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SOBRE EDUCAÇÃO, DEMOCRACIA e MARXISMO: UMA
LEITURA DE CHAUÍ E COUTINHO
Liliam Faria Porto Borges
Este trabalho busca realizar uma análise teórica de dois textos sobre a
democracia. Perseguindo a fundamentação teórica que sustenta a crítica dos educadores
marxista às políticas educacionais dos anos de 1990, localizamos, nos textos aqui
estudados, elementos que contribuem para o entendimento sobre as bases teóricas dos
educadores marxistas, que não abdicam da democracia como caminho para a
transformação social.
Identificar democracia com o que é fundamental para a classe
trabalhadora tem sido a raiz de todo debate e de toda crítica no universo da produção
intelectual na área de educação desde os anos de 1980 até esses anos de governo Lula.
A questão que parece ser fundamental na desmontagem do primor ideológico que
significa democracia estaria na impossibilidade de considerá-la na perspectiva de classe,
afinal nada que é de classe, pode ser ao mesmo tempo para todos.
A questão fundamental parece residir no entendimento de que a luta pela
democracia e sua ampliação pode trazer o socialismo como decorrência. Ou seja, a
questão da transição para o socialismo passa pela democracia e se passa em que
medida?
Dois textos parecem ter sido muito emblemáticos desse debate que se
intensifica no final dos anos setenta e início dos oitenta, quando a abertura política no
Brasil, permitia a publicização de teses e argumentos acerca da democracia e do
socialismo. Um desses textos é “Democracia como valor universal” de Carlos Nelson
Coutinho e o outro “A questão democrática” de Marilena Chauí (2001). Autores que
foram e são referência no universo intelectual brasileiro e mais especificamente para o
pensamento da esquerda, que convertiam sua reflexão e produção acadêmica numa clara
atuação política de oposição ao regime militar.
Esses dois breves textos foram referenciados e citados numa enormidade
de artigos e teses e foram lidos por muitos graduandos no inicio dos anos oitenta –
marcaram inclusive minha formação no curso de História da UNICAMP naquele
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momento.
Pela relevância desses dois artigos e pela contundência de sua marca na
formação do pensamento da esquerda brasileira dos anos oitenta para cá, remeto-me a
eles numa tentativa de estabelecer uma leitura crítica, buscando entender como reforçam
a democracia como alternativa de superação da sociedade capitalista e contribuem na
consolidação de teses que até hoje, fortemente marcam as ações e opções políticas da
esquerda brasileira e dos educadores marxistas que, desde os anos de 1990, têm feito a
crítica ás políticas educacionais.
Em paralelo à leitura de Carlos Nelson Coutinho, acompanharei o artigo
“Contra a canonização da democracia” de João Quartim de Moraes, que estabelece uma
cuidadosa cobrança da distância entre as proposições de Coutinho e a ortodoxia do
pensamento marxista. Para a leitura de Chauí, buscarei um paralelo com o texto “Crítica
ao programa de Gotha”, que a autora utiliza na construção de sua argumentação.
Retomarei o escrito de Marx na mesma direção de explicitar o entendimento de que há
um abandono dos pressupostos fundantes do materialismo histórico dialético.
Marilena Chauí – A Questão Democrática
O artigo “A Questão Democrática” de Marilena Chauí foi um texto
importante e de referência para todo âmbito da esquerda no processo de democratização
e na luta pela superação da ditadura militar no Brasil e que também cumpria o papel de
fazer severa crítica ao chamado socialismo real, sobretudo ao stalinismo, leninismo e
luxemburguismo, além de apontar também sua crítica para a social-democracia.
Originalmente, o conteúdo desse artigo foi apresentado como uma comunicação para o
congresso da CLACSO sobre “Condições sociais da democracia” em Costa Rica de 16 a
20 de outubro de 1978, publicado em 1980 em duas obras: a coletânea: “A questão da
democracia” e “O discurso competente e outras falas”, ambas pela editora Paz e Terra.
O pressuposto que determina toda a argumentação da autora baseia-se na
negação da determinação econômica em última instância. Esse tema alimentava grande
parte do debate de então, já que era necessário encontrar respostas para o socialismo
real e suas mazelas. Chauí vai discutir democracia e socialismo indicando que a idéia da
determinação econômica em última instância não é pressuposto marxista, mas sim
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equívoco da leitura dos marxistas economicistas. Para comprovar sua interpretação a
autora vai buscar em “Crítica ao programa de Gotha”, um breve e contundente texto de
Marx, a justificativa para as relativizações que faz. O texto de Marx é bastante
apropriado àquele momento, pois ele analisa o programa partidário que uniria as duas
grandes associações de trabalhadores alemães indicando o quanto, na raiz de suas
proposições, o programa mantinha-se idealista e servia aos interesses liberais. Em se
tratando dos pressupostos do pensamento marxista, o texto “A questão democrática”
poderia ser revisto a partir do mesmo texto que a autora usa para referendá-lo, já que, e
no limite, não rompe com o pensamento liberal. Recorramos pontualmente a eles.
Ao analisar a democracia pela perspectiva sociológica e filosófica, Chauí
já nos indica sob quais caminhos vai sustentar sua argumentação, admitindo a
constituição de um conceito que poderia ser “universal”, como é próprio a toda
filosofia. Há, na página 152 a defesa de que o político determine tanto o econômico
como este àquele. Se considerarmos as mediações e entendermos última instância como
distante o suficiente para permitir determinações mediatizadas, não poderemos abrir
mão de que, em última instância a determinação é econômica. Essa questão
fundamental atravessa toda a argumentação que se segue.
Recuperando Espinosa e a precedência da liberdade sobre a igualdade, a
autora nos mostra a possibilidade de a democracia ser a pedra de toque das diferenças
políticas, mas analisa a Cidade sem considerar como uma sociedade de classes e o
Estado é visto como Bem Comum – o que sustenta a possibilidade da democracia,
afinal. Um Estado para todos, governado por todos.
A única Cidade que não teme o povo armado é a democracia. Por que? Porque se trata de uma Cidade que não permite a liberdade, mas é livre, não só porque nela há igualdade política, todos os cidadãos podendo ter igual participação no poder, nas decisões e execuções, mas porque nela a transcendência do poder é tão clara que permite a participação sem riscos de identificação. A democracia é livre porque igualitária, pois o que a define é uma proporcionalidade máxima de poder, visto que nela o poder de cada um depende da potência do poder coletivo (CHAUÍ, 1989, p.153)
Diferente de Espinosa, Marx teria na igualdade a precedência da
liberdade – o oposto, portanto, mas tanto uma perspectiva quanto outra pressupõe a
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dissociação entre liberdade e igualdade e esse seria o equívoco teórico que tem separado
democracia de socialismo.O problema do marxismo contemporâneo, para Chauí, foi ter
dissociado igualdade de liberdade – igualdade levou ao totalitarismo e liberdade levou à
social-democracia. Em decorrência disso separarou-se democracia de socialismo – já
que socialismo é democracia porque liberdade e igualdade são indissociáveis,
argumenta Chauí.
Este equívoco geraria outros, segundo a autora, por exemplo, defender o
socialismo identificando democracia com democracia burguesa, e aqui temos
claramente o entendimento a-histórico da categoria democracia, e por isso, um
entendimento universalizante.
