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1 SEIS PEQUENOS MONÓLOGOS PARA MULHERES

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SEIS PEQUENOS MONÓLOGOS  

PARA MULHERES 

 

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1. 

A Seleção Natural 

 

(Em um jardim florido). 

Eu  amo  flores.  Desde  pequena  eu  sempre  ajudei  minha 

mãe com elas, tomei amor pela jardinagem. Mexo na terra, 

enfio meus dedos bem  fundo nas  covas úmidas, pretas  e 

planto cada sementinha com todo cuidado. Fico esperando 

sempre  que  elas  cresçam  como  bebês.    E  elas  crescem, 

meus  bebês.    Fico  absolutamente  maravilhada  com  o 

mundo  colorido  e  espinhoso  das  flores.  Algumas  têm 

veneno, e outras um perfume que deixa a gente bêbada. Eu 

adoro  tomar  um  porrinho  de  perfume  de  flores.    Ficar 

bêbada  de perfume  não  é  lindo?  E  eu  gosto  dos  cheiros. 

Gosto  de  homens  cheirosos,  sobretudo.  Não  muito 

cheirosos,  o  suficiente  para  não  concorrer  com  o  meu 

jardim. Mas  engraçado,  de  receber  flores  eu  não  gosto. 

Quando eu penso que só pra me ver sorrir alguém matou 

tantos botões eu  fico  louca de  raiva. Mas não muito, não 

sou  dada  a  esses  excessos.  Sou  uma moça muito  gentil, 

como vocês podem perceber. E eu não sei o porquê dessas 

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perguntas  todas.  É  como  se  vocês  achassem  que  eu  sou 

alguém  que  eu  não  sou.  E  eu  sou  tão  simples,  tão  eu 

mesma,  tão  minha,  tão  pequena,  tão  fresca  e  delicada 

como uma gota de orvalho numa pétala. Sinto que posso 

até evaporar de tão  insignificante. E é por  isso que eu não 

entendo essa desconfiança  toda de vocês. Vocês acham o 

quê? Que eu poluiria o meu jardim com sementes do ódio? 

Nunca, não devemos ter ódio. O ressentimento é uma coisa 

bastante  ruim.  Eu  sempre  penso,  e  sei  que  é  assim,  não 

devemos  sofrer.  Devemos  cortar  o  mal  pela  raiz. 

Entenderam? Cortar o mal pela raiz. De um golpe só, como 

quem arranca um fruto, ou dois frutos. O mundo é cheio de 

excessos, e eu sou simples como néctar, deixo o mundo se 

alimentar de mim para que em algum lugar, no futuro haja 

mel. Não é bonito isso? Eu não entendo essa desconfiança. 

Se meu marido  foi  embora, o que  é que  eu posso  fazer?  

Tudo bem. Meus maridos, meus dois  lindos maridos. Mas 

vocês  sabem,  as  coisas  não  dão  sempre  certo. O mundo 

desaba em nossa cara quando ficamos velhos, é inevitável. 

Eu sei que sou jovem ainda, mas eles achavam que eu não 

era  jovem o  suficiente. Eu acho que  foi  isso, pelo menos. 

Não  tenho  culpa  se  eles  desapareceram  sem  deixar 

vestígios. As pétalas  somem ao  vento, o odor das pétalas 

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desaparece na primeira brisa, por que meus maridos não 

poderiam ter o mesmo fim, e desaparecer como se  jamais 

tivessem existido? É tão lindo, tão poético desaparecer. Eu 

também iria querer desaparecer como um perfume que se 

perde no ar. Sem marcas de espinhos, sem a folha seca de 

meu corpo apodrecendo no solo úmido de meu  jardim. Eu 

amo  esse  jardim.  E  o  que  vocês  querem  nunca  irá 

acontecer. Vocês sabem com qual adubo eu deixo belas as 

minhas flores? É com o meu suor. O suor dos meus dedos, 

que  se  enfiam  nos  buracos  mais  negros  de  minha  terra 

úmida. E vocês, nunca, nunca vão  fazer o que pretendem. 

Não  há  razão  no  mundo  que  permita  a  atrocidade  que 

vocês pretendem. Esse jardim não é apenas o meu refúgio, 

meu  trabalho, a minha paixão,  consolo, paz e alegria, é a 

minha  vida.  Conheço  cada  pétala,  cada  espinho,  cada 

odor...  Não!  Nunca  permitirei.    Eu  sempre  amei  meus 

maridos,  sempre  fui  doce,  gentil.  Sempre  cedi  a  todas  as 

suas  vontades. Aqui,  nessa  terra  úmida,  eu me  entreguei 

tantas e tantas vezes. Espetávamos nos espinhos das rosas, 

e eu não soltava um pio quando em volúpia quebrávamos 

uma folha, um galho, um vaso. Eu era exemplar, o modelo 

da humildade, da resignação, da submissão até. Eu aceitava 

tudo  com  amor,  desde  que  minhas  flores  continuassem 

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sempre  aos meus  cuidados.  Desse  jeito  eu  conseguia  os 

amar do  jeito que eram.   Amava  inclusive a brutalidade, a 

inconsciência, o cheiro de carne de homem, suada e áspera 

como  um  toco  de  madeira  recoberto  de  musgo.  Eu 

acariciava  esse  musgo  espesso  de  suas  coxas,  mordia  a 

madeira nodosa de  seus braços. E gemia doce  como uma 

virgem.  Gemia  como  se  fosse  uma  flor  com  voz,  onde 

abelhas ávidas de néctar me penetravam  com  suas patas, 

seu  ferrão.   Mas nem  todo mundo gosta de  tanta doçura 

todos os dias. E eu, não por querer, não tenho como evitar, 

eu  sou  assim,  um  doce.  Gentil,  gentil,  gentil  até  o 

desespero,  até o horror do  amor  excessivo,  subserviente, 

espesso e colorido como o mel, ou a lama. E agora, depois 

de tudo isso, vocês vêm me dizer que... Vocês chegam aqui 

e  me  acusam  de...  Não  posso  nem  pronunciar  tal 

barbaridade.  É  um  insulto  a  presença  de  vocês  nesse 

santuário que  é o meu  jardim.  Limpem os pés para pisar 

nessa terra santa. Vocês têm noção do quão milagroso é o 

brotar  de  uma  flor?  Do  quanto  eu  sofro  para  que  cada 

espinho  defenda  sua  rosa?  E  vocês  vêm me  dizer  que... 

