signotica 24 n. 2 - dialnet.unirioja.es · dos da linguagem, em que esse espírito se mostrou...
TRANSCRIPT
A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA de justiçA sociAl: o cAso demétrio mAgnoli e seus Argumentos contrA As cotAs1
KAnAvillil rAjAgopAlAn*
* ProfessorTitularnaáreadeSemânticaePragmáticadasLínguasNaturaisdaUniversidadeEstadualdeCampinas(Unicamp)ePesquisador1AdoCNPq.
Email:[email protected]
Recebidoem28defevereirode2012Aceito em 10 de março de 2012
resumo
DestacandoaimportânciadopapeldaLinguísticaCríticaparaadiscussãodetemas socialmente relevantes, este artigo discute os usos e abusos de argumentosconsideradoscientíficosparaadefesadeposiçõesconservadorasemnossasociedade.Oartigodefendeaconsideraçãodocontextohistóricoparacompreenderessesargumentoseassumeaideologiacomoparteconstitutiva,aindaquenegada,daciência.OcasoanalisadoéolivroGota de sangue,deDemétrioMagnoli, que, para defender sua posição anticotas, lançamão dediversosargumentosconsideradoscientíficos,aomesmotempoemquenegaasuaprópriaposiçãoideológica.
pAlAvrAs-chAve:LinguísticaCrítica,Ciência,argumentação,cotas.
AconceituadarevistaScience,emsuaediçãode18dedezembrode 2009, traz um artigo da autoria deMaxWeisbuch, um pesquisadorepósdoutorandodoDepartamentodePsicologiadaSchool of Arts and Sciences da universidade norteamericana de Tufts. Tratase deumtemasobreoqualmuitosentrenóssempretinhamalgunspalpites,muitas suspeitas e, comcerteza,muitas opiniões e atémesmo “convicções” inabaláveis.Mas apesquisa apresenta algomaisquemerasespeculaçõeseideiasintuitivamentefortes2sobreumaquestãodesumaimportânciaquemuitagente,noentanto,relutaemtomarcomodignadeamplodebateepreferevarrerparadebaixodotapeteoufingirquesimplesmentenãoexiste.Poisbem,apesquisaescancaraumamontoadodeconclusões–inquestionáveisdopontodevistacientífico–deque“opreconceitoracialsefazemergirdeformamuitomaissutildoquepor intermédiode injúriasdiretas”.Elafocaosprogramasapresenta
DOI 10.5216/sig.v24i2.17333
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...260
dosnotadamentenatelevisão,porexemplo,emtelenovelas,nasquaisopreconceitoracial,segundooautordotexto,podeestarocultoondemenosseespera,talcomonalinguagemcorporaldosatores/personagensouemumsimplesolhar–muitomaissutileveladodoquenacenaemqueapersonagemrepresentadaporumaatriznegrapediaoperdãoàsuapatroa(branca,comonãopodiadeixardeser;ocontrário,nempensar!)ajoelhadanochão,quefoiexibidacomopontoaltodeumanovelanohorárionobrenatelevisãobrasileira,hánãomuitotempoatrás–umacenaque,paramuitostelespectadores,sintetizouocúmulodeumacertoperversodeumembatehistóricoentreasduasraçasocorridonopassadonãomuitolongínquo:avítimapedindooperdãodoperpetradordecrimesimensuráveis.
ComentouNaliniAmbady,professoradoinstitutoondeapesquisadeWeisbuchfoirealizada:
Asnossaspesquisasmostramqueformasocultasdocomportamentonãoverbaltelevisivomarcadamenteinfluenciamnaformaçãodetendênciaspreconceituosasnostelespectadores,muitoemboraelespróprios,ostelespectadorespossamadmitirserincapazesderelatarterconscientementeobservadotaistendências.(cf.,Science Daily,2009,p.18)
Vivemosnaeradaciência,oumelhor,daCiência,com“c”maiúsculo.ComoadventodoIluminismo,aCiênciausurpouolugaratéentãoocupadopelareligião.3Éevidente,portanto,queomotivopeloqualfizquestãodedestacar,logodeinício,queasconstataçõesqueseseguiriamcontavamcomoprestígiodeumarevistacientíficacomoaScience–foi,nadamaisnadamenos,impressionaroleitorcomaautoridadedequemfala(ochamado“argumentoporautoridade”).
ACiênciaimpressiona,mastambémengana.E,àsvezes,enganamuitoe,oquevemaserpiorainda,éfrequentementeusadadeformadeliberadacomopropósitodeenganar.MesmoquemqueiraeximiraCiência de praticar enganação proposital não consegue negar, em sãconsciência, que os que juramemnomeda ciência – quer de formapropositadaquerdeformaapressadaeimpensadamenteingênua–enganamosincautos.
Emmeioaosargumentosacaloradosemtornodasquestõesdejustiçasocial,oumelhor,dafaltadelaemmuitassociedades,exemplos
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 261
nãofaltamparacomprovarcomoalgunsargumentossãoarregimentadosparafavorecerachegadaàdeterminadaconclusãoque,noentanto,serevelabaseadaempremissasespúriasouapenasparcialmenteprocedentes.Acreditoquecabeanós,pesquisadoresnocampodeLinguísticaCrítica,detectaredenunciaressasmanobrasengenhosasderetóricaespeciosa,muitasvezespraticadassobomantodeacademicismoausteroedestemido(rAjAgopAlAn,2003).
Convémrealçarquemeupropósitonãoé–nemenfaticamentenemdeformageneralizada–taxartodasessasestratégias,postasempráticaporquemquerqueseja,deestaremacobertandocomplôsmeticulosamenteplanejadoseexecutadosparasalvaguardarosinteressesescusosdaquelesquesesentemameaçadosdiantedamarchadoseventosedasmedidasquevisamàmaiorjustiçasocial.Nósquenosconsideramosintelectuaise,poressarazão,maiscríticosemenosvulneráveisaargumentosfalaciososeinteresseiros,muitasvezescostumamoscairnaarmadilhadedefenderteses,acreditandopiamentequeestamosapenasdivulgandoos frutosdasnossaspesquisasenossas reflexões,movidospeloamoràverdadeeàcoragemdedefendêlacusteoquecustar,semperceberqueestamosdefatoservindoaosinteressesdepoderesocultosagindosobrenósdeformasutil.Taléopoderdaideologiadominantesobrenós.E,mesmoaquelesentrenósquenosorgulhamosdeser intelectuais,deser livresedescompromissadoscomrelaçãoamotivaçõespolíticas,estamoslongedeestarisentosouimunesaosencantosdaideologiaquecontrolaenorteiaospensamentosvigentes.
A herAnçA do estruturAlismo
Não há nenhum exagero em dizer que, de certa forma, somostodosestruturalistas.Pelomenosalgunsprincípios epreceitosdoestruturalismopermanecemaindahojecomoumaherançamaldita.E,oqueépior,essesprincípiosepreceitossão,vezououtra,invocadospelosinteressadosparasubverteraçõesquevisamcorrigirdesequilíbrioscriadosnasociedadepormeiodeatosinjustospraticadosaolongodahistória.
OestruturalismovarreuaEuropae,maistarde,orestodomundo,sobretudonaprimeirametadedoséculoXX(rAjAgopAlAn,2004a,
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...262
2009a).Emnomedocientificismoqueimperavanaépoca,pleiteavasequesósepodefazerumestudosériodeumobjetoqualquer,quandoeseeleestiverdesvinculadodahistóriadaqueleobjeto.Nocasodosestudosdalinguagem,emqueesseespíritosemostrouparticularmenteeficaz,FerdinanddeSaussure([1916]2000)defendeuaseparaçãonítidaentreoestudosincrônicodeumalínguaeoestudodiacrônico.Aideiasubjacenteeraadequenadadoquepodemosdizercientificamentearespeitodeumalínguadecorredosseusestágiosanteriores.Porexemplo, a línguaportuguesa teria evolvidodoLatim,e issocomcertezadeixoumarcasnela,masoLatimnãotemnadaavercomoPortuguês,talqualessalínguaseencontrahoje.Paraestudálacientificamente,éprecisoesquecerasuahistóriaeabordálacomoseelativesse“caídodocéu”deumavezportodas,prontaeacabada.Podesedizerqueessaênfasetotalemcortarperemptoriamentequalquerlaçocomahistóriaerauma reaçãoaohistoricismoqueprevaleceuemépocasanterioresequeprovocouKarlPopper(1957)aescreverseulivroA miséria do historicismo, no qual condenou essa tendência como potencialmenteperigosaeperniciosa(muitoemborasuacríticafossedirigidaàideiadedestino,deprédeterminaçãohistórica, talcomoforapregada,porexemplo,peloNazismo).
