chauÍ, marilena. mito fundador e sociedade autoritária
TRANSCRIPT
-
MARILENA CHAU
BRASIL
Mito fundador e sociedade autoritria
1 edio: abril de 2000
2 reimpresso: outubro de 2001
Reviso
Maurcio Balthazar Leal
Vera Lcia Pereira
-
2
SUMRIO
COM F E ORGULHO 3
A NAO COMO SEMIFORO 7
O VERDEAMARELISMO 20
DO IV AO V CENTENRIO 29
O MITO FUNDADOR 35
COMEMORAR? 55
NOTAS E REFERNCIAS 60
BIBLIOGRAFIA 62
-
3
COM F E ORGULHO
Ama com f e orgulho a terra em que nasceste.
Criana! Jamais vers pais nenhum como este.
Olha que cu, que mar, quej1oresta!
A natureza aqui perpetuamente em festa
um seio de me a transbordar carinhos.
[...]
Imita na grandeza a terra em que nasceste.
OLAVO BILAC
Na escola, todos ns aprendemos o significado da bandeira brasileira: o retngulo verde
simboliza nossas matas e riquezas florestais, o losango amarelo simboliza nosso ouro e nossas
riquezas minerais, o crculo azul estrelado simboliza nosso cu, onde brilha o Cruzeiro do Sul,
indicando que nascemos abenoados por Deus, e a faixa branca simboliza o que somos: um povo
ordeiro em progresso. Sabemos por isso que o Brasil um gigante pela prpria natureza, que
nosso cu tem mais estrelas, nossos bosques tm mais flores e nossos mares so mais verdes.
Aprendemos que por nossa terra passa o maior rio do mundo e existe a maior floresta tropical do
planeta, que somos um pas continental cortado pela linha do Equador e pelo trpico de
Capricrnio, o que nos faz um pas de contrastes regionais cuja riqueza natural e cultural
inigualvel. Aprendemos que somos um dom de Deus e da Natureza porque nossa terra
desconhece catstrofes naturais (ciclones, furaces, vulces, desertos, nevascas, terremotos) e que
aqui, em se plantando, tudo d.
Todos ns fazemos nossas as palavras daquele que considerado o primeiro historiador
brasileiro do Brasil, Rocha Pita, quando, em 1730, escreveu:
Em nenhuma outra regio se mostra o cu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em
nenhum outro hemisfrio tem raios to dourados, nem os reflexos noturnos to brilhantes; as estrelas
so mais benignas e se mostram sempre alegres [...] as guas so mais puras; enfim o Brasil Terreal
Paraso descoberto, onde tm nascimento e curso os maiores rios; domina salutfero o clima; influem
benignos astros e respiram auras suavssimas, que o fazem frtil e povoado de inumerveis habitadores.1
Sabemos todos que somos um povo novo, formado pela mistura de trs raas valorosas: os
corajosos ndios, os esticos negros e os bravos e sentimentais lusitanos. Quem de ns ignora que
da mestiagem nasceu o samba, no qual se exprimem a energia ndia, o ritmo negro e a melancolia
portuguesa? Quem no sabe que a mestiagem responsvel por nossa ginga, inconfundvel marca
dos campees mundiais de futebol? H quem no saiba que, por sermos mestios, desconhecemos
preconceito de raa, cor, credo e classe? Afinal, Nossa Senhora, quando escolheu ser nossa
padroeira, no apareceu negra?
Aprendemos tambm que nossa histria foi escrita sem derramamento de sangue, com
exceo de nosso Mrtir da Independncia, Tiradentes; que a grandeza do territrio foi um feito da
bravura herica do Bandeirante, da nobreza de carter moral do Pacificador, Caxias, e da agudeza
-
4
fina do Baro do Rio Branco; e que, forados pelos inimigos a entrar em guerras, jamais passamos
por derrotas militares. Somos um povo que atende ao chamamento do pas e que diz ao Brasil: Mas
se ergues da justia a clava forte/ Vers que um filho teu no foge luta/ Nem teme quem te adora
a prpria morte. No tememos a guerra, mas desejamos a paz. Em suma, somos um povo bom,
pacfico e ordeiro, convencido de que no existe pecado abaixo do Equador.
Duas pesquisas recentes de opinio, realizadas em 1995, uma delas pelo Instituto Vox Populi
e a outra pelo Centro de Pesquisa e Documentao da Fundao Getlio Vargas, indagaram se os
entrevistados sentiam orgulho de ser brasileiros e quais os motivos para o orgulho. Enquanto quase
60% responderam afirmativamente, somente 4% disseram sentir vergonha do pas. Quanto aos
motivos de orgulho, foram enumerados, em ordem decrescente: a Natureza, o carter do povo, as
caractersticas do pas, esportes/msica/ carnaval. Quanto ao povo brasileiro, de quem os
entrevistados se sentem orgulhosos, para 50% deles a imagem apresentava os seguintes traos,
tambm em ordem decrescente: trabalhador/lutador, alegrei divertido, conformado/ solidrio e
sofredor.
Mesmo que no contssemos com pesquisas, cada um de ns experimenta no cotidiano a
forte presena de uma representao homognea que os brasileiros possuem do pas e de si
mesmos. Essa representao permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na
indivisibilidade da nao e do povo brasileiros, e, em outros momentos, conceber a diviso social e a
diviso poltica sob a forma dos amigos da nao e dos inimigos a combater, combate que
engendrar ou conservar a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais. Eis por que
algumas pesquisas de opinio indicam que uma parte da populao atribui os males do pas
colonizao portuguesa, presena dos negros ou dos asiticos e, evidentemente, aos maus
governos, traidores do povo e da ptria. Nada impede, porm, que em outras ocasies o inimigo seja
o gringo explorador ou alguma potncia econmica estrangeira. A representao suficientemente
forte e fluida para receber essas alteraes que no tocam em seu fundo.
H, assim, a crena generalizada de que o Brasil: 1) um dom de Deus e da Natureza; 2)
tem um povo pacfico, ordeiro\generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor; 3) um pas
sem preconceitos ( raro o emprego da expresso mais sofisticada democracia racial),
desconhecendo discriminao de raa e de credo, e praticando a mestiagem como padro
fortificador da raa; 4) um pas acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar e, aqui, s no
melhora e s no progride quem no trabalha, no havendo por isso discriminao de classe e sim
repdio da vagabundagem, que, como se sabe, a me da delinqncia e da violncia; 5) um pas
dos contrastes regionais, destinado por isso pluralidade econmica e cultural. Essa crena se
completa com a suposio de que o que ainda falta ao pas a modernizao -isto , uma economia
avanada, com tecnologia de ponta e moeda forte -, com a qual sentar-se- mesa dos donos do
mundo.
A fora persuasiva dessa representao transparece quando a vemos em ao, isto , quando
resolve imaginariamente uma tenso real e produz uma contradio que passa despercebida.
assim, por exemplo, que algum pode afirmar que os ndios so ignorantes, os negros so
indolentes, os nordestinos so atrasados, os portugueses so burros, as mulheres so naturalmente
inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo
sem preconceitos e uma nao nascida da mistura de raas. Algum pode dizer se indignado com a
existncia de crianas de rua, com as chacinas dessas crianas ou com o desperdcio de terras no
-
5
cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser
brasileiro porque somos um povo pacfico, ordeiro e inimigo da violncia. Em suma, essa
representao permite que uma sociedade que tolera a existncia de milhes de crianas sem
infncia e que, desde seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem
positiva de sua unidade fraterna.
Se indagarmos de onde proveio essa representao e de onde ela tira sua fora sempre
renovada, seremos levados em direo ao mito fundador do Brasil, cujas razes foram fincadas em
1500.
MITO FUNDADOR
Ao falarmos em mito, ns o tomamos no apenas no sentido etimolgico de narrao pblica
de feitos lendrios da comunidade (isto , no sentido grego da palavra mythos), mas tambm no
sentido antropolgico, no qual essa narrativa a soluo imaginria para tenses, conflitos e
contradies que no encontram caminhos para serem resolvidos no nvel da realidade.
Se tambm dizemos mito fundador porque, maneira de toda fundatio, esse mito impe um
vnculo interno com o passado como origem, isto , com um passado que no cessa nunca, que se
conserva perenemente presente e, por isso mesmo, no permite o trabalho da diferena temporal e
da compreenso do presente enquanto tal. Nesse sentido, falamos em mito tambm na acepo
psicanaltica, ou seja, como impulso repetio de algo imaginrio, que cria um bloqueio
percepo da realidade e impede lidar com ela.
Um mito fundador aquele que no cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas
linguagens, novos valores e idias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais
a repetio de si mesmo.
Insistimos na expresso mito fundador porque diferenciamos fundao e formao. Quando os
historiadores falam em formao, referem-se no s s determinaes econmicas, sociais e
polticas que produzem um acontecimento histrico, mas tambm pensam em transformao e,
portanto, na continuidade ou na descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos
temporais. Numa palavra, o registro da formao a histria propriamente dita, a includas suas
representaes, sejam aquelas que conhecem o processo histrico, sejam as que o ocultam (isto ,
as ideologias).
Diferentemente da formao, a fundao se refere a um momento passado imaginrio, tido
como instante originrio que se mantm vivo e presente no curso do tempo, isto , a fundao visa
a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe d sentido. A
fundao pretende situar-se alm do tempo, fora da histria, num presente que no cessa nunca
sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar. No s isso. A marca peculiar da
fundao a maneira como ela pe a transcendncia e a imanncia do momento fundador: a
fundao aparece como emanando da sociedade (em nosso caso, da nao) e, simultaneamente,
como engendrando essa prpria sociedade (ou a nao) da qual ela emana. por isso que estamos
nos referindo fundao como mito.
-
6
O mito fundador oferece um repertrio inicial de representaes da realidade e, em cada
momento da formao histrica, esses elementos so reorganizados tanto do ponto de vista de sua
hierarquia interna (isto , qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliao de
seu sentido (isto , novos elementos vm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as
ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histrico da formao, alimenta-se das
representaes produzidas pela fundao, atualizando-as para adequ-las nova quadra histrica.
exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente.
