo na tranqüilidade de sua sombra, em tempos de natal a enfeitávamos como se fosse nosso pinheiro e talvez ficasse até mais bonita, meu pai costumava pendurar nossos presentes nela e apesar de mais novo meu irmão sempre pegava o dele e o meu lá no alto, ele sempre foi muito alto e de coração de proporcional tamanho, nunca negou ajuda a qualquer um que lhe erguesse olhos tristes. Meu pai costumava nos dizer que em nossa laranjeira brotavam todos os presentes de todas as crianças do mundo e que por isso, tínhamos que cuidála com máximo esmero para que as crianças menos afortunadas também tivessem seus presentes no natal. Só eu sei como me sentia importante por ter a árvore dos presentes do mundo inteiro e que ainda dava frutos. Tenho a imagem de meu irmão lá no alto, sentado no galho com os pés a balançar, sorrindo e pedindo para que eu subisse, cabelo castanho como os olhos, lábios finos e rosto quadrado, muito alto e magro, foi quem por muito tempo impediu minhas lágrimas de tocar o chão. Em dias como estes eu invento a presença do meu irmão para firmarme melhor, mas a essa altura não posso vêlo nem em meus pensamentos, minha garganta seca não pronuncia mais seu nome e os meus olhos quase fechados devido ao inchaço o enxergam apenas em minha memória, apagado, ao longe, sempre se despedindo.
No dia em que Eduardo, meu irmão, saiu de casa para estudar em São Paulo minha mãe não
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se acanhou em chorar em minha frente e pedir para que eu não fizesse como ele, pois ela traria São Paulo para dentro de casa para que Eduardo pudesse dar continuidade aos estudos. Meu irmão tinha dezenove anos quando partiu e eu vinte. Em São Paulo Eduardo conheceu a boêmia e se envolveu com o Partido Comunista Brasileiro passando a liderar diversos protestos e ajudar vítimas, presos políticos e companheiros comunistas, com o tempo tomou notoriedade até ser publicada uma entrevista prestada por ele no jornal da faculdade. Eduardo acabou sendo chamado por agentes do Exército para depor acusado de ligações com o Partido Comunista, estranhamente foi liberado, porém jamais retornou para casa, para a faculdade, ou para lugar algum. Alegaram mais tarde que meu irmão e outros três comunistas haviam se envolvido em um confronto com militares, foram baleados e acabaram morrendo no local. Naturalmente essa foi a versão que os filhos de uma puta arrumaram para explicar o sumiço repentino de Eduardo.
Sem notícias a quase três meses meus pais estavam à beira de um surto, então decidi ir até São Paulo investigar o paradeiro de meu irmão, fiz as malas e em duas semanas tomei posse de meu rumo. Tudo depois dos degraus da porta de minha casa era tristeza, tudo que havia depois do horizonte me desapontava, era sempre mais horrendo do que o que imaginei. Após me instalar, conversei com amigos, conhecidos, cheguei até mesmo a sondar algumas pistas com trabalhadores dos caixas de supermercados e comerciantes próximos da residência sobre o paradeiro de meu irmão, porém sem sucesso. Depois de quase um mês de procura uma amiga de Eduardo veio até mim, garota baixa, quase de minha estatura, cabelos bem pretos até o ombro, olhos grandes, nariz bem fino, lábios bem definidos e magra como o rosto que tem disseme que Eduardo estava
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demais envolvido com o ativismo e que o paradeiro dele era desconhecido também pra ela, até mesmo por questões de segurança, com muita insistência consegui com a garota, que se identificava como Kely o telefone de Vladimir que segundo ela, encabeçava algumas ações do Grupo Comunista e com certeza teria alguma informação relevante sobre Eduardo. Ao telefonar para Vladimir e explicarlhe o que ocorria fui imediatamente reconhecida, pois segundo ele Eduardo falava muito de mim, Vladimir disseme que não tinha boas notícias, mas mesmo assim não as diria no telefonema, era arriscada demais a troca de informações desse cunho via telefone, acertamos então que nos veríamos onde eu estava instalada após três dias desde a data do telefonema. Não me alimentei direito nos dias em que se decorreram, passei a maior parte do tempo em frente à televisão, pois tudo o que me exigia raciocínio, ainda que mínimo, era deixado para segundo plano, no momento preocupavame apenas em encontrar meu irmão e convencêlo a voltar para casa até que os tempos melhorassem. Nesse intervalo de alguns dias me alimentei basicamente de café e pães com os mais diversos acompanhamentos, salada, manteiga, requeijão, etc.
Finalmente ouvi a campainha do precário edifício tocar, era Vladimir, ele entrou, me cumprimentou com a cabeça, deu alguns passos e parou no meio do cômodo, me esperou fechar a porta e então o pedi que se sentasse, ofereci um café que Vladimir tomou calado, me olhou sério e despejou a tragédia. Eduardo havia sido preso logo após ter prestado depoimento, mas divulgaram sua falsa soltura para evitar maiores indagações da população, segundo Vladimir, na verdade, após o interrogatório meu irmão foi preso, torturado e não resistiu. Enquanto Vladimir me falava, eu apenas chorava, chorava, soluçava e as lágrimas
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vinham apressadas, agressivas, uma empurrando a outra, as pernas não sustentavam o corpo agora inóspito à felicidade e vagarosamente eu me sentava na cadeira à minha frente para não cair. Vladimir parado com a cabeça baixa chorava mansinho, e eu ali, gélida, pálida, só queria gritar, espernear aos ventos! É como se esse dia nunca tivesse existido na minha mente, é como se eu o tivesse inventado, como se tivesse doído tanto a ponto da dor ser gigantesca demais para ser real. Enquanto isso alguém batia na porta, e eu puxava e deslizava a mão pelos cabelos, abaixada com os olhos fechados escutava as batidas na porta, eu estava muito transtornada para pensar nisso, quanto a Vladimir, creio que o pobre tenha ficado envergonhado para abrila e também para me dizer algo naquele momento. A porta mais uma vez chamava, depois mais forte e mais forte, e meu choro descontrolado era a mais bela trilha sonora do momento. Lembrome da porta vindo ao chão, de cenas rápidas, do meu choro, de Vladimir se levantando assustado e pegando no bolso um frasco com veneno, me lembro dos dois oficiais do exército com ódio nos olhos e eu sentada, imóvel, chorando sem entender nada, quando me dei conta me vi sendo algemada, o corpo de Vladimir no chão convulsionava e se retorcia enquanto um oficial o observava e acendia um cigarro, e eu convulsionava e me retorcia por dentro, o coração epilético só bombeava dor para o cérebro, lembranças, revoltas, e eu gritava e chorava, tinha nojo de ser tocada por eles, mataram meu irmão, mataram meu anjo. Fui presa acusada de abrigar comunistas em minha residência. Quando me torturava o carrasco olhavame nos olhos como se me conhecesse, não sei o motivo, mas sinto que foi o mesmo porco de que torturou meu irmão.