ComodizDosse(1993,p.69),
Essaradicalmudançadeperspectivarelegaadiacroniaparaosta-tusdesimplesderivadaeaevoluçãodeumalínguaseráconcebidacomoapassagemdeumasincroniaparaumaoutrasincronia.[...]essetour de forcepermitiuàlinguísticalibertarsedatutelahistoriadora,favorecendoasuaautomatizaçãocomociência,masaoaltocustodeumahistoricidade[...].
A importânciA dA históriA nAs ciênciAs sociAis
Otermo“cientismo”4significa,entreoutrascoisas,aconvicçãodequeosmétodosutilizadosnasciênciasexatasebiológicastambémvalemcomigualpropriedadenasáreashumanasesociais.Ocientismo foi, durante o séculoXX, e continua sendo até os dias de hoje,umaforçamuitomarcantenosrumosdapesquisa.Issoémuitobemrefletidonaformacomocostumamospensara respeitodasquestões
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 263
que interessamaospesquisadoresnasdisciplinassociais,humanaseatémesmofilosóficas.Émuitocomumverospesquisadoresseesforçandoparaformularsuaspropostasseguindorigorosamenteasnormasestabelecidastendoemmenteaspesquisasexperimentais.Assim,fazemoscom frequênciavistagrossaparao fatodeque termoscomo“hipótese”e“cronograma”rígidosebemdelineadosnãoseaplicamàspesquisasnocampodeciênciashumanas,particularmentequandoelasgiram em torno de questões filosóficas e teoricamente “cabeludas”.Nessas pesquisas, o que se vê é que as questões que originalmentedespertaramenortearamointeressedopesquisadorvãosofrendomudançaspaulatinamente,aolongodasreflexões,eotaldocronograma,longedeobedeceraetapasdiscretascomo“coletadedados–análise–conclusões”(nessamesmaordem),manifestaumaordemdevaievemeumsimultâneoaprofundamento,epossivelmentealargamentoouafunilamentodoquadrodereferência.
Quandooespíritodecientismoprevalecenasciênciashumanas,oresultadoimediatoéque,naânsiadeisolaro“objetodeestudo”,opesquisadorrelegatodoocontextoemqueesteseencontra.Nosestudosdalinguagem,criaseoobjetochamado“língua”,queévislumbradodeformadesatreladadeseucontextosocialehistórico.Foioquemoveu Saussure em sua insistência em abordar o objeto sincronicamente.Játrateiemoutroslugares(cf.rAjAgopAlAn,2004b,2004c)dosdesastrososdesdobramentosdadecisãoinauguraldeseafastardocontextosociale,emespecial,doZeitgeistdomomentohistóricoemquealínguaseencontra.EsseZeitgeistsetornaimportante,poisénelequesedelineiamasopiniõesqueusuários(o“povo”demodogeral)têmarespeitodesualíngua.Odescasopropositaldesedistanciardaopiniãopopularé,nofundo,maisumaformadeignorarahistória–nãosódalíngua como um objeto reificado,mas também domodo como seususuáriosaveemaolongodostempos–ofatoéquealinguísticasempreprocurounegligenciarsuaprópriahistória(rAjAgopAlAn,2005).
Nãoédeseestranharqueasciênciashumanastenhamsido,deformageral, afetadaspelosacontecimentosna linguística,poisa linguísticafoiaprincipalfontedeinspiraçãodelas,principalmentenaprimeirametadedoséculoXX.EisoqueRolandBarthes([1973]1985,p.221),citadoemDosse(1993,p.67)temadizerarespeito:“Saussure
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...264
representaumamudançaepistemológica:oanalogismotomaolugardoevolucionismo,aimitaçãosubstituiaderivação”.
mAgnoli e suA Gota de sanGue
Umaperguntaquenãoquersecalaré:aqueminteressaoapagamentodahistória,edasmarcasedosvestígiosqueelasempredeixaemseusrastros?Antesdeprocurarmosumarespostaparaapergunta,convémlembrarqueháinúmeroscasosdeusoindiscriminadodosfrutosdaCiênciaporsetoresinteressadosdasociedadeemproveitopróprio.AforaofatoinegáveldequeaCiênciaseencontra,elamesma,muitasvezesideologicamentecompromissada,existetambémousoideológicodasconclusõesputativamentederradeiraseinabaláveisaquesupostamentechegamoscientistas.Tantoissoéverdadequealinhadivisóriaque se supõe separar aCiência da Ideologia tornase cada vezmaistênue,paranãodizerextremamenteduvidosa.QuemnosforneceumapistavaliosasobrecomoaciênciaconsegueesconderseusprópriosresquíciosesubterfúgiosideológicoséArneNaess,omemorávelfilósofonorueguês(1972,p.128,citadoemGrAy1980,p.21):
[O termo] “Ciência” constituium rótulode enormeprestígionospaísesocidentaisealgunspaísesorientais.Esseprestígioéarregimentadoporinteresses“ocultos”,afimderestringiragamadeperspectivasquesãoconsideradasadmissíveis.Apressãoparaqueissoocorrararamenteencontraresistênciaporpartedosmembrosmaisdestacadosdacomunidadecientífica.Estandonotopodacarreira,elestendemaaposentarseouanãosersocialmenteinfluentesouaestarconcentradosemsuaspesquisasespecíficas,oqueostorna,semqueelesmesmosopercebam,coniventescomodogmatismogrosseiro.
AsestreitassemelhançasentreasformascomoaciênciaeaideologiafuncionamforamenfatizadasporPaulFeyerabendnumensaiointituladodeformaprovocativa“Comodefenderasociedadecontraaciência”.Nele,Feyerabendnosaconselhaoseguinte:“Seoobjetivoécombatertodasasideologias,vamosemfrente.Mas,nãonosesqueçamosdaciência”(FeyerAbend,1981,p.156).
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 265
AspalavrassábiasemuitoprofundasdeArneNaessseaplicamcomassustadoraacuráciaaolivroUma gota de sangue,daautoriadosociólogoDemétrioMagnoli(2009a).Otomgeraldaobraseencontraresumidonoseguinteparágrafodolivrodenadamenosque398páginas:
Raçaé,precisamente,areivindicaçãodeumgueto.Onomedessegueto é ancestralidade.Avidadeum indivíduoquedefineo seulugarnomundoemtermosraciaisestáorganizadapeloslaços,reaisou fictícios, que o conectam ao passado.Mas amodernidade foiinauguradaporumaperspectivaoposta,quesecoagulanosdireitosdacidadania.Oscidadãossãoiguaisperantealeietêmodireitodeinventarseuprópriofuturo,àreveliadeorigensfamiliaresourelaçõesdesangue.Apolíticaderaçaséumanegaçãodamodernidade.(mAgnoli,2009a,p.15)
A recepção entusiásticA do livro e As desAvençAs iniciAis
O livro foi aclamado instantaneamente como um verdadeirohappeningemmeioàintelectualidadebrasileira.AsseguintespalavrasdeMarceloLeite(2009),colunistadaFolha de S.Paulo,fornecemnosumaideiadarecepçãoentusiasmadaqueolivrodeMagnolirecebeu:
Nãose iludao leitorcomo títulodaobra.O livrodogeógrafoecolunistaDemétrioMagnolinãoéumcompêndio.Tratasedeumtextode intervençãonodebatebrasileiro sobre cotas raciais.Seuméritomaiorétermuitomenosdefeitosqueobestseller“NósNãoSomosRacistas”, do jornalistaAliKamel.A tese é amesma: asaçõesafirmativaseomovimentonegroresultamdeumaarmaçãoideológica.Elaconspiracontraoprincípiodaigualdadeperantealei,contraaideiadenaçãoe,nocasobrasileiro,contraseugenerosomitofundacional,amestiçagem.
Mas,paraasurpresademuitos,opróprioMagnoli(2009b)rebateu,imediatamente,aresenhafeitaporLeite,objetando,entreoutrascoisas,aideiadequeolivrofosse“umtextodeintervençãonodebatebrasileiro”.Magnolitambémserevela,nomesmotexto,inconformadocomaformacomo,noseuentender,Leiteressaltaopropósito inter-ventóriodo livroUma gota de sangue e,aomesmotempo,despreza
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...266
aparteemqueseencontraoputativoembasamentoteórico,recheadodesupostos“fatoshistóricos”e“dadosincontestáveis”.Nodecorrerdasuaresenha–conformejádisse–elogiosadolivro,Leitedissera:
Digressões históricogeográficas sobrecarregam um tanto a leituracomexemplosdepaíses,instituições,movimentoseautoresquecomprovariamatese.Aspartes trêsequatro,porexemplo,poderiamsersaltadassemprejuízoparaofulcrododebatebrasileiro.
