chauÍ, marilena. mito fundador e sociedade autoritária

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MARILENA CHAUÍ BRASIL Mito fundador e sociedade autoritária 1ª edição: abril de 2000 2ª reimpressão: outubro de 2001 Revisão Maurício Balthazar Leal Vera Lúcia Pereira

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  • MARILENA CHAU

    BRASIL

    Mito fundador e sociedade autoritria

    1 edio: abril de 2000

    2 reimpresso: outubro de 2001

    Reviso

    Maurcio Balthazar Leal

    Vera Lcia Pereira

  • 2

    SUMRIO

    COM F E ORGULHO 3

    A NAO COMO SEMIFORO 7

    O VERDEAMARELISMO 20

    DO IV AO V CENTENRIO 29

    O MITO FUNDADOR 35

    COMEMORAR? 55

    NOTAS E REFERNCIAS 60

    BIBLIOGRAFIA 62

  • 3

    COM F E ORGULHO

    Ama com f e orgulho a terra em que nasceste.

    Criana! Jamais vers pais nenhum como este.

    Olha que cu, que mar, quej1oresta!

    A natureza aqui perpetuamente em festa

    um seio de me a transbordar carinhos.

    [...]

    Imita na grandeza a terra em que nasceste.

    OLAVO BILAC

    Na escola, todos ns aprendemos o significado da bandeira brasileira: o retngulo verde

    simboliza nossas matas e riquezas florestais, o losango amarelo simboliza nosso ouro e nossas

    riquezas minerais, o crculo azul estrelado simboliza nosso cu, onde brilha o Cruzeiro do Sul,

    indicando que nascemos abenoados por Deus, e a faixa branca simboliza o que somos: um povo

    ordeiro em progresso. Sabemos por isso que o Brasil um gigante pela prpria natureza, que

    nosso cu tem mais estrelas, nossos bosques tm mais flores e nossos mares so mais verdes.

    Aprendemos que por nossa terra passa o maior rio do mundo e existe a maior floresta tropical do

    planeta, que somos um pas continental cortado pela linha do Equador e pelo trpico de

    Capricrnio, o que nos faz um pas de contrastes regionais cuja riqueza natural e cultural

    inigualvel. Aprendemos que somos um dom de Deus e da Natureza porque nossa terra

    desconhece catstrofes naturais (ciclones, furaces, vulces, desertos, nevascas, terremotos) e que

    aqui, em se plantando, tudo d.

    Todos ns fazemos nossas as palavras daquele que considerado o primeiro historiador

    brasileiro do Brasil, Rocha Pita, quando, em 1730, escreveu:

    Em nenhuma outra regio se mostra o cu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em

    nenhum outro hemisfrio tem raios to dourados, nem os reflexos noturnos to brilhantes; as estrelas

    so mais benignas e se mostram sempre alegres [...] as guas so mais puras; enfim o Brasil Terreal

    Paraso descoberto, onde tm nascimento e curso os maiores rios; domina salutfero o clima; influem

    benignos astros e respiram auras suavssimas, que o fazem frtil e povoado de inumerveis habitadores.1

    Sabemos todos que somos um povo novo, formado pela mistura de trs raas valorosas: os

    corajosos ndios, os esticos negros e os bravos e sentimentais lusitanos. Quem de ns ignora que

    da mestiagem nasceu o samba, no qual se exprimem a energia ndia, o ritmo negro e a melancolia

    portuguesa? Quem no sabe que a mestiagem responsvel por nossa ginga, inconfundvel marca

    dos campees mundiais de futebol? H quem no saiba que, por sermos mestios, desconhecemos

    preconceito de raa, cor, credo e classe? Afinal, Nossa Senhora, quando escolheu ser nossa

    padroeira, no apareceu negra?

    Aprendemos tambm que nossa histria foi escrita sem derramamento de sangue, com

    exceo de nosso Mrtir da Independncia, Tiradentes; que a grandeza do territrio foi um feito da

    bravura herica do Bandeirante, da nobreza de carter moral do Pacificador, Caxias, e da agudeza

  • 4

    fina do Baro do Rio Branco; e que, forados pelos inimigos a entrar em guerras, jamais passamos

    por derrotas militares. Somos um povo que atende ao chamamento do pas e que diz ao Brasil: Mas

    se ergues da justia a clava forte/ Vers que um filho teu no foge luta/ Nem teme quem te adora

    a prpria morte. No tememos a guerra, mas desejamos a paz. Em suma, somos um povo bom,

    pacfico e ordeiro, convencido de que no existe pecado abaixo do Equador.

    Duas pesquisas recentes de opinio, realizadas em 1995, uma delas pelo Instituto Vox Populi

    e a outra pelo Centro de Pesquisa e Documentao da Fundao Getlio Vargas, indagaram se os

    entrevistados sentiam orgulho de ser brasileiros e quais os motivos para o orgulho. Enquanto quase

    60% responderam afirmativamente, somente 4% disseram sentir vergonha do pas. Quanto aos

    motivos de orgulho, foram enumerados, em ordem decrescente: a Natureza, o carter do povo, as

    caractersticas do pas, esportes/msica/ carnaval. Quanto ao povo brasileiro, de quem os

    entrevistados se sentem orgulhosos, para 50% deles a imagem apresentava os seguintes traos,

    tambm em ordem decrescente: trabalhador/lutador, alegrei divertido, conformado/ solidrio e

    sofredor.

    Mesmo que no contssemos com pesquisas, cada um de ns experimenta no cotidiano a

    forte presena de uma representao homognea que os brasileiros possuem do pas e de si

    mesmos. Essa representao permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na

    indivisibilidade da nao e do povo brasileiros, e, em outros momentos, conceber a diviso social e a

    diviso poltica sob a forma dos amigos da nao e dos inimigos a combater, combate que

    engendrar ou conservar a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais. Eis por que

    algumas pesquisas de opinio indicam que uma parte da populao atribui os males do pas

    colonizao portuguesa, presena dos negros ou dos asiticos e, evidentemente, aos maus

    governos, traidores do povo e da ptria. Nada impede, porm, que em outras ocasies o inimigo seja

    o gringo explorador ou alguma potncia econmica estrangeira. A representao suficientemente

    forte e fluida para receber essas alteraes que no tocam em seu fundo.

    H, assim, a crena generalizada de que o Brasil: 1) um dom de Deus e da Natureza; 2)

    tem um povo pacfico, ordeiro\generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor; 3) um pas

    sem preconceitos ( raro o emprego da expresso mais sofisticada democracia racial),

    desconhecendo discriminao de raa e de credo, e praticando a mestiagem como padro

    fortificador da raa; 4) um pas acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar e, aqui, s no

    melhora e s no progride quem no trabalha, no havendo por isso discriminao de classe e sim

    repdio da vagabundagem, que, como se sabe, a me da delinqncia e da violncia; 5) um pas

    dos contrastes regionais, destinado por isso pluralidade econmica e cultural. Essa crena se

    completa com a suposio de que o que ainda falta ao pas a modernizao -isto , uma economia

    avanada, com tecnologia de ponta e moeda forte -, com a qual sentar-se- mesa dos donos do

    mundo.

    A fora persuasiva dessa representao transparece quando a vemos em ao, isto , quando

    resolve imaginariamente uma tenso real e produz uma contradio que passa despercebida.

    assim, por exemplo, que algum pode afirmar que os ndios so ignorantes, os negros so

    indolentes, os nordestinos so atrasados, os portugueses so burros, as mulheres so naturalmente

    inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo

    sem preconceitos e uma nao nascida da mistura de raas. Algum pode dizer se indignado com a

    existncia de crianas de rua, com as chacinas dessas crianas ou com o desperdcio de terras no

  • 5

    cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser

    brasileiro porque somos um povo pacfico, ordeiro e inimigo da violncia. Em suma, essa

    representao permite que uma sociedade que tolera a existncia de milhes de crianas sem

    infncia e que, desde seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem

    positiva de sua unidade fraterna.

    Se indagarmos de onde proveio essa representao e de onde ela tira sua fora sempre

    renovada, seremos levados em direo ao mito fundador do Brasil, cujas razes foram fincadas em

    1500.

    MITO FUNDADOR

    Ao falarmos em mito, ns o tomamos no apenas no sentido etimolgico de narrao pblica

    de feitos lendrios da comunidade (isto , no sentido grego da palavra mythos), mas tambm no

    sentido antropolgico, no qual essa narrativa a soluo imaginria para tenses, conflitos e

    contradies que no encontram caminhos para serem resolvidos no nvel da realidade.

    Se tambm dizemos mito fundador porque, maneira de toda fundatio, esse mito impe um

    vnculo interno com o passado como origem, isto , com um passado que no cessa nunca, que se

    conserva perenemente presente e, por isso mesmo, no permite o trabalho da diferena temporal e

    da compreenso do presente enquanto tal. Nesse sentido, falamos em mito tambm na acepo

    psicanaltica, ou seja, como impulso repetio de algo imaginrio, que cria um bloqueio

    percepo da realidade e impede lidar com ela.

    Um mito fundador aquele que no cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas

    linguagens, novos valores e idias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais

    a repetio de si mesmo.

    Insistimos na expresso mito fundador porque diferenciamos fundao e formao. Quando os

    historiadores falam em formao, referem-se no s s determinaes econmicas, sociais e

    polticas que produzem um acontecimento histrico, mas tambm pensam em transformao e,

    portanto, na continuidade ou na descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos

    temporais. Numa palavra, o registro da formao a histria propriamente dita, a includas suas

    representaes, sejam aquelas que conhecem o processo histrico, sejam as que o ocultam (isto ,

    as ideologias).

    Diferentemente da formao, a fundao se refere a um momento passado imaginrio, tido

    como instante originrio que se mantm vivo e presente no curso do tempo, isto , a fundao visa

    a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe d sentido. A

    fundao pretende situar-se alm do tempo, fora da histria, num presente que no cessa nunca

    sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar. No s isso. A marca peculiar da

    fundao a maneira como ela pe a transcendncia e a imanncia do momento fundador: a

    fundao aparece como emanando da sociedade (em nosso caso, da nao) e, simultaneamente,

    como engendrando essa prpria sociedade (ou a nao) da qual ela emana. por isso que estamos

    nos referindo fundao como mito.

  • 6

    O mito fundador oferece um repertrio inicial de representaes da realidade e, em cada

    momento da formao histrica, esses elementos so reorganizados tanto do ponto de vista de sua

    hierarquia interna (isto , qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliao de

    seu sentido (isto , novos elementos vm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as

    ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histrico da formao, alimenta-se das

    representaes produzidas pela fundao, atualizando-as para adequ-las nova quadra histrica.

    exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente.

