sobre a normatização da vida um ensaio a partir de nietzsche e agamben

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 346  Anais do V II Seminário de Pós-Gradua ção em Filos ofia da UFSCar (2011) Sobre a normatização da vida: um ensaio a partir de Nietzsche e Agamben  Mayara Annanda Samarine Nunes da Silva *  RESUMO O presente ensaio volta-se ao exame do fenômeno da normatização da vida, entendido aqui como a grande e cada vez maior regulação jurídica e moral das ações individuais dos componentes de uma comunidade política, fato que vislumbramos nas sociedades ocidentais contemporâneas, levantando a hipótese de ser, tal fenômeno, uma consequência direta e inevitável dos valores democráticos modernos. Para tal, apóia-se nas ideias dos pensadores considerados  pós-humanistas  Friedrich Nietzsche e Giorgio Agamben, buscando traçar cruzamentos possíveis no que diz respeito a sua crítica aos e diagnóstico dos sistemas moral e político predominantes a partir da Modernidade. Com Nietzsche refletiremos a respeito da crise de valores, o niilismo, decorrente de um projeto cultural iniciado na Antiguidade com Sócrates e o Cristianismo e que se reflete diretamente no âmbito político atual. Agamben nos auxiliará no questionamento do conceito de vida que encontramos como alicerce do Estado Moderno. PALAVRAS-CHAVE: democracia, normatização da vida, niilismo, vida nua. Introdução Os ideais democráticos e os meios para o alcance de um equilíbrio entre liberdade e igualdade nunca se apresentaram tão amplos e ao alcance da população em geral quanto neste início de século (XXI), onde a maioria dos países, entre ocidente e oriente, adota sistemas de governo representativos e possui como primeiro princípio a salvaguarda do indivíduo e sua dignidade. Todavia, destarte o contexto tão favorável ao desenvolvimento da autonomia *  Pós-graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Artigo: "Sobre a normatização da vida: um ensaio a partir de Nietzsche e Agamben"Autora:Mayara Annanda Samarine Nunes da Silva

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    Anais do VII Seminrio de Ps-Graduao em Filosofia da UFSCar (2011)

    Sobre a normatizao da vida: um ensaio a partir de Nietzsche e Agamben

    Mayara Annanda Samarine Nunes da Silva*

    RESUMO

    O presente ensaio volta-se ao exame do fenmeno da normatizao da vida, entendido aqui

    como a grande e cada vez maior regulao jurdica e moral das aes individuais dos

    componentes de uma comunidade poltica, fato que vislumbramos nas sociedades ocidentais

    contemporneas, levantando a hiptese de ser, tal fenmeno, uma consequncia direta e

    inevitvel dos valores democrticos modernos. Para tal, apia-se nas ideias dos pensadores

    considerados ps-humanistas Friedrich Nietzsche e Giorgio Agamben, buscando traar

    cruzamentos possveis no que diz respeito a sua crtica aos e diagnstico dos sistemas moral e

    poltico predominantes a partir da Modernidade. Com Nietzsche refletiremos a respeito da

    crise de valores, o niilismo, decorrente de um projeto cultural iniciado na Antiguidade com

    Scrates e o Cristianismo e que se reflete diretamente no mbito poltico atual. Agamben nos

    auxiliar no questionamento do conceito de vida que encontramos como alicerce do Estado

    Moderno.

    PALAVRAS-CHAVE: democracia, normatizao da vida, niilismo, vida nua.

    Introduo

    Os ideais democrticos e os meios para o alcance de um equilbrio entre liberdade e

    igualdade nunca se apresentaram to amplos e ao alcance da populao em geral quanto neste

    incio de sculo (XXI), onde a maioria dos pases, entre ocidente e oriente, adota sistemas de

    governo representativos e possui como primeiro princpio a salvaguarda do indivduo e sua

    dignidade. Todavia, destarte o contexto to favorvel ao desenvolvimento da autonomia

    * Ps-graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CAPES. E-mail:

    [email protected]

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    humana almejada pela Modernidade, no parece ser este o caminho trilhado pelo indivduo

    contemporneo, que se mostra sempre mais preso e perdido entre os conjuntos de regras

    jurdicas e morais que balizam mesmo suas menores aes. O Estado ainda detm a ltima

    palavra, sem possibilidade de apelar-se a outras instncias, e a populao no parece esforar-

    se por um rompimento com esta autoridade que lhe diz como agir. No Brasil, por exemplo,

    preciso que o Supremo Tribunal Federal decida questes essencialmente democrticas, como a

    legitimidade do casamento homossexual e de movimentos reivindicatrios de aes

    governamentais, como a marcha da maconha. Como compreender tal contradio?