Perseguindo essa argumentação, Chauí vai analisar a democracia como
questão histórica e então explicita o que entende por história e por sociedade
democrática:
Podemos chamar histórica, no sentido forte do termo, uma sociedade que não está no tempo, mas que se efetua como tempo, isto é, uma sociedade que não pode cessar de se reinstituir porque para ela sua gênese e sua forma é uma questão incessantemente recolocada. No sentido forte do termo, somente uma sociedade que vive os conflitos e acolhe a produção interna de suas diferenças, uma sociedade para a qual o poder está sempre na ordem do dia porque suas contradições impedem de fixar-se numa imagem idêntica, é uma sociedade histórica. Enfim, cremos não ser um despropósito afirmar que somente uma sociedade democrática é histórica no sentido forte do termo e que, não por acaso, somente nas sociedades abertas ao risco da história pode ocorrer o fenômeno da ideologia, isto é a produção do fixo para conjurar o perigo da temporalidade, fazendo com que a universalidade abstrata de normas e representações, elevadas à condição de “essências”, assegurem de uma vez por todas a identidade da sociedade consigo mesma, a hegemonia dos dominantes e a tranqüilidade do “progresso.(CHAUÌ, 1989, p. 155)
Evidentemente a diferença dessa concepção de história e tempo para a
ortodoxia do pensamento marxista impediria qualquer diálogo, não fosse a insistência
da própria autora em referendar pontualmente o pensamento de Marx, corrigidos os
deslizes teóricos dele e de seus simplificadores. Desconsiderando o que queira significar
a expressão “no sentido forte do termo”, só serem históricas as sociedades que acolhem
a diferença e por isso se reinventam constantemente, pressupõem que possam existir
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sociedades sem diferenças e/ou as que não acolhem a diferença – ou seja, os
totalitarismos, as ditaduras. Esse entendimento pressuporia que a sociedade autoritária,
por não acolher diferenças, não é histórica. Isso é absolutamente estranho ao
pensamento de Marx, sobretudo em “A ideologia alemã”, quando ao desmontar as bases
do pensamento idealista alemão e romper com Feuerbach, define o que entende por
história. Mais que definir, coloca na história toda possibilidade de produção de
conhecimento pois é na história, e arrisco a dizer, é no tempo que o homem existe e
estabelece suas relações. Portanto, mesmo uma sociedade que não admitisse diferenças,
teria um movimento constante para manter-se assim como é – imutável. A construção
contínua das relações é movimento que se dá no tempo - mesmo aquelas que se
repetem, são reestabelecidas continuamente, e, esse movimento é sempre histórico.
Retomemos algo mais adiante o conceito de história, para acompanharmos o desenrolar
do texto analisado.
Chauí usa o mesmo argumento de Marx e Engels contra o socialismo
utópico para desmontar o socialismo científico. Segundo ela, socialismo utópico é
esperar que a igualdade jurídica traga a transformação da sociedade. Também é utópico
esperar que a socialização da propriedade transforme a sociedade. São dois olhares
parciais, afirma – a social-democracia acredita que por etapas se rume ao socialismo e o
bolchevismo entende a democracia como tática para a luta revolucionária - porque é
burguesa. O entendimento sobre o que seja parte e o que seja o todo é bastante diverso
para Marx do que se apresenta nessa argumentação, afinal, a idéia de totalidade, na
perspectiva do socialismo científico implica em novas relações sociais de produção e
não simplesmente a socialização da propriedade. A propriedade seria decorrência de
uma nova forma de organizar a produção e reprodução da vida material dos homens,
conforme inclusive o texto citado por Chauí: “Critica ao programa de Gotha”. Esse
entendimento de que o modo de produção é uma totalidade, pois estaria determinando
todas as outras dimensões implícitas a ele, impede que se conclua que isso seja parcial –
a não ser que não se lide com as categorias do marxismo – que afinal é o que a autora
faz, munida de ferramentas teóricas não marxistas, analisa democracia e socialismo e se
apóia em um texto de Marx. Para a leitura materialista histórica dialética, o âmbito
jurídico é uma construção muito mais ideológica, que evidentemente cria materialidade
mas não na direção em que realiza sua promessa. A igualdade jurídica é expressão
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absoluta do modo de produção capitalista, ou seja é uma parte que expressa o todo.
Assim sendo, igualdade jurídica não pode ser a base da construção de um outro modo
de produção, apenas a transformação de algo que fosse fundante desse modo de
produção, como por exemplo o regime de propriedade – que expressaria uma outra
lógica produtiva.
É aceitável a crítica que Chauí faz à social- democracia e ao
bolchevismo, não parece caber porém ao socialismo científico, ou ao método
materialista histórico dialético, há, portanto, um ecletismo teórico nessa leitura. Afinal,
ao discutir democracia e socialismo, temos em “Critica ao programa de Gotha” das mais
contundentes afirmações de Marx sobre o quanto a democracia é burguesa e o quanto o
socialismo seria uma possível forma transitória para uma outra estrutura produtiva, da
qual decorreria outra lógica, outra forma de organização do mundo humano. Neste texto
inclusive Marx acentua o quanto da lógica capitalista estaria mantida, por exemplo na
concepção de direito, ainda na sociedade socialista – um forma transitória em que o
novo e o velho conviveriam.
Há uma absoluta diferença de compreensão da noção de história, de
tempo e de trabalho entre os autores analisados – Marx e Chauí, já que cada um parte de
pressupostos distintos.
Sobre a categoria trabalho, Chauí (p.157) elenca três dimensões como
decorrentes da leitura de Marx: o capitalismo cria a igualdade do trabalho, manifesta a
igualdade do trabalho ou esconde a diferença do trabalho. A questão é que no modo de
produção capitalista a troca se dá entre equivalentes – o trabalho é tomado como
mercadoria e convertido em equivalente comum – e, na forma mercadoria, exclusiva do
capitalismo, ele é tratado como tal, descolado já do braço humano. Por isso pode ser
vendido como força de trabalho, por isso pode ser convertido em salário. Diferente
disso, a concepção de trabalho é, para Chauí o que é novo e o que é velho, porém esse
não é o problema para Marx - o problema entre novo e velho é das relações sociais de
produção, já que não existe o trabalho abstratamente mas como resultado, como forma
de ser das relações sociais de produção. O trabalho é conformado por condições
históricas dadas.
Para referendar essa leitura sobre a categoria trabalho, que desconsidera a
historicidade da categoria – base fundante do método marxista a autora afirma:
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A dificuldade para determinar se o capitalismo engendra o novo, manifesta e desmascara o velho, ou se esconde uma diferença essencial (que já estava lá) através da aparente inovação identificadora, é uma dificuldade decorrente dos diferentes níveis em que Marx enfrenta o problema, de sorte que ora o capitalismo é uma inauguração histórica, ora é um momento de uma história mais global, ora é uma mascarada nova no coração do velho. Essa alternância explica os textos nos quais a burguesia aparece como revolucionária e aqueles nos quais aparece como uma força paralisadora e parasitária e, enfim, aqueles textos nos quais a inovação burguesa é um progresso que, na verdade, é a forma aguda da barbárie. (CHAUÍ, 1989, p. 157)
De novo o abandono da história pela leitora Chauí, que munida de outros
pressupostos identifica incoerência no que é absolutamente coerente com o método que
Marx se propõe ler o real, afinal, ele rejeita a idéia de essência fora da história;
considera o novo e o velho num movimento dialético constante em que o primeiro
sempre se vincula ao segundo. E, na perspectiva histórica o capitalismo pode ser um
novo, uma inauguração histórica ao mesmo tempo em que é um momento da história
mais global e que sendo parte de um todo maior, carrega elementos do velho. Isso
parece ser Marx, especialmente se analisarmos o final da citação acima em que
evidentemente a burguesia, se tomada na história, é revolucionária no momento em que
pretende superar o Antigo Regime e é reacionária e conservadora quando se torna
hegemônica, detentora dos meios de produção, e constitui para toda a sociedade uma
estrutura jurídico-política que lhe atenda os interesses. Passar de revolucionária a
conservadora é o movimento dialético do real. Ademais parece haver sim, em Marx,
uma sedução pelo desenvolvimento das forças produtivas enquanto resultado da ação
humana sobre a natureza, inclusive da força extraordinária de seu desenvolvimento no
capitalismo – mas que em nenhum momento redime a burguesia pela desumanização
própria à lógica capitalista e a perversidade da exploração da classe trabalhadora.