A reaçãodeMagnoli foi pontual e claramentedemonstraumadosedefrustraçãocomofatodeoresenhistanãoterreconhecidotodooesforçoempenhadoemarregimentarargumentosquesustentariamasconclusões:
Eledecretaqueolivroé“umtextodeintervençãonodebatebrasileirosobrecotasraciais”esugerequesesaltetudoquenãoincidediretamentesobreoBrasil,comoas“partestrêsequatro,porexemplo”.Apropostadeignorarmaisdemetadedeumaobra,justamenteondeseencontram,naspalavrasdoresenhista,as“digressõeshistóricogeográficas”(cruz,credo!)que“comprovariamatese”,éumainovaçãoetanto.Perguntomeseeleconsiderouahipótesedequeasugeridaleituraprodutivistadeturpeacompreensãodatese.
O que chama atenção nessa resposta ressentida e acirrada porpartedeMagnoliéaveemênciacomqueelerechaçaqualquerideiade“intervenção”eoigualrepúdioàqualificaçãode“maisdemetade”dolivrode“digressõeshistóricogeográficas”.
criticidAde e seus críticos
Aabordagemcríticaemrelaçãoàteoria,ouseja,aideiadequeoteóriconãotemcomosefurtardeagirdecisivamentenaprópriaatividadedepensareformularteoriaséoriundadatradiçãodopensamentocríticodaEscoladeFrankfurt.Emseuensaio intitulado“Filosofia eTeoriaCrítica”,MaxHorkheimer(1968,p.69),umadasfigurasimportantesdessaescolaaoladodeAdorno,escreveu:
Ateoriaemsentidotradicional,cartesiano,comoaqueseencontraemvigoremtodasasciênciasespecializadas,organizaaexperiên
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 267
ciaàbasedaformulaçãodequestõesquesurgememconexãocoma reprodução da vida dentro da sociedade atual.Os sistemas dasdisciplinascontêmosconhecimentosdetalformaque,sobcircunstânciasdadas,sãoaplicáveisaomaiornúmeropossíveldeocasiões.Agênesesocialdosproblemas,assituaçõesreaisnasquaisaciênciaé empregada eos finsperseguidos emsua aplicação, sãopor elamesmaconsideradasexteriores.
Eprosseguiu,fazendoumacontraposiçãoàteoriacrítica:
Ateoriacríticadasociedade,aocontrário,temcomoobjetooshomenscomoprodutoresdetodasassuasformashistóricasdevida.Assituaçõesefetivas,nasquaisaciênciasebaseia,nãosãoparaelaumacoisadada,cujoúnicoproblemaestarianameraconstataçãoeprevisãosegundoasleisdaprobabilidade.Oqueédadonãodependeapenasdanatureza,mastambémdopoderdohomemsobreele.Osobjetoseaespéciedepercepção,aformulaçãodequestõeseosentidodarespostadãoprovasdaatividadehumanaedograudeseupoder.(horKheimer,1968,p.69)
Falarem“história”,paraMagnoli,significacairnosencantosdovelhomarxismo.EisoqueeletemadizerarespeitodeFlorestanFernandes:“FlorestanFernandesacreditavaqueointelectualtemumpapeladesempenharnatransformaçãosocialesempreseconsideroumaisummilitantepolíticomarxistaqueumacadêmico”(mAgnoli,2009a,p.157).
Magnoli (2009a, p. 157), no entanto, tem certa razão quandoacrescenta,logoaseguir:
Contudo,nasuasociologia,foiecléticoeprocurouorigor,explicandoqueointelectualnãoproduzarealidadeemquevivee,quandomuito,ajudaacompreendêla.Aavaliaçãotemsentido,éclaro,mastambémembaçaumpoucooolhar,poisointelectualefetivamentecriarealidades.
Aquicabemalgumasobservaçõesquetêmmuitoavercomoqueestouquerendopleitearnestetexto:Magnolideixadeperceberalgunsdesdobramentoscruciaisdesuasprópriasadmissões.
Emprimeirolugar,eletemtodarazãoquandoafirmacomtodasasletrasque“ointelectualefetivamentecriarealidades”.Mas,emquesentidoissodevesercompreendido?
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...268
o intelectuAl e A criAção de reAlidAdes
OditadoinglêsquedizThe pen is mightier than the sword (Acanetaémaispoderosadoqueaespada)dizrespeitonãosóaopoderdapalavraemmoverasmassasedesencadearumaavalanchedeatosmaispoderososqueemumaguerradeclarada,mastambémaosentidoemqueodonodapalavra,oescritorouooradortalentosoacabaimprimindosuavisãodomundocomoavisãomaisatraentee,enfim,comooretratofieldaúltimaeúnicarealidade.Issovaletantoparaumdemagogodiabólicocomo,emtemposrecentes,AdolphHitler,comoparaumcientistarespeitado,oquecomprovaaprovocaçãodePaulFeyerabend,citada anteriormente: “Seo objetivo é combater todas as ideologias,vamosemfrente.Mas,nãonosesqueçamosdaciência”(feyerAbend,1993,p.156).
EmseulivroLTI A Linguagem do Terceiro Reich,VictorKlemperer(1947[2009])nosmostracomoanovalinguagemou,sequiser,a“novilíngua”fabricadacomexímiaperfeiçãopelosNazistasacabouinduzindoamaiorpartedapopulação–inclusiveoscidadãosjudeus,perseguidospelosseguidoresdeHitler–aempregálainadvertidamentee,dessa forma, incorporálae,emseguida,“naturalizála” inconscientemente.Emsuasprópriaspalavras,“nãousamosimpunementealinguagemdovencedor.Acabamosporassimilálaepassamosaviverconformeomodeloqueelenosdá”(Klemperer,[1947]2009,p.309).
Quetodointelectual,demagogooucientista,ajudaacriarumanovarealidade,nãoénenhumanovidade.Talvezsejaissoqueambostêmemcomumcomopoeta.Oproblemaéquandoessanovarealidade,essa“visãodomundo”ouWeltanschauung (comoosalemãescostumamchamála),acabasendoaúnicadisponívelouquandoesforçossãoempenhadosparatornálaassim,eliminandotodasasalternativas.Numoutrotrechodoseulivro,Klemperer([1947]2009,p.230)serefereaoescritoraustríacoArthurSchnitzler(18621931),ediz
Paraele,eralógicoqueWeltanschauungrepresentasse“odesejoeacapacidadedeenxergaromundocomoelerealmenteé,ouseja,contemplaromundosemsedeixarinfluenciarpelospreconceitos,semanecessidadederetirardesuaexperiência,rapidamente,umanovaleioudeinseriressaexperiênciaemalgumaleiqueexista...
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 269
Mas,paraaspessoas,WeltanschauungéumaespéciedeGesinnun-gstüchtigkeit[formaSuperiordeapegoaconvicções]–umapegoinfinitoaconvicções,porassimdizer”.
OdesejodeselivrardatemporalidadeesuperarocaráterprovisórioeprecáriodasuaWeltanschauung levaoserhumanoaacreditarnasuauniversalidadeenaobjetividade,eareivindicálascomofatosconsumados.Daíocuidado,porpartedeMagnoli,emnãosecontraporàideiaatribuídaaFernandesdequeointelectualjamaispodecriararealidadeemqueelevive,masapenas,enamelhordashipóteses,descrevêla–umaconvicçãooriundadorealismocientíficoaqueambossubscrevem.Magnoli,todavia,complicaascoisasparasi,pois,logoemseguida,apressaseemacrescentarquetambéméverdadeque“ointelectualefetivamentecriarealidades”.Ora,ele teráqueescolherentreumadasposições,paraquepossaevitaraquedaemumacontradiçãogritante.
como se criAm reAlidAdes AtrAvés do uso dA linguAgem
OpodercriativodousodalinguagemfoitrabalhadocommestriapelofilósofoinglêsJ.L.Austin(1962).EmseulivroclássicoHow to Do Things with Words,Austinesboçouumaformadeabordarosenunciadoslinguísticoscomoinstânciasdeenunciaçãoque,longededescreveremcertos“estadosdecoisas”nomundo,comodecretavaatradição,naverdadecontribuiriamparamoldaromundodenovasmaneiras(RA-jAgopAlAn,2004e,2009b).Atémesmoumsimplesecorriqueiroenunciadona formadeclarativacomo“Euvosdeclaromaridoemulher”,pronunciadoporumpadreoupastornomomentoapropriadoedeacordocomregrasestabelecidaspreviamente,contribuidecisivamenteparaalterarsignificativamenteomundo,namedidaemqueintroduznessemundoumfatonovoeinéditoqueatéomomentonãoexistia.