    O presente ensaio dedica-se a reflexo a respeito de uma possvel resposta ao

    questionamento elaborado acima, resposta esta que pode ser formulada atravs de uma nova

    interrogao: a referida contradio no seria um problema j presente nas razes do conceito

    moderno de democracia? Adotando uma posio crtica a respeito do fenmeno aqui

    denominado normatizao da vida, qual seja, uma cada vez maior regulao jurdica e moral

    das aes individuais dos componentes de uma comunidade poltica, e pautando-se em

    aproximaes possveis entre os pensamentos dos considerados ps-humanistas Friedrich

    Nietzsche e Giorgio Agamben, o texto apresentar argumentos voltados a defesa de uma

    resposta afirmativa a esta ltima questo. Para tanto, deixando-se de lado a anlise de suas

    propostas polticas para determo-nos no problema em questo, o foco do trabalho restringir-

    se- s criticas elaboradas pelos referidos pensadores: Nietzsche em sua macro-anlise da

    constituio da cultura ocidental desde a Antiguidade, Agamben em sua observao quase

    emprica a respeito da poltica do sc. XX e seus horrores totalitrios, marcados pela biopoltica.

    Parte-se, portanto, do pensamento de Adolfo Rocca (2009) de que

    La filosofa de Nietzsche se configura as a partir de la reflexin en torno al problema de la humanidad y la animalidad, es decir, se articula como un intento de ir ms all del humanismo entendido como un esfuerzo de domesticacin del hombre en el que se pretende desinhibir su condicin animal (fracasando em el proceso). De all la importancia de la discusin en torno al estatuto biopoltico del hombre, debate en el que se insertan autores como (...) Giorgio Agamben.

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    Vida

    Se desejamos falar a respeito das concepes de Nietzsche e Agamben, devemos levar

    em considerao que ambos possuem como ponto central de seu pensamento uma

    preocupao com a vida. Esta, contudo, tanto entendida de forma diversa quanto

    desempenha papeis diferentes na teoria dos pensadores. Se faz necessrio entender o que

    decorre da filosofia de cada um quando falamos sobre uma normatizao da vida.

    Ao falar em vida, o italiano Giorgio Agamben remete distino grega entre zo e bos,

    respectivamente, a vida biolgica/animal, do ser vivente, e a vida qualificada, alcanada

    somente pelos homens, atravs da poltica. Alega, inspirando-se em Michel Foucault, que nos

    limiares da Idade Moderna, a vida natural comea, por sua vez, a ser includa nos clculos do

    poder estatal, e a poltica se transforma em biopoltica (AGAMBEN, 2002). Esta vida, que

    encontra-se exposta sem qualquer proteo, a disposio de decises polticas, ele denomina

    vida nua, e do processo referido, afirma decorrer uma animalizao do homem, que cada vez

    mais abre mo da vida qualificada em nome da proteo da vida biolgica. Segundo o filsofo,

    a vida nua o valor bsico da poltica moderna, sendo que constitui mesmo o ncleo originrio

    do poder soberano estatal, e a ela que so dirigidas as chamadas por Foucault de tcnicas

    polticas, com as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos

    indivduos (AGAMBEM, 2002).

    Friedrich Nietzsche, no entanto, ao filosofar com um sculo de antecedncia a

    Agamben, rompendo com a dicotomia natureza/cultura, viu a vida humana como um todo

    integrado, tanto biolgica quanto culturalmente: a vida qualificada como continuao e

    decorrncia da animal/corporal, e vice-versa. Desta apreenso da vida humana como

    inseparvel da natural, decorre sua definio de vida como vontade de potncia. Juntando-nos

    aos que interpretam a filosofia nietzscheana como uma espcie de cosmologia (perspectiva

    adotada por Scarlett Marton), entendemos sua concepo de mundo como um jogo

    permanente de foras e energias, sendo o trao comum dos seres orgnicos um desejo

    constante de crescimento, expanso a vida, ento, seria a manifestao desta vontade: a

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    vida mesma , para mim, instinto de crescimento, de durao, de acumulao de foras, de

    potncia (NIETZSCHE, 2007).

    A vida humana a manifestao das energias que compem o corpo fsico e se

    transmutam em ao, criao, arte, estilo, cultura, e esta vida, para Nietzsche, o critrio de

    avaliao por excelncia. Foras que permitem a expanso da vida, favorecendo a criatividade e

    o desenvolvimento da individualidade, so consideradas foras afirmativas. Foras que limitam

    a capacidade criadora, padronizam e massificam, impedindo o crescimento da vida so foras

    negativas. Nestas ltimas encontramos as regras que normatizam a vida do homem moderno.