Do simples facto de ela se defrontar com uma outra classe, a classe revolucionária surge-nos primeiramente não como classe mas como representante da sociedade inteira, como toda a massa da sociedade em choque com a única classe dominante. Isto é possível porque, no início, o seu interesse está ainda intimamente ligado ao interesse comum de todas as outras classes não dominantes e porque, sob a pressão do estado de coisas anteriores, este interesse ainda não se
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pode desenvolver como interesse particular de uma classe particular.(MARX E ENGELS, s/d.B, p. 58)
Na seqüência , Chauí reconhece que sua questão é teórica(158), uma
teoria que interfere na prática, que é exatamente o entendimento que temos, afinal o real
sofre as mudanças que provocamos nele e nós intervimos no real de acordo com a forma
como o entendemos.Então, um determinado entendimento resulta em determinadas
ações intencionais, e, seguindo sua argumentação, a autora vai mostrar como dessas três
diferentes concepções de Marx sobre como é o trabalho no capitalismo, decorrem três
posturas políticas: a) o leninismo – se o capitalismo cria a igualdade do trabalho, então
o socialismo virá por uma revolução; B) luxemburguismo – se o capitalismo manifesta a
igualdade do trabalho, então o socialismo nega a história porque vai mudar o que
sempre foi, é por isso, um ruptura absoluta; C) social-democracia – se o capitalismo
apenas esconde a diferença do trabalho, então o socialismo poderá dar-se através de
reformas e é portanto uma continuação.
Temos, então, o panorama de como se organizam os partidos e
movimentos socialistas no início dos anos 80 e a crítica indica como decorrem de
equívocos teóricos e Chauí, para aprofundar sua análise, enfrenta o que parece estar na
base de todo entendimento: a teoria da história e a noção de tempo.
A primeira observação é sobre a tomada de categorias dialéticas numa
perspectiva formal, como por exemplo, no leninismo e na social-democracia as
categorias dialéticas são substituídas por categorias positivas: movimento/etapa;
desenvolvimento/inevitabilidade, necessidade/determinismo, temporalidade/progresso.
Essa é, afinal, a maior crítica à leitura enviesada do marxismo, mas que também reside
na dificuldade de se pensar dialeticamente, de se pensar por contradição quando toda a
organização do pensamento e a produção do conhecimento seguem sendo herdeiras do
pensamento formal. Inclusive e, especialmente, a escola e os saberes escolares.
A razão teórica dessa compreensão do processo histórico pelo leninismo
e a social-democracia, nos explica Chauí, se dá pelo entendimento de tempo
homogêneo, linear, contínuo, receptáculo neutro de instantes sucessivos, a quarta
dimensão do espaço. Sendo assim o presente é a realização do passado e ponto de
parada a partir do qual o futuro se prepara. Então, supor que o presente realiza um
projeto do passado permite duas ideologias e duas práticas decorrentes: ou já
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alcançamos a boa sociedade mas a perdemos ou é preciso definir o que se conserva e o
que se destrói do acumulo herdado(p.159). Walter Benjamim é chamado como exemplo
de se pensar por contradição – na contramão do que fazem o leninismo e a social-
democracia – e vai mostrar como não se trata da história do vencedor em oposição à
história do vencido, mas à teoria da história enquanto ciência em oposição à tradição
dos oprimidos, que seria a memória. A elaboração de Benjamim, mais acurada e
cuidadosa não elimina em si a possibilidade de se lidar com ciência versus memória de
forma tão positivada quanto história do vencedor versus história do vencido, não se
tratam de categorias soltas, mas sim a quais pressupostos e quais métodos se vinculam.
Nesse sentido, a possibilidade de avançarmos no entendimento dialético do real implica
uma apropriação do método como um todo, cuja base parece ser a história e essa é filha
de uma determinada concepção de tempo – aí localizamos a maior distância entre Marx
e Marilena Chauí.
De um lado, não parece haver em Marx qualquer referência a um tempo
que não seja exatamente o das dimensões passado/presente/futuro, o pensamento
dialético em nada refuta uma concepção de tempo linear e, de outro, não temos também
na ortodoxia a junção de democracia e socialismo, de “Critica ao programa de Gotha”,
para nos mantermos no texto que é referência para o artigo de Chauí, Marx adjetiva
democracia de fanfarronice e superstição (Marx, s/d, p.223), enquanto na página 160 a
autora afirma que separar ou juntar democracia e socialismo só está no plano teórico, já
que no mundo real elas seriam a mesma coisa, e então, isso só se dá por equívoco
analítico e a raiz desse equívoco é a noção de tempo linear.
Por opor uma concepção de tempo linear como equivocada a uma
concepção de tempo que em nenhum momento Chauí explica, retomemos sua
concepção de história para dela deduzirmos o que seria tempo.
Enfim, separar socialismo e democracia como conceitos autônomos e deixar por conta dos acontecimentos históricos a articulação (ou não) de ambos parece-me ser o risco de reduzir a história à sucessão contingente dos acontecimentos. Isto é, para não cair no “objetivismo”, cai-se no “logicismo” – para evitar unir ou separar logicamente democracia e socialismo, prefere-se uni-los ou separá-los empiricamente. Com esse procedimento cai-se numa armadilha: em lugar de compreender a história como produção da diferença temporal (isto é, trabalho interno que uma sociedade efetua sobre si mesma),
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toma-se a história como diferença dos tempos (presente, passado e futuro) encarregada de unir ou separar democracia e socialismo conforme as circunstâncias o permitam ou não. Aceitar a história como diferença temporal é aceitar que o real não são os fatos nem as idéias, mas o movimento interno no qual uma sociedade aponta seu possível próprio como possível e não como futuro objetivado.(Chauí, 1989, p.160)
A idéia de tempo parece se confundir com a de diferença, ou seja, a
possibilidade de mudança da organização social marca diferentes tempos. Não é deste
tempo que Marx trata, apesar de entender que toda modificação e transformação se dá
no tempo, já que “o tempo é o campo do desenvolvimento humano” (Marx, 1974,p.98).
Tempo para Marx seriam as dimensões passado, presente e futuro, haja vista o exercício
de abstração que realiza ao construir o conceito de modo de produção como forma de
entender a história humana – que inserida na história da natureza teve um início (com o
aparecimento do homem no planeta – lembremos a contemporaneidade e a admiração
de Marx e Engels para com Darwin) e um percurso desde então. E, apesar de se
desenrolar num movimento dialético, ela resulta em acúmulos/sínteses, decorrência da
vitória de uma classe e da derrota de outras que poderiam dar qualquer outro rumo para
a história, diferente do acumulo que se fez. Em A ideologia Alemã toda discussão sobre
a Verdade enquanto prática social dos homens nos mostra o quanto Marx não é
teleológico, pois está na construção humana material e realizada o que entende por real,
toda proposição de transformação da sociedade e da utopia comunista implica em
programa político, nunca em um destino. Dos melhores exemplos sobre o cuidado de
Marx em se referir a uma sociedade que só existe em pensamento – a sociedade
socialista - e a impossibilidade de se supor o que seria a superação desta é o texto
Crítica ao programa de Gotha,(214 e 220). No mais são propostas de alguém que está
buscando contribuir com um programa político –partidário e por isso tem propostas a
fazer, tem uma pauta programática de ação e não um devir definido ou um vir a ser
prévio – que de qualquer forma resultaria em sucumbir toda lógica de seu método. Um
entendimento do real mais próximo do que tínhamos até então, indicaria maior
possibilidade de atuação efetiva na direção de criarmos o que quiséssemos, ou melhor, o
que nos interessasse enquanto homens, daí a proposição da luta socialista, para Marx.