-
7
A NAO COMO SEMIFORO
Existem alguns objetos, animais, acontecimentos, pessoas e instituies que podemos
designar com o termo semiforo.2 So desse tipo as relquias e oferendas, os esplios de guerra, as
aparies celestes, os meteoros, certos acidentes geogrficos, certos animais, os objetos de arte, os
objetos antigos, os documentos raros, os heris e a nao.
Semeiophoros uma palavra grega composta de duas outras: semeion sinal ou signo, e p
oras, trazer para a rente, expor, carregar, rotar e pegar (no sentido que, em portugus,
dizemos que uma planta pegou, isto , refere-se fecundidade de alguma coisa). Um semeion
um sinal distintivo que diferencia uma coisa de outra, mas tambm um rastro ou vestgio deixado
por algum animal ou por algum, permitindo segui-lo ou rastre-lo, donde significar ainda as
provas reunidas a favor ou contra algum. Signos indicativos de acontecimentos naturais - como as
constelaes, indicadoras das estaes do ano -, sinais gravados para o reconhecimento de algum -
como os desenhos num escudo, as pinturas num navio, os estandartes -, pressgios e agouros so
tambm semeion. E pertence famlia dessa palavra todo sistema de sinais convencionados, como
os que se fazem em assemblias, para abri-las ou fech-las ou para anunciar uma deliberao.
Inicialmente, um semeiophoros era. a tabuleta na estrada, indicando o caminho; quando colocada
frente de um edifcio, indicava sua funo. Era tambm o estandarte carregado pelos exrcitos, para
indicar sua provenincia e orientar seus soldados durante a batalha. Como semforo, era um
sistema de sinais para a comunicao entre navios e deles com a terra. Como algo precursor,
fecundo ou carregado de pressgios, o semiforo era a comunicao com o invisvel, um signo vindo
do passado ou dos cus, carregando uma significao com conseqncias presentes e futuras para
os homens. Com esse sentido, um semiforo um signo trazido frente ou empunhado para indicar
algo que significa alguma outra coisa e cujo valor no medido por sua materialidade e sim por sua
fora simblica: uma simples pedra se for o local onde um deus apareceu, ou um simples tecido de
l, se for o abrigo usado, um dia, por um heri, possuem um valor incalculvel, no como pedra ou
como pedao de pano, mas como lugar sagrado ou relquia herica. Um semiforo fecundo porque
dele no cessam de brotar efeitos de significao.
Um semiforo , pois, um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma
instituio retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque
so coisas providas de significao ou de valor simblico, capazes de relacionar o visvel e o
invisvel, seja no espao, seja no tempo, pois o invisvel pode ser o sagrado (um espao alm de todo
espao) ou o passado ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade), e expostos
visibilidade, pois nessa exposio que realizam sua significao e sua existncia. um objeto de
celebrao por meio de cultos religiosos, peregrinaes a lugares santos, representaes teatrais de
feitos hericos, comcios e passeatas em datas pblicas festivas, monumentos; e seu lugar deve ser
pblico: lugares santos (montanhas, rios, lagos, cidades), templos, museus, bibliotecas, teatros,
cinemas, campos esportivos, praas e jardins, enfim, locais onde toda a sociedade possa
comunicar-se celebrando algo comum a todos e que conserva e assegura o sentimento de
comunho e de unidade.
-
8
Seramos tentados a dizer que, no modo de produo capitalista, no pode haver semiforos,
pois, no capitalismo, no h coisa alguma e pessoa alguma que escape da condio de mercadoria,
no tendo como ser retirado do circuito da circulao mercantil. Alm disso, vivemos num mundo
que, na clebre expresso de Max Weber, foi desencantado: nele no h mistrios, maravilhas,
portentos e prodgios inexplicveis pela razo humana, pois nele tudo se torna inteligvel por
intermdio do conhecimento cientfico e nele tudo acede racionalidade por intermdio da lgica do
mercado.
No menos importante para supormos que em nossas sociedades no pode haver lugar para
semiforos o fenmeno que Walter Benjamin denominou de perda da aura, isto , o efeito da
reproduo tcnica das obras de arte, dos objetos raros e dos lugares distantes: fotografias, filmes,
vdeos, hologramas despojam obras, objetos e lugares de um trao fundamental do semiforo, qual
seja, sua singularidade, aquilo que o faz precioso porque ele nico. No mundo da mercadoria no
h singularidades. No s os objetos so tecnicamente reproduzidos aos milhares como tambm se
tornam equivalentes a outras mercadorias, pelas quais podem ser trocados. No mundo da
mercadoria, coisas heterogneas perdem a singularidade e a raridade, tornam-se homogneas
porque so trocveis umas pelas outras e todas elas so trocveis pelo equivalente universal e
homogeneizador universal, o dinheiro.
A suposio da impossibilidade de semiforos na sociedade capitalista, porm, s surgiu
porque havamos deixado na sombra um outro aspecto decisivo dos semiforos, ou seja, que so
signos de poder e prestgio.
Embora um semiforo seja algo retirado do circuito da utilidade e esteja encarregado de
simbolizar o invisvel espacial ou temporal e de celebrar a unidade indivisa dos que compartilham
uma crena comum ou um passado comum, ele tambm posse e propriedade daqueles que detm
o poder para produzir e conservar um sistema de crenas ou um sistema de instituies que lhes
permite dominar um meio social. Chefias religiosas ou igrejas, detentoras do saber sobre o sagrado,
e chefias poltico-militares, detentoras do saber sobre o profano, so os detentores iniciais dos
semiforos. nesse contexto que a entrada da mercadoria e do dinheiro como mercadoria universal
pode acontecer sem destruir os semiforos e, mais do que isso, com a capacidade para fazer crescer
a quantidade desses objetos especiais.
Agora, a aquisio de semiforos se torna insgnia de riqueza e de prestgio, pois o semiforo
passa a ter uma nova determinao, qual seja, a de seu valor por seu preo em dinheiro. No s
isso. A hierarquia religiosa, a hierarquia poltica e a hierarquia da riqueza passam a disputar a
posse dos semiforos, bem como a capacidade para produzi-los: a religio estimula os milagres (que
geram novas pessoas e lugares santos), o poder poltico estimula a propaganda (que produz novas
pessoas e objetos para o culto cvico) e o poder econmico estimula tanto a aquisio de objetos
raros (dando origem s colees privadas) como a descoberta de novos semiforos pelo
conhecimento cientfico (financiando pesquisas arqueolgicas, etnogrficas e de histria da arte).
Dessa disputa de poder e de prestgio nascem, sob a ao do poder poltico, o patrimnio
artstico e o patrimnio histrico-geogrfico da nao, isto , aquilo que o poder poltico detm como
seu contra o poder religioso e o poder econmico. Em outras palavras, os semiforos religiosos so
particulares a cada crena, os semiforos da riqueza so propriedade privada, mas o patrimnio
histrico-geogrfico e artstico nacional.
-
9
Para realizar essa tarefa, o poder poltico precisa construir um semiforo fundamental, aquele
que ser o lugar e o guardio dos semiforos pblicos. Esse semiforo-matriz a nao. Por meio da
inteligentsia (ou de seus intelectuais orgnicos), da escola, da biblioteca, do museu, do arquivo de
documentos raros, do patrimnio histrico e geogrfico e dos monumentos celebratrios, o poder
poltico faz da nao o sujeito produtor dos semiforos nacionais e, ao mesmo tempo, o objeto do
culto integrador da sociedade una e indivisa.
A NAO: UMA INVENO RECENTE
muito recente a inveno histrica da nao, entendida como Estado-nao, definida pela
independncia ou soberania poltica e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode
ser colocada por volta de 1830.
De fato, a palavra nao vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo
derivado desse verbo, natio ou nao, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por
significar o parto de uma ninhada, a palavra natio/nao passou a significar, por extenso, os
indivduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma me, e, depois, os indivduos nascidos num
mesmo lugar. Quando, no final da Antiguidade e incio da Idade Mdia, a Igreja Romana fixou seu
vocabulrio latino, passou a usar o plural nationes (naes) para se referir aos pagos e distingu-
los do populus Dei, o povo de Deus. Assim, enquanto a palavra povo se referia a um grupo de
indivduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra
nao significava apenas um grupo de descendncia comum e era usado no s para referir-se
aos pagos, em contraposio aos cristos, mas tambm para referir-se aos estrangeiros (era assim
que, em Portugal, os judeus eram chamados de homens da nao) e a grupos de indivduos que
no possuam um estatuto civil e poltico (foi assim que os colonizadores se referiram aos ndios
falando em naes indgenas, isto , queles que eram descritos por eles como sem f, sem rei e
sem lei). Povo, portanto, era um conceito jurdico-poltico, enquanto nao era um conceito
biolgico.
Antes da inveno histrica da nao, como algo poltico ou Estado-nao, os termos polticos
empregados eram povo (a que j nos referimos) e ptria. Esta palavra tambm deriva de um
vocbulo latino, pater, pai. No se trata, porm, do pai como genitor de seus filhos - neste caso,
usava-se genitor -, mas de uma figura jurdica, definida pelo antigo direito romano. Pater o
senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que
nela existe, isto , plantaes, gado, edifcios (pai o dono do patrimonium), e o senhor, cuja
vontade pessoal lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domnio (casa,
em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa o dominium) , e os que esto sob seu
domnio formam a familia (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao
poder patriarcal e ptria o que pertence ao pai e est sob seu poder. nesse sentido jurdico
preciso que, no latim da Igreja, Deus Pai, isto , senhor do universo e dos exrcitos celestes.
tambm essa a origem da expresso jurdica ptrio poder, para referir-se ao poder legal do pai
sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres).
-
10
Se patrimnio o que pertence ao pai, patrcio o que possui um pai nobre e livre, e
patriarcal a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a diviso
social das classes em que patrcios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado
romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe.
(Quando se olha um crucifixo, sempre se v, na parte superior da cruz, uma faixa com as letras
SPQR. Essas letras significam Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo Romano. A faixa
era obrigatria nas execues de condenados para indicar que a execuo fora aprovada por Roma.)