Vocês  não  entendem  nada. Não  sabem  de  nada  do meu 

jardim.  Eu  jamais  iria  poluir  essa  terra  abençoada  com  o 

pecado daqueles corpos. Nunca! Seria imoral... E quando eu 

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digo  corpos  quero  dizer  sobre  a  possibilidade  daqueles 

corpos nos  sulcos de minhas  sementes.  Eles  como  adubo 

não  dariam mais  que  ervas  daninhas.  Sim,  eu  os  amava. 

Mas  quantas  pessoas  amam  plantas  carnívoras,  cactos, 

flores  venenosas,  serpentes  e  insetos,  e  ainda  assim  são 

boas pessoas? Eu era assim, os amava como insetos. Como 

insetos  polinizadores. Mas  nem  disso  eles  eram  capazes. 

Onde  está  o  pólen  em  minha  barriga  vazia  de  brotos? 

Vamos, me digam? Eu sou jovem, mas vocês sabem, até as 

flores  tem  seu  tempo.    E  meu  tempo  zunia  como  um 

zangão  pronto  para  ser morto  pela  rainha.  Cadê  o meu 

pólen? Eu gritava para eles. E eles só faziam me inundar de 

seus  visgos  inférteis.  O  que  fazer?  Eu  precisava  de mais 

pólen  para  os  sulcos  de  minhas  pétalas.  Eu  queria  uma 

semente que nenhum deles conseguiu me dar. O que vocês 

queriam  que  eu  fizesse?  Que  não  deixasse  o  broto  de 

minha  existência  para  o  jardim  do  mundo?  E  eu  ainda 

preciso  disso.    Eles  foram  embora,  desapareceram  como 

exemplar  inapto  para  a  evolução  da  espécie.  Posso  dizer 

que  foi  sim,  obra  da  seleção  natural.  São  as  leis  da 

natureza.  Sem  deixar  vestígios,  como  se  nunca  tivessem 

existido,  meus  homens  inférteis  evaporaram  como  o 

orvalho no primeiro sol da manhã. É bonito pensar assim. 

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Que seu desaparecimento foi em prol de um futuro repleto 

de indivíduos mais capazes. Eu não tive nada com isso, não 

sou  responsável.  Foi  uma  ação  da  natureza,  pelo 

desenvolvimento da espécie.  Nós também somos como um 

jardim. Um  jardim muito mal  cuidado, mas mesmo  assim 

um belo  jardim. O mundo deveria me agradecer pelo meu 

talento em deixar  florescer apenas as melhores sementes. 

Podar, cortar os ramos secos para uma florada melhor, esse 

é meu talento. Vocês deveriam me agradecer por eu tornar 

esse  imenso  jardim  um  lugar mais  propício  para  beleza, 

para perfeição, para flores e sementes cada vez melhores.  

E  não me  ameaçar  com  suas  desconfianças,  como  se  eu 

fosse  capaz  de  contaminar  minhas  flores  com  aqueles 

músculos  incapazes  de  gerar  uma  semente. Vocês nunca, 

mas nunca vão tocar no meu jardim com essas, essas, essas 

ferramentas  monstruosas.  Mas  o  quê?  Parem!  Larguem 

essas pás! Não, ninguém irá tocar em minhas flores. Vocês 

vão ter que cavar antes em mim.  Cavem em mim! Larguem 

isso! Saiam do meu  jardim! Me soltem! Tirem essas mãos 

de galhos secos de mim!  Parem! Não! Não! Minhas flores, 

não! Minhas flores... Minhas flores...  

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2.  

Suíte nº 2 

 

(Em uma cadeira, quase imóvel.  Suíte nº 2 para violoncelo solo de J. S. Bach,  

1º movimento inteiro, quase ensurdecedoramente).  

Suíte nº 2 para violoncelo solo. Ré menor, Johann Sebastian 

Bach. No início parece triste, mas é muito mais que isso. O 

primeiro  movimento  é  de  uma  melancolia  tão,  tão 

avassaladora que chega a ser funesto, tétrico, fúnebre. Mas 

ainda  assim  é  tão  bonito  que me  dá  vontade  de  chorar.  

Parece  como  uma  tempestade  que  se  aproxima,  com 

relâmpagos  e  vento  zunindo  na  copa das  árvores.    Se  eu 

pudesse escolher ser uma coisa seria essa música. Mas não 

tem  jeito, eu  sou  só eu mesma.  Simples assim, quase um 

silêncio. Mas às vezes, quando ouço esses acordes, parece 

que por um momento eu deixo de ser eu, e fico igual a esse 

som que me atravessa,  invisível e denso,  sem  corpo, mas 

capaz  de  me  soterrar  como  uma  avalanche,  de  me 

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incendiar  a  partir  da  alma  sem  sequer  vibrar  em minha 

pele.    Eu  sinto  que  sou  como  essa  suíte,  lenta  e  densa, 

escura. Não me acho estranha por dizer isso. Todo mundo é 

denso às vezes. Não triste, a tristeza é outra coisa. É denso 

mesmo,  movendo‐se  lentamente  como  seiva  fluindo  de 

uma árvore,  viva e  cheia de odores  como o  caldo  viscoso 

que escorre pela casca até se solidificar completamente, ou 

morrer como uma gota amarelecida e sólida no solo repleto 

de  suas  próprias  raízes.    Você  nunca  se  sentiu  assim?  

Quase  estagnada, movendo‐se  lentamente  rumo  ao  solo? 