Tive as unhas arrancadas, insetos inseridos nas genitálias, tomei choques
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elétricos e surras toda tarde, como um chá das cinco. A única coisa de que sei é que estou apenas a carne, já não sinto, já não vejo, já não falo, apenas observo e não consigo sequer negar quando sou arrastada corredores à fundo para pagar por pecados que sequer cometi. Quando perdi a capacidade de viver e passei apenas a existir como uma cadeira jogada inerte no canto, quando a poeira passou a tomar conta do meu coração as torturas cessaram e recebi a notícia que estaria liberada dentro de um mês, mas não fui forte, sobrevivi, ser forte é outra coisa, é não se corromper, não sei como fiquei até então aqui, eu quis morrer, eu achei que iria morrer, eu quis não suportar e, no entanto o corpo foi mais forte que meu desejo. Quando o sol tocar a minha carcaça na rua não quero minha casa, não quero minha mãe, eu não quero o mundo de volta. Quando meus pés tocarem a rua não saberei mais para onde ir, nesse tempo em que estive longe de casa eu desci de minha fortaleza, de meu mirante de maturidade. Não quero rever, não quero ver, não quero falar, não quero contar para minha família que um anjo voltou para casa esse ano, e que outro mora agora em meu ventre e chegará dentro de alguns meses, e por ambos, a culpa é minha. Mãe, eu estou grávida.
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Papo de Cozinha
Não, eu não estou espantado, e creio que isso espante você. Eu não preciso de explicações, mas se quiser eu ouço também. Só preciso de um copo d'água pra tirar esse gosto de vela da boca e essa ressaca debaixo dos olhos, engraçado é que você não mudou nada, os cabelos cacheados, o rosto tranqüilo e o coração ao longe. Olha, a casa é minha e eu arrumo se eu quiser, pinto as paredes se eu quiser e até derrubo ela se eu quiser, façamos assim, você vai embora pra não voltar dessa vez e eu penso se arrumo a cozinha tudo bem? Eu só não entendi qual a finalidade de desenterrar tudo isso, você veio aqui pra descobrir como você se sentiria me vendo sorrir? Você não sabe o problema que a tua ausência repentina foi pra mim, às vezes fico feliz em descobrir que a tranqüilidade que se recebe é proporcional ao tamanho do vazio que a gente sente, das noites em claro, daqueles choros descontrolados de madrugada, das fronhas de travesseiro molhadas e um monte de cerveja na geladeira, whiskey em cima da mesa, maços e maços de cigarros e o filho da puta do pensamento em você, mas obrigado por oferecer desculpas, aprecio sua tremenda inclinação natural para a falta de bom senso, é quase um talento. Sabe, quando acordei sozinho demorei uns dias pra entender que você tinha ido embora, no começo foi um horror, uma fossa sem tamanho, o tempo ia passando e parecia que eu só ia piorando, chorei muito sozinho, me escondia no canto da sala com copo e cigarro entre os dedos, então foi passando e eu fui me reconstruindo muito melhor, muito mais forte do que antigamente. Depois que eu tive certeza que você não voltava e a fossa estava mais longe, eu trepei com muita mulher nessa sala, nessa cozinha, nesse quarto, e se pensar, até
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nesse teto. Eu enchi a cara, escrevi durante madrugadas e vi gente quando conveniente apenas. E com o tempo você ia diminuindo, ia embaçando no meu olhar e só ia ficando o necessário pra eu me lembrar com alegria e respeito de ti, mas sem mágoa, sem dor, sem saudade, apenas lembrar. Com o tempo eu já não me sentia mal quando alguém falava de ti perto de mim, eu me pegava rindo da minha fossa, de você, do passado e nem te achando tudo isso, achavame bobo e ria, passei várias noites comparando a visão que o meu novo eu havia criado de você com a que eu tinha anteriormente. Foi tudo um grande aprendizado, e quer saber, poderia ser você ou uma puta qualquer de dois quarteirões abaixo, eu não me importo mais, seria tudo igual, não foi você, fui eu. Se é o que você queria saber por incrível que pareça, eu tô bem pra caralho e se me permite um palpite, com o próximo cara, vê se avisa ao menos que vai partir assim ele antecipa a fossa e antecipa também a cura já que amar não é nada além de estar doente dos sonhos. Pega essa colher aí do teu lado, isso essa mesma, obrigado. Quanto à casa, a mim, a você, pode ficar o tempo que lhe for necessário, as portas estão abertas, na verdade elas estão fechadas agora, mas você sabe o que eu quis dizer, quis dizer que pode contar comigo, que se precisar vai encontrar um ombro amigo, um afago e um teto aqui, mas não conta com a sorte não, a vontade de te mandar tomar no cu ainda é grande e não vai passar disso, não vai passar de conveniência, bem querer e um toque de consideração. Você pode dormir no sofá ou no quarto que era meu escritório, eu não uso mais, só não toque em assuntos do passado, não me toque e não mexa nos doces de figo que estão na geladeira.
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Lady Maria
Deu entrada no Hospital numa fria noite de vinte e quatro de Dezembro, muito magra, de cabelos curtos e pele negra trajava uma calça cinza de moletom, chinelos de dedo e uma camiseta preta de alcinhas que escondia parcialmente a barriga a qual abrigava outra vida. Chegou em trabalho de parto com fortes sinais de uso de drogas, mas ainda lúcida e um começo de pneumonia diagnosticado mais tarde. A realidade, o sofrimento, a queda dos valores que se esconde atrás de todo o concreto da rua eram visíveis no olhar daquela mulher, Maria, como disse que se chamava, não possuía documentos que provassem sua identidade e não conseguimos referências suficientes para confirmála. Ficou durante alguns minutos deitada numa maca no corredor coberta com um fino lençol azul em posição fetal virada para a parede, era possível notar sua magreza nos ossos salientes por baixo do lençol, da chegada à partida Maria falou muito pouco, na maior parte do tempo fazia apenas sinais com a cabeça, era usuária de crack, morava nas ruas desde criança e eram claros nela os sinais de profunda depressão ao conversarmos. Pelo que soube por ela mesma, Maria nasceu no Grajaú em São Paulo, o pai era chaveiro e a mãe diarista, fugiu de casa ainda com doze anos quando a mãe se envolveu com traficantes locais, desde então foi criada pela rua. Contou que se prostituiu algumas vezes mas não o fazia sempre, apenas em situações de extrema necessidade e que provavelmente engravidou em uma dessas situações, agora mais freqüentes para sustentar o vício do crack. Era difícil traçar uma possível teoria sobre a gravidez de Maria, pois os hábitos da moça levavam a diferentes conclusões, poderia ser devido à prostituição, as próprias relações sexuais que
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tinha passivamente com alguns parceiros ou devido aos abusos que sofria quando estava sob forte efeito das drogas, como já dito, era muito complexo tentar desenvolver uma conclusão.