Os patrcios eram os pais da ptria, enquanto os plebeus eram os protegidos pela ptria.
Quando a Igreja Romana se estabeleceu como instituio, para marcar sua diferena do Imprio
Romano pago e substituir os pais da ptria por Deus Pai, afirmou que, perante o Pai ou Senhor
universal, todos so plebeus ou povo. ento que inventa a expresso Povo de Deus, que, como
vimos, desloca a diviso social entre patrcios e plebeus para a diviso religiosa entre naes pags
e povo cristo.
A partir do sculo XVIII, com a revoluo norte-americana, holandesa e francesa, ptria
passa a significar o territrio cujo senhor o povo organizado sob a forma de Estado independente.
Eis por que, nas revoltas de independncia, ocorridos no Brasil nos finais do sculo XVIII e incio do
sculo XIX, os revoltosos falavam em ptria mineira, ptria pernambucana, ptria americana;
finalmente, com o Patriarca da Independncia, Jos Bonifcio, passou-se a falar em ptria
brasileira. Durante todo esse tempo, nao continuava usada apenas para os ndios, os negros e
os judeus.
Se acompanharmos a periodizao proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a
inveno histrica do Estado-nao3, podemos datar o aparecimento de nao no vocabulrio
poltico na altura de 1830, e seguir suas mudanas em trs etapas: de 1830 a 1880, fala-se em
princpio da nacionalidade; de 1880 a 1918, fala-se em idia nacional; e de 1918 aos anos 1950-
60, fala-se em questo nacional. Nessa periodizao, a primeira etapa vincula nao e territrio, a
segunda a articula lngua, religio e raa, e a terceira enfatiza a conscincia nacional, definida
por um conjunto de lealdades polticas. Na primeira etapa, o discurso da nacionalidade provm da
economia poltica liberal; na segunda, dos intelectuais pequeno-burgueses, particularmente
alemes e italianos, e, na terceira, emanam principalmente dos partidos polticos e do Estado.
O ponto de partida dessas elaboraes foi, sem dvida, o surgimento do Estado moderno da
era das revolues, definido por um territrio preferencialmente contnuo, com limites e fronteiras
claramente demarcados, agindo poltica e administrativamente sem sistemas intermedirios de
dominao, e que precisava do consentimento prtico de seus cidados vlidos para polticas fiscais
e aes militares. (Falamos em cidados vlidos porque a cidadania, embora declarada universal,
no o era de fato, uma vez que o cidado era definido pela independncia econmica - isto , pela
propriedade privada dos meios de produo -, excluindo trabalhadores e mulheres, e o sufrgio no
era universal e sim censitrio isto , segundo o critrio da riqueza e da instruo. O sufrgio
universal consagrou-se nas democracias efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial,
como resultado de lutas sociais e populares. Em outras palavras, liberalismo no sinnimo de
democracia.) Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos
os habitantes do territrio na esfera da administrao estatal; de outro, obter a lealdade dos
habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe
social, as tendncias polticas antagnicas e as crenas religiosas disputavam essa lealdade. Em
-
11
suma, como dar diviso econmica, social e poltica a forma da unidade indivisa? Pouco a pouco,
a idia de nao surgir como soluo dos problemas.
Como observa Hobsbawm, o liberalismo tem dificuldade para operar com a idia de nao e
de Estado nacional porque, para a ideologia liberal, a realidade se reduz a duas referncias
econmicas: uma unidade mnima, o indivduo, e uma unidade mxima, a empresa, de sorte que
no parece haver necessidade de construir uma unidade superior a estas. No entanto, os
economistas liberais no podiam operar sem o conceito de economia nacional, pois era fato
inegvel que havia o Estado com o monoplio da moeda, com finanas pblicas e atividades fiscais,
alm da funo de garantir a segurana da propriedade privada e dos contratos econmicos, e do
controle do aparato militar de represso s classes populares. Os economistas liberais afirmavam
por isso que a riqueza das naes dependia de estarem elas sob governos regulares e que a
fragmentao nacional, ou os Estados nacionais, era favorvel competitividade econmica e ao
progresso.
Por outro lado, em pases (como a Alemanha, os Estados Unidos ou o Brasil) que buscavam
proteger suas economias do poderio das mais fortes, era grande a atrao da idia de um Estado
nacional protecionista. Veio dos economistas alemes a idia do princpio de nacionalidade, isto ,
um princpio que defini< quando poderia ou no haver uma nao ou um Estado-nao. Esse
princpio era o territrio extenso e a populao numerosa, pois um Estado pequeno e pouco
populoso no poderia promover perfeio os vrios ramos da produo. Desse princpio derivou-
se uma segunda idia, qual seja, a nao como um processo de expanso, isto , de conquista de
novos territrios, falando-se, ento, em unificao nacional. Dimenso do territrio, densidade
populacional e expanso de fronteiras tornaram-se os princpios definidores da nao como Estado.
Todavia, o territrio em expanso s se unificaria se houvesse o Estado-nao, e este deveria
produzir um elemento de identificao que justificasse a conquista expansionista. Esse elemento
passou a ser a lngua, e por isso o Estado-nao precisou contar com uma elite cultural que lhe
fornecesse no s a unidade lingstica, mas lhe desse os elementos para afirmar que o
desenvolvimento da nao era o ponto final de um processo de evoluo, que comeava na famlia e
terminava no Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso.
A partir de 1880, porm, na Europa, a nao passa pelo debate sobre a idia nacional, pois
as lutas sociais e polticas haviam colocado as massas trabalhadoras na cena, e os poderes
constitudos tiveram de disputar com os socialistas e comunistas a lealdade popular. Ou, como
escreve Hobsbawm, a necessidade de o Estado e as classes dominantes competirem com seus
rivais pela lealdade das ordens inferiores se tornou, portanto, aguda4. O Estado precisava de algo
mais do que a passividade de seus cidados: precisava mobiliz-los e influenci-los a seu favor.
Precisava de uma religio cvica, o patriotismo. Dessa maneira, a definio da nao pelo
territrio, pela conquista e pela demografia j no bastava, mesmo porque, alm das lutas sociais
internas, regies que no haviam preenchido os critrios do princpio de nacionalidade lutavam
para ser reconhecidas como Estado-naes independentes. Durante o perodo de 1880-1918, a
religio cvica transforma o patriotismo em nacionalismo, isto , o patriotismo se torna estatal,
reforado com sentimentos e smbolos de uma comunidade imaginria cuja tradio comeava a ser
inventada.
Essa construo decorreu da necessidade de resolver trs problemas prementes: as lutas
populares socialistas, a resistncia de grupos tradicionais ameaados pela modernidade capitalista
-
12
e o surgimento de um estrato social ou de uma classe intermediria, a pequena burguesia, que
aspirava ao aburguesamento e temia a proletarizao. Em outras palavras, foi exatamente no
momento em que a diviso social e econmica das classes apareceu com toda clareza e ameaou o
capitalismo que este procurou na idia nacional um instrumento unificador da sociedade. No por
acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco de proletarizao, que
transformaram o patriotismo em nacionalismo quando deram ao esprito do povo, encarnado na
lngua, nas tradies populares ou folclore e na raa (conceito central das cincias sociais do sculo
XIX), os critrios da definio da nacionalidade.
A partir dessa poca, a nao passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde
tempos imemoriais, porque suas razes deitam-se no prprio povo que a constitui. Dessa maneira,
aparece um poderoso elemento de identificao social e poltica, facilmente reconhecvel por todos
(pois a nao est nos usos costumes, tradies, crenas da vida cotidiana) e com a capacidade
para incorporar numa nica crena as crenas rivais, isto , o apelo de classe, o apelo poltico e o
apelo religioso no precisavam disputar a lealdade dos cidados porque toda essas crenas podiam
exprimir-se umas pelas outras sob o fundo comum da nacionalidade. Sem essa referncia, tornar-
se-ia incompreensvel que, em 1914, milhes de proletrios tivessem marchado para a guerra para
matar e morrer ser vindo aos interesses do capital.
Foi a percepo do poder persuasivo da idia nacional que levou questo nacional, entre
1918 e os anos 1950-60 do sculo XX4. A Revoluo Russa (1917), a derrota alem na Primeira
Guerra (1914-18), a depresso econmica dos anos 20-30, o aguamento mundial da luta de
classes sob bandeiras socialistas e comunistas preparavam a arrancada mais forte do nacionalismo,
cuja expresso paradigmtica foi o nazi-fascismo.
No caso do Brasil, no custa lembrar o que, nessa poca, diziam os fascistas, isto , os
membros da Ao Integralista Brasileira, partido poltico criado entre 1927 e 1928 e dirigido pelo
escritor modernista Plnio Salgado:
Esta longa escravido ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na gleba para
opulentar os cofres de Wall Street e da City; essa situao deprimente em face do estrangeiro; este
cosmopolitismo que nos amesquinha; essas lutas internas que nos ensangentam; esta aviltante
propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Ptria; esse tripudiar de
regionalismo em esgares separatistas a enfraquecer a Grande Nao; esse comodismo burgus; essa
misria de nossas populaes sertanejas; a opresso em que se debate nosso proletariado, duas vezes
explorado pelo patro e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um pas de oito
milhes de quilmetros quadrados e quase cinqenta milhes de habitantes, sem prestgio, sem crdito,
corrodos de politicagem de partidos.5
Alm de se apropriar da elaborao nacionalista, feita nas etapas anteriores (expanso e
unificao do territrio, esprito do povo e raa), o nazi-fascismo e os vrios nacionalismos desse
perodo contaram com a nova comunicao de massa (o rdio e o cinema) para transformar
smbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivduo e, com isso, romper as
divises entre a esfera privada e local e a esfera pblica e nacional. A primeira expresso dessa
mudana aparece nos esportes, transformados em espetculos de massa, nos quais j no
competem equipes e sim se enfrentam e se combatem naes (como se viu nos Jogos Olmpicos de
1936, no aparecimento do Tour de France e da Copa do Mundo). Passou-se a ensinar s crianas
-
13
que a lealdade ao time lealdade nao. Passeatas embandeiradas, ginstica coletiva em grandes
estdios, programas estatais pelo rdio, uniformes polticos com cores distintivas, grandes comcios
marcam esse perodo como poca do nacionalismo militante.