    Nietzsche e a pequena poltica

    Em seu estudo genealgico da cultura ocidental, Nietzsche identifica a transvalorao

    iniciada por Scrates e concretizada no cristianismo como estopim de um processo cultural que

    tem como consequncia lgica o niilismo da Modernidade. Para ele, a hipertrofia da razo e da

    conscincia e a vontade de verdade, decorrentes do modelo cultural citado acima, e aos quais

    os homens em sua grande maioria conformaram-se, resultam no desenvolvimento de uma

    moral ressentida (uma moral escrava, de fracos que atribuem a outrem a responsabilidade de

    suas desventuras e definem como maus os fortes a quem invejam) e na autodestruio da

    instncia mxima de julgamento e produo dos valores: a morte de Deus. Chega-se a situao

    niilista da Modernidade: o humano incapacitado de criar valores e romper com a moral

    instituda, devido ao predomnio das foras negativas em sua cultura, j no encontra sentido

    para suas aes e sua vida, ao no mais reconhecer a autoridade da religio na criao e

    avaliao dos valores que o guiavam. Abre-se espao para a secularizao da autoridade

    poltica, mas a ela falta um meio de legitimar-se.

    Apesar de partidrio da democracia durante o perodo intermedirio de sua produo

    intelectual, Nietzsche encontra nos valores modernos de liberdade e igualdade que a

    sustentam a prpria causa de sua falncia. Os ideais libertrios e igualitrios so fices criadas

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    pela moral fraca a que nos referimos acima que no levam em considerao que o processo de

    socializao um meio para o desenvolvimento da singularidade/originalidade, mas resultam

    na generalizao de um tipo humano extremamente egosta e ressentido, pois a base tica da

    obrigao do indivduo para com a sociedade gradualmente corroda (ANSELL-PEARSON,

    1997). Para o filsofo alemo, os ideais democrticos constituem-se, portanto, de foras

    negativas, que inibem a potncia vital e a criatividade, dissolvendo as possibilidades de

    singularidade na massificao de um carter solipsista, e ignorando o necessrio aspecto

    trgico da vida, nos levando a um conformismo com uma ilusria promessa de segurana e

    felicidade. Ademais, pautam-se em uma concepo de personalidade e conscincia idealistas,

    desvinculados do corpo, e, portanto, da vida como vontade de potncia. Paradoxalmente, na

    sociedade liberal moderna, quanto mais o homem valoriza o particularismo, menos

    originalidade possui e mais fortemente restringe-se a moral vulgar: sua [de Nietzsche]

    desavena com a sociedade liberal moderna que, embora sua ideologia de privatizao da

    poltica conceda aos indivduos enorme grau de liberdade particular, s a faz a custa de solapar

    as noes de cultura e cidadania (Idem).

    De um contexto de niilismo que busca a salvao atravs da democracia (em sua

    concepo nietzscheana), a decorrncia lgica a normatizao da vida da qual falamos aqui,

    em um sentido mesmo de normalizao: onde a lei j no tradio, como ocorre conosco, s

    pode ser ordenada, imposta por coero, de modo que temos que nos conformar com a lei

    arbitrria (NIETZSCHE, 2001). Para o filsofo, deve haver uma distino entre cultura e poltica,

    sendo esta ltima nada alm de um meio para o desenvolvimento de uma cultura afirmativa; a

    democracia, todavia, um sistema totalizante ao pretender-se poltico e cultural, e no

    proporciona um espao para o raro, o nico e o nobre, isto , um espao para sentimentos e

    esforos apolticos, de modo a assegurar que nem tudo se politize, e, como resultado, se

    vulgarize (ANSELL-PEARSON, 1997). Pequena poltica como pode ser reconhecida a poltica

    negativa, limitadora e incompleta, contrapondo-se sua proposta de uma grande poltica.

    Para a possibilidade de uma expanso, uma afirmao, da vida, Nietzsche defende a

    necessidade de uma autonomia que em sua concepo aproxima-se da ideia kantiana, mas que

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    diferencia-se desta em dois pontos: quanto a seu sujeito o eu racional , e em sua pretenso

    de universalidade.