AustinfoiumgrandeimpulsionadordaescolafilosóficaqueficouconhecidacomoaFilosofiadaLinguagemOrdinária,cujamaiorinovaçãonocampodepensamentofilosóficofoijustamentecomprovarqueo nossousoda linguagem impacta omundo e nele intervémdeformadecisiva,conscienteouinconscientemente.Austinmostrouqueonossousodalinguageméinvariavelmenteperformativo,mesmoquan
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...270
doelenosengana,comoenganou,elevoumuitosestudiososaolongoda história a pensar que pelomenos uma parte dos significados sãodaordemdos“constativos”–aquelesenunciadosqueservemapenasparadescreverumarealidadeexterioreindependentedalinguageme,omaisimportante,quesãoimunesaqualqueringerênciaporquemquerqueseja.Acontece,comochegaamostrarAustin,mesmoumenunciadodotipo“Ogatoseencontraemcimadocapacho”,tidocomocasoexemplardeumasentençadeclarativae,poressemotivo,suscetíveldeseravaliadacomoverdadeiraoufalsa(aprovaderradeiradeumasentençaqueapenasrefleteomundo,semneleinterferir),é,nofundo,umenunciadoperformativocomoqualqueroutro.
ParaAustin, os enunciados performativos se distinguem dosconstativospornãoseprestaremaumaavaliaçãoemtermosdobinômio“verdade/falsidade”.Elespodemapenasserconsiderados“felizes”ou“infelizes”,dependendodascircunstânciasemquesãoproferidos.A famigerada questão da verdade (ou falsidade), que tantoocupouaatençãodosfilósofos,serianadamaisqueumadas“condiçõesdafelicidade”ou,quemsabe,umdosefeitosdeumproferimentofelizebemsucedido.Emnossostempos,aauradaCiênciacontribuipara que um enunciado seja premiado como certificado de “100%verdadeiro”.
ÉnessaperspectivaqueaafirmaçãodeMagnoli–“ointelectualefetivamentecriarealidades”–começaafazeralgumsentido.Qualqueratodeenunciação,quandoabordadocomoumcasodeperformativo,temessapropriedade.Quandoproferidaporumcientista(ouum“intelectual”,nodizerdeMagnoli),elanãosóefetivamentecriaumanovarealidade,mastambém,namedidaemqueutilizaoprestígiodaciênciae da academia, conferelhe autoridade, respeitabilidade e atémesmoumardeirrefutabilidade.Digasedepassagem,que,aoquemeconsta,MagnolinãoestavapensandoemAustin,muitomenossimpatizandocomsuasideias.
de voltA A uma Gota de sanGue: o pApel dA ciênciA
OsubtítulodolivrodeMagnoliéHistória do pensamento racial.Eleatélembraotítulodolivro,jáclássico,deClóvisMoura(1989):
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 271
História do negro brasileiro.Masassemelhançasparamporaí.ComoobservaMesquita(2003):
Clóvis Moura está claramente preocupado com a transformaçãosocial, e com issonorteia suapostura intelectual entendendoqueopensadorindependentepossuimaioresemaisconcretaspossibilidadesde fomentaramudançadasociedade,poisnãoestápresoanenhum tentáculodo sistema.Emsua ilação,expõeque“o sociólogoprofissionalusadeumconjuntode técnicasparaserviràestrutura;nãoéumcientistaindependentequeprocuraumapráxisparatransformála”.(mourA,1978,p.28)
DiferentementedeMoura,Magnolinãotemnenhumapretensãotransformadora.Oladoarticulistaecolunista5dasuapersonalidadeestáàcaçadeoportunidadesdeaparecereseralvodeholofotesdamídia.Todooseuesforçoconcentraseemdaraimpressãodeterexecutadoum empreendimento impecavelmente científico – neutro, metódico,objetivo,custeoquecustarecutuquequemcutucar.Éassimqueelecomeçaseulivro,sobotítulode“Umahistóriadosangue”:“Classificarécolocarosobjetos–ouasideias–emordem.Ahumanidadeclassificadesdeostemposremotos.”
Ouseja,todaaquestãocabeludaquequerinvestigarprecisaserabordadacomoolhardeumcientistadescompromissadodequalquerposicionamentoideológico.Nessaempreitada,ahistóriasótemvalornosentidodecolocaradiscussãonumcontextomaior.Elanãoentradeformaalgumanaselucubraçõesteóricaspropriamenteditas.Fielàtradiçãodoestruturalismoeàvisãodaciênciaemqueelasebaseia,Magnoli quer deixar a história à distância, para poder se concentrarnaquestãocentral,seu“objeto”deestudo,talqualeleseapresentanomomentopresente.
AhistóriaqueMagnoliquerresgatar,portanto,nãoéadenenhumaraça,masadaformacomo“raça”foitrabalhadaaolongodosséculos.Ahistóriadonegronãolheinteressa,menosaindaahistóriadasinjustiças,dastrapaças,dasdiscriminações,dasiniquidadesaqueonegro–ouoíndio(assuntoquenementranapautadasdiscussõesdeMagnoli,emborasejafácilverporqueeleseesquiva)–foisubmetido.
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...272
Algumas frases do livro, escolhidas aleatoriamente, ilustrammuito bema forma comoMagnoli trata da questão. Sobo título “Aciênciadasraças”,elediz:
Oetnocentrismoéumtraçoidentificávelemtodosospovoseépocas(p.22)
Aversãoeuropeia–ouseja,oeurocentrismo–articulousenoRenascimentosobaformadeumapensamentohistórico.(p.23)
Aolongodahistória,nosmaisdiversoscontextosetnocêntricos,otermoraçafoiutilizadocomfinalidadesdescritivasesentidosassociadosa“tipo”,“variedade”,“linhagem”e“ancestralidade”.Entretanto,otermoganhouseusentidoatual,deumadivisãogeraldahumanidadeamparadaemcaracterísticasfísicasehereditárias,namolduradoeurocentrismoe[sic]nofinaldoséculoXVIII.(p.23)
Oqueésurpreendenteatéagoraéqueaimpressãoquesepassaéadequetaisideiassedifundiramnobojodeumavisãopoucocientíficaeescancaradamenteideológica.NotratamentodeMagnoli,nemaBíbliaescapadorótulodeideologiasultrapassadas.
ABíblia,comsuainsistêncianaunidadeessencialdahumanidade,pareciaimpugnaraescravizaçãodeafricanos,largamentepraticadapeloseuropeusdesdeacolonizaçãodoNovoMundo.Paracircundaressadificuldade,argumentousequeosescravoserampagãosou,alternativamente,queNoélançouamaldiçãodaescravidãosobreosdescendentesdeseufilhoCam,supostamentenegro.(p.23)
Oteordesseargumento,porém,dáumaguinada,quandoMagnolimencionaoIluminismo:6
OcenáriomudoufundamentalmentecomoadventodafilosofiadasLuzes,quepostulouaigualdadenaturaldoshomens,umprincípioconvertido em argumento central dos abolicionistas. Se os sereshumanosnascemlivreseiguais,porumdesígniosimultaneamentedivinoenatural,comoconservaroinstitutodeescravidão?(p.23)
Queosabolicionistassevaleramdoargumento,ouda“descobertacientífica”,comoquerMagnoli,épuraverdade.MasinsinuarqueaaboliçãodapráticadaescravaturafoiumavitóriadaCiênciasobre
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 273
asIdeologiasnefastasdeoutroraétirarproveitosinteresseirosdeumaleituraequivocadaesimplistadahistória.