  • 7

    A NAO COMO SEMIFORO

    Existem alguns objetos, animais, acontecimentos, pessoas e instituies que podemos

    designar com o termo semiforo.2 So desse tipo as relquias e oferendas, os esplios de guerra, as

    aparies celestes, os meteoros, certos acidentes geogrficos, certos animais, os objetos de arte, os

    objetos antigos, os documentos raros, os heris e a nao.

    Semeiophoros uma palavra grega composta de duas outras: semeion sinal ou signo, e p

    oras, trazer para a rente, expor, carregar, rotar e pegar (no sentido que, em portugus,

    dizemos que uma planta pegou, isto , refere-se fecundidade de alguma coisa). Um semeion

    um sinal distintivo que diferencia uma coisa de outra, mas tambm um rastro ou vestgio deixado

    por algum animal ou por algum, permitindo segui-lo ou rastre-lo, donde significar ainda as

    provas reunidas a favor ou contra algum. Signos indicativos de acontecimentos naturais - como as

    constelaes, indicadoras das estaes do ano -, sinais gravados para o reconhecimento de algum -

    como os desenhos num escudo, as pinturas num navio, os estandartes -, pressgios e agouros so

    tambm semeion. E pertence famlia dessa palavra todo sistema de sinais convencionados, como

    os que se fazem em assemblias, para abri-las ou fech-las ou para anunciar uma deliberao.

    Inicialmente, um semeiophoros era. a tabuleta na estrada, indicando o caminho; quando colocada

    frente de um edifcio, indicava sua funo. Era tambm o estandarte carregado pelos exrcitos, para

    indicar sua provenincia e orientar seus soldados durante a batalha. Como semforo, era um

    sistema de sinais para a comunicao entre navios e deles com a terra. Como algo precursor,

    fecundo ou carregado de pressgios, o semiforo era a comunicao com o invisvel, um signo vindo

    do passado ou dos cus, carregando uma significao com conseqncias presentes e futuras para

    os homens. Com esse sentido, um semiforo um signo trazido frente ou empunhado para indicar

    algo que significa alguma outra coisa e cujo valor no medido por sua materialidade e sim por sua

    fora simblica: uma simples pedra se for o local onde um deus apareceu, ou um simples tecido de

    l, se for o abrigo usado, um dia, por um heri, possuem um valor incalculvel, no como pedra ou

    como pedao de pano, mas como lugar sagrado ou relquia herica. Um semiforo fecundo porque

    dele no cessam de brotar efeitos de significao.

    Um semiforo , pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma

    instituio retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque

    so coisas providas de significao ou de valor simblico, capazes de relacionar o visvel e o

    invisvel, seja no espao, seja no tempo, pois o invisvel pode ser o sagrado (um espao alm de todo

    espao) ou o passado ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos

    visibilidade, pois nessa exposio que realizam sua significao e sua existncia. um objeto de

    celebrao por meio de cultos religiosos, peregrinaes a lugares santos, representaes teatrais de

    feitos hericos, comcios e passeatas em datas pblicas festivas, monumentos; e seu lugar deve ser

    pblico: lugares santos (montanhas, rios, lagos, cidades), templos, museus, bibliotecas, teatros,

    cinemas, campos esportivos, praas e jardins, enfim, locais onde toda a sociedade possa

    comunicar-se celebrando algo comum a todos e que conserva e assegura o sentimento de

    comunho e de unidade.

  • 8

    Seramos tentados a dizer que, no modo de produo capitalista, no pode haver semiforos,

    pois, no capitalismo, no h coisa alguma e pessoa alguma que escape da condio de mercadoria,

    no tendo como ser retirado do circuito da circulao mercantil. Alm disso, vivemos num mundo

    que, na clebre expresso de Max Weber, foi desencantado: nele no h mistrios, maravilhas,

    portentos e prodgios inexplicveis pela razo humana, pois nele tudo se torna inteligvel por

    intermdio do conhecimento cientfico e nele tudo acede racionalidade por intermdio da lgica do

    mercado.

    No menos importante para supormos que em nossas sociedades no pode haver lugar para

    semiforos o fenmeno que Walter Benjamin denominou de perda da aura, isto , o efeito da

    reproduo tcnica das obras de arte, dos objetos raros e dos lugares distantes: fotografias, filmes,

    vdeos, hologramas despojam obras, objetos e lugares de um trao fundamental do semiforo, qual

    seja, sua singularidade, aquilo que o faz precioso porque ele nico. No mundo da mercadoria no

    h singularidades. No s os objetos so tecnicamente reproduzidos aos milhares como tambm se

    tornam equivalentes a outras mercadorias, pelas quais podem ser trocados. No mundo da

    mercadoria, coisas heterogneas perdem a singularidade e a raridade, tornam-se homogneas

    porque so trocveis umas pelas outras e todas elas so trocveis pelo equivalente universal e

    homogeneizador universal, o dinheiro.

    A suposio da impossibilidade de semiforos na sociedade capitalista, porm, s surgiu

    porque havamos deixado na sombra um outro aspecto decisivo dos semiforos, ou seja, que so

    signos de poder e prestgio.

    Embora um semiforo seja algo retirado do circuito da utilidade e esteja encarregado de

    simbolizar o invisvel espacial ou temporal e de celebrar a unidade indivisa dos que compartilham

    uma crena comum ou um passado comum, ele tambm posse e propriedade daqueles que detm

    o poder para produzir e conservar um sistema de crenas ou um sistema de instituies que lhes

    permite dominar um meio social. Chefias religiosas ou igrejas, detentoras do saber sobre o sagrado,

    e chefias poltico-militares, detentoras do saber sobre o profano, so os detentores iniciais dos

    semiforos. nesse contexto que a entrada da mercadoria e do dinheiro como mercadoria universal

    pode acontecer sem destruir os semiforos e, mais do que isso, com a capacidade para fazer crescer

    a quantidade desses objetos especiais.

    Agora, a aquisio de semiforos se torna insgnia de riqueza e de prestgio, pois o semiforo

    passa a ter uma nova determinao, qual seja, a de seu valor por seu preo em dinheiro. No s

    isso. A hierarquia religiosa, a hierarquia poltica e a hierarquia da riqueza passam a disputar a

    posse dos semiforos, bem como a capacidade para produzi-los: a religio estimula os milagres (que

    geram novas pessoas e lugares santos), o poder poltico estimula a propaganda (que produz novas

    pessoas e objetos para o culto cvico) e o poder econmico estimula tanto a aquisio de objetos

    raros (dando origem s colees privadas) como a descoberta de novos semiforos pelo

    conhecimento cientfico (financiando pesquisas arqueolgicas, etnogrficas e de histria da arte).

    Dessa disputa de poder e de prestgio nascem, sob a ao do poder poltico, o patrimnio

    artstico e o patrimnio histrico-geogrfico da nao, isto , aquilo que o poder poltico detm como

    seu contra o poder religioso e o poder econmico. Em outras palavras, os semiforos religiosos so

    particulares a cada crena, os semiforos da riqueza so propriedade privada, mas o patrimnio

    histrico-geogrfico e artstico nacional.

  • 9

    Para realizar essa tarefa, o poder poltico precisa construir um semiforo fundamental, aquele

    que ser o lugar e o guardio dos semiforos pblicos. Esse semiforo-matriz a nao. Por meio da

    inteligentsia (ou de seus intelectuais orgnicos), da escola, da biblioteca, do museu, do arquivo de

    documentos raros, do patrimnio histrico e geogrfico e dos monumentos celebratrios, o poder

    poltico faz da nao o sujeito produtor dos semiforos nacionais e, ao mesmo tempo, o objeto do

    culto integrador da sociedade una e indivisa.

    A NAO: UMA INVENO RECENTE

    muito recente a inveno histrica da nao, entendida como Estado-nao, definida pela

    independncia ou soberania poltica e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode

    ser colocada por volta de 1830.

    De fato, a palavra nao vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo

    derivado desse verbo, natio ou nao, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por

    significar o parto de uma ninhada, a palavra natio/nao passou a significar, por extenso, os

    indivduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma me, e, depois, os indivduos nascidos num

    mesmo lugar. Quando, no final da Antiguidade e incio da Idade Mdia, a Igreja Romana fixou seu

    vocabulrio latino, passou a usar o plural nationes (naes) para se referir aos pagos e distingu-

    los do populus Dei, o povo de Deus. Assim, enquanto a palavra povo se referia a um grupo de

    indivduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra

    nao significava apenas um grupo de descendncia comum e era usado no s para referir-se

    aos pagos, em contraposio aos cristos, mas tambm para referir-se aos estrangeiros (era assim

    que, em Portugal, os judeus eram chamados de homens da nao) e a grupos de indivduos que

    no possuam um estatuto civil e poltico (foi assim que os colonizadores se referiram aos ndios

    falando em naes indgenas, isto , queles que eram descritos por eles como sem f, sem rei e

    sem lei). Povo, portanto, era um conceito jurdico-poltico, enquanto nao era um conceito

    biolgico.

    Antes da inveno histrica da nao, como algo poltico ou Estado-nao, os termos polticos

    empregados eram povo (a que j nos referimos) e ptria. Esta palavra tambm deriva de um

    vocbulo latino, pater, pai. No se trata, porm, do pai como genitor de seus filhos - neste caso,

    usava-se genitor -, mas de uma figura jurdica, definida pelo antigo direito romano. Pater o

    senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que

    nela existe, isto , plantaes, gado, edifcios (pai o dono do patrimonium), e o senhor, cuja

    vontade pessoal lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domnio (casa,

    em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa o dominium) , e os que esto sob seu

    domnio formam a familia (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao

    poder patriarcal e ptria o que pertence ao pai e est sob seu poder. nesse sentido jurdico

    preciso que, no latim da Igreja, Deus Pai, isto , senhor do universo e dos exrcitos celestes.

    tambm essa a origem da expresso jurdica ptrio poder, para referir-se ao poder legal do pai

    sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres).

  • 10

    Se patrimnio o que pertence ao pai, patrcio o que possui um pai nobre e livre, e

    patriarcal a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a diviso

    social das classes em que patrcios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado

    romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe.

    (Quando se olha um crucifixo, sempre se v, na parte superior da cruz, uma faixa com as letras

    SPQR. Essas letras significam Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo Romano. A faixa

    era obrigatria nas execues de condenados para indicar que a execuo fora aprovada por Roma.)