Na noite em que Maria dava luz, um senhor apareceu muito nervoso e ansioso no hospital, de aspecto muito velho aparentando sessenta anos ou mais, tirando os traços de sofrimento que a vida o dera. Como eu fazia o parto no momento apenas ouvi comentários do escândalo armado pelo homem para que liberássemos Maria e da discussão até que ele fosse convencido de que não faríamos mal à moça e de que não chamaríamos nenhum órgão público, porém precisávamos de informações para liberála, e curiosamente o homem tinha o RG da paciente no bolso. Sentouse e esperou roendo as unhas e tamborilando no encosto do banco da recepção do hospital durante todo o parto. Às duas horas da manhã do dia vinte e cinco de Dezembro Maria deu a luz a um lindo menino de dois quilos e meio, o que espantou muito os médicos devido à qualidade de vida totalmente precária e o envolvimento da paciente com as drogas. Após o parto fui informada do senhor que havia chego e decidi conhecêlo, conversamos durante quase uma hora e ele disseme que procurava Maria fazia tempo, apaixonado pela moça que sumiu no mundo disse ter ouvido muitos boatos de que talvez ela já estivesse morta e quando obteve a informação de que Maria vivia nas ruas em torno da Estação da Luz se dirigiu até lá na esperança de encontrála, explicoume que passaria a noite de Natal sozinho, mas nunca perdeu a esperança de reencontrar a moça, pois seria maravilhoso que passassem o Natal juntos. O senhor havia tido muito pouco contato com Maria desde sua partida, se conheceram na rua enquanto ele vendia seus artesanatos, brinquedos infantis de madeira confeccionados
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por ele mesmo, se viam sempre no mesmo local até que ela não estivesse mais lá. A essa altura o homem se apresentou para mim como “Seu Zé”, apelido de rua para o verdadeiro nome de José. Continuou a explicarme que assim que chegou à estação e não encontrou Maria começou a angariar informações com os moradores de rua do perímetro e então ficou sabendo que a moça havia sido levada por uma ambulância, o homem que cedeu as informações deulhe uma sacola dizendo que eram os pertences de Maria e que ele entregasse a ela caso encontrassea, na sacola havia alguns documentos, uma calça e uma camiseta velha. José ligou durante horas em vários hospitais procurando registros de entrada de Maria, com os documentos da moça em mãos, não demorou a encontrar. Disseme que quando obteve uma resposta se sentiu ao mesmo tempo em que aliviado extremamente angustiado, pois pensou que Maria tivesse sido levada ao hospital por causa de drogas ou agressões, explicando o nervosismo com que chegou ao hospital, mas quando soube da gravidez, ficou perplexo, emocionado e muito feliz, tamanho era o tempo que não se viam que José sequer sabia da gravidez surpresa.
José se levantou com os olhos cheios de lágrimas ao ver Maria que vinha com o filho nos braços, não disseram nada de início, apenas permaneceram longos minutos levemente abraçados entre o menino que dormia, já era manhã de vinte e cinco de Dezembro e os raios de sol começavam a passear pela recepção, as janelas estavam todas coloridas de laranja e pareciam vitrais a rodear o recinto, uma manhã tranqüila e silenciosa, alguns pacientes dormiam, outros esperavam e cochilavam nos bancos, pessoas entravam, e pessoas saiam e mesmo assim parecia tudo calmo, fazia muito frio e o vento que entrava castigava os que estivessem desagasalhados. Maria se mostrou
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envergonhada quando olhou José, os dois conversaram durante longos minutos, José ficou a observar o garoto e também Maria durante um bom tempo e contar para ela suas impressões e o quanto os queria bem, não o interessava como, o motivo de Maria haver engravidado, não o interessava o pai biológico ou as dificuldades, José os amava. O menino dormia tranquilamente em meio a cobertores e lençóis, os olhos fechados, o cabelo ralo, a pele puramente negra, repousava no braço da mãe como um anjo, trazia consigo toda a inocência e a pureza ao respirar mansinho e fechar vagarosamente a mão por entre o emaranhado de panos e cobertas. O filho trouxe a Maria uma perspectiva completamente diferente de si mesma, ou ao menos parecia ser, José decidiu se casar com a moça e assumir a criança, não como marido, mas como um pai de ambos. Todos sabiam que seria difícil, que a vida continuaria fria, amarga e dura, que o mundo não para nem quando os anjos nascem, mas não era preciso pagar para sorrir naquele momento, não era preciso pagar para amar. Talvez não fosse, mas era um clima de despedida, e me apaguei a imaginar que Maria se despedia de si mesma para se reconstruir melhor a partir daquela manhã. Os dois se aconchegaram no banco a espera de amigos de José que viriam buscar a moça, sorriam, conversavam, fitavam o menino, e às vezes ficavam silenciosos olhando para os lados para então voltar a conversar sobre ninguém sabia o que. Depois de algum tempo três homens de extrema simplicidade e muito sorridentes chegaram à procura de José, quando o notaram do balcão da recepção se dirigiram calorosamente para abraçálo e conhecer Maria e seu filho. Os três traziam doces do sítio para Maria e o menino como um simbolismo apenas, trouxe cada um seu doce favorito, abóbora, cidra e figo. Conversaram um tempo e decidiram partir, Maria e José
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pediram alguns minutos e vieram se despedir de mim que no momento conversava com a recepcionista e fingia que não estava notando nada, até simulei certo espanto quando os vi. Realmente não sei qual o fim se deu, e já faz alguns meses que os quadros desses acontecimentos não deixam minhas lembranças, me lembro da imagem de Maria e José despedindose de mim, ela com o filho nos braços, ele cansado, de camisa branca, sorrindo e me pedindo que fosse tomar um café dia desses com eles, tudo parecia tão fácil e tão distante de ser real. Na rua um senhor profetizava aos berros o apocalipse e frases sem sentido, algumas extraídas da bíblia, enquanto isso Maria descia os corredores acompanhada de José e os três rapazes muito divertidos e animados, falavam muito alto e antes que partissem pudemos ouvir um que perguntava “Mas qual é a graça do menino dona Maria? Nem perguntamos ainda, já acertou com o Zé?” e Maria após olhar para seu filho, voltouse para o homem e respondeu, “É Jesus”.