OpróprioMagnoli é quemenfraquece sua linhade raciocínioquando,logoemseguida,acrescenta:
Asprimeirasteorias“científicas”sobreadivisãodahumanidadeemraçasoferecemumarespostaaessedilemadeprofundasimplicaçõeseconômicas.CarolusLinnaeus,opaidataxonomiabiológica,sugeriuemmeadosdoséculoXVIIIumadivisãodoHomo sapiens emquatroraças,baseadanaorigemgeográficaecordapele:Americanus,Asiaticus,Africanus,Europeanus.(p.2324)
Oassimchamado“racismocientífico”étaxado,comonãopoderia ser de outra forma, de pseudociência (as aspas irônicas sobreapalavra“científica”,nacitaçãoacima, ilustrambemisso).Magnolinãomenciona a escandalosa tese da “curva de sino” (Herrnstein&murrAy,1994),queagitouosEUAnosanos1990.Casotivessefeitoumapausapararefletirsobreelaeoutrastantasquecostumampipocar,detemposemtempos,elepoderiaterseconscientizadodequeasditas“descobertascientíficas”sãofrequentementeutilizadasparaserviraestaouàquelaagendapolíticaescusaeoculta.
umA Análise críticA dA “rAçA” e do “rAcismo” no brAsil
Magnoliconcluiaintroduçãoaoseulivro,dizendo:
NoúltimoanodoséculoXX,oscientistasquesequenciaramogenomahumanodeclararamamortedaraça.Omitodaraça,entretanto,nolugardesedissolvercomoumacrençaanacrônica,algoparecidocomaantigacrençaembruxas,persisteourenascenaesferapolítica,desafiandoautopiadaigualdade.(p.16)
Searaçaé,navisãodeMagnoli,umpuromito,tãoanacrônicoedesmistificadocomoabruxariahámuitotempo,asclassessociais,estassim,existem,easdiferençaseconômicasentreelaspersistem.Afinal,diriaele,odinheiroéumacoisaconcreta(?),épossívelmensurálo,eseupossuidoravaliadocomopertencenteàclassealta,médiaoupobre.
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...274
Jáaraça...,sobretudonumpaísdemestiços!Quasenofimdolivro,elechegaadizer:
OsEUAinterpretaramasimesmoscomoumanaçãosemnítidasbarreirasdeclassesocial,naqualtodostêmaoportunidadedeascendereconomicamente,mastambémcomoumpaísdivididoporfronteiras intransponíveis. OBrasil, bem ao contrário, enxergousecomoumanaçãomestiça,miscigenada,poucoafeitaabarreirasraciais,masatravessadapordivisasdeclassemuitomarcadas.Adesigualdadesocial,nãoadiferençadecor,semprepareceuaosbrasileirosrepresentaroverdadeirodesafiopolíticonatrajetóriademodernizaçãodopaís.(p.358)
Ouseja,oBrasiléoavessodosEUA;láháraçaeracismo,masnãohánenhumarestriçãoouimpedimentoàascensãosocial;aqui,entrenós,nãohánemraça,nemracismo(alguémouviufalarneles?),mas,emcontrapartida,asnossas“divisasdeclasse[são]muitomarcadas”.7Nãoseisepeloreceiodesercaracterizadocomopessimistaoudesetransformaremalvodecríticasaindamaisavassaladoras,eleresisteàtentaçãodemanteraperfeitasimetriadaequaçãoinversa,utilizandoomesmomodificador–“paísdivididoporfronteirasintransponíveis”–queusaraparadescreverasituaçãodosEUA.
OúnicodetalhequeMagnolinãoquerencararéofato,inegável,dequeasdiferençasentreascategorias“raça”e“classeeconômica”noBrasilaindaseencontrambastantecorrelatas(cf.lovell&Wood,1998).OtítulodolivrodeHerrnstein&Murray(1994),asaber,Bell Curve and Class Structure(emportuguês,“Acurvadesinoea estru-tura de classes”),captamuitobemessaligaçãoestreita,adespeitodocarátervilipendiosodoseuconteúdo.Emrazãodisso,existemnítidastendênciasdeumhomemdecorserparadoerevistadoemumabatidapolicial,de,enfim,serconsideradoculpadoetersumariamentenegadososbenefíciosdoprincípiodapresunçãodeinocência.Simplesmenteignoraressesfatosinegáveisequivaleataparosolcomapeneira,eéissoqueMagnolifaz.
Aomesmotempoemquedesprezaessesdados“impressionísticos”enãocomprovadospelosmétodosinquestionavelmentecientíficos,Magnolicita,usaeabusadeoutros“dados”quelhesconvêm.
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 275
NoBrasil,aspesquisassobreatitudesdiantedoracismooferecemresultados curiosos e, aomesmo tempo, esclarecedores. [Leiase,“curiosos”pelaconfusãonamentederespondentes,opovo,emgerale“esclarecedores”paraoscientistasque,munidosdeumavisãomaisaperfeiçoada,conseguemtiraralgumproveitodeles].Diversasenquetes revelamqueumavastamaioriadosbrasileirosadmiteaexistênciadediscriminação racialnopaís,especialmenteemepisódiosdeoperaçõespoliciais nasperiferias e favelas.Entretanto,aomesmotempo,maioriasmuitoexpressivasdeclaramnãonutrirpreconceitoracial.OantropólogoPeterFrymencionaumapesquisarespeitadanaqual87%dosentrevistadosquesedeclaravam“brancos”e91%dosquesedesignavam“pardos”afirmavamnãoterpreconceito nenhum contra “negros”.Namesma pesquisa, 87%dosquesedefiniamcomo“pretos”negavamnutrirpreconceitocontra“brancos”.Maisinteressanteainda:64%dospretose84%dos“pardos“declararamnuncatersidoalvosdepreconceitoracial.(p.382)
Emmomentoalgum,osociólogoe“geógrafohumano”Magnolicolocaemquestionamentoavalidadede“dados”estatísticoscoletadosatravésdeenquetescomoessas,anãoserparasedarporcontenteemdescreverapesquisaaqueexplicitamentesereferecomo“umapesquisarespeitada.”OsperigosdeumapegodescomunalàcientificidadedenúmeroseestatísticasforammuitobemdocumentadosporReichmann(1961).
Magnolinãoquerreconhecerquepesquisasdotipoestatístico,queelecitacomtamanhaaprovação,pecampornãolevarememcontaoqueosentrevistadosrealmentepensamsobreasquestõessobreasquaissãoinquiridosoudisfarçamnasdeformamaisengenhosacomomododesalvaguardarqualqueravaliaçãonegativa.8Issoaconteceatémesmonaseleiçõesditas“secretas”,emqueosvotosdoseleitoressãovioladosporintermédiodemarcasidentificadorassecretasou“mexidinhas”nasurnas.NaAlemanhanazista,segundoKlemperer([1947]2009),atémesmoaparceladapopulaçãoencarceradanoscamposdeconcentração“votava”deacordocomosdesejosdoFührer.
Sãomuitocomplexososmotivosquelevamosrespondentesaoptarempordeterminadasmaneirasderesponder.Aspessoas,comraríssimaexceção,admitemabertamenteseremracistasempedernidas.Ofato,porém,équeoracismolevantasuacabeçanojentanosmomentos
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...276
emquemenosseespera,porexemplo,emsimplesgestosnavidacotidianadaspessoas, comomostrouo levantamento feitonauniversidadedeTufts,citadoecomentadobrevementenoiníciodesteartigo.E,quantoàLei,aspessoasquepraticamoracismoescancaradosósãopunidasquandoseconseguedemonstrarqueoatoemquestãosecaracterizacomo“injúria”.9
como entender o esforço empenhAdo por mAgnoli
ÉprecisodizerquenolivroUma gota de sangue hámuitacoisaqueéfrutodepesquisaséria.Olivroimpressionapelavastagamadefontespesquisadas,pelaenvergaduradaóticadoautor.Numtextointitulado“Raçasecotas”,oautorContardoCalligaris(2009)manifestaumaposiçãopolíticadiversadaposiçãodeDemétrioMagnoli.Emsuaspalavras,
CompartilhocomMagnoliosonhodeumasociedadeemqueacordapelesejaindiferente.Masminhaavaliaçãodaspolíticasdecotasé“matizada”.QuandochegueinosEUA,em94,eupensavacomoMagnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para“compensar”osefeitosdadiscriminação,dividiriaopaís,levandoodevoltaparaoséculo19.Nãofoioqueaconteceu.Aospoucos,apresençadecidadãosdetodasascoresnamaioriadascorporações(dapolíciaurbanaaocorpodocentedasuniversidades)setransformounumduplovalorcompartilhadoportodosouquase:umvalorestético(adiversidadeébonita)eumvalorprodutivo(adiversidadeéfuncional).