    Os patrcios eram os pais da ptria, enquanto os plebeus eram os protegidos pela ptria.

    Quando a Igreja Romana se estabeleceu como instituio, para marcar sua diferena do Imprio

    Romano pago e substituir os pais da ptria por Deus Pai, afirmou que, perante o Pai ou Senhor

    universal, todos so plebeus ou povo. ento que inventa a expresso Povo de Deus, que, como

    vimos, desloca a diviso social entre patrcios e plebeus para a diviso religiosa entre naes pags

    e povo cristo.

    A partir do sculo XVIII, com a revoluo norte-americana, holandesa e francesa, ptria

    passa a significar o territrio cujo senhor o povo organizado sob a forma de Estado independente.

    Eis por que, nas revoltas de independncia, ocorridos no Brasil nos finais do sculo XVIII e incio do

    sculo XIX, os revoltosos falavam em ptria mineira, ptria pernambucana, ptria americana;

    finalmente, com o Patriarca da Independncia, Jos Bonifcio, passou-se a falar em ptria

    brasileira. Durante todo esse tempo, nao continuava usada apenas para os ndios, os negros e

    os judeus.

    Se acompanharmos a periodizao proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a

    inveno histrica do Estado-nao3, podemos datar o aparecimento de nao no vocabulrio

    poltico na altura de 1830, e seguir suas mudanas em trs etapas: de 1830 a 1880, fala-se em

    princpio da nacionalidade; de 1880 a 1918, fala-se em idia nacional; e de 1918 aos anos 1950-

    60, fala-se em questo nacional. Nessa periodizao, a primeira etapa vincula nao e territrio, a

    segunda a articula lngua, religio e raa, e a terceira enfatiza a conscincia nacional, definida

    por um conjunto de lealdades polticas. Na primeira etapa, o discurso da nacionalidade provm da

    economia poltica liberal; na segunda, dos intelectuais pequeno-burgueses, particularmente

    alemes e italianos, e, na terceira, emanam principalmente dos partidos polticos e do Estado.

    O ponto de partida dessas elaboraes foi, sem dvida, o surgimento do Estado moderno da

    era das revolues, definido por um territrio preferencialmente contnuo, com limites e fronteiras

    claramente demarcados, agindo poltica e administrativamente sem sistemas intermedirios de

    dominao, e que precisava do consentimento prtico de seus cidados vlidos para polticas fiscais

    e aes militares. (Falamos em cidados vlidos porque a cidadania, embora declarada universal,

    no o era de fato, uma vez que o cidado era definido pela independncia econmica - isto , pela

    propriedade privada dos meios de produo -, excluindo trabalhadores e mulheres, e o sufrgio no

    era universal e sim censitrio isto , segundo o critrio da riqueza e da instruo. O sufrgio

    universal consagrou-se nas democracias efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial,

    como resultado de lutas sociais e populares. Em outras palavras, liberalismo no sinnimo de

    democracia.) Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos

    os habitantes do territrio na esfera da administrao estatal; de outro, obter a lealdade dos

    habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe

    social, as tendncias polticas antagnicas e as crenas religiosas disputavam essa lealdade. Em

  • 11

    suma, como dar diviso econmica, social e poltica a forma da unidade indivisa? Pouco a pouco,

    a idia de nao surgir como soluo dos problemas.

    Como observa Hobsbawm, o liberalismo tem dificuldade para operar com a idia de nao e

    de Estado nacional porque, para a ideologia liberal, a realidade se reduz a duas referncias

    econmicas: uma unidade mnima, o indivduo, e uma unidade mxima, a empresa, de sorte que

    no parece haver necessidade de construir uma unidade superior a estas. No entanto, os

    economistas liberais no podiam operar sem o conceito de economia nacional, pois era fato

    inegvel que havia o Estado com o monoplio da moeda, com finanas pblicas e atividades fiscais,

    alm da funo de garantir a segurana da propriedade privada e dos contratos econmicos, e do

    controle do aparato militar de represso s classes populares. Os economistas liberais afirmavam

    por isso que a riqueza das naes dependia de estarem elas sob governos regulares e que a

    fragmentao nacional, ou os Estados nacionais, era favorvel competitividade econmica e ao

    progresso.

    Por outro lado, em pases (como a Alemanha, os Estados Unidos ou o Brasil) que buscavam

    proteger suas economias do poderio das mais fortes, era grande a atrao da idia de um Estado

    nacional protecionista. Veio dos economistas alemes a idia do princpio de nacionalidade, isto ,

    um princpio que defini< quando poderia ou no haver uma nao ou um Estado-nao. Esse

    princpio era o territrio extenso e a populao numerosa, pois um Estado pequeno e pouco

    populoso no poderia promover perfeio os vrios ramos da produo. Desse princpio derivou-

    se uma segunda idia, qual seja, a nao como um processo de expanso, isto , de conquista de

    novos territrios, falando-se, ento, em unificao nacional. Dimenso do territrio, densidade

    populacional e expanso de fronteiras tornaram-se os princpios definidores da nao como Estado.

    Todavia, o territrio em expanso s se unificaria se houvesse o Estado-nao, e este deveria

    produzir um elemento de identificao que justificasse a conquista expansionista. Esse elemento

    passou a ser a lngua, e por isso o Estado-nao precisou contar com uma elite cultural que lhe

    fornecesse no s a unidade lingstica, mas lhe desse os elementos para afirmar que o

    desenvolvimento da nao era o ponto final de um processo de evoluo, que comeava na famlia e

    terminava no Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso.

    A partir de 1880, porm, na Europa, a nao passa pelo debate sobre a idia nacional, pois

    as lutas sociais e polticas haviam colocado as massas trabalhadoras na cena, e os poderes

    constitudos tiveram de disputar com os socialistas e comunistas a lealdade popular. Ou, como

    escreve Hobsbawm, a necessidade de o Estado e as classes dominantes competirem com seus

    rivais pela lealdade das ordens inferiores se tornou, portanto, aguda4. O Estado precisava de algo

    mais do que a passividade de seus cidados: precisava mobiliz-los e influenci-los a seu favor.

    Precisava de uma religio cvica, o patriotismo. Dessa maneira, a definio da nao pelo

    territrio, pela conquista e pela demografia j no bastava, mesmo porque, alm das lutas sociais

    internas, regies que no haviam preenchido os critrios do princpio de nacionalidade lutavam

    para ser reconhecidas como Estado-naes independentes. Durante o perodo de 1880-1918, a

    religio cvica transforma o patriotismo em nacionalismo, isto , o patriotismo se torna estatal,

    reforado com sentimentos e smbolos de uma comunidade imaginria cuja tradio comeava a ser

    inventada.

    Essa construo decorreu da necessidade de resolver trs problemas prementes: as lutas

    populares socialistas, a resistncia de grupos tradicionais ameaados pela modernidade capitalista

  • 12

    e o surgimento de um estrato social ou de uma classe intermediria, a pequena burguesia, que

    aspirava ao aburguesamento e temia a proletarizao. Em outras palavras, foi exatamente no

    momento em que a diviso social e econmica das classes apareceu com toda clareza e ameaou o

    capitalismo que este procurou na idia nacional um instrumento unificador da sociedade. No por

    acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco de proletarizao, que

    transformaram o patriotismo em nacionalismo quando deram ao esprito do povo, encarnado na

    lngua, nas tradies populares ou folclore e na raa (conceito central das cincias sociais do sculo

    XIX), os critrios da definio da nacionalidade.

    A partir dessa poca, a nao passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde

    tempos imemoriais, porque suas razes deitam-se no prprio povo que a constitui. Dessa maneira,

    aparece um poderoso elemento de identificao social e poltica, facilmente reconhecvel por todos

    (pois a nao est nos usos costumes, tradies, crenas da vida cotidiana) e com a capacidade

    para incorporar numa nica crena as crenas rivais, isto , o apelo de classe, o apelo poltico e o

    apelo religioso no precisavam disputar a lealdade dos cidados porque toda essas crenas podiam

    exprimir-se umas pelas outras sob o fundo comum da nacionalidade. Sem essa referncia, tornar-

    se-ia incompreensvel que, em 1914, milhes de proletrios tivessem marchado para a guerra para

    matar e morrer ser vindo aos interesses do capital.

    Foi a percepo do poder persuasivo da idia nacional que levou questo nacional, entre

    1918 e os anos 1950-60 do sculo XX4. A Revoluo Russa (1917), a derrota alem na Primeira

    Guerra (1914-18), a depresso econmica dos anos 20-30, o aguamento mundial da luta de

    classes sob bandeiras socialistas e comunistas preparavam a arrancada mais forte do nacionalismo,

    cuja expresso paradigmtica foi o nazi-fascismo.

    No caso do Brasil, no custa lembrar o que, nessa poca, diziam os fascistas, isto , os

    membros da Ao Integralista Brasileira, partido poltico criado entre 1927 e 1928 e dirigido pelo

    escritor modernista Plnio Salgado:

    Esta longa escravido ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na gleba para

    opulentar os cofres de Wall Street e da City; essa situao deprimente em face do estrangeiro; este

    cosmopolitismo que nos amesquinha; essas lutas internas que nos ensangentam; esta aviltante

    propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Ptria; esse tripudiar de

    regionalismo em esgares separatistas a enfraquecer a Grande Nao; esse comodismo burgus; essa

    misria de nossas populaes sertanejas; a opresso em que se debate nosso proletariado, duas vezes

    explorado pelo patro e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um pas de oito

    milhes de quilmetros quadrados e quase cinqenta milhes de habitantes, sem prestgio, sem crdito,

    corrodos de politicagem de partidos.5

    Alm de se apropriar da elaborao nacionalista, feita nas etapas anteriores (expanso e

    unificao do territrio, esprito do povo e raa), o nazi-fascismo e os vrios nacionalismos desse

    perodo contaram com a nova comunicao de massa (o rdio e o cinema) para transformar

    smbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivduo e, com isso, romper as

    divises entre a esfera privada e local e a esfera pblica e nacional. A primeira expresso dessa

    mudana aparece nos esportes, transformados em espetculos de massa, nos quais j no

    competem equipes e sim se enfrentam e se combatem naes (como se viu nos Jogos Olmpicos de

    1936, no aparecimento do Tour de France e da Copa do Mundo). Passou-se a ensinar s crianas

  • 13

    que a lealdade ao time lealdade nao. Passeatas embandeiradas, ginstica coletiva em grandes

    estdios, programas estatais pelo rdio, uniformes polticos com cores distintivas, grandes comcios

    marcam esse perodo como poca do nacionalismo militante.