Eu me  sinto  sempre  assim.  Todos  os  dias. Quase  imóvel, 

descendo, descendo, descendo até que o solo me consuma 

como uma árvore que  sangra, que escorre até  ficar vazia.  

Isso não é mal, sou assim apenas, vou me esvaindo com os 

dias. Eu gostaria de ser mais alegre às vezes, de dizer coisas 

mais felizes, mas é que a gente esquece tão rápido a alegria 

que parece que nem vale a pena  falar nada.   É como se a 

vida  se  esvaísse  sem  ser  percebida,  com  nossa  cara  se 

desmanchando  leve como  fumaça que  se espalha pelo ar. 

Como  eu  gostaria  de  voltar  a  fumar.    Sugar  o  fogo  com 

tanta  força  até ouvir  a  combustão do papel queimar  alto 

em minhas têmporas. Mas  já nem  isso eu posso.   Nenhum 

alívio  funciona  mais.  Só  o  sono,  só  dormir  sem  sonhos, 

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como  um  pedaço  de  pau.  Isso  ajuda,  mas  só  enquanto 

durmo.  Mas  demora  tanto  pra  pegar  no  sono.  Quero 

dormir o maior tempo possível, o mais rápido possível, sem 

me ver adormecer, sem o pesadelo de um sol pela manhã 

me roubando da inconsciência e do silêncio que me aliviam. 

Quero  dormir  rápido,  entendeu?  Rápida  e 

inconscientemente como um piscar de olhos. Mas o tempo 

demora tanto a passar.  Estou bem, não é nada, não é nada. 

Em  outros  tempos  eu  tiraria  de  letra.  Bola  frente,  e  ia 

tocando  a  vida.  Tinha meu  violoncelo, meu marido.  Bola 

pra frente. (pausa,  longo silêncio) Para frente para aonde? 

Você pode  tocar de novo para mim? Claro, é melhor não. 

Não é ocasião para música essa em que nos encontramos. E 

eu amava música. Meu Deus como eu amava. A música era 

tudo  pra mim, minha  vida, meu  prazer, meu  trabalho. O 

meu marido, você  sabe, não é? Casei porque ele  também 

amava a música. Talvez tenha sido isso. Não nos amávamos 

de  verdade, mas  amávamos  algo  em  comum,  o  que  já  é 

mais  do  que muitos  tem.  Foi  suficiente,  por  um  tempo. 

Talvez  tenha  sido  isso  mesmo.  Talvez  se  eu  não  tivesse 

parado  ele  ainda  estivesse  comigo,  e  estaria  aqui, 

segurando a minha mão.   Mas não deu. Eu não conseguia 

mais.  Não  deu,  você  consegue  entender?  Não  deu!    O 

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mundo começou a doer. A doer muito, como dói agora. Eu 

queria sentir meia dor. Como meu corpo, meio corpo. Mas 

não é assim. É como quando eu  tocava meu violoncelo, é 

no  corpo  todo.  Eram meus dedos  apenas que  sentiam  as 

cordas, mas a partir deles o corpo inteiro acordava de uma 

letargia  profunda,  e  vibrava  como  a  pele  de  um  tambor 

soando  firme,  ecoando  em  todos  os meus  ossos, minha 

carne, e eu era  inteira música.   Hoje vibro não mais como 

um tambor, mas como chicote em minhas próprias costas, 

vergastando com alarido minha pele em frangalhos. (pausa) 

Meu  marido  tocava  piano.    Eu  tocava  violoncelo  e  ele 

piano.  Fizemos  duos  na  vida  e  na música.  As  sonatas  de 

Beethoven  para  piano  e  violoncelo,  os  quintetos  de 

Brahms,  a  linda  Arpeggione  de  Schubert,  todos,  todos 

mesmo.  E hoje, que  eu  já não  consigo mais nem  respirar 

direito, a  lembrança dessas músicas, desses sons, parecem 

desaparecer como se eu jamais os tivesse ouvido. Só o que 

eu  consigo  lembrar  é  dessa  maldita  música,  essa  suíte 

maldita que me  rouba as  forças e me devolve à  lama. Eu 

daria tudo para poder tocá‐la novamente, para me livrar da 

maldição de só poder ouvi‐la. Eu lembro, quando comecei a 

ficar  doente,  e  soube  o  que  estava  por  vir.  Peguei meu 

violoncelo,  respirei  fundo  como  quem  mergulha,  fiz  um 

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silêncio  avassalador, mais  do  que meditativo,  um  silêncio 

de  canhão  carregado,  um  silêncio  de  patíbulo,  de  asfixia. 

Fechei  os  olhos  e...  (3º  movimento  da  suíte.  Interrompido 

bruscamente) Toquei destruidoramente. Todo  terror e  toda 

esperança pareciam explodir em cada nota, era como se eu 

chorasse, mas minha alma e meus olhos estavam secos. A 

mão de meu marido tocou meu ombro. Suavemente, como 

quem acaricia, mas com a força de quem segura pelo braço 

alguém  que  vai  cair  de  um  precipício,  ou  atravessar  uma 

rua quando vem um carro. E parei de tocar imediatamente. 

Eu estava muito amedrontada para pensar no que quer que 

fosse. Mas com aquelas mãos em meus ombros eu me senti 

menos desamparada.  E  já naquela  época  ele  pensava  em 

me  abandonar.  Ele  já  planejava  uma  nova  família,  e  eu, 

condenada e prestes a me tornar uma incapaz, já não mais 

fazia parte do seu futuro. Eu nunca desconfiei, nunca pude 

imaginar  que  enquanto  eu  fazia  aqueles  milhares  de 

exames,  sozinha,  ele  que  deveria  estar  sempre  ao  meu 

lado, cada vez menos estaria comigo. Sua nova mulher teve 

um  filho  poucos  meses  depois  que  nos  separamos 

definitivamente.  E  eu,  eu  que  ia  progressivamente 

perdendo o movimento de minhas pernas, de meus braços, 

que  comecei  a  tremer  incontrolavelmente,  que  já  não 

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conseguia  sequer  controlar minha  bexiga,  nunca  na  vida 