É, portanto, em sua concepção de história que indicamos a
impossibilidade das conclusões a que chega Marilena Chauí, a partir da leitura do texto
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indicado.Vejamos o que diz Marx no trecho por ela apontado que se refere ao direito:
O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mesma medida sempre e quando sejam considerados sob um ponto de vista igual, sempre e quando sejam olhados apenas sob um aspecto determinado: por exemplo, no caso concreto, só como operários, e não se veja neles nenhuma outra coisa, isto é, prescinda-se de tudo o mais. Prossigamos: uns operários são casados e outros não, uns têm mais filhos que outros, etc, etc. Para igual trabalho e, por conseguinte, para igual participação no fundo social de consumo, uns obtém de fato mais que outros, uns são mais ricos que outros, etc. Para evitar todos esses inconvenientes o direito não teria que ser igual, mas desigual. (MARX e ENGELS, s/d A, p. 214)
Neste trecho Marx esclarece o que o movimento socialista realmente tem
apresentado de forma muito confusa e especialmente o que difere a sociedade socialista
– como transição de uma sociedade que definitivamente superasse o capitalismo – na
perspectiva do direito. Se na sociedade capitalista o direito é para todos, ou todos são
iguais perante a lei, temos que concluir que é uma lógica jurídico-política que parte da
igualdade entre os homens, mas que, dadas as diferenças sociais, de classe, o direito
igual acentua as diferenças entre os homens – já que os homens não são iguais. Ocorre
que só no plano ideológico os homens são tratados como iguais, as práticas sociais
decorrentes de uma lógica que pretende a acumulação precisa necessariamente
expropriar. Então, a sociedade capitalista promete tratar todos como iguais mas os trata
de forma diferente produzindo na proporção direta a acumulação e a exclusão. Isso se
realiza na extração da mais valia, pois o sistema indica que cada um receberá como
pagamento aquilo que produziu no exercício do trabalho, mas efetivamente não paga. A
transformação da força de trabalho em mercadoria que permite a troca de equivalentes,
realiza a mágica da expropriação do trabalhador. Na sociedade socialista, a lógica ainda
se manteria – já que o novo nasce do velho – mas sem o falseamento produzido pela
ideologia, ou seja, o homem receberia exatamente à proporção do que produziu – isso
indica que os homens receberiam pagas diferentes já que uns podem trabalhar mais que
outros por condições individuais diversas. Então aqui teríamos efetivamente a troca de
equivalentes, a todo trabalho realizado seu recorrente valor. O que seria uma lógica
completamente diferente, ou, em outras palavras, uma nova lógica seria desvincular
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trabalho de salário, seria superar a concepção de força de trabalho como mercadoria e
então teríamos “de cada um segundo suas possibilidades e a cada um segundo suas
necessidades”. Ao contrário do que impera no senso comum, a sociedade que seria a
superação do capitalismo seria o reino da diferença onde cada um pudesse efetivamente
ser como é, único.
O direito, enquanto igualdade é, na sociedade capitalista, pura ideologia –
falseamento do real – materialização, manutenção e conservação da desigualdade entre
os homens a partir do discurso da equidade. E nós, situados nos partidos e movimentos
de esquerda temos colocado o direito como a bandeira mais sagrada a ser defendida, não
deixamos de ser liberais e toda perspectiva revolucionária situa-se ainda no que era
revolucionário quando a burguesia se articulava contra o Antigo Regime.
Retomemos o debate proposto por Marilena Chauí :
No 3º parágrafo da parte I da Crítica, Marx discute o problema da “partilha eqüitativa do produto”. A primeira parte da discussão consiste em mostrar que “eqüitativo” é um conceito extremamente ambíguo não somente porque a burguesia considera a distribuição capitalista do produto com eqüitável, mas também porque as diferentes “seitas” socialistas possuem vários significados para o “eqüitativo”. Quando se comenta esse parágrafo, geralmente a ênfase é dada não apenas á critica feita ao socialismo vulgar, mas também ao fato de que Marx enfatiza que todo direito (burguês ou não) é fundado sobre a desigualdade e que o problema maior de uma sociedade nova, que nasce da agonia da velha, é o de manipular-transformando a herança da sociedade destruída. Aqui aparece toda a problemática da “fase de transição”. Ora, há dois pontos nesse parágrafo que tem merecido pouca atenção dos intérpretes: a) que o direito é o uso de uma unidade de medida comum, empregada para indivíduos tomados de um mesmo ponto de vista, “apreendidos sob um aspecto determinado” (o grifo e de Marx); b) que o aspecto determinado, que está sendo considerado na questão da partilha eqüitável, são os indivíduos considerados apenas como trabalhadores e nada mais com abstração de todo o resto” (os grifos são de Marx). Ora, que significam esses dois pontos, pontos que Marx lança contra a burguesia e contra os lassalianos? Seu significado surge no final desse terceiro parágrafo quando Marx alude ao modo de produção como um todo: por isso mesmo, ou seja, porque o modo de produção é um todo, os indivíduos tomados como trabalhadores e do ponto de vista do direito, são ainda uma abstração, visto que um modo de produção determina e é determinado pela totalidade das relações sociais. Poderia ser mais clara (justamente nesse parágrafo que fala em trabalho, força de trabalho, trabalhadores, partilha do produto, modo
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de produção) a crítica do economicismo? Poderia ser mais claro que o indivíduo igual/desigual exigido pela medida do trabalho faz com que, na crítica da sociedade capitalista, a questão da democracia e a do socialismo não possam ser teoricamente separadas porque a questão do trabalho envolve não apenas a desigualdade e a divisão econômica das classes, mas também a exploração e a dominação, portanto, a sociedade capitalista como um todo? (CHAUÍ, 1989, p. 160)
Em que medida, essa leitura de Chauí não contribuiu, no início dos anos
oitenta para a absorção de categorias liberais como parte fundamental da crítica ao
status quo e mais, não autorizou uma desqualificação a toda análise que pudesse partir
da determinação econômica em última instância, mais que isso, não contribuiu para a
“canonização da democracia” e a tomada dessa como sinônimo de socialismo? São os
seguintes os pontos em que divirjo da autora:
Num primeiro aspecto, não aparece no texto de Marx a indicação que
eqüitativo seja um termo ambíguo, mas sim ideológico no mundo capitalista e
possivelmente um termo dotado do sentido de equivalência de valor entre duas
“mercadorias” diferentes: trabalho e salário, no mundo socialista. O que se refere,
portanto, à critica às seitas socialistas, vale lembrar que naquele momento era um debate
fundamental e as observações da autora são bastante procedentes.
O segundo aspecto é sobre Chauí tomar direito como uma categoria
universal e não histórica, diferente do que parece fazer Marx, afinal, de seu trecho
também poderíamos deduzir que numa sociedade onde cada um dá – sob a forma de
trabalho – o que pode e recebe o que precisa, temos uma outra relação social e, portanto,
talvez precisássemos de outro termo, dispensando mesmo o conceito de direito, ora
expressando o direito burguês e apenas ele, inclusive num mundo socialista onde se
daria a manutenção dessa lógica, não há portanto possibilidade de afirmar que Marx
tenha dito que o direito -burguês ou não - seja algo, afinal, nada é nada fora de seu
contexto histórico, inserido num determinado modo de produção, que é uma totalidade.