    A pergunta suscitada por essa terceira fase da construo da nao : por que foi bem-

    sucedida e por que, passadas as causas imediatas que a produziram, ela permaneceu nas

    sociedades contemporneas? Por que a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor do

    que o nacionalismo? Por que at mesmo as revolues socialistas acabaram assumindo a forma do

    nacionalismo? Por que a questo nacional parecia ter sentido? O nacionalismo militante, diz

    Hobsbawm, no pode ser visto simplesmente como reflexo do desespero e da impotncia poltica

    diante da incapacidade mobilizadora do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Sem dvida,

    esses aspectos so importantes, indicando a adeso daqueles que haviam perdido a f em utopias (

    esquerda) ou dos que haviam perdido velhas certezas polticas e sociais ( direita). Todavia, se para

    esses o nacionalismo militante era um imperativo poltico exclusivo, o mesmo no pode ser dito da

    adeso generalizada, nem, sobretudo da permanncia do nacionalismo em toda parte, depois de

    encerrado o nazi-fascismo.

    A possvel explicao encontra-se na natureza do Estado moderno como espao dos

    sentimentos polticos e das prticas polticas em que a conscincia poltica do cidado se forma

    referida nao e ao civismo, de tal maneira que a distino entre classe social e nao no clara

    e freqentemente est esfumada ou diluda. Para ns, no Brasil, nada exprime melhor essa situao

    do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-60, perodo que conhecemos com os nomes de

    nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois. De fato, para as esquerdas,

    a referncia sempre havia sido a diviso social das classes e no a unidade social imaginria

    imposta pela idia de nao. No entanto, no perodo 1950-60, a luta histrica foi interpretada pelas

    esquerdas como combate entre a nao (representada pela burguesia nacional progressista e as

    massas conscientes) e a antinao (representada pelos setores atrasados da classe dominante,

    pelas massas alienadas e pelo capital estrangeiro ou as foras do imperialismo'').

    O processo histrico de inveno da nao nos auxilia a compreender um fenmeno

    significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da idia de carter nacional para a de identidade

    nacional. O primeiro corresponde, grosso modo, aos perodos de vigncia do princpio da

    nacionalidade (1830-1880) e da idia nacional (1880-1918), enquanto a segunda aparece no

    perodo da questo nacional (1918-1960).

    Territrio, densidade demogrfica, expanso de fronteiras, lngua, raa, crenas religiosas,

    usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do carter nacional,

    entendido como disposio natural de um povo e sua expresso cultural. Como observa Perry

    Anderson, o conceito de carter em princpio compreensivo, cobrindo todos os traos de um

    indivduo ou grupo; ele auto-suficiente, no necessitando de referncia externa para sua definio;

    e mutvel, permitindo modificaes parciais ou gerais.6

    Em seu trabalho pioneiro e hoje clssico, O carter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite

    mostra como as formulaes brasileiras sobre o carter nacional' dependeram de trs

    determinaes principais: o momento sociopoltico, a insero de classe ou a classe social dos

    autores, e as idias europias mais em voga em cada ocasio. Tomando as construes do carter

    nacional como ideologias, Moreira Leite conclui seu livro afirmando que elas foram, na verdade,

  • 14

    obstculos para o conhecimento da sociedade brasileira e no a apresentao fragmenta. da e

    parcial de aspectos reais dessa sociedade.

    Quando se acompanha a elaborao ideolgica do carter nacional brasileiro, observa-se

    que este sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso

    Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Silvio

    Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louv-lo,

    quer par; depreci-lo, o carter nacional uma totalidade de traos coerente, fechada e sem

    lacunas porque constitui uma natureza humana determinada.

    A ideologia da identidade nacional opera noutro registro. Antes de mais nada, ela define um

    ncleo essencial tomando como critrio algumas determinaes internas da nao que so

    percebidas por sua referncia ao que lhe externo, ou seja, a identidade no pode ser construda

    sem a diferena. O ncleo essencial , no plano individual, a personalidade de algum, e, no plano

    social, o lugar ocupado na diviso do trabalho, a insero social de classe. Isso traz como

    conseqncia que a identidade nacional precisa ser concebida como harmonia e/ou tenso entre o

    plano individual e o social e tambm como harmonia e/ou tenso no interior do prprio social. Para

    faz-la, os idelogos da identidade nacional invocam as idias de conscincia individual,

    conscincia social e conscincia nacional. Ou, como observa Anderson, a identidade deve

    incluir uma certa autoconscincia [...] sempre possui uma dimenso reflexiva ou subjetiva,

    enquanto o carter pode permanecer, no limite, puramente objetivo, algo percebido pelos outros

    sem que o agente esteja consciente dele6. O apelo da identidade nacional conscincia opera um

    deslizamento de grande envergadura, escorregando da conscincia de classe para a conscincia

    nacional.

    Para que se possa ter uma idia da diferena entre as duas ideologias, tomemos um exemplo.

    Na ideologia do carter nacional brasileiro, a nao formada pela mistura de trs raas - ndios,

    negros e brancos - e a sociedade mestia desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o

    negro visto pelo olhar do paternalismo branco, que v a afeio natural e o carinho com que

    brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros, num trnsito contnuo entre a

    casa-grande e a senzala. Na ideologia da identidade nacional, o negro visto como classe social, a

    dos escravos, e sob a perspectiva da escravido como instituio violenta que coisifica o negro, cuja

    conscincia fica alienada e s escapa fugazmente da alienao nos momentos de grande revolta. Na

    primeira, o carter brasileiro formado pelas relaes entre o branco bom e o negro bom (se nosso

    carter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso carter for

    depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violncia branca e alienao negra,

    isto , como duas formas de conscincia definidas por uma instituio, a escravido. Como observa

    Silvia Lara, no livro Campos da violncia7, a primeira imagem a da escravido benevolente,

    enquanto a segunda a da escravido como violncia, mas nos dois casos os negros no so

    percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e mulheres sua capacidade de

    criar, de agenciar e ter conscincias polticas diferenciadas, numa palavra, despojando-os da

    condio de sujeitos sociais e polticos.

    Enquanto a ideologia do carter nacional apresenta a nao totalizada assim que, por

    exemplo, a mestiagem permite construir a imagem de uma totalidade social homognea -, a da

    identidade nacional a concebe como totalidade incompleta e lacunar - assim que, por exemplo,

    escravos e homens livres pobres, no perodo colonial, ou os operrios, no perodo republicano, so

  • 15

    descritos sob a categoria da conscincia alienada, que os teria impedido de agir de maneira

    adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto a segunda opera com a falta, a

    privao, o desvio. E no poderia ser de outra maneira. A identidade nacional pressupe a relao

    com o diferente. No caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relao ao qual a identidade

    definida, so os pases capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e uma

    totalidade completamente realizadas. pela imagem do desenvolvimento completo do outro que a

    nossa identidade, definida como subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privaes.

    Entre os anos 1950-1970, a elaborao da identidade nacional apresenta a sociedade

    brasileira com os seguintes traos:

    1) ausncia de uma burguesia nacional plenamente constituda, tal que alguma frao da classe

    dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto hegemnico, no tendo, portanto,

    condies de se apresentar como classe dirigente; h um vazio no alto;

    2) ausncia de uma classe operria madura, autnoma e organizada, preparada para propor um

    programa poltico capaz de destruir o da classe dominante fragmentada. Por suas origens

    imigrantes e camponesas, essa classe tende a desviar-se de sua tarefa histrica, caindo no

    populismo; h um desvio embaixo;

    3) presena de uma classe mdia de difcil definio sociolgica, mas caracterizada por uma

    ideologia e uma prtica heternomas, oscilando entre atrelar-se classe dominante ou ir a reboque

    da classe operria;

    4) as duas primeiras ausncias e a inoperncia da classe mdia criam um vazio poltico que ser

    preenchido pelo Estado, o qual , afinal, o nico sujeito poltico e o nico agente histrico;

    5) a precria situao das classes torna impossvel a qualquer delas produzir uma ideologia,

    entendida como um sistema coerente de representaes e normas com universalidade suficiente

    para impor-se a toda a sociedade. Por esse motivo, as idias so importadas e esto sempre fora do

    lugar.

    Assim, a identidade do Brasil, construda na perspectiva do atraso ou do

    subdesenvolvimento, dada pelo que lhe falta, pela privao daquelas caractersticas que o fariam

    pleno e completo, isto , desenvolvido.

    Postas as coisas dessa maneira, tanto a ideologia do carter nacional como a da identidade

    nacional parecem pertencer a um passado remoto, nada podendo dizer sobre a situao atual do

    pas que, como sabemos, agora batizado com o nome e pas emergente.

    De fato, hoje, o princpio da nacionalidade (como diziam os liberais do sculo XIX) ou a

    idia nacional e a questo nacional (como diziam liberais, marxistas e nazi-fascistas do incio at

    os meados do sculo XX) parecem, finalmente, ter perdido sentido. Enquanto de 1830 a 1970, a

    nao e o nacionalismo foram objeto de discursos partidrios, de programas estatais, lutas civis e

    guerras mundiais, hoje, o discurso e a ao dos direitos civis, do multiculturalismo, do direito

    diferena e a prtica econmica neoliberal no apenas tiraram da cena poltica e ideolgica as

    nacionalidades, mas tambm mostram que estas permaneceram como referenciais importantes

    apenas em pases e regies que no tm muito peso em termos dos poderes econmicos e polticos

    mundiais (Afeganisto, Irlanda, Pas Basco, Sri Lanka, Timor, Sarajevo, Kosovo, Lbia) ou naqueles

    em que a questo da nacionalidade aparece travejada pela religio (Ir Israel, Palestina).

    Isso nos leva a indagar se haveria algum cabimento na celebrao do Brasil 500, a menos

    que um necrolgio possa ser considerado uma celebrao.

  • 16

    Todavia, postas as coisas dessa maneira, poderamos tambm indagar se no estaramos

    substituindo um fatalismo fundamentalista por outro. Ou seja, assim como os nacionalismos,

    ocultando que a nao uma construo histrica recente fizeram da nacionalidade algo imemorial

    e destino necessrio da civilizao, tambm poderamos estar tomando o fim dos nacionalismos ou

    dos Estados-nao como um destino inelutvel, como o fim da histria, to ao gosto dos

    neoliberais.