quis  tanto  ter  um  filho.  (pausa)  Ele  contratou  você  para 

ficar comigo, para me ajudar nas coisas do dia‐a‐dia, para 

me  limpar.   Talvez por  remorso. Não sei por que  te conto 

novamente essas  coisas.  Já  falei  tanto disso. Mas é  como 

uma música que a gente estuda, e  repete,  repete até que 

esteja  tudo  claro  em  nossa  mente,  em  nosso  corpo,  e 

possamos  sem  pensar  fazê‐la  viver  para  os  outros.  Põe  a 

música  de  novo  pra  mim?  Por  favor?  Eu  sei,  eu  sei.  Já 

conversamos  sobre  isso.  Sem música  será mais  digno.  E 

você só faria se fosse sem nenhum som, num silêncio cruel 

e  insuportável  pra  mim.  Eu  não  entendo  isso.  Por  que 

agora,  quando  eu mais  preciso, me  privar  da  única  coisa 

que esse corpo quase  inútil ainda é capaz de fazer? O que 

mais eu posso senão ouvir, ouvir, ouvir até o desespero, o 

excesso,  o  horror?    Me  privar  disso  é  antecipar  o  meu 

silêncio, é acabar com o único vestígio de humanidade que 

ainda possuo. Sem  isso eu sou um bicho,  incapaz de coisa 

alguma além da própria sobrevivência. Eu não entendo isso 

de você, que é quem eu mais confio nesse mundo de ruínas 

que me sobrou. Morrer em silêncio é pior do que morrer.  É 

a catástrofe, é pagar caro demais essa dívida que contraí ao 

ter nascido com essa coisa. Vamos, acabe logo com isso sua 

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enfermeira  maldita!  Aplique  logo  essas  injeções  e  torne 

minha  imobilidade  tão  verdadeira  que meus  ouvidos  não 

mais consigam mentir que ainda estou viva.  Uma para me 

anestesiar, como se ainda fosse preciso. E outra pra acabar 

de  vez  com  esse  abandono  que  me  deixou  ainda  mais 

encarcerada nesse corpo que mal se mexe. Vamos com isso 

sua empregada  inútil, eu quero rápido essas duas  injeções 

de  uma  única  vez.  (longa  pausa)  Será  que  você  pode  ser 

mais  ágil?  Esse  silêncio  é  pior  que  a  dor.  Por  favor,  por 

favor... Você não pode mesmo colocar a música pra mim? É 

minha última vontade. Coloque a música para eu ouvir de 

novo, eu  imploro.  (pausa) Eu não vou  conseguir  sem  isso. 

Eu  tenho medo de morrer em silêncio, eu tenho medo de 

viver em silêncio. (longa pausa) Você venceu. Você venceu 

mais uma vez. Eu desisto de novo, mas pelo amor de Deus 

coloque logo essa música maldita! (5º movimento da suíte, 

aproximadamente  depois  do  primeiro  terço,  no  início  do 

minueto II).  

Escuridão. 

 

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3.  

A Entrevista 

 

 

Eu odeio pessoas simpáticas.   Bom dia, me dizem com um 

esgar  de  boca  que  mais  se  parece  com  um  trapo  se 

rasgando  na  cara.  Eu  nunca  respondo.  Pra  esse  tipo  de 

inutilidade o silêncio é o que há. A pessoa fica me olhando 

com aquela cara estúpida, como se tivesse sido roubada. O 

que esperam, que eu retribua seu bom dia como um robô 

incapaz  de  pensar?  Se  a  pessoa  espera  que  eu  tenha 

realmente  um  bom  dia,  que  ótimo.    Tá  valendo.  Legal 

mesmo. Valeu. Nada mais, é  isso, morre ali o assunto.   Se 

for assim, um desejo sincero de que eu tenha um bom dia, 

obviamente isso não precisará de retribuição. Era só o que 

me faltava: “bom dia”, “ah, obrigado, aqui tem um real”; ou 

“tenha  um  bom  dia  você  também”.  Não,  né?  Nem  te 

conheço,  quero mais  é  que  se  exploda.  Eu  tenho mais  é 

nojo  desse mundo  repleto  de  sorrisos.  Como  é  que  não 

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pegam  uma  infecção  nos  dentes  de  tanto  deixá‐los  a 

mostra  nessa  poluição?  Ficar  com  a  boca  aberta  tanto 

tempo  deve  dar  alguma  doença.  Talvez  seja  por  isso  que 

chamam  de  boca  aberta  os  estúpidos.  Cala  boca  e  vive, 

porra!  Pra  que  essas  risadinhas?  Talvez  se  as  pessoas 

fossem  menos  simpáticas  houvesse  menos  guerras.  O 

presidente  visita  outro,  chega  lá  rindo  como  um 

abestalhado, dá  tapinhas nas costas, serve um  jantar grão 

fino,  e  quando  volta  pra  casa  mete  um  embargo,  ou 

aumenta as  taxas de  importação, ou nega a extradição de 

um  criminoso.  O  presidente  anfitrião  vai  obviamente  se 

sentir traído. “Mas pensei que éramos amigos, que iríamos 

estreitar  as  relações  comerciais”,  vai  pensar  o  coitado,  e 

quando menos  se  espera  vai  lançar  um míssil  em  algum 

avião  estrangeiro  desavisado.  Se  logo  de  início  ambos 

tivessem mostrado realmente o desconforto que é receber 

um hóspede, nada disso aconteceria. Ele  iriam  logo pensar 

reciprocamente  que  não  se  poderia  esperar  outra  coisa 

daquele  filha‐da‐puta.  E  pronto,  não  seriam  amigos, mas 

por  respeito  manteriam  a  distância  necessária  para  não 

vomitar  de  desgosto  um  na  cara  do  outro  por  serem 

forçados a ser cordiais. Eu também odiaria receber visitas. 