Terceiro aspecto diz respeito aos dois pontos destacados da Crítica que
se referem à determinação do sujeito numa perspectiva economicista. Toda crítica ao
reducionismo economicista é sempre um avanço para o pensamento marxista, pois
permite a libertação de uma leitura mecânica e simplista das proposições críticas e das
possibilidades abertas pelo método materialista histórico dialético. Ocorre que a autora
vai além do que Marx parece afirmar, isto é, entender que não podemos tratar todos os
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trabalhadores como iguais, já que efetivamente não o são, não significa que esteja
afirmando que os homens devem ser considerados por aspectos para além de sua
determinação de classe. Afinal, para Marx, todas as decorrências de gosto, aspectos
psicológicos, desejos, sentimentos estão marcados, determinados pelas condições
materiais nas quais esse homem está posto e se reproduz enquanto homem, conforme A
Ideologia Alemã:
Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, não certamente do indivíduo “puro” no sentido dos ideólogos, mas de si mesmos no âmbito de suas condições e de suas relações históricas dadas. Mas verifica-se no decurso do desenvolvimento histórico, e precisamente pela independência que adquirem as relações sociais, fruto inevitável da divisão do trabalho, que existe uma diferença entre a vida de cada indivíduo, na medida em que é pessoal, e a sua vida enquanto subordinada a um qualquer ramo do trabalho e às condições inerentes a esse ramo (não se deve concluir, a partir daqui, que o rendeiro ou o capitalista, por exemplo, deixem de ser pessoas; mas a sua personalidade é condicionada por relações de classe muito bem determinadas e esta diferença só se manifesta por oposição a uma outra classe e só se lhes apresenta no dia em que caem em bancarrota). (MARX E ENGELS, s/d B, p. 80)
Na seqüência os autores enfatizam como é apenas na sociedade
capitalista que se cria a impressão de que o que somos se descola da classe a que
pertencemos – algo impensável em outros modos de produção, onde mesmo falido, um
nobre continua sendo um nobre e assim vai sempre se relacionar com seu entorno. No
capitalismo, porém, por ser essa dissociação apenas algo aparente, somos, por isso
muito mais submetidos a ela:
Por conseguinte, na representação, os indivíduos são mais livres sob o domínio da burguesia do que anteriormente, porque as suas condições de existência lhes são contingentes; na realidade, eles são naturalmente menos livres porque se encontram muito mais subordinados a um poder objectivo. (MARX E ENGELS, s/d B, p. 81)grifos meus
Parece que a Chauí cai na armadilha que Marx aponta quando evoca o
descolamento dos aspectos determinantes de classe e da materialidade na qual os
homens se reproduzem para que possamos entender a realidade em que os homens estão
15
postos a partir de elementos pessoais ou até subjetivos. Considerando toda a revisão
paradigmática dos últimos tempos, vemos neste ponto, um dos mais contundentes
aspectos de constituição do que chamamos hoje, no senso comum, pensamento pós-
moderno.
A conclusão a que Chauí chega é a seguinte: não devemos nos fixar
apenas nos aspectos de “desigualdade e divisão econômica” – que seria uma leitura
economicista, mas devemos também, para tomar a sociedade capitalista como um todo,
considerar a “exploração e a dominação”. Entendemos que esses aspectos, mais situados
no âmbito do político são absolutamente determinados – em última instância – pela
“desigualdade e dominação econômica”. E essa reivindicação, de se considerar as
decorrências políticas daquele determinado universo de relações sociais de produção,
não garante de forma alguma, que entendamos a unidade teórica entre democracia e
socialismo. Não é um dedução imediata, apenas nos alerta para as muitas mediações
existentes a partir da determinação em última instância, o que é consideravelmente
importante e muito pouco realizado na produção teórica marxista brasileira. Ademais,
sendo democracia uma forma de Estado, é absolutamente compatível com desigualdade,
exploração, dominação e mais especialmente com igualdade jurídica.
Chauí conclui seu texto indicando que uma leitura atenta da Crítica não
autoriza a síntese economicista – que vinha alimentando os partidos e grande parte dos
intelectuais marxistas de então, e também não autoriza a síntese do democratismo que
alimentava as propostas sociais-democratas, como, por exemplo, pautar a luta por
conquistas próprias à “reivindicações populares burguesas (sufrágio universal,
legislação direta, direito do povo, milícia popular, educação gratuita, fiscalização estatal
da legislação trabalhista)” (Chauí, p. 161). Há uma inteira concordância à essa crítica da
autora, já que a simplificação da análise economicista não condiz com a proposição
dialética de análise sobre o capitalismo proposta por Marx. O que é em última instância
não é a todo momento e como causa imediata, mas determina inúmeras formações e
organizações sociais, políticas, culturais que em muitos e variados níveis de relação
constituem o real. Por outro lado, também concordamos com a crítica ao democratismo
como limite das propostas sociais-democratas, afinal as reivindicações por direitos dos
trabalhadores no Programa de Gotha e em muitos sindicatos e partidos políticos de
então e de hoje continuam a ter seus limites nos marcos do capitalismo.
16
Para nós, esse limite é o limite mesmo da democracia que como uma
forma específica de Estado – que é sempre uma organização jurídico política a serviço
de uma classe – é das mais eficientes estratégias de dominação da burguesia sobre os
não detentores dos meios de produção. É um primor ideológico que aponta para a
possível igualdade material quando se refere apenas e simplesmente à igualdade
jurídica, ou seja marcada pelas construções históricas do Estado burguês.
Evidentemente há muitas contradições que possibilitam a utilização da democracia
como espaço de avanço da luta contra o próprio capitalismo, mas para entendermos o
real é preciso lidar sim com a última instância, ou nos enredamos nas mediações e a
tomados por determinantes. Isso nos impede uma aproximação mais profunda do real e
o entendemos parcialmente. A identidade entre democracia e socialismo, defendida por
Marilena Chauí é um olhar parcial que toma os conceitos numa universalidade própria à
filosofia e distante da história.
A diferença de entendimento, como já anunciamos, reside no conceito de
história, que para a autora “Há história quando há relação com o que é o Outro” (idem,
162) e daí entende que isso é considerar a luta de classes sem o reducionismo classista.
Assim continua: “Nas sociedades históricas há alteridade entre classes, entre sociedade
civil e poder político, entre poder e Estado, entre o atual e o possível, entre saber e
ideologia, entre pensar e agir.” (162) Ocorre que alteridade implica em diferença e a luta
de classes implica oposição, não se trata de muitas e diferentes relações na sociedade,
onde existam muitos e diferentes outros. Trata-se de muitas e diferentes relações sociais
em oposição a outras muitas e diferentes relações sociais, o primeiro grupo constrói
história na direção de garantir seus interesses que necessariamente agridem e anulam os
interesses dos outros grupos que compõem a sociedade. Esse embate resulta na história
dos homens. O entendimento da oposição entre classes em lugar da alteridade entre
classes não implica em nenhuma redução, mas observar o cerne da questão – que
precisa ser tratada nos diversos âmbitos em que se realiza, ou seja, por inúmeras
mediações.
A consideração da mediação como secundarizada tem sido uma crítica
importante, afinal, as explicações sobre o real têm oscilado entre colarem-se à
determinação econômica – o que se chama de economicismo ou considerarem como
determinações – em última instância, outras que não as condições materiais de
17
existência humana. Parece-nos que a mediação é sem dúvida determinante, porém ela é
também determinada e nesse sentido, percorrer a análise das múltiplas determinações
nos levará – em última instância à determinação econômica. A complexidade de
pensarmos dialeticamente ainda tem sido um desafio, pois a lógica formal impõe-se
absoluta entre a expressa maioria da produção do conhecimento e amplamente no senso
comum.
Daí, a identidade de classe e a determinação dessa sobre o homem seus
desejos, sonhos e sensações, não é uma simplificação quando entendemos que os
homens são determinados – tanto quanto determinam, porém determinam nos limites de
suas condições históricas. Considerar esse movimento não é simplificação no sentido
reducionista, mas abstração teórica, que partindo do real, reorganiza-o em pensamento.
Nesse sentido há uma simplificação no sentido de buscar o que essencialmente pode
explicar aquele dado do real – que a nós sempre parece caótico e complexo. Ao
contrário de reduzir, amplia as possibilidades de entendimento por ser uma abstração
maximizada.
Carlos Nelson Coutinho - “Democracia como valor universal”
Carlos Nelson Coutinho publica, em 1979, “Democracia como valor
universal” texto que vai detonar, no Brasil, um importante debate acerca das formas de
luta política na direção de superação do capitalismo. Sua argumentação parte da citação
do secretário do Partido Comunista Italiano Berlinger, que, nas comemorações de 70
anos da Revolução Soviética, fez a seguinte declaração “ a democracia é hoje não
apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder mas é também o
valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”.
Berlinger enfatiza que as conquistas democráticas do movimento
operário e de seus aliados históricos nos estados capitalistas europeus configuraram
direitos universais. O contraponto se dirigia aos anfitriões soviéticos e ao movimento
comunista internacional que exigia respeito às liberdades nos países burgueses,
liberdades essas que eram negadas aos cidadãos soviéticos. A recusa do socialismo real
18
por Belinger dava-se por seu caráter não democrático.