A pergunta suscitada por essa terceira fase da construo da nao : por que foi bem-
sucedida e por que, passadas as causas imediatas que a produziram, ela permaneceu nas
sociedades contemporneas? Por que a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor do
que o nacionalismo? Por que at mesmo as revolues socialistas acabaram assumindo a forma do
nacionalismo? Por que a questo nacional parecia ter sentido? O nacionalismo militante, diz
Hobsbawm, no pode ser visto simplesmente como reflexo do desespero e da impotncia poltica
diante da incapacidade mobilizadora do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Sem dvida,
esses aspectos so importantes, indicando a adeso daqueles que haviam perdido a f em utopias (
esquerda) ou dos que haviam perdido velhas certezas polticas e sociais ( direita). Todavia, se para
esses o nacionalismo militante era um imperativo poltico exclusivo, o mesmo no pode ser dito da
adeso generalizada, nem, sobretudo da permanncia do nacionalismo em toda parte, depois de
encerrado o nazi-fascismo.
A possvel explicao encontra-se na natureza do Estado moderno como espao dos
sentimentos polticos e das prticas polticas em que a conscincia poltica do cidado se forma
referida nao e ao civismo, de tal maneira que a distino entre classe social e nao no clara
e freqentemente est esfumada ou diluda. Para ns, no Brasil, nada exprime melhor essa situao
do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-60, perodo que conhecemos com os nomes de
nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois. De fato, para as esquerdas,
a referncia sempre havia sido a diviso social das classes e no a unidade social imaginria
imposta pela idia de nao. No entanto, no perodo 1950-60, a luta histrica foi interpretada pelas
esquerdas como combate entre a nao (representada pela burguesia nacional progressista e as
massas conscientes) e a antinao (representada pelos setores atrasados da classe dominante,
pelas massas alienadas e pelo capital estrangeiro ou as foras do imperialismo'').
O processo histrico de inveno da nao nos auxilia a compreender um fenmeno
significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da idia de carter nacional para a de identidade
nacional. O primeiro corresponde, grosso modo, aos perodos de vigncia do princpio da
nacionalidade (1830-1880) e da idia nacional (1880-1918), enquanto a segunda aparece no
perodo da questo nacional (1918-1960).
Territrio, densidade demogrfica, expanso de fronteiras, lngua, raa, crenas religiosas,
usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do carter nacional,
entendido como disposio natural de um povo e sua expresso cultural. Como observa Perry
Anderson, o conceito de carter em princpio compreensivo, cobrindo todos os traos de um
indivduo ou grupo; ele auto-suficiente, no necessitando de referncia externa para sua definio;
e mutvel, permitindo modificaes parciais ou gerais.6
Em seu trabalho pioneiro e hoje clssico, O carter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite
mostra como as formulaes brasileiras sobre o carter nacional' dependeram de trs
determinaes principais: o momento sociopoltico, a insero de classe ou a classe social dos
autores, e as idias europias mais em voga em cada ocasio. Tomando as construes do carter
nacional como ideologias, Moreira Leite conclui seu livro afirmando que elas foram, na verdade,
-
14
obstculos para o conhecimento da sociedade brasileira e no a apresentao fragmenta. da e
parcial de aspectos reais dessa sociedade.
Quando se acompanha a elaborao ideolgica do carter nacional brasileiro, observa-se
que este sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso
Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Silvio
Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louv-lo,
quer par; depreci-lo, o carter nacional uma totalidade de traos coerente, fechada e sem
lacunas porque constitui uma natureza humana determinada.
A ideologia da identidade nacional opera noutro registro. Antes de mais nada, ela define um
ncleo essencial tomando como critrio algumas determinaes internas da nao que so
percebidas por sua referncia ao que lhe externo, ou seja, a identidade no pode ser construda
sem a diferena. O ncleo essencial , no plano individual, a personalidade de algum, e, no plano
social, o lugar ocupado na diviso do trabalho, a insero social de classe. Isso traz como
conseqncia que a identidade nacional precisa ser concebida como harmonia e/ou tenso entre o
plano individual e o social e tambm como harmonia e/ou tenso no interior do prprio social. Para
faz-la, os idelogos da identidade nacional invocam as idias de conscincia individual,
conscincia social e conscincia nacional. Ou, como observa Anderson, a identidade deve
incluir uma certa autoconscincia [...] sempre possui uma dimenso reflexiva ou subjetiva,
enquanto o carter pode permanecer, no limite, puramente objetivo, algo percebido pelos outros
sem que o agente esteja consciente dele6. O apelo da identidade nacional conscincia opera um
deslizamento de grande envergadura, escorregando da conscincia de classe para a conscincia
nacional.
Para que se possa ter uma idia da diferena entre as duas ideologias, tomemos um exemplo.
Na ideologia do carter nacional brasileiro, a nao formada pela mistura de trs raas - ndios,
negros e brancos - e a sociedade mestia desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o
negro visto pelo olhar do paternalismo branco, que v a afeio natural e o carinho com que
brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros, num trnsito contnuo entre a
casa-grande e a senzala. Na ideologia da identidade nacional, o negro visto como classe social, a
dos escravos, e sob a perspectiva da escravido como instituio violenta que coisifica o negro, cuja
conscincia fica alienada e s escapa fugazmente da alienao nos momentos de grande revolta. Na
primeira, o carter brasileiro formado pelas relaes entre o branco bom e o negro bom (se nosso
carter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso carter for
depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violncia branca e alienao negra,
isto , como duas formas de conscincia definidas por uma instituio, a escravido. Como observa
Silvia Lara, no livro Campos da violncia7, a primeira imagem a da escravido benevolente,
enquanto a segunda a da escravido como violncia, mas nos dois casos os negros no so
percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e mulheres sua capacidade de
criar, de agenciar e ter conscincias polticas diferenciadas, numa palavra, despojando-os da
condio de sujeitos sociais e polticos.
Enquanto a ideologia do carter nacional apresenta a nao totalizada assim que, por
exemplo, a mestiagem permite construir a imagem de uma totalidade social homognea -, a da
identidade nacional a concebe como totalidade incompleta e lacunar - assim que, por exemplo,
escravos e homens livres pobres, no perodo colonial, ou os operrios, no perodo republicano, so
-
15
descritos sob a categoria da conscincia alienada, que os teria impedido de agir de maneira
adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto a segunda opera com a falta, a
privao, o desvio. E no poderia ser de outra maneira. A identidade nacional pressupe a relao
com o diferente. No caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relao ao qual a identidade
definida, so os pases capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e uma
totalidade completamente realizadas. pela imagem do desenvolvimento completo do outro que a
nossa identidade, definida como subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privaes.
Entre os anos 1950-1970, a elaborao da identidade nacional apresenta a sociedade
brasileira com os seguintes traos:
1) ausncia de uma burguesia nacional plenamente constituda, tal que alguma frao da classe
dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto hegemnico, no tendo, portanto,
condies de se apresentar como classe dirigente; h um vazio no alto;
2) ausncia de uma classe operria madura, autnoma e organizada, preparada para propor um
programa poltico capaz de destruir o da classe dominante fragmentada. Por suas origens
imigrantes e camponesas, essa classe tende a desviar-se de sua tarefa histrica, caindo no
populismo; h um desvio embaixo;
3) presena de uma classe mdia de difcil definio sociolgica, mas caracterizada por uma
ideologia e uma prtica heternomas, oscilando entre atrelar-se classe dominante ou ir a reboque
da classe operria;
4) as duas primeiras ausncias e a inoperncia da classe mdia criam um vazio poltico que ser
preenchido pelo Estado, o qual , afinal, o nico sujeito poltico e o nico agente histrico;
5) a precria situao das classes torna impossvel a qualquer delas produzir uma ideologia,
entendida como um sistema coerente de representaes e normas com universalidade suficiente
para impor-se a toda a sociedade. Por esse motivo, as idias so importadas e esto sempre fora do
lugar.
Assim, a identidade do Brasil, construda na perspectiva do atraso ou do
subdesenvolvimento, dada pelo que lhe falta, pela privao daquelas caractersticas que o fariam
pleno e completo, isto , desenvolvido.
Postas as coisas dessa maneira, tanto a ideologia do carter nacional como a da identidade
nacional parecem pertencer a um passado remoto, nada podendo dizer sobre a situao atual do
pas que, como sabemos, agora batizado com o nome e pas emergente.
De fato, hoje, o princpio da nacionalidade (como diziam os liberais do sculo XIX) ou a
idia nacional e a questo nacional (como diziam liberais, marxistas e nazi-fascistas do incio at
os meados do sculo XX) parecem, finalmente, ter perdido sentido. Enquanto de 1830 a 1970, a
nao e o nacionalismo foram objeto de discursos partidrios, de programas estatais, lutas civis e
guerras mundiais, hoje, o discurso e a ao dos direitos civis, do multiculturalismo, do direito
diferena e a prtica econmica neoliberal no apenas tiraram da cena poltica e ideolgica as
nacionalidades, mas tambm mostram que estas permaneceram como referenciais importantes
apenas em pases e regies que no tm muito peso em termos dos poderes econmicos e polticos
mundiais (Afeganisto, Irlanda, Pas Basco, Sri Lanka, Timor, Sarajevo, Kosovo, Lbia) ou naqueles
em que a questo da nacionalidade aparece travejada pela religio (Ir Israel, Palestina).
Isso nos leva a indagar se haveria algum cabimento na celebrao do Brasil 500, a menos
que um necrolgio possa ser considerado uma celebrao.
-
16
Todavia, postas as coisas dessa maneira, poderamos tambm indagar se no estaramos
substituindo um fatalismo fundamentalista por outro. Ou seja, assim como os nacionalismos,
ocultando que a nao uma construo histrica recente fizeram da nacionalidade algo imemorial
e destino necessrio da civilizao, tambm poderamos estar tomando o fim dos nacionalismos ou
dos Estados-nao como um destino inelutvel, como o fim da histria, to ao gosto dos
neoliberais.