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Presente Contínuo
Catarina todos os dias descia o morro rumo à padaria de Heitor, o senhor que sabendo das dificuldades da moça lhe vendia produtos por um preço menor. Os pães de Heitor eram todos os dias o café da manhã dos dois filhos de Catarina, Leandro e Alex. Leandro com cinco anos estava na préescola e gostava das torradas que a mãe fazia com os pães que se acumulavam dos dias anteriores, de dinossauros de brinquedo, do mar, embora o tivesse visto apenas pela televisão, de insetos que se escondiam nos gramados dos terrenos baldios e acreditava que as árvores possuíam antenas invisíveis que as permitiam comunicarse numa língua secreta de árvores. Todos os dias a mãe caminhava o árduo caminho até a préescola com Leandro adormecido no colo e o deixava pontualmente às sete horas no portão de entrada. Alex tinha doze anos e cursava a sétima série, punhase a caminhar sozinho pontualmente às seis e meia da manhã de segunda a sexta rumo à escola, Alex gostava de assistir televisão, empinar pipa, ouvir música sozinho em seu quarto, o que não era muito freqüente, pois o dividia com o irmão, gostava da garota da sala de aula ao lado embora nunca tenha conversado com ela, de filmes de ação e de desenhar. Ana morava em Londres e ligava todos os dias para o namorado Pedro no Brasil exatamente às seis horas da manhã enquanto se preparava para ir trabalhar, Pedro era todos os dias acordado pelo telefonema de Ana e saia logo após para comprar o café da manhã, ele gostava de pães recheados, suco de tangerina, coxinha, de beber sozinho de madrugada, colecionar maços de cigarros do mundo todo e de literatura, ultimamente sentiase deprimido devido à falta da namorada que cumpria um estágio de seis meses no exterior. Alan dormia
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o dia todo e acordava quando estava anoitecendo para cumprir religiosamente seu ponto no trailer de lanches como vendedor de drogas, cocaína, crack, maconha dentre outras. Alan gostava de futebol, de cigarros Lucky Strike, carros importados, embora sequer tivesse tirado a carta de motorista, de ver o sol nascer e de fumar maconha antes de dormir, ultimamente sentiase realizado com o tênis novo que havia comprado com algumas economias de assaltos e da venda de drogas.
E os dias se desenrolam em uma infinita reestruturação, o universo se reestrutura a cada fragmento que resta entre cada segundo, as infinitas combinações dos acontecimentos estão contidas no finito e inconstante número de átomos, dentro de cada segundo que já passou até o fim dessa palavra e que conteve milhares de mudanças, das escolhas que não foi você quem fez e cada impulso elétrico que você não sentiu dentro da sua cabeça para poder ler esta frase até o fim, o que nunca muda é a mudança constante das coisas. Ana que gostava de café com conhaque não acordou a tempo de ligar para Pedro devido ao porre da noite passada, e Pedro não acordou no horário costumeiro, pois Ana não havia ligado. Catarina que não podia darse ao luxo do atraso já que o trabalho aguardava às oito horas, se levantou pontualmente às cinco e meia e pôsse a acordar os filhos, pediu que se vestissem enquanto tomava banho e pensava em como contar aos filhos sobre o novo namorado. Alberto, o pacato dono do trailer de lanches agora já dominado por Alan fechou mais cedo, gostava de pescar, de sapatos de cor marrom e de estar com a família, embora não tivesse uma. Se Ana não tivesse brigado com Pedro no dia anterior e enchido a cara de conhaque durante a noite provavelmente teria ligado de manhã no horário correto, se Ana tivesse ligado Pedro provavelmente teria
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levantado minutos depois para comprar café da manhã na padaria de Heitor e não teria se atrasado para um evento que mesmo ele jamais saberá que se atrasou. Embalada em pensamentos Catarina acordou da viagem por dentro de si mesma no banho e notou o tempo transcorrido, apressada pôsse a descer rapidamente até a padaria comprar os pães para que os filhos fossem alimentados para a escola. Heitor, que gostava de tocar os pães quentes de manhã, do entardecer frente a seu estabelecimento com as crianças jogando bola na rua e do barulho que fazia o vento nas folhas das árvores estranhou Catarina não ter aparecido e saiu em frente ao estabelecimento para olhar se a moça estava vindo, inclusive a vizinhança sempre desconfiou de um amor platônico da parte de Heitor por Catarina que, convenhamos, apesar da idade não era de se jogar fora. Alan pôsse a caminhar em busca de qualquer perda de tempo e com certo mau humor já que Alberto havia fechado o trailer mais cedo, foi até seu esconderijo, escondeu a carga que estava consigo, guardou na cintura o revolver calibre 38 que recentemente havia conseguido e pôsse a ir para casa por uma rota diferente especialmente naquele dia, talvez movido pela manhã que já havia começado de maneira diferente ou qualquer outro motivo desconhecido. Assim que passou em frente à padaria de Heitor, o primeiro pensamento que sucedeu a Alan ao ver a rua vazia, o homem parado na calçada distraído e o recinto vazio foi um singelo “Eu poderia?”, as drogas ainda reagentes em sua cabeça ou apenas a índole ruim do rapaz gritavamno que seria de bom grado roubar a padaria de Heitor naquele momento, estava convidativo demais segundo a consciência do próprio Alan – “Quieto tio! Melhor não tentar nada senão é daqui pra baixo da terra, entendeu?” Heitor foi rendido carinhosamente por Alan em meio a calçada e
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forçado a entrar na padaria disfarçadamente, nervoso e trêmulo procurava em meio a tantas outras a chave que abria o caixa enquanto Alan o apressava, enquanto isso Catarina descia as pressas o morro, paralelepípedo por paralelepípedo para não se atrasar para o trabalho, um passo na poça, um passo na calçada, um passo à frente e um para dentro da padaria. Catarina disse “Seu Heitor!” E calouse para sempre. Alan foi pego de surpresa com a entrada repentina de Catarina na padaria, assim tão de repente e apressada, o rapaz se virou assustado e atirou sem olhar para onde, Catarina foi atingida no pescoço e caiu agonizante quase ao mesmo tempo em que Alan saiu correndo e sumiu no ângulo entre a esquina e os prédios que ocultavam a rua paralela. Heitor em estado de choque chorava e pronunciava “Filho da puta, eu a amava, filho da puta!”.
Com o barulho Pedro correu até a Janela que dava de frente para a padaria e observou o tumulto, lá de cima viase as pessoas se aproximando e formando um emaranhado de gente e boatos, o celular vibrava em seu bolso, era Anna, “Alô, estou bem sim. Não, não estou estranho. É que acho que mataram uma mulher aqui em frente, nossa. Por que você não me ligou? Tudo bem... só acho que deveria ter ligado”. Os filhos de Catarina esperavam estranhos à ausência da mãe, sentados na cozinha escutavam o ruído compassado do relógio. Alberto, o dono do trailer o qual Alan fazia o ponto para venda de drogas meditava naquele exato momento, “Catarina disse que me ligaria para contar a reação dos meninos, talvez eles não tenham reagido bem ao nosso namoro. Deus, mais uma que não der certo e começarei a crer que o amor não é para mim”. E o sol, bem, o sol estava nascendo. Somos amarrados ao tempo, a margem de nossas escolhas é assombrada por cada número no
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relógio, somos indiretamente escravos das escolhas que não são nossas e de acidentes planejados pela vida a cada fração de segundo.