Coutinho recoloca o debate sobre democracia e socialismo, mostrando
como foi uma questão para Marx, Engels e Gramsci – que o atualizou ao refundar a
teoria da transição ao socialismo colocando no centro a questão da democracia.
Recupera Berlinger, para apresentar o eurocomunismo como “um modo dialeticamente
novo, não uma novidade metafisicamente concebida como ruptura absoluta – de
conceber essa relação entre democracia e socialismo” (COUTINHO, 1980, p.20)
Assim como Chauí, Coutinho está escrevendo em 1980, nos momentos
finais da ditadura militar brasileira e aponta como, nesse momento, todos são
democráticos, porém é preciso entender quais concepções de democracia estão
presentes nesse debate e nessa luta política. Uma visão, a seu ver bastante estreita, é
aquela que concebe a democracia como tática, como estritamente política, ela seria uma
nova forma de dominação burguesa e a luta em sua defesa teria o sentido de acentuar as
tensões que levariam à ruptura e então ao socialismo. Nessa perspectiva a democracia é
burguesa e não existiria fora da lógica capitalista.
Contra esse entendimento, defende a universalidade da democracia e sua
legitimidade no pensamento marxista: “o vínculo entre socialismo e democracia, com os
desdobramentos requeridos pela evolução histórica, é parte integrante do patrimônio
categorial do marxismo” (COUTINHO, 1980, p.21). Recorre a Lênin para mostrar
como, por ser substantiva, a democracia deve ser sempre adjetivada: democracia
proletária ou democracia burguesa. Sua referência ao texto Estado e Revolução, nos
indica um dos escritos mais recorrentes em tal debate.
Ao tratar o Estado como sendo de classes, Lênin não parece, em
momento algum, abdicar de pensar a democracia como burguesa e indicar que assim
como chama-se democracia, essa realidade posta no mundo capitalista seria sinônimo
de ditadura do capital. Na mesma direção trata como democracia proletária o que em
muitos momentos do texto também chama de ditadura do proletariado. O texto de
Lênin, ao colocar o acento no interesse de classe, indica que a forma de organização do
Estado atende sempre a um determinado interesse, e nesse sentido a ação do Estado visa
sempre implementar e conservar um projeto político em detrimento de outros, mesmo
que no plano discursivo apresente-se como “de todos”. De todos numa determinada
classe, assim, o que é democracia para o interesse do trabalhador, torna-se ditadura na
19
perspectiva do burguês: “(...) o Estado desse período deve ser, inevitavelmente, um
Estado democrático de feição nova (para os proletários e despossuídos em geral) e
ditatorial de feição nova (contra a burguesia).” (LÊNIN, 1987, p.80, grifos do autor)
Na perspectiva de classes, portanto, a democracia não é para todos os
homens, ou seja, uma categoria universal, mas sempre a indicação de que os interesses
de uma ou outra classe estariam hegemonicamente garantidos e então, no interior dessa
hegemonia, os envolvidos sentir-se-ão vivendo uma democracia. Ao mesmo tempo,
porém, o que parece democracia para os incluídos torna-se ditadura para os excluídos. O
projeto socialista é o de transpor a dominação da classe burguesa pela da classe
proletária, projeto que não se confunde com o de uma sociedade sem classes ou sem
Estado.
Voltando ao argumento de Coutinho, não parece estar em Lênin essa
universalidade do conceito de democracia como algo ontologicamente humano, como
um valor. A idéia de valor, o autor toma de Agnes Heller como sendo aquilo que faz
parte do ser genérico do homem, indicando uma naturalização dos valores. Ocorre que
evidentemente os homens têm características e necessidades humanas por excelência
que poderiam ser encontradas em qualquer homem em qualquer tempo e em qualquer
lugar, porém parece-nos que todas essas identidades essenciais são identificadas com
elementos próprios ao mundo natural do qual o homem faz parte. Excetuadas as
questões da natureza animal, todas as outras advém do mundo social, do universo
cultural decorrente das formas como os homens se relacionam com o mundo natural e
com os outros homens.
A democracia seria um valor porque explicita o ser genérico do homem,
especificamente o carecimento de socialização de participação política, afirma Coutinho
a partir de Heller (p.24). Talvez não seja exagerado indicar que a disputa pelo poder,
absolutamente colada à sobrevivência e manutenção de qualquer espécie, está presente
em qualquer grupo animal, assim como nos grupos humanos, que por serem produtores
de cultura, reelaboram essa natureza constituindo estruturas e instituições para o
exercício do poder, construindo a política.
A necessidade de se fazer a crítica ao socialismo real, autorizou ao autor
Carlos Nelson Coutinho uma des-historização do método materialista que tem na
história sua lógica, pois vai indicar que ao contrário de tática, a democracia é uma
20
estratégia constante, mais que isso é condição para se chegar, consolidar e aprofundar o
socialismo. Nesse sentido seria uma forma eterna de organização social.
Nosso objetivo, no presente ensaio, é esboçar sumariamente – muito mais levantando questões do que propondo respostas sistemáticas – os tópicos essenciais dessas duas ordens de questões. Em primeiro lugar, tentaremos indicar como o vínculo entre socialismo e democracia, com os desdobramentos requeridos pela evolução histórica, é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e, em segundo, mostraremos como a renovação democrática do conjunto da vida nacional – enquanto elemento indispensável para a criação dos pressupostos do socialismo – não pode ser encarada como objetivo tático imediato, mas aparece como conteúdo estratégico da etapa atual da revolução brasileira. (COUTINHO, 1980,p.21)
É muito presente na argumentação de Coutinho a questão de que as
liberdades democráticas pressionam o mundo do capital e essa pressão é exercida pelo
mundo do trabalho devidamente organizado e abraçado às premissas da democracia.
Historicamente podemos ver com clareza como, na tensão, as lutas democráticas pela
ampliação das condições de vida e trabalho foram e são fundamentais para a classe
trabalhadora, especialmente nos países da social democracia – que às custas da divisão
internacional do trabalho - pôde reorganizar a acumulação a ponto de abrir mão – e
perder pontualmente - para garantir avanços nas condições salariais e de implementação
de políticas sociais nos países centrais. Também o contexto brasileiro de “fase de
transição” em que vivíamos no momento da redação do artigo analisado valida a defesa
da democracia, acontece que, na perspectiva da herança de Marx, não parece que
possamos elevar a democracia para além de tática política. Os escritos sobre a Comuna
de Paris são bastante evidenciadores de como a democracia deve ser ferramenta de luta,
mas como ela – historicamente – garantiu que a burguesia mantivesse o controle de tudo
que é fundamental para a manutenção da lógica capitalista. Nossa hipótese é a de que
não se pode pensar a democracia burguesa abdicando da ideologia do Bem Comum,
esses dois conceitos são originalmente colados um ao outro. Esse entendimento impede,
portanto que lidemos com a perspectiva da sociedade de classes, onde não existe Bem
Comum para além do plano formal – no plano real, as conquistas de uma classe se
constituem na expropriação da outra. Consideramos que a utilização do conceito de
classe é absolutamente atual independente das modificações sofridas pelo mundo
21
produtivo. A tecnologia tem possibilitado inumeráveis modificações da forma
dicotômica apresentada por Marx e Engels em suas análises: burguesia x proletariado,.
Acontece que, metodologicamente, os matizes cada vez maiores de níveis salariais e
condições materiais de vida, não obscurecem o fato de que o mundo ainda se divide
entre os detentores dos meios de produção e os não detentores. As diversificadas formas
da venda da força de trabalho não implicam no seu desaparecimento. Apenas temos
uma realidade mais complexa das formas da venda de força de trabalho – e ainda,
graças à incessante luta entre as classes, setores do proletariado tem conquistado
condições diversas de apropriação de bens e condições. A existência das classes –
independente dessas nuances, parece não ter sido abalada, e, no limite, temos a mesma
sociedade capitalista estudada e explicitada por Marx em O Capital, guardadas as
transformações das forças produtivas e suas decorrências na organização social, como já
indicava o autor observando o movimento histórico. O que é fundamental na lógica
capitalista ainda se mantém e, portanto, nos autoriza a utilizar as categorias marxistas
como categorias, ou seja, sempre reconstruídas a partir dos elementos historicamente
dados.