Ainda mais  visitas  por  interesse.  Pensei  nisso  quando  fui 

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escolher uma profissão. Com o meu perfil de atendimento 

ao  público  eu  já  pensei  em  seguir  várias  carreiras 

promissoras, embora ainda não tenha encontrado algo que 

realmente eu goste de  fazer. Uma dos  ramos em que  tive 

interesse  foi a enfermagem. Até tentei um estágio, mas aí 

aquela coisa, lá vem o doente moribundo, quase morrendo, 

levantando aquela mãozinha esquelética, amarela e usando 

todas  as  forças,  todas  as  últimas  forças  para 

miseravelmente, quase num gemido, dizer o quê? Bom dia. 

Aí não dá, né? Eu nunca respondo, mas nessas situações há 

que se fazer uma exceção. Bom dia por quê? O que é que 

tem  de  bom,  que  amanhã  teu  quarto  vai  estar  vago? 

Vamos,  diz  aí,  bom  dia  por  quê?  Tem mais  alguém  aqui 

além nós? Cadê tua família pra te assistir morrer? Bom dia 

o  caralho!   O que é que  tem de bom em morrer  sozinho, 

sem  forças  pra  comer,  tendo  de  ser  limpo  por  uma 

estranha  como  eu,  que  com  nojo  precisa  trocar  as  tuas 

fraldas? O quê, o dia não será melhor só porque é o último. 

É  apenas  um  dia  comum,  em  que  um  homem  comum  e 

sozinho  vai  desaparecer  sem  ser  percebido,  ser  notado, 

sem  que  ninguém  sinta  sua  falta.  Se  for  assim  tão 

importante, então  tá,  tenha aí o  seu bom dia.  (pausa) De 

fato, eu  tinha razão. O quarto vagou no dia seguinte. Mas 

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não sem antes o desgraçado fazer o relato do meu sincero 

cumprimento  à  enfermeira  chefe.  Tudo,  tudo  porque  eu 

por  compaixão  decidi  mudar  meu  hábito  e  responder  o 

maldito bom dia. Enquanto eu entrava e saia em respeitoso 

silêncio  não  tive  nenhuma  reclamação.  Obviamente  eu 

poderia  argumentar  que  o  paciente  teve  alucinações  ou 

delírios. Mas para quê?   Mais cedo ou mais  tarde eu  teria 

que cumprimentar as pessoas. Do meu  jeito, mas  teria de 

fazer.  Incrível  como  as  pessoas  ficam  simpáticas  na 

desgraça.  Falam  com  todos,  falam  baixo  até.  Pelo menos 

até  saírem  do  hospital,  para  então  voltarem  à  habitual 

gritaria  selvagem,  descomedida,  insuportável,  e  com  seu 

bom dia a escarnecer aos berros de um mundo que já não 

consegue mais acreditar em frases feitas. (pausa) Antes que 

eu  tivesse  que me  render  a  isso,  ou  que me mandassem 

embora, fiz a mim mesma o favor de sair de  lá.   Ainda era 

tempo  de  novas  descobertas,  e  eu  começara  a  me 

interessar por uma nova área.   Eu sempre achei que sabia 

entender as pessoas de uma maneira mais profunda, mais 

verdadeira  até.  Sem  querer  superestimar  minhas 

qualidades, eu  sempre  soube muito bem  ler uma pessoa. 

Foi  por  isso  que  eu  achei  que  talvez  pudesse  ser  útil  no 

ramo da psicologia. Não que eu fosse fazer uma faculdade 

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ou curso, essas coisas. Não preciso disso, acredito no meu 

feeling,  embora  ainda  precisasse  testar  minha 

compreensão  da  humanidade  de  maneira  mais 

sistematizada, e com voluntários. Não queria correr o risco 

de  ser  injusta  com  meus  futuros  pacientes  usando 

tratamentos  diferenciados  apenas  pelo  grau  de  simpatia 

que  elas  me  despertassem.  Precisava,  a  partir  do  meu 

conhecimento  sobre a emoção das pessoas  criar algo que 

servisse  pra  todas  elas  igualmente,  quase  como  um 

antídoto universal para os males do espírito. Quase  como 

um  genérico  para  a  alma.  Criei  então  um  roteiro  de 

respostas  prontas  para  todas  as  perguntas,  que  no meu 

entender, poderia provocar reflexões úteis para as pessoas.  

Fiz  alguns  testes  para  verificar  a  eficácia  de  minha 

estratégia e cheguei ao seguinte esquema, que obviamente 

deve  ser  feito  após  as  devidas  apresentações, 

cumprimentos  e mais  importante,  pagamento  adiantado. 

Pergunta: O que você é de melhor? Tempo para o cliente 

falar.  Movimentos  afirmativos  com  a  cabeça.  Resposta: 

Grande merda o que  você é de melhor.  Isso não  significa 

nada.  Você  acha  que  por  esse  mínimo  que  você  é  as 

pessoas vão te levar em consideração? É muita ingenuidade 

acreditar  que  só  por  isso  você  é  alguma  coisa  de 

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importante. Vamos,  tire  essa  empáfia da  cara!  Só porque 

esse  teu  sucessozinho  te enche de  ar, é  apenas  ar,  como 

um  balão.  Como  se  essa  sua  especialidadezinha  fizesse 

alguma diferença no mundo  como  se  apresenta hoje. Ah, 

você ganha algum dinheiro  com  isso? Grande merda essa 

sua  carteira  cheia.  Enfie  o  seu  dinheiro,  enfie.  Pergunta: 

Como  é  sua  relação  com  a  família?  Tempo  mais  curto. 

Interrompa  bruscamente  o  cliente.  Resposta:  eles  não 

precisam  de  você.  Você  se  importa  tanto,  se  preocupa 

tanto,  mas  sejamos  francos,  você  acha  que  eles  iriam 

morrer se você morresse? É óbvio que não. Outro cônjuge, 

padrastos  e  madrastas  para  seus  filhos,  passatempos  e 

distrações  pueris  para  seus  parentes  esquecerem  o mais 

rápido e  confortavelmente de você. Se dê o devido valor, 

esqueça  essa  gente.  Pergunta:  você  ama  alguém  em 

especial?  Deixe  o  cliente  falar  pelo  tempo  que  quiser. 