Por isso, cremos ser mais avisado distinguir entre o lugar da nao nas elaboraes poltico-
ideolgicas de 1830-1980 e seu lugar nas representaes sociopolticas brasileiras, desde o final dos
anos 80.
De fato, no primeiro perodo, a nao e a nacionalidade so um programa de ao e ocupam,
direita e esquerda, o espao das lutas econmicas, poltica e ideolgicas. No segundo perodo,
porm, isto , desde 1980 mais ou menos, nao e nacionalidade se deslocam para o campo das
representaes j consolida das - que, portanto, no so objeto de disputas e programas -, tendo a
seu cargo diversas tarefas poltico-ideolgicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritria,
oferecer mecanismos para tolerar vrias formas de violncia e servir de parmetro para aferir ou
avaliar as autodenominadas polticas de modernizao do pas. com esse conjunto de tarefas que
elas vm se inscrever nas comemoraes do Brasil 500.
Brasil 500 , pois, um semiforo historicamente produzido. Como todo semiforo que se
destina a explicar a origem e dar um sentido ao momento funde dor de uma coletividade uma
entidade mtica, Brasil 500 tambm pertence a campo mtico, tendo como tarefa a reatualizao
de nosso mito fundador.
Antes de nos voltarmos para o momento de instituio desse mito, queremos, de maneira
breve e impressionista, sem acompanhar propriamente as condies materiais da histria do Brasil
e de sua periodizao, assinalar momentos variados em que, silenciosa e invisvel, a mitologia da
origem se espraia em aes e falas da sociedade e do Estado brasileiros. Como se ver, os exemplos
aqui escolhidos correspondem, grosso modo, s trs etapas de construo da idia d nao que,
muito rapidamente, apresentamos acima.
PERIODIZAO PROPOSTA POR DANTE MOREIRA LEITE
I - A fase colonial: descoberta da terra e o movimento nativista (1500-1822).
II - O Romantismo: a independncia poltica e a formao de uma imagem positiva do Brasil e
dos brasileiros (1822-1880).
III - As cincias sociais e a imagem pessimista do brasileiro (1880-1950).
IV - O desenvolvimento econmico e a superao da ideologia do carter nacional brasileiro: a
dcada 1950-1960.
FONTE: Leite, Dante Moreira. O carter nacional brasileiro. Histria de uma ideologia. So Paulo, Pioneira, 4
edio definitiva, 1983.
-
17
SILVIO ROMERO (1851-1914)
Caractersticas psicolgicas do brasileiro
1. aptico
2. sem iniciativa
3. desanimado
4. imitao do estrangeiro (na vida
intelectual)
5. abatimento intelectual
6. irritabilidade
7. nervosismo
8. hepatismo
9. talentos precoces e rpida extenuao
10. facilidade para aprender
11. superficialidade das faculdades
inventivas
12. desequilibrado
13. mais apto para queixar-se que para
inventar
14. mais contemplativo que pensador
15. mais lirista, mais amigo de sonhos e
palavras retumbantes que de idias
cientficas e demonstradas
Qualidades da vida intelectual brasileira
1. sem filosofia, sem cincia, sem poesia
impessoal
2. palavreado da carolice
3. mstica ridcula do bactrio enfermo e
fantico
4. devaneios fteis da impiedade,
impertinente e ftil
AFONSO CELSO (1860-1938)
Quadro das caractersticas psicolgicas
Brasileiro
Positivas
1. sentimento de independncia
2. hospitalidade
3. afeio ordem, paz, melhoramento
4. pacincia e resignao
5. doura, longanimidade e desinteresse
6. escrpulo no cumprimento das obrigaes
contradas
7. caridade
8. acessibilidade
9. tolerncia (ausncia de preconceitos)
10. honradez (pblica e particular)
Negativas
1. falta de iniciativa
2. falta de deciso }
corrigveis por educao
3. falta de firmeza
4. pouca diligncia, pouco esforo
corrigvel por novas condies
Mestios
Positivas
1. energia
2. coragem
3. iniciativa
4. inteligncia
Negativas
1. imprevidncia
2. despreocupao com o futuro
Portugueses
Positivas
1. heroicidade
2. resignao
3. esforo
4. unio
5. patriotismo
6. amor ao trabalho
7. filantropia
Negros
Positivas
1. sentimentos afetivos
2. resignao
3. coragem, laboriosidade
4. sentimentos de independncia
MANOEL BONFIM (1868-1932)
-
18
Caractersticas psicolgicas indicadas
Brasileiros
1. parasitismo
2. perverso do senso moral
3. horror ao trabalho livre
4. dio ao governo
5. desconfiana das autoridades
6. instintos agressivos
7. conservantismo
8. falta de ob~ervao
9. resistncia
10. sobriedade
11. tibieza
12. intermitncia de entusiasmo
13. desfalecimentos contnuos
14. desnimo fcil
15. tendncia lamentao
16. facilidade na acusao
17. inadvertncia
18. ausncia de vontade
19. inconstncia no querer
20. hombridade patritica
21. poder de assimilao social
PAULO PRADO (1869-1943)
Caractersticas psicolgicas Brasileiro
1 . tristeza
2. erotismo
3. cobia
4. romantismo
5. individualismo desordenado
6. apatia
7. imitao
ndio
1. sensual
ndios e negros
1. inconsistncia de carter
2. leviandade
3. imprevidncia
4. indiferena pelo passado
Influncia dos negros
1. afetividade passiva
2. dedicao morna, doce e instintiva
ndios
1. amor violento liberdade
2. coragem fsica
3. instabilidade emocional (defeitos de
educao)
Mestios
1. indolentes
2. indisciplinados
3. imprevidentes
4. preguiosos (defeitos de educao)
Bandeirantes
1. nsia de independncia
2. brutezas
3. pouco escrupuloso
4. ambio de mando
5. ganncia de riqueza (herdada de cristos-
novos)
Negro
1. passividade infantil (na mulher)
GILBERTO FREYRE (1900-1987)
Quadro das caractersticas psicolgicas de
portugueses, ndios, negros e brasileiros
Portugueses
1. flutuante
2. riqueza de aptides incoerentes, no
prticas
3. genesia violenta
4. gosto pelas anedotas de fundo ertico
5. brio
6. franqueza
7. lealdade
8. pouca iniciativa individual
9. patriotismo vibrante
10. imprevidncia
11. inteligncia
12. fatalismo
13. aptido para imitar
14. antagonismo de introverso-extroverso
15. mobilidade
16. miscibilidade
17. aclimatabilidade
18. sexualidade exaltada
-
19
19. purismo religioso
20. carter nacional quente e plstico
21. tristeza
22. esprito de aventura
23. preconceitos aristocrticos
24. em alguns grupos, amor agricultura
25. continuidade social e gosto pelo traI
negro, paciente e difcil
ndios
1. sexualidade exaltada
2. animismo
3. calado
4. desconfiado
Brasileiros
1. sadismo no grupo dominante
2. masoquismo nos grupos dominados
3. animismo
4. crena no sobrenatural
5. gosto por piadas picantes
6. erotismo
7. gosto da ostentao
8. personalismo
9. culto sentimental ou mstico do pai
10. maternalismo
11. simpatia do mulato
12. individualismo e interesse intelectual
permitidos pela vida na plantao
13. complexo de refinamento
Negros
1. maior bondade
2. misticismo quente e voluptuoso que
enriquece a sensibilidade e a imaginao do
brasileiro
3. alegria
Distines regionais
a. pernambucano, paulista e gacho
b. baiano e carioca
c. bandeirantes e cearenses: expresso de
vigor hbrido
d. paulista: gosto pelo trabalho
e. em algumas outras regies: resignao
f. mineiro: austeridade e tendncia
introspeco, complexo, sutil e dono de senso
de humor
g. gachos da zona missioneira: silenciosos,
introspectivos, realistas, distantes, frios,
telricos, instintivos, fatalistas, orgulhosos,
quase trgicos nas crises
CASSIANO RICARDO (1895-1974)
1. mais emotivo
2. mais corao que cabea
3. mais propenso a ideologias que idias 4.
detesta a violncia
5. menos cruel
6. menos odioso
7. bondade
8. individualismo
-
20
O VERDEAMARELISMO
O monumento
de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrs
Da verde mata
O luar do serto
CAETANO VELOSO
1958, quando a seleo brasileira de Futebol ganhou a Copa do Mundo, msicas populares a
afirmavam que a copa o mundo e nossa porque com brasileiro no h quem possa, e o brasileiro
era descrito como bom no couro e bom no samba. A celebrao consagrava o trip da imagem da
excelncia brasileira: caf, carnaval e futebol. Em contrapartida, quando a seleo, agora chamada
de Canarinha, venceu o torneio mundial em 1970, surgiu um verdadeiro hino celebratrio, cujo
incio dizia: Noventa milhes em ao/ Pra frente, Brasil, do meu corao. A mudana do ritmo -
do samba para a marcha -, a mudana do sujeito - do brasileiro bom no couro aos 90 milhes em
ao - e a mudana do significado da vitria - de a copa do mundo nossa ao pra frente, Brasil
no foram alteraes pequenas.
Em 1958, sob o governo de Juscelino Kubitschek, vivia-se sob a ideologia do
desenvolvimentismo, isto , de um pas que se industrializava voltado para o mercado interno, para
o brasileiro, e que incentivava a vinda do capital internacional como condio preparatria para,
conseguido o desenvolvimento, competir com ele em igualdade de condies. Em 1970, vivia-se sob
a ditadura militar ps-Ato Institucional n 5, sob a represso ou o terror de Estado e sob a ideologia
do Brasil Grande, isto , da chamada integrao nacional, com rodovias nacionais e cidades
monumentais, uma vez mais destinadas a atrair o grande capital internacional. Nas comemoraes
de 1958 e de 1970, a populao saiu s ruas vestidas de verde-amarelo ou carregando objetos
verdes e amarelos. Ainda que, desde 1958, soubssemos que verde, amarelo, cor de anil! so as
cores do Brasil, os que participaram da primeira festa levavam as cores nacionais, mas no
levavam a bandeira nacional. A festa era popular. A bandeira brasileira fez sua apario
hegemnica nas festividades de 1970, quando a vitria foi identificada com a ao do Estado e se
transformou em festa cvica.