No artigo “Contra a canonização da democracia”, João Quartim de
Moraes (2001) faz uma cuidadosa e perspicaz desmontagem do texto de Carlos Nelson
Coutinho, pois vai remeter-se tanto aos dados do mundo real no que tange à
aproximação entre democracia e capitalismo quanto se apóia no método materialista
histórico dialético para revelar a inconsistência da argumentação de Coutinho.
Na rasteira de Berlinger, mas situado no mesmo debate colocado por
Bernstein e pela II Internacional, Coutinho vai apostar na, e teorizar sobre, a vinculação
essencial entre democracia e socialismo e que pelo aprofundamento daquela
chegaríamos a esse.
São quatro os pontos elencados por Quartim: primeiro a idéia de que o
marxismo, em princípio, não recusa a democracia como forma de transição do
capitalismo ao socialismo, em princípio, o que temos é o contrário, a todo avanço da
classe trabalhadora via instâncias democráticas, essas instâncias foram suspensas
sempre por ações violentas contra os democratas e sempre em defesa da democracia.
Segundo, a referencia à arte grega e a Homero só nos obriga a fortalecer a concepção
segundo a qual qualquer ação do homem expressa e resulta das condições históricas em
22
que está posto, e não, como pretende Coutinho, indicar a universalização de valores
como algo possível independente da história. Um terceiro ponto se refere à manutenção
do valor universal de muitas objetivações ou formas de relacionamento social que
compõem o arcabouço da democracia política, defendido por Coutinho. João Quartim
metodologicamente nos lembra que nenhuma objetivação ou formas de relacionamento
social pode existir sem expressar a forma de organização social que é determinada
sempre e em última instância pelas formas como os homens produzem sua existência,
ou seja, pelo modo de produção. O quarto ponto revela o quanto é idealista tomar-se
democracia por valor universal na perspectiva de Agnes Heller e Quartim retoma a raiz
da universalidade – já haveria uma programação ontológica humana, a essência humana
sempre foi democrática e um dia – dado o desenvolvimento social – ela se manifesta.
Antenado às demonstrações históricas da perversidade do modo de
produção capitalista, o autor vai evidenciando o quanto a “demorex” – democracia
realmente existente – contribui e possibilita o estado de coisas que caracteriza nosso
tempo. Os melhores exemplos se referem às estratégias norte-americanas de levar a todo
o planeta a democracia. Infelizmente temos, com a reeleição de George W. Bush,
muitos mais exemplos a somar àqueles considerados por Quartim quando da redação de
seu texto.
Esse autor indica uma falaciosa ambigüidade – para afirmar a
necessidade da democracia no socialismo não seria necessário proclamá-la um valor
universal como se o paradigma das instituições políticas de toda a humanidade se
encontrasse na democracia burguesa, que, para Coutinho a democracia não é burguesa
porque é resultado das conquistas da classe trabalhadora. Não há dúvida que é, na
análise sobre a democracia, que temos as maiores evidências sobre o movimento
contraditório do real, e na luta de classes, o quanto interessa aos trabalhadores defender
a democracia, mas também o quanto essa não expressa a derrota do capital em quanto
projeto societário.
Para Quartim, na argumentação de Coutinho, o referencial objetivo seria
a democracia burguesa – essa como é – aprimorada pelo socialismo, mas argumenta que
a terceira via proposta pelo eurocomunismo entre o socialismo soviético e a social-
democracia só atrasou o movimento – não fez retroceder o “adversário de classe” mas
sim incapacitou alternativas de fundo à ofensiva neo liberal. Mais que isso, afirma que
23
os comunistas estiveram apoiando imperialismo e colonialismo em nome da
democracia, e que o eurocomunismo semeou ilusões e desarmou teoricamente a
esquerda “quando escorregaram da crítica ao “sorex” – socialismo realmente existente -
à renuncia ao comunismo e desta ao abandono do marxismo.” (MORAES, 2001, p. 11)
Quartim acusa Coutinho de confundir num mesmo enunciado doutrinário
– o conteúdo histórico objetivo da democracia com uma profissão de fé ético-política:
valores existem – podem ser políticos, éticos, jurídicos, estéticos,... e são universais
enquanto idealidades paradigmáticas, sujeitos abstratos, por exemplo igualdade,
liberdade, fraternidade, justiça, paz... dizer que são universais não lhes acrescenta
nenhum novo significado, já que nada é universal quando considerado não como
platônicos paradigmas, mas como formas entranhadas na rudeza material do devir.
(MORAES, 2001, p. 12) Como princípio de legitimidade seria aceito, continua Quartim
- a graça divina é um princípio de legitimidade na monarquia, assim como a
universalidade é um princípio de legitimidade na democracia hoje. Isso é um traço
ideológico de nossa época, já que “os valores democráticos estão para a sociedade
socialista assim como o evangelho está para Calvino – fundamentam uma esperança
alimentada numa profissão de fé” (MORAES, p.13).
Enquanto profissão de fé, Quartim indica que Berlinger está, naquele
momento, preocupado em reforçar o caráter histórico da democracia e busca então se
afastar – do positivismo – formalismo do estado de direito da igualdade jurídica e – do
jusnaturalismo – direitos são atributos eternos da natureza humana: argumento –
consenso vira verdade. Então, se a democracia estava se tornando um valor universal –
o que é historicamente verdadeiro – isso o fez inferir que esse consenso constitui valor
universal (p.13), isso nos parece ser uma escorregada no terreno pantanoso da ideologia.
Carlos Nelson Coutinho, na tentativa de aprofundar as teses
eurocomunistas vai buscar provar que a tese de Berlinger não é idealista, não é social-
democrata e atualiza Marx, tem, portanto que provar que “o vínculo entre socialismo e
democracia, (...) é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo” Quartim vai
argumentar o contrário.
O nexo entre democracia e socialismo está na II Internacional e está
expresso no nome social-democracia. Indicou-se, como alternativa de ação política um
acúmulo de reformas que aprofundasse gradualmente o caráter social da democracia
24
política burguesa e Bernstein mostrava como o socialismo seria o fim último do
aprofundamento contínuo da democracia.
Em princípio o marxismo não recusa a via democrática para o socialismo
– quem recusa é a burguesia – golpes e guerras a todo avanço popular e Quartim lembra
o exemplo de Allende no Chile e sua revolução pacífica, hoje temos a intrigante
experiência de Hugo Chavez na Venezuela.
Se marxismo insiste no condicionamento da política pela economia e o
Estado é expressão da base econômica da sociedade, então, sobre a base das relações
capitalistas de produção, a democracia será sempre a forma política da dominação de
classe burguesa. Ao contrario de Quartim, Coutinho vê que embora tendo sua gênese
histórica nas revoluções burguesas, o arcabouço institucional da democracia política não
perde seu “ valor universal” com a superação da sociedade burguesa.
(...) a verdade de um valor não decorre de sua força como idéia. Para impor seu valor, as idéias dominantes, como mostrou Marx na notável análise que abre o 18 Brumário de Luís Bonaparte, tem de assumir uma forma de universalidade. Mas nem por isso perdem seu conteúdo de classe. (MORAES, 2001, p.16)
Ir, portanto, buscar a historicidade da democracia nos remete ao
liberalismo e de todo seu fundamento teórico e sua prática política, afinal foi também a
divisão internacional do trabalho ou imperialismo, como insiste Quartim, que permitiu
a democracia.