Calligaris faz questão de esclarecer que seu posicionamento éeminentementepolíticoeguiadoporumsensoagudodepragmatismo.Maisinteressanteainda:éconfessadamenteimpressionista.Emprimeirolugar,deixaclaroque“osonhodeumasociedadeemqueacordapelesejaindiferente”éissomesmo:um sonho.Nãocustasonhar,poisarealizaçãodosonhonavidarealseriaemsiumfimaserdesejadoeparaaqualqualquersacrifíciodehojeseriaconsideradoretrospectivamentemuitobem justificadono futuro.MasCalligaris tambémdeixa claroquenãosepodevirarascostasparaumarealidadequeestáaíemnomedailusãodequeosonhojáéumarealidade.
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 277
Qualquer um que viveu nos EUA por algum tempo ou tevecontatocomarealidadehojevividanaquelepaíssabemuitobemqueapropaladaigualdadederaças(namedidaemqueissoexiste)éfrutodeumalutamuitosangrentaedolorosaedaresistênciapacífica,porémobstinada,doslíderesnegroscomoMartinLutherKingeJesseJackson.
Eopioréque,noesforçodevalidarumdadodefinitivo(mesmo que só possa valerse de um argumento de autoridade),Magnoliconfundeosensoprático,políticoepragmáticodeumcandidatoàpresidênciadopaís,comumaprovaderradeiradasuperaçãodeumamemórianãomuitolongínqua:
NãoexistemosEstadosUnidosdosnegros,osEstadosUnidosdosbrancos,osEstadosUnidosdosdescendentesdelatinosouosEstadosUnidosdosdescendentesdeasiáticos–existemapenasosEstadosUnidosdaAmérica”.BarackObamapronunciouessaspalavrasnaConvençãoNacionalDemocratade2004.(p.138)
Eainda,“Obamanãoseapresentavacomoum“políticonegro”,natradiçãode[Reverendo]Jackson,esugeriaumfuturopósracialparaanação”.
EssaúltimacitaçãodeMagnolinossurpreende,poisoautorsetraiquandoadmiteque“umfuturopósracial”éumasugestão,umso-nhodeObama,poiscabeapergunta:se“pósracial”éumatributoaser desejado para um futuro, o que seria o adjetivo apropriado paraqualificaropresente?
QuandoCalligariconcluiseutexto,dizendo“Atéqueumdiapareceulógico,numpaíscujosulinteirofoiracistaesegregado,queumnegropudesseserpresidente”,elefaladaeleiçãodeBarackObamaparaocargomaisaltodoseupaíscomoumacomprovaçãodoêxitodo“sistemadecotas,instituídopara‘compensar’osefeitosdadiscriminação”que,longededividiropaíscomoelemesmodesconfiava,comoMagnoli(“quandochegueinosEUA,em94,eupensavacomoMagnoli”),induzaafirmar:“minhaavaliaçãodaspolíticasdecotasé‘matizada’”.
os erros e equívocos de mAgnoli
Magnolidemonstraserbastanteimpacienteeatévitriólicoquandodesfecha críticas duras aos quedefendem justiça social e reparos
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...278
paracrimescometidosnopassado.Numtextoprovocativamenteintitulado“Odomdeiludir”(mAgnoli,2009b),elediz:
[...] ahonestidade intelectual éumartigoescassonumaesquerdaquenãoentendeuosignificadodaquedadoMurodeBerlimecontinuaahostilizarosprincípiossobreosquaissesustentaademocracia.OsociólogoportuguêsBoaventuradeSousaSantos,umdosarautosproverbiaisdessaesquerda, invocoua“justiçasocial”ea“justiçahistórica”comoargumentosdelegitimaçãodosistemadecotas(“Tendências/Debates”,26/8).Éumaopçãopeloilusionismo,queinvestenaconfusãoconceitualparaocultarosentidodaspolíticasderaça.
Quemcaiemarmadilhasderaciocínioaopleitearclarezaconceitualnaesferapolíticaé,infelizmente,opróprioMagnoli.Eleconfundeotrabalhodereflexãoedeanáliseconceitualcomaçãopolítica.Maisainda,acreditaque,enquantoestiversebaseandonaciênciade“fatos”,estáisentodequalquerconotaçãopolíticoideológica.
Magnoliseenganaredondamentequandoconcluiqueporintermédiodeumasériedeconstataçõeséquesechegaaodomíniodosperformativosedaaçãopolítica.Éprecisamenteocontrário.Asconstatações(incluindoasditascientíficas)nãopassamdeilusõesgeradaspelosperformativos(rAjAgopAlAn,2004e,2007).Contrao“ilusionismo”deSousaSantos,MagnoliquerseapresentarcomoavozdarazãocientíficaeorepresentanteautorizadodoespíritodeIluminismo.Enãopercebequequemestánoreinodasfantasiaséelepróprio.
NumaentrevistapublicadapelaAgênciaBrasilnodia27desetembrode2009,o repórter/entrevistadorperguntaaMagnoli sobreadesigualdaderacialexistentenoBrasilesobreosargumentosusadospelosdefensoresdecotasparaadmissãonasuniversidadesbrasileiras.ArespostadeMagnoliéumaexcelentesíntesedaposturapolíticaqueele acha que seus estudos “científicos” podem autorizálo a assumir(cf.costA,2009).Vejamos,aseguir,comoelerespondeàperguntadojornalista:
ABr:Masadesigualdaderecaimaissobreosnegros?Magnoli:Issoéjustificadocommédiasestatísticas,maséclaroqueasmédiasestatísticasnãodisputamvestibular.Quemconcorrenovestibularsão
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 279
pessoasreais.Omitodaraçaserveparacriargrandesconjuntosqueserãodefinidos,nocasodoBrasil,pelacordapele.Essasmédiasestãosereferindoàspessoasquenemterminaramoensinomédioequenemestãodisputandoovestibular.Quandosefazpolíticadecotasnasuniversidadesoquesefazédizerqueadisputadepessoasdaclassemédiabaixa,quedisputamasúltimasvagasnosvestibulares,sedefinirápelocritériodecordapele.Oquesefazépegaressaspessoas–dasmesmasescolas,dosmesmosbairros,damesmaorigemfamiliar–etraçarumafronteiraracial,queéumafronteiraimagináriaeinventada.Essetipodepolíticarepousasobreosmesmosfundamentoscriadosnoséculo19peloracismocientífico.Ouseja, omulticulturalismo, que é um fenômeno pósmoderno, temraízesnaexpansãoimperialeuropeianaqueleséculo.
Emboraformuladasemportuguêscastiço(comoperdãodapalavra),ascolocaçõesdeMagnolipedemparaserdestrinchadas.Asestatísticastêmseudevidovalor(aindaquelimitadoedesdequetomadascomodevidocuidado);opróprioMagnolirecorreuaelasdiversasvezes.Contudo,nestecaso,elasnãodizemrespeitoàquestãoempauta,nemtêmamenorrelevânciaemsetratandodeexamesvestibulares.Ummitonãopodeserusadoparacriarpolíticasqueredundamemmudançasnavidareal.Logo,concluiMagnoli,longedeserumasoluçãoparaumproblemainexistente,taispolíticasapenasajudamacriálo.
Magnolinãodeixade tercertarazãoaoapontarquequemdefendecotascombaseemraçaaparentementeacabadealgumaformalegitimando a noçãode raça,mesmo sabendoque doponto de vistacientíficooconceitoderaçaéinjustificáveleinsustentável.Comefeito,muitosdosdefensoresdecotaspraticam,navisãodeMagnoli,umaenganaçãotraiçoeira,namedidaemquefazumaargumentaçãoespeciosa,sabendodaimprocedênciadosseusfundamentos.10
Esseargumentocativamuitagente,comodefatocativouDiogoSchelp(2009),que,emartigopublicadonaRevistaVeja, festejou:
Ofatodeaciênciaconcluirqueasraçasnãoexistemcomoconceitobiológicocriaumadificuldadeparaosdefensoresdadiscriminaçãoreversa(ooutronomeparaascotas):inviabilizaatentativadeusarcritériosobjetivosparadecidirquempodeounãoserbeneficiáriodeprivilégiosnovestibular,nomercadodetrabalhoouemlicitaçõespúblicas.