Resposta:  o  amor  é  o  mal.  (pausa)  Devido  a  algumas 

reações  exageradas  dos  meus  primeiros  clientes 

experimentais, tive de encerrar minha carreira na psicologia 

muito antes de verificar o quão transformadores seriam os 

resultados  de  minha  técnica.  Foi  um  tanto  quanto 

desestimulante  a  princípio, mas  não  posso  dizer  que  não 

aprendi  coisas  úteis,  muito  úteis  por  sinal.  E  a  primeira 

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delas é que toda opinião alheia é dispensável. De que é que 

me serve alguém que não me conhece e que entende tão 

pouco de psicologia quanto eu me dizer que eu não posso 

ser psicóloga? Nada! Não me  serve de nada. Estou bonita 

hoje? Não  importa a resposta. Se sim, vou me arrumar; se 

não, vou me arrumar do mesmo jeito. Ou não, não é? Cada 

dia é um dia. E não é por uma opinião qualquer que eu vou 

mudar sequer a cor da minha  roupa.   Não mudo um cílio, 

um  pêlo  de  dentro  do  nariz! Não  vou  arrancar  um  único 

maldito pêlo da minha virilha. Que  se  foda o mundo, não 

preciso  dessa merda!  Eu  não  preciso  de  ninguém!  (longa 

pausa,  outro  tom)  Eu  espero  que  seja  esse  tipo  de 

autoconfiança que vocês estejam procurando. Acredito que 

pelo  meu  breve  relato  vocês  tenham  tido  uma  boa 

perspectiva  do  meu  poder  de  empreendedorismo  e 

iniciativa. É  tudo de que vocês precisam para o cargo que 

eu  vou  ocupar,  não  é?  Sim,  porque  alguém  com  o meu 

perfil, com a minha capacidade de decisão e coragem para 

expor argumentos, em minha opinião, é  tudo o quê vocês 

precisam.  Não  por  falsa modéstia, mas  eu  sou  a melhor 

pessoa  pra  função.  Aliás,  para  qualquer  função.  Se  vocês 

forem  contabilizar  todas  as  minhas  qualidades  vão  ver 

várias que são amplamente valorizadas nesse mercado: sou 

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criativa,  tenho  iniciativa, sou dedicada, com personalidade 

e  liderança.  O  que  mais  é  necessário  para  se  ser  um 

sucesso?  Experiência?  Como  tudo  o  mais  na  vida, 

experiência  se  adquire.  Boa  educação?  Sou  a  pessoa 

melhor  educada  que  conheço.    Sou  sincera,  espontânea, 

honesta,  decidida.  São  qualidades  que  são  sinônimos  de 

boa  educação. Não  sou  como  esses  borra‐botas  que  não 

sabem  sequer  apertar  a mão de um  cliente,  e  ficam  com 

aquela mão mole,  pegajosa.  Eu  não,  eu  pego mesmo,  e 

aperto mesmo. Também não sou como esses indecisos que 

ficam de reme‐reme e lero‐lero. Digo as coisas na lata, sem 

enrolação.  Isso  é  ser  bem  educada,  isso  é  ser  honesta,  o 

que é bem raro hoje em dia, vocês hão de concordar. Se eu 

terei um bom relacionamento com a equipe? Mas é óbvio 

que  sim. Relacionamentos  às  claras, olho no olho,  são os 

que  têm vida mais  longa. Não vou usar de meias palavras 

com  ninguém.  Todos  vão  saber  exatamente  o  que  estou 

pensando,  e  vão  me  conhecer  e  respeitar  sem  que  eu 

precise,  vejam  vocês,  ser  simpática.  A  simpatia  é  um 

engodo,  algo  que  disfarça  a  incompetência,  o medo  e  a 

corrupção.  Alguém  como  eu  é  incorruptível.  Lembro  de 

uma  vez  em  que  quase  não  levei  uma  multa.  Eu  havia 

estacionado  em  local proibido pra  rapidamente  fazer não 

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sei o quê. Quando voltei o guarda estava  lá. Perguntou se 

eu já iria sair e eu disse que sim. Tudo bem, pode ir então. 

Você não  ficou nem  cinco minutos,  sei  como  é, me disse 

ele.    O  sangue  me  subiu.    Seu  guarda,  comecei  muito 

irritada, o senhor me pegou em flagrante delito. Não tem o 

menor  cabimento  o  senhor  deixar  de  dar  a  punição 

merecida. Ele perguntou se eu estava brincando, e eu disse 

que quem estava brincando era ele, em não fazer a  lei ser 

cumprida. Ele é que era um criminoso fardado,  incapaz de 

aplicar a lei, usando de cordialidades para conseguir não sei 

qual  simpatia  de  minha  parte.  Comecei  a  gritar  furiosa. 

Você  quer me  comer,  é  isso? Acha  que  não me  dar  essa 

merda  dessa  multa  vai  me  fazer  ficar  caidinha  pelo 

simpático e másculo  soldado  fardado? O que é que é, vai 

me subornar agora, é, com a  tua benevolência?   Fala aí o 

pé‐de‐porco! Ele me prendeu por desacato, o desgraçado. E 

óbvio, me multou. Mas eu estava certa, a  lei é para todos. 

Ele é que era o criminoso, não eu, que fui pra cadeia. Mas 

se a sociedade acha que eu devo pagar a minha dívida por 

dizer  a  verdade  e  fazer  a  lei  ser  cumprida,  tudo  bem.  É 

assim  que  tem  que  ser.  Ninguém  disse  que  o  mundo 

precisava ser justo. Mas não venham me obrigar a dar essa 

merda  de  bom  dia  pra  qualquer  bosta  que me  venha  a 

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cumprimentar. Acho que ainda  tenho o direito de não ser 

simpática  com  ninguém,  embora,  como  vocês  podem 

perceber, isso é mais um mérito do que um demérito. Digo 

isso porque até agora eu não fui simpática com nenhum de 

vocês,  e  vocês,  graças  aos  meus  méritos,  às  minhas 

qualidades, ao meu vigor, continuam me ouvindo.  (pausa) 

Ah, é por pura simpatia. Vocês só estão sendo simpáticos? 