Essas diferenas no so pequenas, porm no so suficientes para impedir que, sob duas
formas aparentemente diversas, permanea o mesmo fundo, o verdeamarelismo.
O QUE O VERDEAMARELISMO?7
O verdeamarelismo foi elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira como
imagem celebrativa do pas essencialmente agrrio e sua construo coincidem com o perodo em
-
21
que o princpio da nacionalidade era definido pela extenso do territrio e pela densidade
demogrfica. De fato, essa imagem visava legitimar o que restara do sistema colonial e a hegemonia
dos proprietrios de terra durante o Imprio e o incio da Repblica (1889). Como explica Caio
Prado Jr.:
Se vamos essncia de nossa formao, veremos que na realidade nos constitumos para fornecer
acar, tabaco, alguns outros gneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodo e, em seguida, caf,
para o comrcio europeu. Nada mais que isto. com tal objetivo [...] que se organizaro a sociedade e a
economia brasileiras. Tudo se dispor naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do pas.8
Ou como nos diz Fernando Novais:
A colonizao guardou em sua essncia o sentido de empreendimento comercial donde proveio, a no-
existncia de produtos comercializveis levou sua produo, e disto resultou a ao colonizadora [...]. A
colonizao moderna, portanto, [...] tem uma natureza' essencialmente comercial: produzir para o
mercado externo, fornecer produtos tropicais e metais nobres economia europia [...] apresenta-se como
pea de um sistema, instrumento da acumulao primitiva da poca do capitalismo mercantil.9
O pas essencialmente agrrio, portanto, era, na verdade, o pas historicamente articulado
ao sistema colonial do capitalismo mercantil e determinado pelo modo de produo capitalista a ser
uma colnia de explorao e no uma colnia de povoamento. A primeira tem urna economia
voltada para o mercado externo metropolitano e a produo se organiza na grande propriedade
escravista, enquanto na segunda a produo se processa mais em funo do prprio consumo
interno da colnia, onde predomina a pequena propriedade. Em outras palavras, a colnia de
povoamento aquela que no desperta o interesse econmico da metrpole e permanece margem
do sistema colonial, enquanto a colnia de explorao est ajustada s exigncias econmicas do
sistema.
Em suma, o verdeamarelismo parece ser a ideologia daquilo que Paul Singer chama de
dependncia consentida:
Depois que a Amrica Latina se tornou independente, os donos das terras, das minas, do gado etc.
tornaram-se, em cada pas, a classe dominante, tendo ao seu lado uma elite de comerciantes e
financistas que superintendia os canais que ligavam atividades agrcolas e/ou extrativas. A nova classe
dominante via na dependncia de seus pases dos pases capitalistas adiantados [...] o elo que os ligava
civilizao, da qual se acreditavam os nicos e autnticos representantes [...]. Assim, justo apelidar esta
situao que se criou com a independncia e que durou, em geral, at a Primeira Guerra Mundial de
dependncia consentida. Ela se caracterizava pela ausncia de qualquer dinmica interna capaz de
impulsionar o desenvolvimento. [...] Sob a forma do capital pblico ou privado, o desenvolvimento da
infra-estrutura de servios dependia diretamente do que cada regio conseguia colocar no mercado
mundial. Essa realidade era compreendida e aceita pelo conjunto da sociedade.10
Nessa poca, quando a classe dominante falava em progresso ou em melhoramento,
pensava no avano das atividades agrrias e extrativas, sem competir com os pases metropolitanos
ou centrais, acreditando que o pas melhoraria ou progrediria com a expanso dos ramos
determinados pela geografia e pela geologia, que levavam a urna especializao racional em que
todas as atividades econmicas eram geradoras de lucro, utilidade e bem-estar. Donde a expresso
ideolgica dessa classe aparecer no otimismo da exaltao da Natureza e do tipo nacional pacfico
-
22
e ordeiro. Alm disso, corno lembra Celso Furtado, no momento em que a diviso internacional do
trabalho especializa alguns pases na atividade agrrio-exportadora, h urna expanso econmica
cujo excedente no investido em atividades produtivas e sim dirigido ao consumo das classes
abastadas, que faziam do consumo de luxo um instrumento para marcar a diferena social e o fosso
que as separava do restante da populao. A essa expanso e a esse consumo, a classe dominante
deu o nome e progresso.
O que parece surpreendente, portanto, o fato de que o verdeamarelismo se tenha
conservado quando parecia j no haver base material para sustent-lo. Ou seja, se ele foi a
ideologia dos senhores de terra do sistema colonial, do Imprio e da Repblica Velha, deveramos
presumir que desaparecesse por ocasio do processo de industrializao e de urbanizao. Seria
perfeitamente plausvel imaginar que desaparecesse quando as duas guerras mundiais desfizeram
as bases da diviso internacional do trabalho e do mercado mundial de capitais, cada nao
fazendo um mnimo de importaes, voltando-se para o mercado interno, com estmulo
substituio das importaes pela produo local das mercadorias e colocando urna burguesia
urbana industrial, comercial e financeira na hegemonia do processo histrico. No foi o caso.
No que no tenha havido tentativas para abandonar o verdeamarelismo. Houve, podemos,
brevemente, lembrar, no entre-guerras, o esforo demolidor feito pelo Modernismo, quando, entre
1920 e 1930, se processa o primeiro momento da industrializao, em So Paulo, e se prepara o
rearranjo da composio de foras das classes dominantes, com a entrada em cena da burguesia
industrial. No entanto, no se pode tambm deixar de lembrar que, significativamente, um grupo
modernista criar o verdeamarelismo corno movimento cultural e poltico e dele sair tanto o apoio
ao nacionalismo da ditadura Vargas ( o caso da obra do poeta prosador Cassiano Ricardo) corno a
verso brasileira do fascismo, a Ao Integralista Brasileira, cujo expoente o romancista Plnio
Salgado.
Podemos tambm mencionar a tentativa de afastar o nacionalismo do pas essencialmente
agrrio com a elaborao de uma nova ideologia, o nacionalismo desenvolvimentista, feita pelo
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)11, nos anos 1950, no perodo da industrializao
promovida pelo governo Kubitschek. Se mantivermos a periodizao de Hobsbawm, os trabalhos do
ISEB correspondem ao perodo em que a idia de nao constru da como questo nacional
vinculada conscincia nacional das classes sociais. E se usarmos nossa periodizao, estaremos
no momento de passagem da ideologia do carter nacional para a da identidade nacional.
Conservando a terminologia proposta por Paul Singer10, a fabricao da ideologia nacional-
desenvolvimentista se d no momento da passagem da dependncia consentida para a
dependncia tolerada, quando a classe dominante, dependendo dos pases centrais
industrializados para obter equipamentos, tecnologia e financiamentos, julga essa situao
essencialmente provisria, a ser superada to logo a industrializao fizesse a economia
emparelhar com a mais adiantada e o desenvolvimento almejado pela periferia destinava-se a
revogar a diviso colonial do trabalho que a inferiorizava perante o centro. Nessas circunstncias,
era compreensvel o esforo para desmontar o verdeamarelismo, pois ele significava, justamente, o
atraso que se pretendia superar. No entanto, como veremos mais adiante, de maneira difusa e
ambgua, o verdeamarelismo permaneceu.
Enfim, no demais lembrar ainda, no final dos anos 1950 e incio dos anos 1960 (durante o
governo de Jango Goulart), a tentativa de desmontar o imaginrio verde-amarelo com a ao
-
23
cultural das esquerdas, que, na perspectiva da identidade nacional, focalizavam a luta de classes
(ainda que na expectativa de uma revoluo burguesa que uniria burguesia nacional e vanguarda
do proletariado) e enfatizavam o nacional-popular nos Centros Populares de Cultura (CPCs), no
novo teatro, de inspirao brechtiana, e no cinema Novo. E no menos significativas na recusa do
verdeamarelismo foram a ironia corrosiva do Tropicalismo, no final dos anos 1960 e incio dos anos
1970 (durante o perodo do milagre brasi1eiro, promovido pela ditadura), e.a poesia e msica de
protesto, a nova MPB, no correr dos anos 70 e incio dos 80.
No entanto, nem os modernistas, nem o ISEB, nem os CPCs, nem o Cinema Novo, nem o
Tropicalismo, nem a MPB de protesto conseguiram aniquilar a imagem verde-amarela, que se
consolidou e brilha inclume naquela outra imagem, doravante apropriada pela contempornea
indstria do turismo: caf, futebol e carnaval, made in Brazil.
Essa permanncia no casual nem espontnea, visto que a industrializao jamais se
tornou o carro-chefe da economia brasileira como economia capitalista desenvolvida e
independente. Na diviso internacional do trabalho, a industrializao se deu por transferncia de
setores industriais internacionais para o Brasil, em decorrncia do baixo custo da mo-de-obra, e o
setor agrrio-exportador jamais perdeu fora social e poltica. Se antes o verdeamarelismo
correspondia auto-imagem celebrativa dos dominantes, agora ele opera como compensao
imaginria para a condio perifrica e subordinada do pas. Alm disso, justamente porque aquele
era o perodo da questo nacional, houve a ao deliberada do Estado na promoo da imagem
verde-amarela.
De fato, apesar do Modernismo cultural dos anos 20-30, durante o Estado Novo (1937-45), a
luta contra a disperso e a fragmentao do poder enfeixado pelas oligarquias estaduais (ou a
chamada poltica dos governadores) e a afirmao da unidade entre Estado e nao, corporificados
no chefe do governo, levaram, simbolicamente, queima das bandeiras estaduais e
obrigatoriedade do culto bandeira e ao hino nacionais nas escolas de todos os graus. dessa
poca a exigncia legal de que as escolas de samba utilizassem temas nacionais em seus enredos12.