    Nietzsche se preocupa com um estilo de carter, no em prescrever uma srie especial de normas de conduta que legislem sobre o que bom e o que mal para todos. Para Nietzsche, ao se tornar uma pessoa o que , a tarefa ajustar conjuntamente suas foras e fraquezas em um plano artstico, at que cada uma delas se apresente como arte e razo, e mesmo as fraquezas deleitem os olhos. (...) Nietzsche encara o alcance da autonomia sob o aspecto de um momento de individuao e diferena que distingue o eu dos outros seres humanos (...) isso no acarreta, para Nietzsche,como para Kant, que se acredite que todos os seres humanos devem conformar-se s mesmas mximas universais da ao (...) uma parte essencial da reflexo de Nietzsche alm do bem e do mal que uma virtude precisa ser a inveno pessoal de cada indivduo: As mais profundas leis de conservao e crescimento exigem o inverso de Kant: que cada um de ns deve projetar a sua prpria virtude, o seu prprio imperativo categrico (Idem).

    Em contraposio, portanto, com a concepo nietzscheana de liberdade, uma severa

    auto-disciplina (...), vontade de auto-responsabilidade (Ibidem), a liberdade moderna, parece

    ter sido confundida com irresponsabilidade diante das aes individuais, pois o homem poupa-

    se de consideraes autnomas sobre seus atos, visto j estarem estes prescritos pela ordem

    poltica e moral vigentes: as foras negativas tornam-se, assim, dominantes, impedindo um

    desenvolvimento afirmativo da vida.

    Agamben e a biopoltica

    Giorgio Agamben, embora no diretamente, pode ser considerado, de certo modo, um

    herdeiro de Nietzsche, ao apoiar-se em Foucault (que, por sua vez, inspirou-se fortemente no

    pensador alemo), e adotar como mtodo a genealogia. Sua crtica aos valores polticos

    modernos, apesar de tambm alcanar o fenmeno aqui nomeado como normatizao da vida,

    parte de fatos diferentes dos analisados por Friedrich Nietzsche.

    Como j referido, Agamben apontou como alicerce da poltica moderna a vida nua,

    uma vida matvel. Ele utiliza o homo sacer uma figura do direito romano que, includa no

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    ordenamento atravs de sua excluso em razo de uma condenao, torna-se insacrficvel,

    por encontrar-se em um limiar entre o mundo humano e o divino, e matvel, pois qualquer um

    poderia extermin-la sem receber uma reprimenda em troca para exemplificar a ideia de uma

    vida nua, visto que, da mesma forma que esta foi includa no ordenamento jurdico como

    objeto de proteo, pode deste ser excluda a qualquer momento fato que depende apenas

    da deciso do soberano. A vida biolgica, portanto, encontra-se a merc de uma normatizao,

    bem como a vida qualificada, o modus vivendi, disponvel diante do Estado, que a regula, ou

    normatiza, em nome da preservao da primeira.

    Tal como Nietzsche, Giorgio Agamben apia-se na sociedade da Grcia Antiga para

    iniciar sua crtica da poltica contempornea. Ele nos diz que, para os gregos, o objetivo da

    poltica era o alcance de um bem atravs da vida qualificada deste modo, os valores que

    qualificavam a vida, se assim se pode dizer, possuam um peso maior mesmo que o da

    preservao da vida do ser vivente (biolgica): morria-se em nome da honra, por exemplo. Na

    Modernidade, todavia, a vida biolgica toma o lugar da vida qualificada na poltica, a zo entra

    na polis, transformado-se no valor central do sistema axiolgico moderno. Esta mudana

    visvel quando se observa a sociedade massivamente consumista e hedonista da atualidade.

    Tal mudana tem importante impacto na concepo agambiana de soberania:

    monoplio no da sano ou do poder, mas da deciso. O soberano aquele que decide sobre

    o valor e o desvalor da vida, sendo, portanto, a vida nua a prpria razo de ser da soberania,

    pois depende de uma valorao, de uma definio. O corpo poltico, composto pelos corpos dos

    indivduos que compem a populao (conforme a metfora do Leviat) depende da sade

    destes para manter-se saudvel: autoriza-se, ento, a interveno poltica no que h de mais

    ntimo no indivduo seu corpo. Surge a a biopoltica, com suas tcnicas de cuidado e

    dominao da vida natural, atravs do direito, da medicina, da eugenia, da disciplina.

    O Estado Moderno legitima-se, portanto, por sua capacidade de proteo da vida,

    como se verifica atravs da justificao hobbesiana de sua existncia (salvaguardar o indivduo

    de um estado de guerra de todos contra todos, onde a vida encontrar-se-ia em risco constante).