(longa  pausa)  Pois  então,  meus  caros,  quero  que  vocês 

enfiem  essa  maldita  simpatia.  Enfiem,  estão  me 

entendendo? Vão comer merda com a porra desse bom dia 

do  caralho!  Vão  se  foder  com  a  porra  simpática  desse 

sorriso escroto! O que é que é? Vão engrossar agora seus 

cornos  do  inferno?  (a  luz  vai  diminuindo  aos  poucos 

enquanto  ela  xinga  rápida  e  furiosamente) Vão  pra  puta‐

que‐pariu  seus  filhos da puta do  caralho! Tô  cagando pra 

esse  serviço de merda, pra essa entrevista de merda, pra 

merda que são vocês seus merda! Vão tomar no olho roxo 

do  cu  escancarado  de  vocês!  Vão  chupar  a  hemorróida 

sangrenta um do outro! Hein, hein? Chupando esse buraco 

preto sujo de merda e sangue, hein, chupando para caralho 

essa  porra  de  merda  seus  filhos‐da‐puta  do  caralho 

fedorento  do  pai  filha‐da‐puta  de  vocês,  seus  cornos  do 

inferno maldito do caralho!  

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4. 

 Muito menos que um frango 

 

 

Eu corto o pescoço de galinhas. É isso que eu faço. Todo dia 

corto dois mil pescoços. Seguro pela cabeça e passo a faca, 

tomando o cuidado para não decepar totalmente. Eu ganho 

a vida assim. Meu uniforme é esse, sangue por todo o lado. 

Meu  escritório  é  esse,  com  uma  esteira  de  galinhas 

passando  ininterruptamente  enquanto  eu  as  degolo. 

(pausa) E eu nem  gosto de  carne de  galinha. Quando um 

namorado me  pergunta  o  que  eu  faço  pra  viver  eu  sou 

obrigada a dizer, trabalho no setor de galinhas. De frangos, 

ele pergunta. Não de galinhas. Parecem menores quando as 

chamo assim, menos importantes. Tirar a vida de um frango 

é muito mais grave do que a de uma galinha. Uma galinha a 

gente  não  tem  muita  dó,  mas  um  frango  tem  algo  de 

nobreza  que  eu  não  consigo  dizer  o  que  é.  Trabalho  no 

setor  de  galinhas.  E  o  que  você  faz  exatamente,  ele 

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pergunta.  Trabalho  numa  das  primeiras  etapas  de 

embalagem.  Ele  quase  fica  satisfeito.  Sim,  porque  as 

galinhas precisam estar mortas para serem embaladas, não 

é? Mas eu nunca entendo o porquê de os homens  serem 

assim tão curiosos. Ele pergunta de novo: Não, mas o quê 

você faz mesmo, você empacota, você  limpa, você varre o 

chão,  você  administra  a  produção? Meu  amor,  respondo, 

eu mato galinhas. Eu as degolo e faço todo sangue escorrer 

pelo  pescoço  fissurado,  quebrado  pela minha  lâmina.  Eu 

dou  fim naquela vidinha curta de merda, corto em menos 

de meio segundo e tento evitar que o sangue jorre no meu 

olho. Sim, meu amor, eu mato galinhas. Eu as dilacero com 

minha  faca,  seguro  suas  cabeças  e  num  gesto  mais 

mecânico do que  impulsivo,  corto os  seus pescoços. Você 

está  feliz agora, com minha resposta conclusiva e objetiva 

sobre a minha profissão, meu amor?  (pausa) Vai ser difícil 

achar  um  homem  desse  jeito.  Sei  lá,  talvez  algum 

açougueiro  se  apaixone  por  mim.  E  então,  vai  me 

perguntar, você conhece todo métier do preparo da carne? 

Não, eu só mato galinhas. Frangos? Não, galinhas mesmo, 

do  tipo mais  desprezível.  (pausa)  Vou  confessar  que  não 

tinha imaginado isso pra minha vida quando eu era criança. 

Mamãe, mamãe, quando eu crescer quero ser matadora de 

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galinhas. Não , né? Não era isso que eu imaginava pra mim. 

Queria  algo  maior  quando  eu  ainda  tinha  sonhos. 

(brincando) Matar  porcos.    Não,  né?  Não  nesse  sentido. 

Bem  na  verdade  eu  não  tinha  lá  muitos  sonhos  de 

profissão, não. Eu nunca quis ser médica por exemplo.  E na 

época eu dizia que era porque eu  tinha pavor de  sangue. 

Advogada? Ainda prefiro tirar o sangue só de galinhas. Não, 

não  tinha  muitas  pretensões  pra  mim.  O  que  eu  queria 

mesmo, mas mesmo, mesmo era casar. Nada demais, sem 

muitas pompas ou luxos. Churrascos, bebidas, convidados... 

Não,  nada  disso.  Eu  só  queria  um  homem  pra mim,  um 

casal de filhos e cuidar da casa. Não era pedir demais, era? 

Era  assim  tão  pouquinho,  tão  singelo...    E  hoje  o  que  eu 

faço? Mato galinhas. Que homem  vai querer uma mulher 

que mata  galinhas? Querido,  compra  pra mim  um  creme 

bem  cheiroso  pra  tirar  o  cheiro  de  sangue  das  minhas 

mãos? Não é nada romântico, não é? Mas eu não perco as 

esperanças. Nunca se sabe, não é? Tem louco pra tudo. Um 

homem  que  fosse  incapaz  de  fazer  pouco  de  mim  pela 

minha profissão. Jamais toleraria piadinhas como “já matou 

nosso  jantar  hoje,  querida?”  ou,  “querida,  você  podia 

emprestar seu uniforme pra uma festa a fantasia? Vou me 

fantasiar  de  serial  killer”.  Posso  confessar,  eu  mataria 

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alguém  só  por  ouvir  uma  coisa  dessas.  Por  que  não  vão 

gozar  da  cara  dos  professores?  Poderiam  dizer,  de  que 

adianta  tanto  estudo  se  a matadora  de  galinhas  ganha  o 

dobro com a metade da carga horária e apenas uma faca? 