Num governo de estilo fascista e populista, o Estado passou a usar diretamente os meios de
comunicao, com a compra de jornais e de rdios (como a Rdio Nacional do Rio de Janeiro) e com
a transmisso da Hora do Brasil. Esta possua trs finalidades: informativa, cultural e cvica.
Divulgava discursos oficiais e atos do governo, procurava estimular o gosto pelas artes populares e
exaltava o patriotismo, rememorando os feitos gloriosos do passado. Mas no s isso. Os
programas deviam tambm decantar as belezas naturais do pas, descrever as caractersticas
pitorescas das regies e cidades, irradiar cultura, enaltecer as conquistas do homem em todas as
atividades, incentivar relaes comerciais e, voltando-se para o homem do interior, contribuir para
seu desenvolvimento e sua integrao na coletividade nacional. dessa poca a Aquarela do
Brasil (de Ary Barroso), que canta as belezas naturais, mas tambm o Brasil brasileiro, isto , o
mulato inzoneiro, os olhos verdes da mulata, o samba, o Brasil lindo e trigueiro. No casual
que a mesma poca que ouvia a Aquarela do Brasil tambm lia a Marcha para o Oeste, de
Cassiano Ricardo, para quem o Brasil era um escndalo de cores, escrevendo: Parece que Deus
derramou tinta por tudo, cu de anil, flores e pssaros em que gritam o amarelo avermelhado do
sol e do ouro, riquezas fabulosas e todas as cores raciais, na paisagem humana.
Esses elementos so indicadores seguros da presena do verdeamarelismo. Sua funo,
porm, deslocou-se. Com efeito, se compararmos o verdeamarelismo desse perodo com outras
-
24
expresses anteriores (como o nativismo romntico, do sculo XIX, e o ufanismo do incio do sculo
XX), notaremos que, antes, a nfase recaa sobre a Natureza, e, agora, algo mais apareceu. De fato,
no se tratava apenas de manter a celebrao da Natureza e sim de introduzir na cena poltica uma
nova personagem: o povo brasileiro. Dada a inspirao fascista da ditadura Vargas, afirmava-se que
o verdadeiro Brasil no estava em modelos europeus ou norte-americanos, mas no nacionalismo
erguido sobre as tradies nacionais e sobre o nosso povo. Dessas tradies, duas eram
sublinhadas: a unidade nacional, conquistada no perodo imperial - o que levou o Estado Novo a
transformar Caxias, sol dado do Imprio, em heri nacional da Repblica -, e a ao civilizatria dos
portugueses, que introduziram a unidade religiosa e de lngua, a tolerncia racial e a mestiagem,
segundo a interpretao paternalista oferecida pela obra de Gilberto Freyre, Casa-Brande e senzala.
Em outras palavras, sublinham-se os dois elementos do princpio da nacionalidade, que vimos
anteriormente. No entanto, estamos tambm na poca da questo nacional e por isso uma
novidade comparece na definio do povo. Embora seja mantidas a tese da democracia racial e a
imagem do povo mestio, mescla de trs raas, agora, porm, povo , sobretudo, de um lado, o
bandeirante ou sertanista desbravador do territrio e, de outro, os pobres, isto , os trabalhadores
do Brasil.
Em outras palavras, o verdeamarelismo, sob a ideologia da questo nacional, precisa
incorporar a luta de classes em seu iderio, mas de modo tal que, ao admitir a existncia da classe
trabalhadora, possa imediatamente neutralizar os riscos da ao poltica dessa classe, o que feito
no s pela legislao trabalhista (inspirada no corporativismo da Itlia fascista) e pela figura do
governante como pai dos pobres, mas tambm por sua participao no carter nacional, isto ,
como membro da famlia brasileira, generosa, fraterna, honesta, ordeira e pacfica. O
verdeamarelismo assegura que aqui no h lugar para luta de classes e sim para a cooperao e a
colaborao entre o capital e o trabalho, sob direo e vigilncia do Estado.
Convm tambm no esquecermos que o pan-americanismo, institudo pelo Departamento de
Estado norte-americano durante os anos da Segunda Guerra Mundial (1939-45), promoveu a
amizade entre os povos americanos e transformou Carmem Miranda em embaixadora da boa-
vontade, obrigando-a, com contratos de trabalho abusivos que estipulavam seu vesturio e suas
falas, a difundir a imagem telrica e alegre do Brasil, cuja capital era Buenos Aires e c msica era
mescla de samba, rumba, tango, conga e salsa. Para acompanh-la, estdios de Walt Disney
criaram o papagaio malandro, Z Carioca.
Sem dvida, terminada a guerra e entrado o pas na poca da dependncia tolerada, os anos
50 do sculo XX viram surgir como imagem emblemtica do pas a cidade de So Paulo, em cujo IV
Centenrio (em janeiro de 1954) comemorava-se a cidade que mais cresce no mundo, pois So
Paulo no pode parar, de tal maneira que a fora do capital industrial deveria levar a uma
transformao ideolgica na qual o desenvolvimento econmico apareceria como obra dos homens e
deixaria para trs o pas como ddiva de Deus e da Natureza. E o suicdio de Vargas, em agosto de
1954, faria supor que o verdeamarelismo estava enterrado para sempre. Durante os anos 50, o
desenvolvimentismo teve como mote a mudana da ordem dentro da ordem, para significar que o
pas, diminuindo o poder e o atraso do latifndio e da burguesia mercantil (parasita alienados) e
neutralizando os perigos trazidos pela classe operria (massa popular atrasada e alienada), se
tornaria um igual no concerto das naes. Entramos, assim, no perodo da identidade nacional e
da conscincia nacional, se acompanharmos a periodizao de Hobsbawm.
-
25
No entanto, a imagem verdeamarela13 permaneceu e isso por dois motivos principais: em
primeiro lugar, ela permitia enfatizar que o pas possua recursos prprios para o desenvolvimento e
que a abundncia da matria-prima e de energia baratas vinha justamente de sermos um pas de
riquezas naturais inesgotveis; em segundo lugar, ela assegurava que o mrito do
desenvolvimentismo se encontrava na destinao do capital e do trabalho para o mercado interno e,
portanto, para o crescimento e o progresso da nao contra o imperialismo ou a antinao. Todavia,
o verdeamarelismo tradicional - o da rica e bela natureza tropical e o do povo ordeiro e pacfico, ou o
do carter nacional - sofreu um forte abalo, pois passou a ser visto pelos promotores do nacional-
desenvolvimentismo como signo da alienao social dos setores atrasados das classes dominantes
e das massas populares, obstculo contra o desenvolvimento econmico e social, que seria obra da
burguesia nacional industrial moderna e das classes mdias conscientes, encarregadas de
conscientizar as massas.
Desse modo, o verdeamarelismo comparecia sob duas roupagens antagnicas: numa delas,
ele exprimia a maneira ingnua e alienada com que se manifesta o nacionalismo natural e
espontneo das massas, as quais, dessa maneira, reconhecem as potencialidades do pas para
passar da pobreza e do atraso ao desenvolvimento e modernidade. Na outra, ele era o signo da
prpria alienao social, produzida pela classe dominante do perodo colonial e imperial e difundida
por uma classe mdia parasitria, caudatrio da imagem que os imperialistas ou as metrpoles
inventaram e que os nacionais, alienados, imitaram e prosseguiram. Para muitos, tratava-se de
substituir o nacionalismo espontneo, alienado e inautntico por um nacionalismo crtico,
consciente e autntico, o nacional-popular, graas ao qual o setor avanado da burguesia nacional
e o setor consciente do proletariado, unidos, combateriam o colonialismo e o imperialismo,
realizando o desenvolvimento nacional e dando realidade ao ser do brasileiro, identidade
nacional.
Se, em meados dos anos 50 e incio dos anos 60, o verdeamarelismo foi um pano de fundo
difuso e ambguo, significando nacionalismo espontneo e alienao, em contrapartida foi
revitalizado e reforado nos anos da ditadura (1964-1985) ou do Brasil Grande. Essa reposio
verde amarela no surpreendente.
Antes de mais nada, lembremos que a derrubada do governo de Jango Goulart preparada
nas ruas com o movimento Tradio, famlia e propriedade para significar que as esquerdas so
responsveis pela desagregao da nacionalidade cujos valores - a tradio, a famlia e a
propriedade privada - devem ser defendidos a ferro e fogo. Todavia, no essa a mais forte razo
para a manuteno do verdeamarelismo e sim a ideologia geopoltica do Brasil Potncia 2000, cujo
expositor mais importante foi o general Golbery do Couto e Silva.
Se, como no IV Centenrio de So Paulo, a exibio das grandes cidades, coalhadas de
arranha-cus e vias expressas (mas, agora, em preito de gratido pelo apoio financeiro e logstico
que as grandes empreiteiras deram obra da represso militar), interligadas por auto-estradas
nacionais, devia oferecer a imagem do Brasil Grande, apto a receber os investimentos internacionais
e a acolher as empresas multinacionais, agora, porm, essa imagem encontrava seu fundamento na
ideologia geopoltica do Brasil Potncia 2000, que tem na vastido do territrio, nas riquezas
naturais e nas qualidades pacficas, empreendedoras e ordeiras do povo os elementos para cumprir
sua destinao.
-
26
Essa ideologia assenta-se em cinco pilares: 1) a relao mecnica de convenincia entre as
foras do territrio e as disposies nacionais; 2) a consubstanciao entre o povo e o territrio,
que comea pela demarcao das fronteiras nas quais se desenvolver a personalidade nacional;
3) a refrao do povo sobre o territrio, isto , a transformao dos valores objetivos do territrio em
valores subjetivos da alma ou personalidade nacional, graas ao que o Estado se torna orgnico e
nacional; 4) a fronteira ideal, isto , o territrio completo, prometido ao povo pela ao militar e
econmica; 5) a geopoltica como conscincia poltica do Estado, que se alia ao centro dinmico da
sua regio (no caso, aos Estados Unidos) e da qual emana o sistema de alianas e de conflitos leste-
oeste, norte-sul. esse o territrio dos 90 milhes em ao.