    Segundo Agamben (e ainda na trilha de Hobbes), tanto os estados totalitrios quanto os que se

    apresentam como democrticos legitimam-se a partir deste mesmo argumento. Deste modo,

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    conforme o autor, a enaltecida democracia fundar-se-ia no mesmo valor que o famigerado

    totalitarismo: a vida nua (fato atestado pelas declaraes de direitos humanos, atravs das

    quais nota-se claramente que o que est em jogo a vida como zoe o prprio corpo trazido

    para dentro do ordenamento jurdico, por meio de institutos como o habeas corpus).

    Ao prosseguirmos na linha de pensamento agambiana, a contraditria situao de

    fortalecimento do fenmeno da normatizao da vida no seio dos regimes democrticos

    contemporneos torna-se facilmente compreensvel: a expresso da pretenso totalizante

    que se encontra nos fundamentos do pensamento poltico moderno. Parece-nos que enquanto

    o fundamento da democracia, e dos demais sistemas polticos atuais, for a vida nua, no haver

    escapatria para a intensificao do fenmeno aqui analisado, pois este apresenta-se como

    salvaguarda da vida biolgica de sua populao.

    A normatizao da vida

    Trilhando diferentes caminhos tericos e tratando de ocorrncias diversas, os filsofos

    que inspiram este texto aproximam-se em seu diagnstico a respeito da poltica moderna

    enquanto os valores fundamentais da democracia permanecerem os mesmos, a normatizao

    da vida ser uma fatalidade e nos alertam para as consequncias deste fenmeno,

    apresentando ideias que aqui sero tratadas como complementares.

    Em sua obra, Agamben, um estudioso do direito, centra seu exame nas consequncias

    polticas, ou talvez poderamos dizer, coletivas, da constatada entrada da zo na plis, trazendo

    anlise fatos histricos, como o holocausto. Nietzsche, um filsofo da cultura que se

    autodefine como psiclogo, por sua vez, dirige ao fenmeno em questo um olhar existencial,

    ou mesmo psicolgico, destacando como sua resultante a decadncia de uma vida entendida

    como vontade de potncia. Ambos enxergam no sistema axiolgico contemporneo um

    esvaziamento do sentido da vida que leva ao niilismo e ao predomnio de uma vida no-

    qualificada, hedonista e imediatista, onde o espao poltico perde o carter de arena de luta e

    debate para tornar-se apenas um campo de controle. Neste contexto, no h espao para

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    diferena ou alteridade, pois o outro, apenas um conceito formal o sujeito de direitos que

    pode ser excludo deste status a qualquer tempo, no representa mais que uma ameaa de

    insegurana e instabilidade. a partir deste conformismo com a necessidade psicolgica

    humana de segurana, que leva ao desenvolvimento de uma vontade de verdade, que o Estado

    moderno legitima-se e amplia seus poderes de modo a normatizar normalizando, garantindo

    uma previsibilidade das condutas daqueles que constituem seu corpo poltico. Em tal situao,

    o homem abre mo daquilo que seriam seus prprios direitos e de uma expanso de sua vida

    em nome da preservao de seu status atual.

    Tal estabilidade, contudo, resulta em hostilidade e ressentimento em relao ao

    externo e ao desconhecido ao diferente pois a vida no se desenvolve, seguindo um

    caminho inverso ao de sua natureza expansiva; esta situao, por sua vez, leva a aceitao de

    um viver que torna-se disponvel. Agamben constatou, acertadamente, que esta opo da

    humanidade no poderia resultar em um fenmeno diferente do que identificou como o

    surgimento dos campos o lugar de habitao do homo sacer, a situao espao temporal de

    suspenso do ordenamento, onde a vida torna-se matvel: presdios, campos de concentrao

    de inimigos polticos, de refugiados, favelas.

    Tamanha regulao do viver, tal relevncia atribuda s definies e generalizaes,

    uma cultura que no sabe criar, no transvalora, nos leva a consolidao de uma sociedade

    onde a prpria qualidade de homem colocada em questo (AGAMBEN, 2002).

    Concluso

    No obstante as crticas apresentadas ao longo deste ensaio, ressaltamos que no se

    pretendeu aqui promover uma desconstruo inconsequente do sistema democrtico como um

    todo, mas elaborar um convite a uma auto-anlise da democracia capaz de levar no a

    destruio, mas a uma transvalorao, uma nova atribuio de sentido aos valores que a

    embasam, de modo a torn-la um instrumento potencializador de uma vida qualificada.

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    Anais do VII Seminrio de Ps-Graduao em Filosofia da UFSCar (2011)

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