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Natureza Humana
Que me importa o planeta? Cães, plantas, pedras, leões, zebras, eu sei lá que porra mais também não se importam, todas as coisas no mundo não se importam, por que eu haveria de me importar? Na verdade ninguém também se importa, as pessoas querem apenas um lugar melhor para elas viverem, não se importam com as outras coisas ou com mais nada além do seu bem estar. No meu olhar tem uma fada, uma fada azul, e fadas nem existem, mas no meu olhar tem uma fada azul, mãe. Mas é assim, os animais não precisam ser salvos, o mundo não precisa ser salvo, a humanidade quer salvar só a si mesma, mesmo que isso dependa de salvar outras coisas, outras existências, outras humanidades. Mas olha, mãe, tudo aqui acaba e nós também teremos que acabar, isso é só outra tentativa frustrada de ser maior do que a natureza, a humanidade queria controlar a natureza, mas agora não, os homenzinhos que tem armas, cérebro, dinheiro e consciência querem ser maiores que a natureza, querem ser a própria natureza, querem sim! Ah, que me importa? Natureza das coisas é a minha fada azul que nem existe. Não há nada de mal em querer salvar a si mesmo, não é? Não há, você sabe que não há, só não precisa mentir, mãe, mentir que é para algo além de ti mesmo, não é, você só está tornando a tua existência mais agradável forçando as coisas a serem como você quer, isso vai dar encrenca, vai sim! Dizem dos homens grandes, dos homens sábios, dos homens maus, homens, homens, homens! Que me importa os homens, se são bons ou maus, são homens, e isso está além do bem o do mau, isso é uma falha.
Já imaginou que os animais, as plantas, as coisas aqui não tem valor nenhum? Fodase as plantas e os animais, nós é que os
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valorizamos, as coisas nem foram feitas pra que tivessem valor algum visto que todas as coisas são iguai, por isso minha fada azul não é uma planta, e nem um animal e nem humana, por isso ela nem existe e por isso eu amo ela mais do que a minha mãe. Tem milhares de planetas e de coisas e o exagero trabalha para o crescimento da insignificância, pra ser raro é só ser pouco, que merda, que merda mesmo! A natureza também pode ser ruim, e se o planeta não gostar da natureza? Mas se o planeta gostasse de algo não seria o planeta, seria alguma coisa que gosta ou não das coisas e por isso não as tem, esses nós que me dão meus pensamentos, nós nós nós nós e estou amarrado a vocês filhos da puta! A gente nem contempla nada, a gente nem vê nada, nada! Olha a merda da flor e acha bonito a sensação de bem estar que a flor proporciona e só, por isso há pessoas que gostam de flores e há pessoas que não gostam mas não admitem, você não tem o direito de não gostar da flor. E falaram tanto de flores em poesia e prosa que hoje em dia parece um crime não gostar das flores, e se eu achar as flores feias? E se as flores não me disserem nada? São as merdas das flores, e por isso há quem faça botânica, biologia e essas coisas. Sinceramente olho uma flor e acho belo como quando vejo um desenho, uma pintura e depois esqueço como ela é e da sensação que me proporcionou, e o meu bem estar nada teve a ver com a flor, e o meu contemplar nada teve a ver com a flor. Por isso amo a fada azul, ela não precisa existir, eu não preciso vêla e nem tocála e por isso saio da minha prisão de mim mesmo. O ser humano vive nessa merda de prisão de si mesmo, tudo está nele, todo sentir, toda vontade, toda própria existência, e até coisas que odeia porque essas coisas também odeiam, é impossível sair de si mesmo ou arrancar as cosias que sentimos, impossível, até parar de sentir é sentir
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alguma coisa e isso às vezes me faz desejar a morte, é um caminho sem curvas ao egoísmo natural, naturalmente arrogantes e egoístas travestidos de anjos, suicídio é egoísmo. Me basta, tuas asas são negras e não o ajudam a voar, tens que voar com ferro, matemática e vento. A fada azul voa, e o faz sem que ela mesmo queira, apenas voa, mãe, ela voa!
Olha só, tudo evolui junto ou tudo evolui separado, ah eu não sei, mas as coisas evoluem de acordo com todas as outras coisas, nem que esse seja um acordo de separação. E o ser humano primeiro temia ficar para trás e corria, depois temia ser igual e corria, depois queria ser melhor e corria, depois queria controlar e corria, e depois queria ser maior e corre, corre, corre, e é humano! Ah que merda! Tudo evoluiu de acordo, mesmo que evoluindo para si, evoluiu também para os outros, de acordo com a necessidade. O que fodeu foi o querer, os humanos evoluindo para si e de acordo com a sua vontade que sempre ultrapassa as necessidades, e assim vai tudo tordo, latinhas, latinhas mãe, que me importam as latinhas? Tem problemas maiores que seres humanos no planeta, e quando tudo isso morrer nada vai mudar, virão outras coisas e outras coisas porque é assim, nada muda nem se transforma, fragmentando, é tudo igual, é tudo átomo! Só minha fada azul não é átomo.
E se Deus for o tempo? Ele está em todos os lugares, sem ele nada existe, ele não termina e nem principia, vê todos, sabe de tudo no universo, o tempo criou o universo pois sem o tempo a existência do universo não se encaixaria, não caberia, a existência não teria um berço. O tempo não julga e por isso se recusam a aceitar o tempo como Deus pois o tempo também não manda nada para o inferno, e se o tempo não manda para o inferno qual seria a nossa coleira? Não temos nada, pois ter é reconhecer a algo que necessite nossa
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existência para existir também, mãe. Então o tempo nos tem, e tem a tudo! Tudo mesmo! E nós não temos nada, chamamos de ter apenas aquilo o que nos é prático ou agradável ou seja lá mais o que for, só sei que não tenho, mãe! Não tenho mãe, não temos! Que porra usaríamos uns contra os outros para controlarmonos? Que engraçado, queremos saber quando chove antes de chover, controlar o céu, a terra e a nós mesmos e parecemos formigas idiotas correndo apressadas numa enorme imensidão que elas não podem ver e sequer sabem que existe. Acho que elas nem sabem que existem, e nem nós. Formiguinha! Formiguinha! Formiguinha! Formiguinha...
– Por que esse garoto está gritando “formiguinha”? Façao parar!
– Sabes que não posso brigar com ele, o médico disse que ele sofre de esquizofrenia e não compreende o mundo como nós, por isso fica assim, a visão dele é diferente da nossa. Não poderia brigar com o menino, seria crueldade. Estou providenciando a internação dele.
– Eu sei da esquizofrenia e não acho certo que o internemos, mas se o doutor acha bom que o façamos. Só fiquei irritado com o barulho, me perdoe Ana.
– Eu o entendo meu bem, deixoo falando asneiras sozinho, não faz mal a ninguém, às vezes até me diverte com as besteiras que diz, ele não é agressivo e é muito novo, mesmo que fosse não faria grande coisa.
– Você falando assim até parece que não é seu filho, quando nos conhecemos me dissestes que era divorciada mas não contou a respeito do menino.
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– Não contei a respeito do menino pois temi que tu fosses embora Basílio, achei que não se interessaria por uma divorciada que cuida de um menino louco. E não, não é meu filho. Não sou a mãe dele.
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Feliz Aniversário
– Silêncio, agora ouça...