    Por isso, cremos ser mais avisado distinguir entre o lugar da nao nas elaboraes poltico-

    ideolgicas de 1830-1980 e seu lugar nas representaes sociopolticas brasileiras, desde o final dos

    anos 80.

    De fato, no primeiro perodo, a nao e a nacionalidade so um programa de ao e ocupam,

    direita e esquerda, o espao das lutas econmicas, poltica e ideolgicas. No segundo perodo,

    porm, isto , desde 1980 mais ou menos, nao e nacionalidade se deslocam para o campo das

    representaes j consolida das - que, portanto, no so objeto de disputas e programas -, tendo a

    seu cargo diversas tarefas poltico-ideolgicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritria,

    oferecer mecanismos para tolerar vrias formas de violncia e servir de parmetro para aferir ou

    avaliar as autodenominadas polticas de modernizao do pas. com esse conjunto de tarefas que

    elas vm se inscrever nas comemoraes do Brasil 500.

    Brasil 500 , pois, um semiforo historicamente produzido. Como todo semiforo que se

    destina a explicar a origem e dar um sentido ao momento funde dor de uma coletividade uma

    entidade mtica, Brasil 500 tambm pertence a campo mtico, tendo como tarefa a reatualizao

    de nosso mito fundador.

    Antes de nos voltarmos para o momento de instituio desse mito, queremos, de maneira

    breve e impressionista, sem acompanhar propriamente as condies materiais da histria do Brasil

    e de sua periodizao, assinalar momentos variados em que, silenciosa e invisvel, a mitologia da

    origem se espraia em aes e falas da sociedade e do Estado brasileiros. Como se ver, os exemplos

    aqui escolhidos correspondem, grosso modo, s trs etapas de construo da idia d nao que,

    muito rapidamente, apresentamos acima.

    PERIODIZAO PROPOSTA POR DANTE MOREIRA LEITE

    I - A fase colonial: descoberta da terra e o movimento nativista (1500-1822).

    II - O Romantismo: a independncia poltica e a formao de uma imagem positiva do Brasil e

    dos brasileiros (1822-1880).

    III - As cincias sociais e a imagem pessimista do brasileiro (1880-1950).

    IV - O desenvolvimento econmico e a superao da ideologia do carter nacional brasileiro: a

    dcada 1950-1960.

    FONTE: Leite, Dante Moreira. O carter nacional brasileiro. Histria de uma ideologia. So Paulo, Pioneira, 4

    edio definitiva, 1983.

  • 17

    SILVIO ROMERO (1851-1914)

    Caractersticas psicolgicas do brasileiro

    1. aptico

    2. sem iniciativa

    3. desanimado

    4. imitao do estrangeiro (na vida

    intelectual)

    5. abatimento intelectual

    6. irritabilidade

    7. nervosismo

    8. hepatismo

    9. talentos precoces e rpida extenuao

    10. facilidade para aprender

    11. superficialidade das faculdades

    inventivas

    12. desequilibrado

    13. mais apto para queixar-se que para

    inventar

    14. mais contemplativo que pensador

    15. mais lirista, mais amigo de sonhos e

    palavras retumbantes que de idias

    cientficas e demonstradas

    Qualidades da vida intelectual brasileira

    1. sem filosofia, sem cincia, sem poesia

    impessoal

    2. palavreado da carolice

    3. mstica ridcula do bactrio enfermo e

    fantico

    4. devaneios fteis da impiedade,

    impertinente e ftil

    AFONSO CELSO (1860-1938)

    Quadro das caractersticas psicolgicas

    Brasileiro

    Positivas

    1. sentimento de independncia

    2. hospitalidade

    3. afeio ordem, paz, melhoramento

    4. pacincia e resignao

    5. doura, longanimidade e desinteresse

    6. escrpulo no cumprimento das obrigaes

    contradas

    7. caridade

    8. acessibilidade

    9. tolerncia (ausncia de preconceitos)

    10. honradez (pblica e particular)

    Negativas

    1. falta de iniciativa

    2. falta de deciso }

    corrigveis por educao

    3. falta de firmeza

    4. pouca diligncia, pouco esforo

    corrigvel por novas condies

    Mestios

    Positivas

    1. energia

    2. coragem

    3. iniciativa

    4. inteligncia

    Negativas

    1. imprevidncia

    2. despreocupao com o futuro

    Portugueses

    Positivas

    1. heroicidade

    2. resignao

    3. esforo

    4. unio

    5. patriotismo

    6. amor ao trabalho

    7. filantropia

    Negros

    Positivas

    1. sentimentos afetivos

    2. resignao

    3. coragem, laboriosidade

    4. sentimentos de independncia

    MANOEL BONFIM (1868-1932)

  • 18

    Caractersticas psicolgicas indicadas

    Brasileiros

    1. parasitismo

    2. perverso do senso moral

    3. horror ao trabalho livre

    4. dio ao governo

    5. desconfiana das autoridades

    6. instintos agressivos

    7. conservantismo

    8. falta de ob~ervao

    9. resistncia

    10. sobriedade

    11. tibieza

    12. intermitncia de entusiasmo

    13. desfalecimentos contnuos

    14. desnimo fcil

    15. tendncia lamentao

    16. facilidade na acusao

    17. inadvertncia

    18. ausncia de vontade

    19. inconstncia no querer

    20. hombridade patritica

    21. poder de assimilao social

    PAULO PRADO (1869-1943)

    Caractersticas psicolgicas Brasileiro

    1 . tristeza

    2. erotismo

    3. cobia

    4. romantismo

    5. individualismo desordenado

    6. apatia

    7. imitao

    ndio

    1. sensual

    ndios e negros

    1. inconsistncia de carter

    2. leviandade

    3. imprevidncia

    4. indiferena pelo passado

    Influncia dos negros

    1. afetividade passiva

    2. dedicao morna, doce e instintiva

    ndios

    1. amor violento liberdade

    2. coragem fsica

    3. instabilidade emocional (defeitos de

    educao)

    Mestios

    1. indolentes

    2. indisciplinados

    3. imprevidentes

    4. preguiosos (defeitos de educao)

    Bandeirantes

    1. nsia de independncia

    2. brutezas

    3. pouco escrupuloso

    4. ambio de mando

    5. ganncia de riqueza (herdada de cristos-

    novos)

    Negro

    1. passividade infantil (na mulher)

    GILBERTO FREYRE (1900-1987)

    Quadro das caractersticas psicolgicas de

    portugueses, ndios, negros e brasileiros

    Portugueses

    1. flutuante

    2. riqueza de aptides incoerentes, no

    prticas

    3. genesia violenta

    4. gosto pelas anedotas de fundo ertico

    5. brio

    6. franqueza

    7. lealdade

    8. pouca iniciativa individual

    9. patriotismo vibrante

    10. imprevidncia

    11. inteligncia

    12. fatalismo

    13. aptido para imitar

    14. antagonismo de introverso-extroverso

    15. mobilidade

    16. miscibilidade

    17. aclimatabilidade

    18. sexualidade exaltada

  • 19

    19. purismo religioso

    20. carter nacional quente e plstico

    21. tristeza

    22. esprito de aventura

    23. preconceitos aristocrticos

    24. em alguns grupos, amor agricultura

    25. continuidade social e gosto pelo traI

    negro, paciente e difcil

    ndios

    1. sexualidade exaltada

    2. animismo

    3. calado

    4. desconfiado

    Brasileiros

    1. sadismo no grupo dominante

    2. masoquismo nos grupos dominados

    3. animismo

    4. crena no sobrenatural

    5. gosto por piadas picantes

    6. erotismo

    7. gosto da ostentao

    8. personalismo

    9. culto sentimental ou mstico do pai

    10. maternalismo

    11. simpatia do mulato

    12. individualismo e interesse intelectual

    permitidos pela vida na plantao

    13. complexo de refinamento

    Negros

    1. maior bondade

    2. misticismo quente e voluptuoso que

    enriquece a sensibilidade e a imaginao do

    brasileiro

    3. alegria

    Distines regionais

    a. pernambucano, paulista e gacho

    b. baiano e carioca

    c. bandeirantes e cearenses: expresso de

    vigor hbrido

    d. paulista: gosto pelo trabalho

    e. em algumas outras regies: resignao

    f. mineiro: austeridade e tendncia

    introspeco, complexo, sutil e dono de senso

    de humor

    g. gachos da zona missioneira: silenciosos,

    introspectivos, realistas, distantes, frios,

    telricos, instintivos, fatalistas, orgulhosos,

    quase trgicos nas crises

    CASSIANO RICARDO (1895-1974)

    1. mais emotivo

    2. mais corao que cabea

    3. mais propenso a ideologias que idias 4.

    detesta a violncia

    5. menos cruel

    6. menos odioso

    7. bondade

    8. individualismo

  • 20

    O VERDEAMARELISMO

    O monumento

    de papel crepom e prata

    Os olhos verdes da mulata

    A cabeleira esconde atrs

    Da verde mata

    O luar do serto

    CAETANO VELOSO

    1958, quando a seleo brasileira de Futebol ganhou a Copa do Mundo, msicas populares a

    afirmavam que a copa o mundo e nossa porque com brasileiro no h quem possa, e o brasileiro

    era descrito como bom no couro e bom no samba. A celebrao consagrava o trip da imagem da

    excelncia brasileira: caf, carnaval e futebol. Em contrapartida, quando a seleo, agora chamada

    de Canarinha, venceu o torneio mundial em 1970, surgiu um verdadeiro hino celebratrio, cujo

    incio dizia: Noventa milhes em ao/ Pra frente, Brasil, do meu corao. A mudana do ritmo -

    do samba para a marcha -, a mudana do sujeito - do brasileiro bom no couro aos 90 milhes em

    ao - e a mudana do significado da vitria - de a copa do mundo nossa ao pra frente, Brasil

    no foram alteraes pequenas.

    Em 1958, sob o governo de Juscelino Kubitschek, vivia-se sob a ideologia do

    desenvolvimentismo, isto , de um pas que se industrializava voltado para o mercado interno, para

    o brasileiro, e que incentivava a vinda do capital internacional como condio preparatria para,

    conseguido o desenvolvimento, competir com ele em igualdade de condies. Em 1970, vivia-se sob

    a ditadura militar ps-Ato Institucional n 5, sob a represso ou o terror de Estado e sob a ideologia

    do Brasil Grande, isto , da chamada integrao nacional, com rodovias nacionais e cidades

    monumentais, uma vez mais destinadas a atrair o grande capital internacional. Nas comemoraes

    de 1958 e de 1970, a populao saiu s ruas vestidas de verde-amarelo ou carregando objetos

    verdes e amarelos. Ainda que, desde 1958, soubssemos que verde, amarelo, cor de anil! so as

    cores do Brasil, os que participaram da primeira festa levavam as cores nacionais, mas no

    levavam a bandeira nacional. A festa era popular. A bandeira brasileira fez sua apario

    hegemnica nas festividades de 1970, quando a vitria foi identificada com a ao do Estado e se

    transformou em festa cvica.