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...280
Em momento algum, em meio desta discussão entusiasmada,apareceofatoamplamenteconstatadoaoredordomundoeaolongodahistóriadequeospovosminoritários(ousetoresdesociedade)perseguidosoudiscriminadostendemaseagrupar,afecharastrincheirase,finalmente,aseenclausuraremguetos.Éumaformadeassumirumaidentidadeque,emoutrascondições,elesnãoteriammotivoparaassumiroudefender.Éoque,emseuensaio,Calligarischamade“identidadesdedefesa”,queinvocaaquiloqueGayatriSpivakcaracterizacomo“essencialismoestratégico”(cf.muniz,2009). Issoocorreude formaorganizadanoBrasil no anode1988,quandohouveumgrandeclamornosentidodequetodosospardosenegros,independentedograude coloração de sua pele, se autoidentificassem comonegros e nãomulatos,pardosouqualqueroutracoisa.Conscientizaçãonosmesmosmoldestambémestáocorrendoemmeioaoutrascomunidadesminoritáriasmarginalizadas,notadamenteospovosindígenas(RAjAgopAlAn,noprelo1e2).
considerAções finAis
Noiníciodesteartigo,discorribrevementesobreumadasherançasmalditasdoEstruturalismoquevarreuquasetodososcamposdosaber,especialmenteosditoshumanosesociais:a ideiadeque,parasepoderconcentrarnoobjetodeestudo propriamentedito,éprecisoesquecertodaatrajetóriahistóricapelaqualofenômenopassou;ideiaqueencontrouapoiotambémnoconceitodeciênciaemvogaunstemposatrás.
Acontecequeosseresvivos,entreelesossereshumanosdecarneeosso,semprecarregamsuashistóriaspessoaisemsuascostasenassuasveias.Somos,afinal,nãoapenasmeros“objetos”aseremestudados;somosseresdotadosdeinteligência,dediscernimentoe,sobretudo,deemoçõesesentimentos.Asmarcasdediscriminaçãosofridaspornósoupornossosantepassadossemprepermanecememnossapsique,e levammuito,masmuito tempo para cicatrizarem.O nosso estadofísicooumentalpodenãoestaràvista,escancarado,masissonãoquerdizerquenãolateje.
Diantedoexposto,quandoalguémdiz“Somostodosiguais”,éprecisoentenderaafirmaçãocomomuitomaisqueumslogan,umgrito
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 281
deguerra,umsonhoparaumfuturomelhor,umperformativonosentidodeAustin,enãosimplesmentecomoumenunciadoconstativoqueprimaporseuvalordeverdade.Nomundoreal,oquevalemesmoéoditadoatribuídoaGeorgeOrwell,quedizque“Todossãoiguais,masalgunssãomaisiguaisqueosoutros”.Sóquemdefatofoidiscriminadoenãoquerfingirquenadahouvesabecomoissomachuca.
OargumentolevantadoporMagnoli–deque,comonãoexisteraça,éumaquestãoelementardelógicaqueadiscriminaçãocombaseem raça tambémnãopodeexistir eque,por conseguinte, éperfeitamentelógicotambémafirmarquemedidascomosistemadecotasparaconsertardesequilíbrioshistóricos tambémcarecemde sustentação–éprofundamenteequivocado.Issoporqueadiscriminaçãosofridaporquemquerquesejanãolevaemcontaevidênciascientíficasafavorouemcontrário:éaprópriaciência(issoincluitantoaquelaciênciaqueMagnolicolocaentreaspasparadefenderaoutraqueointeressa,comoestaoutra,alardeadacomo,agorasim,genuinamentecientífica)queéconvocadaparajustificaraspráticasdiscriminatórias.
Deumacoisapodemostercerteza:adiscriminação,aexclusãopraticadacomosantepassadosdealguém,tornaapossibilidadedesuaascensãosocialmuitomaisdifícil.Issoporqueapossibilidadedeprogressonocampodeeducação,porexemplo,dependedeumacultura,quesóafamíliae/ouoscírculossociaismaispróximospodemlheconferir.Asoluçãoparaissonãoéasimples“inclusão”–palavradamodaqueentrounousocomumcomosefosseumacuramilagrosaparatodososmales sociais.Não adianta deixar queumapessoahistoricamentedebilitada entre no ringue para competir, em condição de igual paraigual,comadversáriosbemnutridosebemtreinados.Averdadeirajustiçacomeçaquandosereconheceaimportânciadetratarosdesiguaisdeformadiferenciada,atéqueosdesnutridoseosdesabilitadossejamplenamentehabilitados.
Todavia,meupropósitoneste artigonão émobilizarumargumentoafavordecotas.Meuobjetivoémostrarosgraveserrosquesustentamastesesqueprocuramdesqualificaresseargumentocombaseemoutrosditos“científicos”.Os intelectuaisque fazemcoroaessesargumentosesubscrevemtesesdessetipoacabamfornecendomuniçãoparaaquelas forçasconservadorase retrógradasquesempreestãodeprontidãoparautilizálaaserviçodeseusprópriosinteresses.
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...282
ÉnessecontextoquesevêaimportânciadeumaposturacríticadiantedasnossasciênciasedaformulaçãodepolíticasqueseutilizamdosfrutosdaCiência(RAjAgopAlAn,2004d).Éfácil,emnossostemposdeverdadeiroendeusamentodaCiência,cairemarmadilhasderaciocíniodasmaisengenhosas.Umapitadadedesconfiançanessesmomentosnãofazmalaninguém.
lAst resource of nArroW-minded forces on the subject of sociAl justice: the demétrio mAgnoli cAse And his Argument AgAinst quotAs
AbstrAct
EmphasizingtheroleofCriticalLinguisticsfordiscussionofsociallyrelevanttopics,thisarticlediscussestheusesandabusesofscientificargumentstodefendconservativepositions and inequalities inour society.The article advocatestheconsiderationofthehistoricalcontexttounderstandtheseargumentsandassumesideologyasaconstituentpartofscience,thoughoftentimesdenied.ThecaseanalyzedisthebookGotadeSangue,byDemetriusMagnoli,whoinordertodefendhisantiquotasposition,makesuseofvariousargumentstakenasscientific,whiledenyinghisownideologicalposition.
Key Words:CriticalLinguistics,Science,argumentation,quotas.
notAs
1 Esteartigofoiescritoeaceitoparapublicaçãoantesdeabrilde2012,quandodavotaçãodoSupremoTribunalFederalqueconsiderouconstitucionalareservadevagasemuniversidadespúblicascombasenosistemadecotasraciais.
2 Respostas fornecidas por entrevistados a perguntas diretas contidas emum questionário que são frequentemente levadas a sério sem nenhumaconfirmaçãoadicional!
3 Onovo espírito foi sintetizado pelo poeta inglêsAlexander Pope (16881744),queescreveu,comféinabalávelnanovareligiãochamadaCiênciaecomtodoosarcasmoaquetinhadireito:“Anoiteencobriaanaturezaesuasleis.Deusdisse:‘FaçaseNewton’etudofoiluz”.
4 Otermo“cientismo”sedistinguede“cientificismo”.Osegundosignificaum entusiasmo exacerbado pela infalibilidade da ciência. Já o primeiroelegeasciênciasditasexatascomomodeloparatodasasdemais,inclusiveashumanas–umaposiçãomuitomaiscontroversa.
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 283
5 EmborasejaapresentadonumcurtoverbetesobreelenaWikipédiacomo“um sociólogo e geógrafo brasileiro”, DemétrioMagnoli é também umjornalista.FoicolunistasemanaldaFolha de S. Pauloentre2004e2006.Atualmente,écolunistadeO Estado de São PauloeO Globo.
6 Aquicabeumamençãoàfamosacríticadesferidapelolídernegronorteamericano, Malcolm X, sobre a atitude discriminatória embutida nametáfora de luz em sua oposição à escuridão e às noções correlatas detrevas,docontinenteescuroetc.
7 Mesmo supondo que as coisas sejam assim, Magnoli ainda estariadevendoaseusleitoresumaexplicaçãosobreomodocomoapresentaosEUA.Na ótica deMagnoli, os EUA conseguiram apagar uma diferençamensurável e, digamos, “palpável”. Independente disso, o argumento doautordemonstraumprofundodesconhecimentodadistribuiçãodariquezanos EUA. Segundo os dados doUS Census Bureau (http://www.census.gov/compendia/statab/2010/files/income.html), 36,5 milhões de cidadãosou12,3%dapopulaçãodaquelepaísviveabaixodalinhadepobreza(osdadossereferemaoanode2006).Desnecessárioacrescentarque,comacrisefinanceiraqueatingiuopaísnoanode2009,ascoisassópodemterpiorado.
8 OcontrastecomapesquisadarevistaScience,àqualmereferinoiníciodeste artigo, fala por si só. O pesquisador vai muito além das simplesrespostas fornecidas pelos entrevistados para investigar justamente osfatoresqueosimpedemdeenxergaroqueocorredefatocomseuspróprioscomportamentosdepoisdeassistiremacenasdetelenovelasideologicamentecomprometidas,apesardeseusdesmentidos.