A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si mesma trs tarefas: a integrao
nacional (a consolidao da nao contra sua fragmentao e disperso em interesses regionais), a
segurana nacional (contra o inimigo interno e externo, isto , a ao repressiva do Estado na luta
de classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes das naes democrticas ocidentais crists,
isto , capitalistas). A difuso dessas idias foi feita nas escolas com a disciplina de educao moral
e cvica, na televiso com programas como Amaral Neto, o reprter e os da Televiso Educativa, e
pelo rdio por meio da Hora do Brasil e do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetizao),
encarregado, de um lado, de assegurar mo-de-obra qualificada para o novo mercado de trabalho e,
de outro, de destruir o Mtodo Paulo Freire de alfabetizao.
Assim, da Copa do Mundo de 1958 de 1970, o verdeamarelismo, se no permaneceu intacto
em todos os seus aspectos, manteve-se como representao interiorizada da populao brasileira
que, sem distino de classe, credo e etnia, o conserva mesmo quando as condies reais o
desmentem.
interessante observar que o verdeamarelismo opera com uma dualidade ambgua. De fato, o
Brasil de que se fala , simultaneamente, um dado ( um dom de Deus e da Natureza) e algo por
fazer (o Brasil desenvolvido, dos anos 50; o Brasil grande, dos anos 70; o Brasil moderno, dos anos
80 e 90). Assim, na perspectiva verde-amarela, o sujeito da ao triplo: Deus e a Natureza so os
dois primeiros, e o agente do desenvolvimento, da grandeza ou da modernizao o Estado. Isto
significa que o Brasil resulta da ao de trs agentes exteriores sociedade brasileira: os dois
primeiros so no s exteriores, mas tambm anteriores a ela; o terceiro, o Estado, tender por isso
a ser percebido com a mesma exterioridade e anterioridade que os outros dois, percepo que, alis,
no descabida quando se leva em conta que essa imagem do Estado foi construda no perodo
colonial e que a colnia teve sua existncia legal determinada por ordenaes do Estado
metropolitano, exterior e anterior a ela. surpreendente, porm, que essa imagem do Estado se
tenha conservado mesmo depois de proclamada a Repblica.
De fato, curiosa a permanncia dessa figura do Estado (como sujeito que antecede a nao e
a constitui) no momento em que se encerra o perodo colonial e a poca imperial luso-brasileira.
Com efeito, no perodo colonial, como lembra Raymundo Faoro, a realidade criada pela lei e pelo
regulamento, isto , desde o primeiro sculo da histria brasileira, a realidade se faz e se constri
com decretos, alvars e ordens rgias. A terra inculta e selvagem [...] recebe a forma do alto e de
longe, com a ordem administrativa da metrpole14. Se, para uma colnia, o Estado anterior e
exterior sociedade, no pode ser esta a situao de uma Repblica independente. Em outras
palavras, seria de esperar que, com a Repblica, a interioridade do Estado nao se tornasse
-
27
evidente, pois teria sido a nao o sujeito que proclamou a Repblica e instituiu o Estado brasileiro.
Paradoxalmente, porm, a imagem do lugar do Estado no se alterou.
De fato, embora a Proclamao da Repblica seja antecedida e sucedida por afirmaes dos
vrios partidos polticos como um acontecimento que responderia aos anseios da sociedade e da
nao, ou, ao contrrio, que se oporia a tais anseios, e ainda que por anseios da nao ora se
entendessem as reivindicaes liberais de no-interveno estatal na economia, ora a afirmao de
conservadores e de positivistas sobre a necessidade dessa interveno, em qualquer dos casos a
Repblica foi vista por seus agentes e por seus inimigos como uma reforma do Estado. Assim,
histrica ou materialmente, a Repblica exprime a realidade concreta de lutas socioeconmicas e os
rearranjos de poder no interior da classe dominante, s voltas com o fim da escravido, com o
esgotamento dos engenhos com os pedidos de subveno estatal para a imigrao promovida por
uma parte dos cafeicultores, com a expanso da urbanizao e a percepo de que o pai precisava
ajustar-se conjuntura internacional da revoluo industrial; portanto se, de fato, a Repblica o
resultado de uma ao social e poltica, todavia no assim que ideologicamente ela aparece.
No plano ideolgico, ela aparece no como instituio do Estado pela sociedade e sim como
reforma de um Estado j existente. E ela aparece assim porque essa apario aquela que
corresponde ao que seus agentes e adversrios esperam da Repblica. Os liberais esperam que a
separao entre Estado e sociedade seja finalmente, conseguida e no lhes interessa considerar a
Repblica uma expresso da prpria sociedade porque isso poderia estimular a perspectiva
intervencionista do Estado. Como vimos, o liberalismo no podia furtar-se a admitir as
convenincias de um Estado nacional, mas teoricamente preferia reduzi-lo expresso de uma
evoluo natural da famlia ao Estado e sua utilidade para o progresso, isto , para a competio
econmica. Em contrapartida, conservadores e positivistas esperavam que justamente intervindo na
sociedade, o Estado, pudesse, enfim, fazer surgir a nao como territrio unificado e submetido a,
mesmo cdigo legal, com unidade de lngua, raa, religio e costumes. Exterior sociedade, no caso
dos liberais, e anterior nao e seu institui dor, no caso de conservadores e positivistas, o Estado
republicano, cuja realidade concreta ou social permanece oculta, , portanto, percebido como,
antes, era percebida a Coroa portuguesa (veja box).
LIBERALISMO E POSITIVISMO NO BRASIL
Para entendermos o que representavam o liberalismo e o positivismo no Brasil do final do sculo XIX e
incio do sculo XX, vejamos algumas observaes de Alfredo Bosi em sua obra Dialtica da colonizao.
De acordo com este autor, liberal significava conservador das liberdades (liberdades, por seu turno,
significavam: liberdade de produzir, vender e comprar, conquistada com o fim do monoplio econmico
da Coroa portuguesa; liberdade para fazer-se representar politicamente, por meio de eleies censitrias,
isto , reservadas aos que preenchiam as condies para ser cidado, ou seja, a propriedade ou
independncia econmica; liberdade para submeter o trabalhador escravo mediante coao jurdica) e
capaz de adquirir novas terras em regime de livre concorrncia. Como se nota, no havia nenhuma
incompatibilidade entre ser liberal e senhor de escravos ou em ser liberal e monarquista constitucional,
no havendo uma conexo necessria entre liberalismo e abolicionismo e liberalismo e republicanismo.
Quanto ao positivismo, que se desenvolve, sobretudo no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul,
conservavam de Auguste Comte duas idias principais sobre o Estado: a de que cabe ao organismo
-
28
estatal realizar a economia poltica, isto , controlar a anarquia econmica; e a de realizar a integrao e
a harmonia das classes sociais, particularmente o proletariado. O Estado o crebro da nao que,
regulando e controlando os movimentos e funes de cada rgo, no permite que um se sobreponha a
outros. Ordem e progresso (palavras inscritas na bandeira nacional) so o lema prprio do positivismo
comteano. Os positivistas brasileiros, sobretudo os que se agruparam no PRP (Partido Republicano
Popular), defendiam: 1) o imposto territorial; o Estado, portanto, tributando a terra; 2) a concesso de
isenes fiscais para as manufaturas locais incipientes; 3) a estatizao dos servios pblicos; 4) a
incorporao da massa trabalhadora (ou os proletrios) sociedade por meio de rgos corporativos e
com a mediao do Estado nos conflitos entre capital e trabalho, protegendo os pobres do interesse
egosta dos ricos, como propusera Comte.
Do ponto de vista do que nos interessa aqui, ou seja, no o da produo histrica ou material
concreta da nao e sim o da construo ideolgica do semiforo nao, a dualidade dos agentes
(Deus e Natureza, de um lado, e Estado de outro), constitutiva do verdeamarelismo, no apenas
explicvel, mas necessria. De fato, vimos que com o princpio da nacionalidade, a idia nacional
e a questo nacional, o poder poltico constri o semiforo nao na disputa com outros poderes:
os partidos polticos (sobretudo os de esquerda), religio (ou as igrejas) e o mercado (ou o poder
econmico privado). Assim, no gratuito nem misterioso que as falas e as aes do Estado
brasileiro pouco a pouco se orientassem no sentido de dar consistncia ao semiforo que lhe
prprio, a nao brasileira. Em segundo lugar, como tambm observamos, o campo de construo
de um semiforo mtico e, neste caso, tambm no nos deve espantar que os agentes fundadores
da nao brasileira sejam Deus e a Natureza, pois so considerados os criadores da terra e do
povo brasileiros. Ideologicamente, portanto, o Estado institui a nao sobre a base da ao criadora
de Deus e da Natureza. Essa ideologia, como veremos, nada mais faz do que mantm vivo o mito
fundador do Brasil.
-
29
DO IV AO V CENTENRIO
Porque estamos falando em mito, convm relembrarmos a primeira reatualizao de nosso
mito fundador, ocorrida significativamente em 1900, por ocasio do IV centenrio da descoberta do
Brasil, com a publicao do livro de Afonso Celso, visconde de Ouro Preto, Porque me ufano de meu
pas.15
Para entendermos esse livro precisamos considerar, em primeiro lugar, quem o autor, em
segundo, qual o momento da redao e, em terceiro, quais os antecedentes do opsculo.
Quem o autor? Porque me ufano de meu pas teve incontveis edies - em 1944, era
publicada a 12 edio e, em 1997, Joo de Scatimburgo, ocupante da cadeira Afonso Celso na
Academia Brasileira de Letras, o fez reimprimir; lembrando que, em seu tempo de escola, o livro era
leitura obrigatria no 4 ano primrio, e lastimando que, mais tarde, houvesse sido deixado no
esquecimento, o fez republicar para servir s novas geraes como brevirio de patriotismo.
Republicano na monarquia e monarquista aps a Proclamao da Repblica, Afonso Celso, catlico
nutrido do Catecismo do Conclio de Trento, filho submisso da Santa Madre Igreja, nobilitado com o
ttulo de conde por Sua Santidade Pio X, de veneranda memria, foi membro e presidente do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, criado em 1838-39.
Em que circunstncias escrito o livro? Quando escreve Porque me ufano de meu pas, Afonso
Celso tem dia