    Essas diferenas no so pequenas, porm no so suficientes para impedir que, sob duas

    formas aparentemente diversas, permanea o mesmo fundo, o verdeamarelismo.

    O QUE O VERDEAMARELISMO?7

    O verdeamarelismo foi elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira como

    imagem celebrativa do pas essencialmente agrrio e sua construo coincidem com o perodo em

  • 21

    que o princpio da nacionalidade era definido pela extenso do territrio e pela densidade

    demogrfica. De fato, essa imagem visava legitimar o que restara do sistema colonial e a hegemonia

    dos proprietrios de terra durante o Imprio e o incio da Repblica (1889). Como explica Caio

    Prado Jr.:

    Se vamos essncia de nossa formao, veremos que na realidade nos constitumos para fornecer

    acar, tabaco, alguns outros gneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodo e, em seguida, caf,

    para o comrcio europeu. Nada mais que isto. com tal objetivo [...] que se organizaro a sociedade e a

    economia brasileiras. Tudo se dispor naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do pas.8

    Ou como nos diz Fernando Novais:

    A colonizao guardou em sua essncia o sentido de empreendimento comercial donde proveio, a no-

    existncia de produtos comercializveis levou sua produo, e disto resultou a ao colonizadora [...]. A

    colonizao moderna, portanto, [...] tem uma natureza' essencialmente comercial: produzir para o

    mercado externo, fornecer produtos tropicais e metais nobres economia europia [...] apresenta-se como

    pea de um sistema, instrumento da acumulao primitiva da poca do capitalismo mercantil.9

    O pas essencialmente agrrio, portanto, era, na verdade, o pas historicamente articulado

    ao sistema colonial do capitalismo mercantil e determinado pelo modo de produo capitalista a ser

    uma colnia de explorao e no uma colnia de povoamento. A primeira tem urna economia

    voltada para o mercado externo metropolitano e a produo se organiza na grande propriedade

    escravista, enquanto na segunda a produo se processa mais em funo do prprio consumo

    interno da colnia, onde predomina a pequena propriedade. Em outras palavras, a colnia de

    povoamento aquela que no desperta o interesse econmico da metrpole e permanece margem

    do sistema colonial, enquanto a colnia de explorao est ajustada s exigncias econmicas do

    sistema.

    Em suma, o verdeamarelismo parece ser a ideologia daquilo que Paul Singer chama de

    dependncia consentida:

    Depois que a Amrica Latina se tornou independente, os donos das terras, das minas, do gado etc.

    tornaram-se, em cada pas, a classe dominante, tendo ao seu lado uma elite de comerciantes e

    financistas que superintendia os canais que ligavam atividades agrcolas e/ou extrativas. A nova classe

    dominante via na dependncia de seus pases dos pases capitalistas adiantados [...] o elo que os ligava

    civilizao, da qual se acreditavam os nicos e autnticos representantes [...]. Assim, justo apelidar esta

    situao que se criou com a independncia e que durou, em geral, at a Primeira Guerra Mundial de

    dependncia consentida. Ela se caracterizava pela ausncia de qualquer dinmica interna capaz de

    impulsionar o desenvolvimento. [...] Sob a forma do capital pblico ou privado, o desenvolvimento da

    infra-estrutura de servios dependia diretamente do que cada regio conseguia colocar no mercado

    mundial. Essa realidade era compreendida e aceita pelo conjunto da sociedade.10

    Nessa poca, quando a classe dominante falava em progresso ou em melhoramento,

    pensava no avano das atividades agrrias e extrativas, sem competir com os pases metropolitanos

    ou centrais, acreditando que o pas melhoraria ou progrediria com a expanso dos ramos

    determinados pela geografia e pela geologia, que levavam a urna especializao racional em que

    todas as atividades econmicas eram geradoras de lucro, utilidade e bem-estar. Donde a expresso

    ideolgica dessa classe aparecer no otimismo da exaltao da Natureza e do tipo nacional pacfico

  • 22

    e ordeiro. Alm disso, corno lembra Celso Furtado, no momento em que a diviso internacional do

    trabalho especializa alguns pases na atividade agrrio-exportadora, h urna expanso econmica

    cujo excedente no investido em atividades produtivas e sim dirigido ao consumo das classes

    abastadas, que faziam do consumo de luxo um instrumento para marcar a diferena social e o fosso

    que as separava do restante da populao. A essa expanso e a esse consumo, a classe dominante

    deu o nome e progresso.

    O que parece surpreendente, portanto, o fato de que o verdeamarelismo se tenha

    conservado quando parecia j no haver base material para sustent-lo. Ou seja, se ele foi a

    ideologia dos senhores de terra do sistema colonial, do Imprio e da Repblica Velha, deveramos

    presumir que desaparecesse por ocasio do processo de industrializao e de urbanizao. Seria

    perfeitamente plausvel imaginar que desaparecesse quando as duas guerras mundiais desfizeram

    as bases da diviso internacional do trabalho e do mercado mundial de capitais, cada nao

    fazendo um mnimo de importaes, voltando-se para o mercado interno, com estmulo

    substituio das importaes pela produo local das mercadorias e colocando urna burguesia

    urbana industrial, comercial e financeira na hegemonia do processo histrico. No foi o caso.

    No que no tenha havido tentativas para abandonar o verdeamarelismo. Houve, podemos,

    brevemente, lembrar, no entre-guerras, o esforo demolidor feito pelo Modernismo, quando, entre

    1920 e 1930, se processa o primeiro momento da industrializao, em So Paulo, e se prepara o

    rearranjo da composio de foras das classes dominantes, com a entrada em cena da burguesia

    industrial. No entanto, no se pode tambm deixar de lembrar que, significativamente, um grupo

    modernista criar o verdeamarelismo corno movimento cultural e poltico e dele sair tanto o apoio

    ao nacionalismo da ditadura Vargas ( o caso da obra do poeta prosador Cassiano Ricardo) corno a

    verso brasileira do fascismo, a Ao Integralista Brasileira, cujo expoente o romancista Plnio

    Salgado.

    Podemos tambm mencionar a tentativa de afastar o nacionalismo do pas essencialmente

    agrrio com a elaborao de uma nova ideologia, o nacionalismo desenvolvimentista, feita pelo

    Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)11, nos anos 1950, no perodo da industrializao

    promovida pelo governo Kubitschek. Se mantivermos a periodizao de Hobsbawm, os trabalhos do

    ISEB correspondem ao perodo em que a idia de nao constru da como questo nacional

    vinculada conscincia nacional das classes sociais. E se usarmos nossa periodizao, estaremos

    no momento de passagem da ideologia do carter nacional para a da identidade nacional.

    Conservando a terminologia proposta por Paul Singer10, a fabricao da ideologia nacional-

    desenvolvimentista se d no momento da passagem da dependncia consentida para a

    dependncia tolerada, quando a classe dominante, dependendo dos pases centrais

    industrializados para obter equipamentos, tecnologia e financiamentos, julga essa situao

    essencialmente provisria, a ser superada to logo a industrializao fizesse a economia

    emparelhar com a mais adiantada e o desenvolvimento almejado pela periferia destinava-se a

    revogar a diviso colonial do trabalho que a inferiorizava perante o centro. Nessas circunstncias,

    era compreensvel o esforo para desmontar o verdeamarelismo, pois ele significava, justamente, o

    atraso que se pretendia superar. No entanto, como veremos mais adiante, de maneira difusa e

    ambgua, o verdeamarelismo permaneceu.

    Enfim, no demais lembrar ainda, no final dos anos 1950 e incio dos anos 1960 (durante o

    governo de Jango Goulart), a tentativa de desmontar o imaginrio verde-amarelo com a ao

  • 23

    cultural das esquerdas, que, na perspectiva da identidade nacional, focalizavam a luta de classes

    (ainda que na expectativa de uma revoluo burguesa que uniria burguesia nacional e vanguarda

    do proletariado) e enfatizavam o nacional-popular nos Centros Populares de Cultura (CPCs), no

    novo teatro, de inspirao brechtiana, e no cinema Novo. E no menos significativas na recusa do

    verdeamarelismo foram a ironia corrosiva do Tropicalismo, no final dos anos 1960 e incio dos anos

    1970 (durante o perodo do milagre brasi1eiro, promovido pela ditadura), e.a poesia e msica de

    protesto, a nova MPB, no correr dos anos 70 e incio dos 80.

    No entanto, nem os modernistas, nem o ISEB, nem os CPCs, nem o Cinema Novo, nem o

    Tropicalismo, nem a MPB de protesto conseguiram aniquilar a imagem verde-amarela, que se

    consolidou e brilha inclume naquela outra imagem, doravante apropriada pela contempornea

    indstria do turismo: caf, futebol e carnaval, made in Brazil.

    Essa permanncia no casual nem espontnea, visto que a industrializao jamais se

    tornou o carro-chefe da economia brasileira como economia capitalista desenvolvida e

    independente. Na diviso internacional do trabalho, a industrializao se deu por transferncia de

    setores industriais internacionais para o Brasil, em decorrncia do baixo custo da mo-de-obra, e o

    setor agrrio-exportador jamais perdeu fora social e poltica. Se antes o verdeamarelismo

    correspondia auto-imagem celebrativa dos dominantes, agora ele opera como compensao

    imaginria para a condio perifrica e subordinada do pas. Alm disso, justamente porque aquele

    era o perodo da questo nacional, houve a ao deliberada do Estado na promoo da imagem

    verde-amarela.

    De fato, apesar do Modernismo cultural dos anos 20-30, durante o Estado Novo (1937-45), a

    luta contra a disperso e a fragmentao do poder enfeixado pelas oligarquias estaduais (ou a

    chamada poltica dos governadores) e a afirmao da unidade entre Estado e nao, corporificados

    no chefe do governo, levaram, simbolicamente, queima das bandeiras estaduais e

    obrigatoriedade do culto bandeira e ao hino nacionais nas escolas de todos os graus. dessa

    poca a exigncia legal de que as escolas de samba utilizassem temas nacionais em seus enredos12.