9 Apesquisa,aindaemandamento,deKarlaCristinadosSantos,doutorandadaUnicamp,investigaascomplexidadeseasindefiniçõesinerentesaesteassuntoeàsbrechasqueissocrianaLei,possibilitandoaimpunidadedequempráticadiscriminaçãoracial.
10Quemproduzumargumentofalacioso,porémretoricamentemuitoeficazepoderoso,éopróprioMagnoli.UmexemplogritantedessaestratégiausadaporMagnoliseencontranoseguintetrechodaentrevistaqueconcedeuàAgência Brasil(cf.costA,2009):
“Evidentemente,ofilhodoministroJoaquimBarbosa[únicoministronegronoSupremoTribunalFederal]nãotemmuitosproblemasparaestudarnemparateroportunidadesnavida,eeletempeleescura.Enquantoqueofilhodeumtrabalhadorqueganheumsaláriomínimo,comacordepelemaisclara,temumasériededesvantagensededificuldadesnavida.Quandosetomaaraçacomocritériovocêpassaanomearaspessoasapartirdacor
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...284
dapeleeproduzfantasiaspolíticasqueestãobaseadasnacordapele.Éoquefaz,porexemplo,aUniversidadedeBrasília.NaUnB,comsuascotasraciais,ofilhodoministroJoaquimBarbosaprecisatermenospontosnovestibularparaseraprovadodoqueofilhodeumtrabalhador,decordapelemaisclaraequeganhasaláriomínimo,precisaria.”
O caráter trapaceiro desse estilo de argumento pode ser verificado seextrairmossuaformalógica(queéumargumentoimediato,nãosilogístico)ecomparáloaoutrosargumentosformuladosnosmesmosmoldes.
Primeiro,aformalógicadoargumentoqueMagnolilevanta: (a)Xsebeneficioudosistemadecotassemmerecer;portanto, (b)Osistemadecotasdeveserextinto. Seargumentosdessetipovalessem,teríamosqueaceitarcomoprocedente
oargumentoaseguir,queninguémemsãconsciênciaavalizaria: (a)Hápoliciaiscorruptosnacorporação;portanto, (b)Todaainstituiçãodapolíciadeveserextinta.
referênciAs
Austin,J.L.How to Do Things with Words.Oxford:ClarendonPress,1962.
bArthes,R.Saussure,lesigne,ladémocratie.Le Discourse Social,n.34,abr.,1973.ReimpressoemL’Aventure Sémiologique.Paris:LeSeuil,1985.p.221.
cAlligAris,C.Raçasecotas.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,1ºout.2009.
costA, g. Discurso multiculturalista se baseia no racismo do século 19, diz Magnoli. Agência Brasil, 27 set. 2009. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/09/25/materia.20090925.4145529488/view>.Acessoem:6jan.2010.
dosse, f. História do Estruturalismo 1. O Campo do Signo. 19451966.TraduçãodeÁlvaroCabral.CampinasSP:Unicamp/Ensaio,1993.
feyerAbend,P.Howtodefendsocietyagainstscience.In:Hacking,I.(Org.).Scientific revolutions.Oxford:OxfordUniversityPress,1993.p.156167.
grAy, b. The impregnability ofAmerican linguistics: an historical sketch.Lingua,v.50,n.12,p.523,1980.
herrnstein, R.J.;murrAy, C.Bell Curve and Class Structure.NovaIorque:FreePress,1994.
horKheimer,M.FilosofiaeTeoriaCrítica.In:Textos Escolhidos.3.ed.SãoPaulo:Abril,[1968]1989.p.6975.(ColeçãoOsPensadores).
signóticA,goiâniA,v.24,n.2,p.259286,jul./dez.2012 285
Klemperer, V. LTI A Linguagem do Terceiro Reich. Tradução de MiriamOelsner.RiodeJaneiro:Contraponto,[1947]2009.
leite, m.Magnolifazlivrodecombatecontracotas.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,26set,2009.
lopes dA silvA, f.; rAjAgopAlAn, K.(Org.).A linguistica que nos faz falhar.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004.
lovell, p. A.; Wood, c. h.Skincolor,racialidentityandlifechancesinBrazil.Latin American Perspectives,v.25,n.3,p.90109,1998.mAgnoli, D.Uma gota de sangue: históriadopensamentoracial.SãoPaulo:Contexto,2009a.
mAgnoli,D.Odomdeiludir.Folha de S.Paulo,SãoPaulo,9set.2009b.mAgnoli, D. Réplica: Resenha expôs leitura apressada de obra. Folha de S.Paulo,SãoPaulo,10out.2009c.mourA,C.A sociologia posta em questão.SãoPaulo:LivrariaEditoraCiênciasHumanas,1978.
mourA,C.História do Negro Brasileiro.SãoPaulo:Ática,1989.mesquitA,E.ClovisMouraeasociologiadapráxis.Estudos Afro-Asiáticos,v.25,p.1227,2003.
muniz, K.daS.Linguagem e Identidade: umacontribuiçãoparaadiscussãosobreaçõesafirmativasparanegrosnoBrasil.Tese(DoutoradoemLinguística)–DepartamentodeLinguística,UniversidadedeCampinas,SãoPaulo,2009.
nAess, A.The pluralist and possibilist aspect of the scientific enterprise.Oslo:Universitetsforlaget,1972.
popper, K.R.The Poverty of Historicism.Boston:BeaconPress,1957.rAjAgopAlAn, K.Por uma linguística crítica.SãoPauloSP:ParábolaEditorial,2003.
rAjAgopAlAn, K. Structuralism. In: strAzny, P. (Org.). Encyclopedia of Linguistics,NovaIorque,EUA:FitzroyDearborn,v.2,p.10411042,2004a.rAjAgopAlAn, K. Línguas nacionais como bandeiras patrióticas, ou aLinguística que nos deixou na mão. In: lopes dA silvA, F.; rAjAgopAlAn,K. (Org.).A Linguística que nos faz falhar: investigaçãocrítica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004b.p.1138.
rAjAgopAlAn, K. Resposta aos meus debatedores. In: lopes dA silvA, F.;rAjAgopAlAn,K.(Org.).A Linguística que nos faz falhar:investigaçãocrítica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2004c.p.16623.
rAjAgopAlAn, Kanavillil. A últimA cArtAdA dAs forçAs retrógrAdAs em mAtériA...286
rAjAgopAlAn, K.Onbeing critical.Critical Discourse Studies, v. 1 n. 2, p.261266,2004d.
rAjAgopAlAn, K.JohnLangshawAustin.In:strAzny, p.(Org.).Encyclopedia of Linguistics.NovaIorque,EUA:FitzroyDearborn,v.1,p.98100,2004e.rAjAgopAlAn, K.ThelanguageissueinBrazil:whenlocalknowledgeclasheswithexpertknowledge. In:cAnAgrAjAh, A.S. (Org.).Reclaiming the Local in Languae Policy and Practice. Mahawah, New Jersey, EUA: LawrenceErlbaumAssociates,Publishers,2005.p.99122.
rAjAgopAlAn, K.ResenhadeJohnE.Joseph:LanguageandPolitics.Applied Linguistics,v.28,n.3,p.33033,2007.rAjAgopAlAn, K. Poststructuralism. In:chApmAn, s.;routledge, C. (Org.).Key Ideas in Linguistics and the Philosophy of Language. EdimburgoReinoUnido:EdinburghUniversityPress,2009a.p.170173.
rAjAgopAlAn, K.Ordinarylanguagephilosophy.In:chApmAn, s.;routledge,C.(Org.).Key Ideas in linguistics and the Philosophy of Language.Edimbugo:EdinburghUniversityPress,2009b.p.149156.
rAjAgopAlAn, K.Black Movement.Asairem Brazil Today: anEncyclopediaofLifeintheRepublic,p.6972,2012.
rAjAgopAlAn, K.Indigenous peoples.Asairem Brazil Today: anEncyclopediaofLifeintheRepublic,2012.p.326329.
reichmAnn, W.J.Use and Abuse of Statistics.NovaIorque:OxfordUniversityPress,1961.
sAussure, f. de.Curso de Linguística Geral.TraduçãodeAntônioChelini,JoséPauloPaeseIzidoroBlikstein.Paris:Payot.22ed.SãoPaulo:Cultrix,[1916]2000.
schelp, d.QueremosdividiroBrasil?.RevistaVeja,ed.2128,2set.2009.