E por um instante os dois ficaram quietos olhando atentos um para o outro próximos da parede, Sofian sorriu um daqueles maravilhosos sorrisos de criança, sorriso silencioso e puro que vem de um não querer sorrir mas ao achar tudo tão belo, o sorriso tornase inevitável. A casa era apenas três cômodos, cozinha, quarto e um banheiro, a cozinha também servia de sala, não havia mais luzes e começava a entardecer e a casa estava toda cinza, era possível apenas ver os objetos grandes e para as coisas menores era necessário forçar um pouco a vista. Sofian é um garoto quieto, de gestos naturais, quase não fala e nunca viu o pai, tem apenas quatro anos e gosta muito da mãe, por ela ser o seu único bem ele jamais se distância. Atifa o olha de maneira amável e orgulhosa, quase se esquece do que ocorre no momento ao olhar para o filho, como quando estamos preocupados e passa por nós uma brisa tão leve que descobrimos que não vimos a brisa passar quando ela passou, mas nos lembramos dela mesmo assim, mesmo não querendo, mesmo não sabendo. Preocupadamente nesse instante os olhos de Atifa estremessem e as lágrimas os empurram as costas de forma que chega a doer, ela então abraça Sofian de súbito, calada. É o aniversário do menino.
– Mãe, quando eles virão?
– Eu não sei meu filho, são muitos deles.
– Estou curioso. Não podemos abrir a janela? – Perguntou Sofian animandose momentaneamente.
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– Não, não podemos, estragaria a surpresa. Quando vierem você saberá.
Sofian ficou um instante com um semblante curioso e observava em volta a todo momento, estava muito curioso para saber de sua surpresa de aniversário e muito orgulhoso da mãe. De certo que seria algo muito importante pois havia muita gente andando lá fora e não o era permitido olhar pela janela, tinha também muito barulho, barulhos agudos, estouros e gente falando longe e não era possível saber o que.
A cidade estava sendo tomada e havia tropas inimigas por toda a parte, cidades inteiras estavam sendo saqueadas e a população na maioria das vezes era posta em caminhões e transportada feito gado até a orla de uma praia onde então era fuzilada. Mulheres, idosos, crianças e até os cães perdiam a essência e naquele momento não eram vidas, eram carne úmida sobre ossos que se animavam quase que roboticamente, poderiam até ser pedras, mas não eram vidas, era a humanidade nua de suas próprias máscaras caminhando em fila para o destino que todos temos em comum.
– Mãe, o vovô também vem?
– Sim, o vovô também vem
– Quando ele chegar, direi a ele que já sei contar até cem!
– Belíssimo, meu anjo
– Mãe, por que as pessoas constroem paredes?
Atifa pensou um instante e seu raciocínio foi interrompido por barulhos de tiros, ela ficou um pouco assustada mas tentou não demonstrar o medo para Sofian. Atifa fez
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uma escolha, ou deixaria o filho que não compreendia que as borboletas e os aviões voavam de formas diferente saber do horror da morte ainda muito pequeno ou deixalo saber do quanto é bom quando os nossos sonhos se realizam, e de qualquer forma talvez o fim fosse o mesmo. Olhava doce e internamente triste para o garoto quieto e paciente próximo da parede como quem olha uma pintura ou qualquer tipo de obra de arte, para Atifa, Sofian era sua obra de arte, e ninguém teria poder para tiralo dela, ninguém.
– Mãe! Porque as pessoas constroem muros? – Tornou a perguntar Sofian de maneira mais acelerada e em tom de urgência.
– Ora, para se sentirem livres meu filho.
– Livres de quem? E por que esses barulhos estranhos?
– Sofian, a mamãe chamou gente de todo o mundo para vir ao seu aniversário, e vem até gente de outro continente, pois você é muito importante sabia? E eles vão vestir roupas diferentes e talvez até estranhas, e vão dizer coisas que talvez a sua cabeça possa não compreender e não dar significado, mas é melhor que você não dê, e você não deve ser indiferente ou julgálos mal, e assim eles não poderão jamais fazer algo contra você. Quando você nasceu a mamãe entendeu que anjos não tinham asas, e não olhavam pela vida de ninguém e quanto menos moravam nos céu. Os anjos tem lindos olhinhos pretos que parecem sempre ver o que é despercebido, e os anjos nos abraçam forte e dão boa noite antes de dormir, deitamse mais leves que o vento e dormem tão naturalmente quanto a chegada da noite após o dia, pois é essa a sina da noite, ser negra assim que acaba o dia, assim como é
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tua sina ser anjo apenas por existir meu filho – Enquanto falava Atifa começou a tremer as palavras e seus olhos começaram a inundar de sentimentos, o tom da voz parecia agora deformado por emoções e ela falava mais apressada e aflita – Nada de mau pode lhe acontecer meu filho, pois os anjos não sofrem e por isso são anjos. Hoje vai vir toda a gente saber o quanto tu és grande e sábio apenas por não saber como fazer mal. Ouve os barulhos lá fora? É uma festa! E comemoram o seu aniversário! Logo estarão aqui também e a mamãe terá que vêlos primeiro, são nossos primeiros convidados. E toda a cidade também virá e logo iremos todos almoçar juntos e cantar parabéns para você e será a festa mais bonita de todo o mundo.
– Uau, me parece maravilhoso. E a senhora não acha que também parecemos estranhos aos olhos dos moços que vem de longe, mãe? Não ligo para o que possam pensar, de qualquer forma são sempre pensamentos e não podem ser feios porque são pensamentos, só os atos podem feios – Sofian sorriu alegremente enquanto olhava para Atifa.
Atifa o olhou emocionada e o abraçou forte, agachada encostou a bochecha na cabeça de Sofian e deixou que uma lágrima escorresse por ela até morrer nos negros cabelos do garoto – Feliz aniversário, meu anjo. Antes que cheguem os convidados, vou buscar o teu presente – Assim que Atifa se levantou, enxugou as lágrimas com os cantos das mãos e ouviu o bater na porta – Deve ser teu avô – Disse para Sofian, e então ouviu alguns murmúrios que vinham de fora, olhou para o embrulho em cima da mesa e se dirigiu até ele, entregou o presente a Sofian e pediu que não abrisse até que ela voltasse. Atifa abriu a porta o mínimo possível para evitar que Sofian
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espiasse, o menino apenas pôde ver o braço de um homem com roupa marrom que falava engraçado na porta e pelas vozes sabia que haviam mais deles – Chegaram – Disse ele em baixo tom para si mesmo agarrando o pequeno embrulho que a mãe o dera, estava ansioso para saber o que é.
Um tiro foi disparado e todos os pássaros que se escondiam debaixo do telhado da pequena casa voaram fazendo um leve e compassado som de chocalho junto ao vento – Mãe? – Disse Sofian perplexo e confuso, nesse momento sentiu o sabor estranho do que era o medo, olhou para os lados e assim que se levantou dois homens com trajes militares portanto armas entraram rapidamente no recinto, Sofian se abaixou e pegou o embrulho com muito medo no olhar e então fitou os homens curioso sobre a mãe.
– Os senhores são convidados da minha mãe? Sabem para onde ela foi? É que ela disse que haveriam convidados pois é o meu...
O som do embrulho era o mesmo do corpo ao tocar o chão. Silêncio após o solitário eco da pólvora.