    Num governo de estilo fascista e populista, o Estado passou a usar diretamente os meios de

    comunicao, com a compra de jornais e de rdios (como a Rdio Nacional do Rio de Janeiro) e com

    a transmisso da Hora do Brasil. Esta possua trs finalidades: informativa, cultural e cvica.

    Divulgava discursos oficiais e atos do governo, procurava estimular o gosto pelas artes populares e

    exaltava o patriotismo, rememorando os feitos gloriosos do passado. Mas no s isso. Os

    programas deviam tambm decantar as belezas naturais do pas, descrever as caractersticas

    pitorescas das regies e cidades, irradiar cultura, enaltecer as conquistas do homem em todas as

    atividades, incentivar relaes comerciais e, voltando-se para o homem do interior, contribuir para

    seu desenvolvimento e sua integrao na coletividade nacional. dessa poca a Aquarela do

    Brasil (de Ary Barroso), que canta as belezas naturais, mas tambm o Brasil brasileiro, isto , o

    mulato inzoneiro, os olhos verdes da mulata, o samba, o Brasil lindo e trigueiro. No casual

    que a mesma poca que ouvia a Aquarela do Brasil tambm lia a Marcha para o Oeste, de

    Cassiano Ricardo, para quem o Brasil era um escndalo de cores, escrevendo: Parece que Deus

    derramou tinta por tudo, cu de anil, flores e pssaros em que gritam o amarelo avermelhado do

    sol e do ouro, riquezas fabulosas e todas as cores raciais, na paisagem humana.

    Esses elementos so indicadores seguros da presena do verdeamarelismo. Sua funo,

    porm, deslocou-se. Com efeito, se compararmos o verdeamarelismo desse perodo com outras

  • 24

    expresses anteriores (como o nativismo romntico, do sculo XIX, e o ufanismo do incio do sculo

    XX), notaremos que, antes, a nfase recaa sobre a Natureza, e, agora, algo mais apareceu. De fato,

    no se tratava apenas de manter a celebrao da Natureza e sim de introduzir na cena poltica uma

    nova personagem: o povo brasileiro. Dada a inspirao fascista da ditadura Vargas, afirmava-se que

    o verdadeiro Brasil no estava em modelos europeus ou norte-americanos, mas no nacionalismo

    erguido sobre as tradies nacionais e sobre o nosso povo. Dessas tradies, duas eram

    sublinhadas: a unidade nacional, conquistada no perodo imperial - o que levou o Estado Novo a

    transformar Caxias, sol dado do Imprio, em heri nacional da Repblica -, e a ao civilizatria dos

    portugueses, que introduziram a unidade religiosa e de lngua, a tolerncia racial e a mestiagem,

    segundo a interpretao paternalista oferecida pela obra de Gilberto Freyre, Casa-Brande e senzala.

    Em outras palavras, sublinham-se os dois elementos do princpio da nacionalidade, que vimos

    anteriormente. No entanto, estamos tambm na poca da questo nacional e por isso uma

    novidade comparece na definio do povo. Embora seja mantidas a tese da democracia racial e a

    imagem do povo mestio, mescla de trs raas, agora, porm, povo , sobretudo, de um lado, o

    bandeirante ou sertanista desbravador do territrio e, de outro, os pobres, isto , os trabalhadores

    do Brasil.

    Em outras palavras, o verdeamarelismo, sob a ideologia da questo nacional, precisa

    incorporar a luta de classes em seu iderio, mas de modo tal que, ao admitir a existncia da classe

    trabalhadora, possa imediatamente neutralizar os riscos da ao poltica dessa classe, o que feito

    no s pela legislao trabalhista (inspirada no corporativismo da Itlia fascista) e pela figura do

    governante como pai dos pobres, mas tambm por sua participao no carter nacional, isto ,

    como membro da famlia brasileira, generosa, fraterna, honesta, ordeira e pacfica. O

    verdeamarelismo assegura que aqui no h lugar para luta de classes e sim para a cooperao e a

    colaborao entre o capital e o trabalho, sob direo e vigilncia do Estado.

    Convm tambm no esquecermos que o pan-americanismo, institudo pelo Departamento de

    Estado norte-americano durante os anos da Segunda Guerra Mundial (1939-45), promoveu a

    amizade entre os povos americanos e transformou Carmem Miranda em embaixadora da boa-

    vontade, obrigando-a, com contratos de trabalho abusivos que estipulavam seu vesturio e suas

    falas, a difundir a imagem telrica e alegre do Brasil, cuja capital era Buenos Aires e c msica era

    mescla de samba, rumba, tango, conga e salsa. Para acompanh-la, estdios de Walt Disney

    criaram o papagaio malandro, Z Carioca.

    Sem dvida, terminada a guerra e entrado o pas na poca da dependncia tolerada, os anos

    50 do sculo XX viram surgir como imagem emblemtica do pas a cidade de So Paulo, em cujo IV

    Centenrio (em janeiro de 1954) comemorava-se a cidade que mais cresce no mundo, pois So

    Paulo no pode parar, de tal maneira que a fora do capital industrial deveria levar a uma

    transformao ideolgica na qual o desenvolvimento econmico apareceria como obra dos homens e

    deixaria para trs o pas como ddiva de Deus e da Natureza. E o suicdio de Vargas, em agosto de

    1954, faria supor que o verdeamarelismo estava enterrado para sempre. Durante os anos 50, o

    desenvolvimentismo teve como mote a mudana da ordem dentro da ordem, para significar que o

    pas, diminuindo o poder e o atraso do latifndio e da burguesia mercantil (parasita alienados) e

    neutralizando os perigos trazidos pela classe operria (massa popular atrasada e alienada), se

    tornaria um igual no concerto das naes. Entramos, assim, no perodo da identidade nacional e

    da conscincia nacional, se acompanharmos a periodizao de Hobsbawm.

  • 25

    No entanto, a imagem verdeamarela13 permaneceu e isso por dois motivos principais: em

    primeiro lugar, ela permitia enfatizar que o pas possua recursos prprios para o desenvolvimento e

    que a abundncia da matria-prima e de energia baratas vinha justamente de sermos um pas de

    riquezas naturais inesgotveis; em segundo lugar, ela assegurava que o mrito do

    desenvolvimentismo se encontrava na destinao do capital e do trabalho para o mercado interno e,

    portanto, para o crescimento e o progresso da nao contra o imperialismo ou a antinao. Todavia,

    o verdeamarelismo tradicional - o da rica e bela natureza tropical e o do povo ordeiro e pacfico, ou o

    do carter nacional - sofreu um forte abalo, pois passou a ser visto pelos promotores do nacional-

    desenvolvimentismo como signo da alienao social dos setores atrasados das classes dominantes

    e das massas populares, obstculo contra o desenvolvimento econmico e social, que seria obra da

    burguesia nacional industrial moderna e das classes mdias conscientes, encarregadas de

    conscientizar as massas.

    Desse modo, o verdeamarelismo comparecia sob duas roupagens antagnicas: numa delas,

    ele exprimia a maneira ingnua e alienada com que se manifesta o nacionalismo natural e

    espontneo das massas, as quais, dessa maneira, reconhecem as potencialidades do pas para

    passar da pobreza e do atraso ao desenvolvimento e modernidade. Na outra, ele era o signo da

    prpria alienao social, produzida pela classe dominante do perodo colonial e imperial e difundida

    por uma classe mdia parasitria, caudatrio da imagem que os imperialistas ou as metrpoles

    inventaram e que os nacionais, alienados, imitaram e prosseguiram. Para muitos, tratava-se de

    substituir o nacionalismo espontneo, alienado e inautntico por um nacionalismo crtico,

    consciente e autntico, o nacional-popular, graas ao qual o setor avanado da burguesia nacional

    e o setor consciente do proletariado, unidos, combateriam o colonialismo e o imperialismo,

    realizando o desenvolvimento nacional e dando realidade ao ser do brasileiro, identidade

    nacional.

    Se, em meados dos anos 50 e incio dos anos 60, o verdeamarelismo foi um pano de fundo

    difuso e ambguo, significando nacionalismo espontneo e alienao, em contrapartida foi

    revitalizado e reforado nos anos da ditadura (1964-1985) ou do Brasil Grande. Essa reposio

    verde amarela no surpreendente.

    Antes de mais nada, lembremos que a derrubada do governo de Jango Goulart preparada

    nas ruas com o movimento Tradio, famlia e propriedade para significar que as esquerdas so

    responsveis pela desagregao da nacionalidade cujos valores - a tradio, a famlia e a

    propriedade privada - devem ser defendidos a ferro e fogo. Todavia, no essa a mais forte razo

    para a manuteno do verdeamarelismo e sim a ideologia geopoltica do Brasil Potncia 2000, cujo

    expositor mais importante foi o general Golbery do Couto e Silva.

    Se, como no IV Centenrio de So Paulo, a exibio das grandes cidades, coalhadas de

    arranha-cus e vias expressas (mas, agora, em preito de gratido pelo apoio financeiro e logstico

    que as grandes empreiteiras deram obra da represso militar), interligadas por auto-estradas

    nacionais, devia oferecer a imagem do Brasil Grande, apto a receber os investimentos internacionais

    e a acolher as empresas multinacionais, agora, porm, essa imagem encontrava seu fundamento na

    ideologia geopoltica do Brasil Potncia 2000, que tem na vastido do territrio, nas riquezas

    naturais e nas qualidades pacficas, empreendedoras e ordeiras do povo os elementos para cumprir

    sua destinao.

  • 26

    Essa ideologia assenta-se em cinco pilares: 1) a relao mecnica de convenincia entre as

    foras do territrio e as disposies nacionais; 2) a consubstanciao entre o povo e o territrio,

    que comea pela demarcao das fronteiras nas quais se desenvolver a personalidade nacional;

    3) a refrao do povo sobre o territrio, isto , a transformao dos valores objetivos do territrio em

    valores subjetivos da alma ou personalidade nacional, graas ao que o Estado se torna orgnico e

    nacional; 4) a fronteira ideal, isto , o territrio completo, prometido ao povo pela ao militar e

    econmica; 5) a geopoltica como conscincia poltica do Estado, que se alia ao centro dinmico da

    sua regio (no caso, aos Estados Unidos) e da qual emana o sistema de alianas e de conflitos leste-

    oeste, norte-sul. esse o territrio dos 90 milhes em ao.