Claro que esse predomínio da concepção liberal corresponde à situação instaurada, ao longo dos anos de 1980, pelo sucesso da ofensiva neoliberal e pelo desmantelamento do sorex e o conseqüente retrocesso do movimento socialista internacional. Mas, justamente nessa situação, beatificar a democracia contribui, sobretudo para superestimar os elementos de continuidade e obscurecer os de ruptura entre liberalismo e socialismo, alimentando ilusões desmobilizadoras. (MORAES, 2001, p.15)
Ainda:
Enquanto funcionaram as terapias reformistas para corrigir as “falhas do mercado” pela regulamentação social, aquelas conquistas
25
contrabalançaram os efeitos mais perversos da lógica do lucro. Note-se, entretanto, que embora expressassem interesses coletivos, faltava-lhes universalidade. Não eram, com efeito, direitos do homem e do cidadão, mas direitos do trabalhador, ativo ou aposentado. Asseguraram, sem dúvida, a seus beneficiários, notáveis melhorias das condições de existência e trabalho. Mas, não tendo aberto perspectivas sérias de ruptura da ordem burguesa, não poderiam tornar-se inalienáveis e imprescritíveis. Tanto assim que , a partir dos anos 1980, quando a reação neoliberal desencadeou sua foribunda ofensiva, os social democratas, capitulando como de hábito, diante do capital financeiro e do liberal-imperialismo, não tiveram contraproposta a oferecer além de aplicar mais moderadamente as medidas antisociais de redução dos custos do “Estado de bem-estar” que se tinha ‘tornado demasiado oneroso para a lógica objetiva da valorização do capital. O “valor universal” da democracia, uma vez mais, inclinou-se diante das bolsas de valores. (MORAES, 2001, p.23).
Na página 24, Coutinho indica a necessária manutenção da democracia –
tanto na transição ao socialismo quanto na sua plena realização e estabelece uma crítica
ao stalinismo por processar uma homogeneização da sociedade que se acentua à medida
que se impedem práticas democráticas, pois, “é fundamental que tais interesses
divergentes encontrem uma forma de representação política adequada.” Entendemos
que toda discussão acerca do direito suscitada por Marilena Chauí, vai na mesma
direção do que aponta Coutinho e, na mesma direção, afirmaríamos que a experiência
do socialismo real não desautoriza o programa político proposto por Marx nem o
identifica com um projeto que desconsidere as diferenças humanas, ao contrário,
considera de forma única as necessidades próprias a cada homem quando projeta um
mundo onde “de cada um segundo suas possibilidades e a cada um segundo suas
necessidades”.
Quanto à concepção de Estado, o autor também abdica do que parecem
indicar os textos marxistas e se refere à destruição do Estado na superação do mundo
capitalista como “uma metáfora que é muitas vezes entendida em sentido
demasiadamente literal – continua a ter seu pleno valor de princípio” O que seria
princípio – o Estado, por ser de classe, funciona na direção de conservar o modo de
produção vigente, então, todas as instituições que o constituem necessariamente deverão
ser superadas. Evidente que como um processo, mas a manutenção de qualquer lógica
do Estado na mesma direção do interesse burguês, será ainda um Estado burguês. O que
26
nos propõe Coutinho é “suprimir as relações de produção capitalistas para que as forças
produtivas materiais possam se desenvolver plenamente, de modo adequado à
emancipação humana” e “eliminar o domínio burguês sobre o Estado a fim de permitir
que esses institutos políticos democráticos possam alcançar pleno florescimento e, desse
modo, servir integralmente à libertação da humanidade trabalhadora.” (p.25) Podemos
deduzir dessa argumentação a possibilidade de tomarmos o Estado burguês e fazê-lo
funcionar na direção do interesse de todos. Isso nos parece bastante idealista, já que as
formas de organização e funcionamento do Estado burguês servem à burguesia,
inclusive as formas de organização democrática Teríamos que pensar necessariamente
em outro Estado e necessariamente de classes, pois a presença da burguesia, junto à
classe trabalhadora, como companheira de governo, já foi experenciada consideráveis
vezes na história do homem e resultou sempre na derrota do projeto proletário e na
reconstrução - mesmo que em novas bases – do projeto burguês. E, João Quartim de
Moraes(2001), ainda nos alerta, na direção de retomarmos a ortodoxia do pensamento
de Marx:
Marx também se serviu de metáforas arquitetônicas. Mas para ele a base são as relações econômicas e a superestrutura, as formas políticas e culturais. Jamais erigiria os valores integrantes de um ideário em fundamento de uma nova ordem social. Concordaria em que a forma democrática do Estado constitui o melhor terreno para operar a transição para o socialismo. Mas, do 18 Brumário aos escritos sobre a Comuna de Paris, mostrou como esse terreno, incerto e movediço, pode se transformar num atoleiro sangrento (p.12)
Pela argumentação de Coutinho sobre a necessidade de dar nova função
ao Estado, ou a idéia de que basta eliminar o domínio burguês sobre o Estado, resulta na
defesa da manutenção do Estado, afinal, destruí-lo é uma metáfora de Marx e Engels.
Avançando podemos depreender que a democracia – que é sempre democracia, não se
caracteriza por ser burguesa, antes, é proletária e poderá ser mantida como democracia
de massa nas mesmas formulações hoje postas. A radicalização da democracia é em si
revolucionária, para o autor e os herdeiros do mundo socialista democrático são todos
os homens, já destituídos da identidade de classe.
Retomamos o abandono da determinação em última instância, pois uma
mudança política poderá levar à superação do capitalismo:
27
Nesse sentido, o socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, o que se tornou possível pela prévia socialização do trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; consiste também – ou deve consistir, se pretende explicitar todas as suas potencialidades – numa progressiva socialização dos meios de governar. (COUTINHO, 1980, p.27)
Evidentemente as transformações da esfera produtiva implicarão em
transformações nas esferas políticas, já que outra ordem social se constituirá, a questão
que colocaria é a possibilidade de efetivação de relações socialistas no interior do
capitalismo.
Para Coutinho, é a ampliação da democracia – e portanto a
democratização das formas de exercício político - que possibilitará a transição, a
superação da alienação política, a ampliação da representatividade que passarão da
defesa de interesses corporativos para um crescente entendimento de Bem comum, já
que objetiva a articulação entre democracia direta e representativa. Nesse momento do
texto o autor indica em nota que essa seria a realização do ideal grego de democracia
assim como da reflexão de Rousseau.
Temos aqui uma recuperação dos pressupostos liberais, inclusive na
perspectiva do contrato social – não só pela recorrente referencia à Rousseau, mas pela
afirmação de que essa democratização, condição e resultado do fim da alienação política
“pressupõe o fim do “isolamento” do Estado, sua progressiva reabsorção pela sociedade
que o produziu e da qual ele se alienou.” (p. 28) Este Estado de Coutinho é tão
atemporal e universal quanto sua democracia. Também o abandono da perspectiva da
classe para entender a sociedade.
A transição se faria, porém, por meio da democracia de massas e a
“construção de - sociedade socialista, tem de surgir dessa articulação entre as formas de
representação tradicionais e os organismos de democracia direta.” (p.29)
Esse tem sido o coração de toda argumentação crítica às políticas
educacionais implementados nos governos Fernando Henrique Cardoso e mantém a
mesma lógica analítica para o governo Lula. Os educadores que produzem avaliação das
políticas, ou mesmo no âmbito do debate metodológico ou dos fundamentos da
educação, carregam tais entendimentos sobre Estado, sociedade e democracia. A
28
identificação de elementos relativizadores do pensamento marxista nesses dois artigos –
fundamentais para o pensamento de esquerda no Brasil, constitui a base teórica para a
leitura, análise e crítica da produção sobre a política educacional nos últimos anos no
Brasil, objeto dessa tese.
Apesar dessa argumentação crítica indicar que é pela ampliação da
democracia que devemos conduzir a luta por uma educação com qualidade para todos,
as experiências evidentes de ampliação da participação são recorrentemente negadas e
rejeitadas pelos autores já elencados, como formas maquiadas de autoritarismos,
ressignificação das bandeiras da esquerda e estratégias populistas de mobilização de
alunos, professores, pais e comunidade circundante à escola. Há, portanto, uma crença
ingênua de que poderemos construir uma democracia socialista em pleno vigor do modo
de produção capitalista, como há a manutenção precisa do projeto da Escola Nova de
John Dewey.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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