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Outras Avulsas
I
Eu não desisti, eu ainda te quero, mas eu só decidi não forçar mais. Quero assim naturalmente, como colocar uma flor num copo d'água e torcer para ela durar mesmo sabendo que ela vai morrer, torço pra você se tocar e vir correndo de volta pra mim sabe, pra você pensar em mim como eu penso em você, mas eu não posso ficar esperando isso acontecer, contando com a sorte assim enquanto a vida passa pelos meus olhos. As ultimas semanas foram difíceis até eu me acostumar com a tua ausência, até eu dar a tua falta como algo comum e não como uma exceção no meu dia. Ai eu acordo e levanto com uma disposição, uma vontade de estudar, de trabalhar, de escrever, conhecer gente nova e até me mudar daqui, nasce um otimismo lá do fundo do meu estômago, e eu penso, porra ainda bem que isso tudo passou e agora eu estou bem. E isso dura o dia todo, e conforme vai passando as pequenas coisas vão levando isso de mim, um lugar que eu passo que marcou, uma flor, um objeto seu esquecido na minha gaveta, uma carta, um cheiro no meu travesseiro. E ai tudo fica pior, pior do que estava mas melhor que ontem. Parece que estou me cansando, não de você, mas me cansando de sentir a tua falta.
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II
Eu fico imaginando como teriam sido esses dias se nada disso tivesse acontecido e você ainda estivesse aqui dentro de mim, inteira sabe, viva e latejante. Mas não, agora não tem mais você, tem umas imagens meio borradas de café e um cheiro meio sobreposto pela fumaça dos meus cigarros. E eu não quero pensar assim, eu quero é me livrar logo de você e poder tocar em frente sozinho, eu quero mesmo é ser forte e parar com isso. Eu tenho que deixar essas minhas esperanças idiotas de você voltar, de tudo se ajeitar, de ir buscar lá no fundo tudo aquilo de novo, tenho que parar de querer carregar a minha e a tua felicidade nas costas. Essa minha ingenuidade, esse meu jeito infantil de sonhar me irrita, cara isso me deixa doente, e ai eu fico esperando, contando as horas e pensando que você vai aparecer do nada me pedindo um abraço, mas se não aparecer eu torço pra passar também. Tenho que parar de ser idiota e enfiar na cabeça de uma vez que você não vem, mas essa esperança insiste em me perturbar e me fazer pensar em fazer tudo certo pra quando você voltar, mas não tem “você voltar”, tem eu ficar sozinho e esquecer que posso ter você, lidar que te tive que foi bom e acabou. Tô no meio do trilho do trem querendo ser atropelado mas torcendo pra linha estar desativada.
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III
Me dava uma vontade tão grande de fazer tudo certo quando estávamos juntos entende, uma vontade de ser grande pra não te decepcionar, de realmente colocar meus sonhos em prática pra te mostrar o que eu sonhava quando você não tinha chego. Eu queria mesmo era poder ler pra você as asneiras que eu escrevo de madrugada e ir dormir. E ai eu aceitei a tua partida, é assim que gente forte faz não é mesmo? Ou dizem que faz. Saio do trabalho de noite, a rua vazia e o barulho dos carros que passam por perto e a gente não vê, os bueiros cuspindo fumaça e as luzes amareladas dos postes beijando o chão, me ponho a caminhar até a padaria e pedir um cappuccino, tô me enchendo de hábitos, de vícios pra me desintoxicar de você.
IV
Cheguei em casa depois de ver gente, de sair, de caminhar, de colocar a máscara de feliz, a fantasia de que já superou. Eu cheguei tão exausto de fingir pra mim mesmo que está tudo bem que fui direto para o quarto e me deitei na cama, fiquei horas olhando para o teto pensando em qualquer coisa que não me lembro, ai me levantei, fui pra cozinha pegar um copo de coca cola e quando voltei me pus a escrever. Cara, eu escrevo feito um retardado nessas horas que é pra ver se te esqueço, se te expulso de mim. Eu não queria sair dali, não queria ir tomar banho, não queria comer, ter que conversar ou fazer qualquer coisa. Mas
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não posso morrer para o resto das coisas, já está tudo uma merda e se a gente larga assim a coisa só piora, a gente tem que ser forte que é pra não piorar, porque melhorar mesmo, sabese lá quando. Entrei no banho e não me mexi, eu só sentia a água caindo, o barulho do vizinho conversando, o vapor subindo, e ai o cachorro começou a latir, um barulho lá fora e eu logo fui pensando e fantasiando se fosse você no portão, se você tivesse sentido minha falta, acabado com tudo isso de ruim que rodeava a gente e tivesse vindo me buscar, assim de surpresa, sem ligar, sem avisar, dizer que estava com saudade. E o cachorro continuava latindo, pensei em fechar o chuveiro me enrolar na toalha e correr para o portão, mas algo em mim dizia que isso era coisa minha, não da vida, que não era nada disso. Terminei o banho e fui para o quarto da frente, abri a janela que dá para o portão e dei de cara com a rua vazia, escura e o cachorro dormindo. Sabe, é com isso que eu tenho que parar, com esse meu idiotismo, esses meus sonhos que nunca acontecem e não vão acontecer.
V
Penso um tanto de coisas inúteis entre um cigarro e outro e entre um pensamento e outro penso em ti. Pensei hoje nas pessoas que agora conhecerei, nas diferentes formas que entenderei o mundo. Mas eu gostava de você, dos teus erros, dos teus defeitos, do teu jeito de ser inteira, sem esperar ou acrescentar nada, eu gostava de você, só você
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que tinha esse jeito de sorrir. Agora me dá um medo de te ver, de saber como você está, de encarar que não é mais aquela coisa que eu achava tão bonita e também uma pontinha de dor por saber que você vai estar bem sem mim.
VI
Eu te quis numa dessas madrugadas solitárias em que o meu mundo estava espremido entre eu e o copo, e o cigarro ha muito havia se mudado da caixa para agora morar temporariamente nos meus lábios. Porra, e como essa saudade dá porrada forte, eu me lembrei de você, do seu sorriso, de papos, fiquei um tempo inerte, quieto, e parecia que passavam apenas nuvens, vagarosas nuvens dentro da minha cabeça, e algumas não me diziam nada, outras formavam teu rosto, teu nome, tua sombra. Foi uma merda, e bem sei que se houvesse cabimento no meu querer eu correria de encontro a ti, e se não houvesse cabimento eu correria também. Mas não havia nem você mais. Então fui dormir pra amortecer a queda. Acordei e me lembrei da noite passada, e naquele momento você era o que me faltava, e ainda bem que eu não fiz nada, ainda bem que tu faltava e vai continuar faltando, porque só naquele momento eu precisava de você. Hoje eu acordei inteiro.