    A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si mesma trs tarefas: a integrao

    nacional (a consolidao da nao contra sua fragmentao e disperso em interesses regionais), a

    segurana nacional (contra o inimigo interno e externo, isto , a ao repressiva do Estado na luta

    de classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes das naes democrticas ocidentais crists,

    isto , capitalistas). A difuso dessas idias foi feita nas escolas com a disciplina de educao moral

    e cvica, na televiso com programas como Amaral Neto, o reprter e os da Televiso Educativa, e

    pelo rdio por meio da Hora do Brasil e do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetizao),

    encarregado, de um lado, de assegurar mo-de-obra qualificada para o novo mercado de trabalho e,

    de outro, de destruir o Mtodo Paulo Freire de alfabetizao.

    Assim, da Copa do Mundo de 1958 de 1970, o verdeamarelismo, se no permaneceu intacto

    em todos os seus aspectos, manteve-se como representao interiorizada da populao brasileira

    que, sem distino de classe, credo e etnia, o conserva mesmo quando as condies reais o

    desmentem.

    interessante observar que o verdeamarelismo opera com uma dualidade ambgua. De fato, o

    Brasil de que se fala , simultaneamente, um dado ( um dom de Deus e da Natureza) e algo por

    fazer (o Brasil desenvolvido, dos anos 50; o Brasil grande, dos anos 70; o Brasil moderno, dos anos

    80 e 90). Assim, na perspectiva verde-amarela, o sujeito da ao triplo: Deus e a Natureza so os

    dois primeiros, e o agente do desenvolvimento, da grandeza ou da modernizao o Estado. Isto

    significa que o Brasil resulta da ao de trs agentes exteriores sociedade brasileira: os dois

    primeiros so no s exteriores, mas tambm anteriores a ela; o terceiro, o Estado, tender por isso

    a ser percebido com a mesma exterioridade e anterioridade que os outros dois, percepo que, alis,

    no descabida quando se leva em conta que essa imagem do Estado foi construda no perodo

    colonial e que a colnia teve sua existncia legal determinada por ordenaes do Estado

    metropolitano, exterior e anterior a ela. surpreendente, porm, que essa imagem do Estado se

    tenha conservado mesmo depois de proclamada a Repblica.

    De fato, curiosa a permanncia dessa figura do Estado (como sujeito que antecede a nao e

    a constitui) no momento em que se encerra o perodo colonial e a poca imperial luso-brasileira.

    Com efeito, no perodo colonial, como lembra Raymundo Faoro, a realidade criada pela lei e pelo

    regulamento, isto , desde o primeiro sculo da histria brasileira, a realidade se faz e se constri

    com decretos, alvars e ordens rgias. A terra inculta e selvagem [...] recebe a forma do alto e de

    longe, com a ordem administrativa da metrpole14. Se, para uma colnia, o Estado anterior e

    exterior sociedade, no pode ser esta a situao de uma Repblica independente. Em outras

    palavras, seria de esperar que, com a Repblica, a interioridade do Estado nao se tornasse

  • 27

    evidente, pois teria sido a nao o sujeito que proclamou a Repblica e instituiu o Estado brasileiro.

    Paradoxalmente, porm, a imagem do lugar do Estado no se alterou.

    De fato, embora a Proclamao da Repblica seja antecedida e sucedida por afirmaes dos

    vrios partidos polticos como um acontecimento que responderia aos anseios da sociedade e da

    nao, ou, ao contrrio, que se oporia a tais anseios, e ainda que por anseios da nao ora se

    entendessem as reivindicaes liberais de no-interveno estatal na economia, ora a afirmao de

    conservadores e de positivistas sobre a necessidade dessa interveno, em qualquer dos casos a

    Repblica foi vista por seus agentes e por seus inimigos como uma reforma do Estado. Assim,

    histrica ou materialmente, a Repblica exprime a realidade concreta de lutas socioeconmicas e os

    rearranjos de poder no interior da classe dominante, s voltas com o fim da escravido, com o

    esgotamento dos engenhos com os pedidos de subveno estatal para a imigrao promovida por

    uma parte dos cafeicultores, com a expanso da urbanizao e a percepo de que o pai precisava

    ajustar-se conjuntura internacional da revoluo industrial; portanto se, de fato, a Repblica o

    resultado de uma ao social e poltica, todavia no assim que ideologicamente ela aparece.

    No plano ideolgico, ela aparece no como instituio do Estado pela sociedade e sim como

    reforma de um Estado j existente. E ela aparece assim porque essa apario aquela que

    corresponde ao que seus agentes e adversrios esperam da Repblica. Os liberais esperam que a

    separao entre Estado e sociedade seja finalmente, conseguida e no lhes interessa considerar a

    Repblica uma expresso da prpria sociedade porque isso poderia estimular a perspectiva

    intervencionista do Estado. Como vimos, o liberalismo no podia furtar-se a admitir as

    convenincias de um Estado nacional, mas teoricamente preferia reduzi-lo expresso de uma

    evoluo natural da famlia ao Estado e sua utilidade para o progresso, isto , para a competio

    econmica. Em contrapartida, conservadores e positivistas esperavam que justamente intervindo na

    sociedade, o Estado, pudesse, enfim, fazer surgir a nao como territrio unificado e submetido a,

    mesmo cdigo legal, com unidade de lngua, raa, religio e costumes. Exterior sociedade, no caso

    dos liberais, e anterior nao e seu institui dor, no caso de conservadores e positivistas, o Estado

    republicano, cuja realidade concreta ou social permanece oculta, , portanto, percebido como,

    antes, era percebida a Coroa portuguesa (veja box).

    LIBERALISMO E POSITIVISMO NO BRASIL

    Para entendermos o que representavam o liberalismo e o positivismo no Brasil do final do sculo XIX e

    incio do sculo XX, vejamos algumas observaes de Alfredo Bosi em sua obra Dialtica da colonizao.

    De acordo com este autor, liberal significava conservador das liberdades (liberdades, por seu turno,

    significavam: liberdade de produzir, vender e comprar, conquistada com o fim do monoplio econmico

    da Coroa portuguesa; liberdade para fazer-se representar politicamente, por meio de eleies censitrias,

    isto , reservadas aos que preenchiam as condies para ser cidado, ou seja, a propriedade ou

    independncia econmica; liberdade para submeter o trabalhador escravo mediante coao jurdica) e

    capaz de adquirir novas terras em regime de livre concorrncia. Como se nota, no havia nenhuma

    incompatibilidade entre ser liberal e senhor de escravos ou em ser liberal e monarquista constitucional,

    no havendo uma conexo necessria entre liberalismo e abolicionismo e liberalismo e republicanismo.

    Quanto ao positivismo, que se desenvolve, sobretudo no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul,

    conservavam de Auguste Comte duas idias principais sobre o Estado: a de que cabe ao organismo

  • 28

    estatal realizar a economia poltica, isto , controlar a anarquia econmica; e a de realizar a integrao e

    a harmonia das classes sociais, particularmente o proletariado. O Estado o crebro da nao que,

    regulando e controlando os movimentos e funes de cada rgo, no permite que um se sobreponha a

    outros. Ordem e progresso (palavras inscritas na bandeira nacional) so o lema prprio do positivismo

    comteano. Os positivistas brasileiros, sobretudo os que se agruparam no PRP (Partido Republicano

    Popular), defendiam: 1) o imposto territorial; o Estado, portanto, tributando a terra; 2) a concesso de

    isenes fiscais para as manufaturas locais incipientes; 3) a estatizao dos servios pblicos; 4) a

    incorporao da massa trabalhadora (ou os proletrios) sociedade por meio de rgos corporativos e

    com a mediao do Estado nos conflitos entre capital e trabalho, protegendo os pobres do interesse

    egosta dos ricos, como propusera Comte.

    Do ponto de vista do que nos interessa aqui, ou seja, no o da produo histrica ou material

    concreta da nao e sim o da construo ideolgica do semiforo nao, a dualidade dos agentes

    (Deus e Natureza, de um lado, e Estado de outro), constitutiva do verdeamarelismo, no apenas

    explicvel, mas necessria. De fato, vimos que com o princpio da nacionalidade, a idia nacional

    e a questo nacional, o poder poltico constri o semiforo nao na disputa com outros poderes:

    os partidos polticos (sobretudo os de esquerda), religio (ou as igrejas) e o mercado (ou o poder

    econmico privado). Assim, no gratuito nem misterioso que as falas e as aes do Estado

    brasileiro pouco a pouco se orientassem no sentido de dar consistncia ao semiforo que lhe

    prprio, a nao brasileira. Em segundo lugar, como tambm observamos, o campo de construo

    de um semiforo mtico e, neste caso, tambm no nos deve espantar que os agentes fundadores

    da nao brasileira sejam Deus e a Natureza, pois so considerados os criadores da terra e do

    povo brasileiros. Ideologicamente, portanto, o Estado institui a nao sobre a base da ao criadora

    de Deus e da Natureza. Essa ideologia, como veremos, nada mais faz do que mantm vivo o mito

    fundador do Brasil.

  • 29

    DO IV AO V CENTENRIO

    Porque estamos falando em mito, convm relembrarmos a primeira reatualizao de nosso

    mito fundador, ocorrida significativamente em 1900, por ocasio do IV centenrio da descoberta do

    Brasil, com a publicao do livro de Afonso Celso, visconde de Ouro Preto, Porque me ufano de meu

    pas.15

    Para entendermos esse livro precisamos considerar, em primeiro lugar, quem o autor, em

    segundo, qual o momento da redao e, em terceiro, quais os antecedentes do opsculo.

    Quem o autor? Porque me ufano de meu pas teve incontveis edies - em 1944, era

    publicada a 12 edio e, em 1997, Joo de Scatimburgo, ocupante da cadeira Afonso Celso na

    Academia Brasileira de Letras, o fez reimprimir; lembrando que, em seu tempo de escola, o livro era

    leitura obrigatria no 4 ano primrio, e lastimando que, mais tarde, houvesse sido deixado no

    esquecimento, o fez republicar para servir s novas geraes como brevirio de patriotismo.

    Republicano na monarquia e monarquista aps a Proclamao da Repblica, Afonso Celso, catlico

    nutrido do Catecismo do Conclio de Trento, filho submisso da Santa Madre Igreja, nobilitado com o

    ttulo de conde por Sua Santidade Pio X, de veneranda memria, foi membro e presidente do

    Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, criado em 1838-39.

    Em que circunstncias escrito o livro? Quando escreve Porque me ufano de meu pas, Afonso

    Celso tem dia