VII
Se amar é toda essa felicidade, esse abraço correspondido, então eu não amo ninguém. Se amar é uma tranquilidade tibetana, um desejo de estar mais perto mesmo abraçado de ambas as partes, então eu não amo ninguém. Ainda que amar seja fazer diferente do que a gente sempre faz, senhorita, estou certo de que não
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amo ninguém. O coração a fôrma de gelo que ela esquece todos os dias de por no congelador, os olhos cansados e a pálpebra pesada de olhar e não ver nada, se o amor é mesmo essa neblina, ah dona, eu não amo ninguém. Comigo é amizade, insanidade e um café à tarde na padaria mais bonita, é um abraçar sem esperar retorno, dar o coração de graça por achar graça no sorriso do outro. Ah senhorita, o meu amor é torto.
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Destilas
Vim cambaleando sem pensar em nada, vim pelo corredor arrastando o que sobrou de mim e o meu crânio inundado de vômito, o meu crânio era uma piscina de vômito com você nadando dentro. Vim me batendo por entre as paredes até o banheiro, ai eu me ajoelhei e enfiei a minha cara no vaso e tudo era pesado, meu olho parecia uma esfera de chumbo pesando contra a minha pele, apertei o olhar e vomitei até doer, te coloquei pra fora junto com tudo o que eu havia bebido umas horas atrás. Sinto a minha testa dormente e não tenho forças pra levantar do chão, inclusive eu já desisti de tentar. Eu deveria me matar, isso, eu deveria me matar pra te castigar e te fazer ficar culpada e te ver triste por mim, e ficar feliz por você estar triste por mim pro resto da vida, eu ia rir pra caralho. Eu queria ter brincado com você, ter te pisado enquanto você sorria sem saber e fingia gostar de ser pisada só pra estar comigo, eu deveria ter cortado suas pernas brancas enquanto você dormia e ter sorrido pra você depois de ter te chamado de infantil, carente e puta para os teus amigos, assim como você fez comigo. Eu deveria ter esquecido essa porra de ética, de querer bem, amar e o escambau e feito da tua vida um inferno, talvez ter jantado tuas bochechas num dia de domingo.
E eu sei que só estarei bem quando eu parar com isso, não de ficar bêbado, ai estarei morto, eu estarei bem quando precisar me esforçar pra lembrar de ti. E lá fora há guerras, crianças sendo assassinadas antes mesmo de saberem o que é a morte, as pessoas estão sendo roubadas, ah sim, é verdade que outras estão fazendo sexo e se comendo por ai, mercado de trabalho e gente prestando vestibular, gente dormindo, deve ter de tudo,
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acho que difícil é falar do que não tem, mas e daí? A humanidade precisa disso, de gente que morre, de gente que mata, de gente que odeia de verdade, de gente que se fode pra servir de exemplo, pra sentir, pra nascer literatura, pinturas e os altruístas, ambientalistas e toda essa corja do caralho, precisamos das coisas horríveis pra termos certeza que podemos ser bons. Eu quero mais é que tudo isso se foda, eu estou com saudade e só o meu egoísmo que me valha hoje, dona. Eu ia pra todo o tipo de lugar pra fugir de você, pra não ter que encarar a tua ausência cantando canções cínicas no meu ouvido de madrugada, me enchi de hábitos, de vícios, de pequenas distrações pra fugir de ti, sim, estive fugindo, mas todo o lugar que eu ia eu me encontrava com você, e o pior, na verdade você nunca esteve lá. Mas agora não, eu resolvi te encarar, não bem resolvi, na verdade eu não tive escolha, se você não sair de dentro de mim eu me viro no avesso! Tem que ser muito forte pra deixar o que a gente ama ser feliz sem a gente, e eu te odeio, te odeio porque te amo! Tenho sono e minha alma pesa dentro do meu corpo e me faz não querer levantar, e o meu sangue denso corre sem que eu sinta no meu braço. Paranoia garota, paranoia!
Às vezes eu como e guardo as embalagens vazias no armário, pois é, parece meio com pessoas né? A gente usa e guarda os restos em nós mesmos e depois pra se livrar é foda. Mas do que é que eu estou falando? Penso que tenho que me levantar, ser mais forte, mas não estou tão determinado, posso pensar nisso amanhã, e depois, e depois também. Vi uma atriz pornô que era a tua cara esses dias, trepava como você também, com aquela mania de sentar e sorrir entre um gemido e outro, vira e meche me lembro de umas transas nossas e me assusto. Me assusto, me assusto quando acaba a energia elétrica de repente, me assusto com um monte
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de coisas que na verdade nunca saíram da minha cabeça, com o meu cansaço, eu sempre tive medo do que eu pudesse fazer com os meus pensamentos desviados, eu imaginava que coisas ruins andavam no meu quintal de madrugada, ou que minha avó seria possuída no quarto ao lado e começaria a gritar e se torcer no chão e dizer palavras em línguas que eu não conheça, imagine sua mãe na sala caindo no tapete tremendo e espumando pela boca enquanto grita pra você “Me mata! Me mata!”. Tinha medo de olhar pela janela no banco do passageiro do carro, abrir a porta à 120 quilômetros por hora sempre me pareceu boa ideia, não por drama, por morte, nada disso, apenas curiosidade com a situação, com o que se sente. Com que velocidade eu seria capaz de morrer? Todos querem uma morte tão rápida que não dê margem ao sentir e o mínimo possível da consciência de se estar morrendo, que experiência incrível devem estar perdendo, penso eu. Essas coisas só acontecem uma vez na vida da gente moça, feito você na minha vida, só acontece uma vez.
A lâmpada acesa está esfolando as minhas retinas e estou começando a babar, sinto a saliva quente deslizar densa e lenta por sobre minha bochecha até tocar o chão, a minha boca entre aberta e a cabeça repousada no braço estendido em direção a porta, meu corpo mal cabe entre o vaso sanitário e a parede, quero apagar a luz e não consigo me levantar, quero apagar a luz, a luz a luz, você...
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Sobre o autor
“Bom, eu nasci em Muriaé em Minas Gerais, não conheci a minha mãe e por isso morei com meu avô e sua mulher na cidade de Lajes no mesmo estado até os cinco anos de idade. Com a mesma idade vim morar em Jacareí no estado de São Paulo com a minha avó, mãe de meu pai, e minha tia, irmã do mesmo. Tive uma infância tranqüila, uma juventude conturbada, marcada um pouco por drogas, uma certa revolta que creio ser comum da idade e acidentes envolvendo minhas capacidades motoras retomadas mais tarde. Completei o ensino médio, embora não simpatizasse muito com a escola, e diversos cursos e técnicos na área de tecnologia. Ingressei na faculdade de Ciências da Computação no mesmo ano em que escrevi “Sujeira” e recebi o meu diagnóstico descrevendo meus problemas emocionais. Tenho o hábito de escrever desde muito criança, e acho que escrevo para me compreender, para fixar as minhas impressões do mundo, das coisas, das pessoas em geral. Acho que eu escrevo para não ficar solteiro da sanidade”.
O autor.
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Revisado por Mayara S. Prado
Os direitos desta obra pertencem ao autor;Felippe Regazio de Moraes
QuintaFeira, 20 de outubro de 2011
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