Não,  não  deveriam  fazer  isso.  Toda  profissão  tem  sua 

dignidade,  os  garis,  os  professores,  os  maquiadores  de 

defuntos,  os mergulhadores  de  esgoto,  as  prostitutas,  os 

degustadores  de  cerveja,  os  reconstrutores  de  hímen, 

todos. E até eu, que mato galinhas.  (pausa) Certa vez ouvi 

que as pessoas que trabalham com esse tipo de profissão, 

tipo  matança  em  escala  industrial,  esquartejamentos  e 

evisceração  de  animais  acabam  ficando  doentes.  Acabam 

tendo  problemas  na  cabeça.  Tem  uns  que  começam  a 

testar  suas  técnicas  de  descarnamento  e  desossagem  em 

pessoas. Que perdem a noção do que é um bicho e do que 

é alguém. Eu sou alguém. Uma galinha não é ninguém. Os 

animais não são pessoas, não tem o mesmo valor e por isso 

precisam ser mortos para matar a nossa fome, das pessoas 

que são alguém. Não  tenho remorso do que  faço. Sei que 

cada vez que mato uma galinha alguém vai comer bem. Isso 

é bom, não é? Sustentar os matadouros com nossa fome é 

uma boa  forma de  se  gerar empregos. Empregos  como o 

meu,  que  às  vezes,  quando  não  tem  nenhum  homem  na 

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parada, eu até me orgulho. Você não está com pressa, não 

é? Matar  galinhas.... Mas  onde  é  que  eu  fui  parar?  Você 

entende, não é? Não  foi minha culpa. De alguma maneira 

as  coisas  foram  se  organizando  pra  isso.  Fui  meio  que 

seguindo o fluxo, de vento em popa, a favor da corrente... 

Mas  a  vida não precisa  ser  sempre  assim.  Posso  escolher 

outras coisas agora. Posso escolher o meu  rumo. Eu mato 

galinhas, é verdade. Mas não preciso fazer isso pra sempre. 

Posso  começar  a matar  porcos.  Brincadeirinha.  Chega  de 

sangue na minha vida. Quase tenho vontade de nunca mais 

comer carne. Quase. Eu penso às vezes... Às vezes não, eu 

penso  quase  sempre  em  voltar  aos  meus  sonhos  de 

infância. Eu ainda quero ter um marido. Filhos. Não é pedir 

muito,  é?  Sei  que  tem muitas mulheres  que  acham  isso 

horrível,  uma  coisa  antiga  e  tal. Mas  as  coitadas  acabam 

sempre casando, veja só. E se não casam, tem pelo menos 

um filho. Acho, sei lá, que talvez faça parte da vida, um tipo 

de instinto, como o instinto de um bicho, como uma galinha 

que  se  debate  furiosamente  como  se  fosse  escapar  da 

morte depois que eu lhe corto o pescoço. Eu sei que talvez 

essa história de matar galinhas  tenha me  feito algum mal. 

Que  talvez  demore  pra  eu  esquecer  de  tanto  sangue  em 

minhas botas, embaixo das minhas unhas, nos meus poros. 

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Mas  isso  não  é  nada  que não  possa  ser  contornado  pelo 

tempo.  Tudo pode  ser  curado pelo  tempo, não  é? Quase 

tudo.  Você  não  precisa  ir  embora  agora.  Acho  que  com 

tempo  poderíamos  nos  entender  melhor.  Sei  lá,  nos 

entender  mesmo,  sabe?  Eu  trabalho  sozinha  sabe?  Fico 

sozinha  em minha  sala  enquanto  as  galinhas  passam  de 

cabeça pra baixo em uma esteira para que eu  faça o meu 

serviço.  Eu  moro  sozinha  também.  Fico  no  meu  quarto 

vendo o dia passar  quando não  estou  trabalhando.    E  eu 

assisto  comédias  pra  passar  o  tempo.  Eu  não  gosto  de 

filmes  de  violência,  eu  sou  assim,  sensível.  Tão  sensível 

quanto qualquer pessoa.   E não é sempre que eu procuro 

alguém.  Eu  não  procuro  alguém  faz muito  tempo.  Talvez 

seja por  isso que estou me abrindo contigo agora. Falando 

pelos  cotovelos,  dizendo  coisas  que  sei  lá,  nem me  dava 

conta  de  que  pensava...  Mas  penso,  tanto  é  que  estou 

falando, não é? Calma, não vá ainda. Eu ainda não terminei.  

As  pessoas  acham  que  porque  eu  mato  centenas  de 

milhares de animais por ano eu não tenho sentimentos. Eu 

tenho.  Eu  tenho  sim,  como  qualquer  pessoa.  Eu  sofro 

também, não sou uma máquina. No meu trabalho obrigam 

a  gente  a  se  tratar  com  psicólogos  como  você  todos  os 

meses. Eu conto tudo. Não escondo nada. Também pra não 

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fiquem  pensando  que  a  gente  enlouquece  ao  ver  tanto 

sangue. Eles  têm medo que a gente perca a sensibilidade.  

Mas  não  eu.  Eu  separo  muito  bem  as  coisas.  Eu  sou 

sozinha, é verdade, mas isso não quer dizer que eu não seja 

capaz de  amar.  É  como  se eles  achassem que  a qualquer 

momento  eu  vou  pegar  a  faca  e  cortar  a  garganta  de 

alguém.  Eu  já  falei,  eu  só  mato  galinhas.  Elas  não 

representam nada. Matar uma pessoa, um homem,  como 

você,  seria  como  matar  um  frango.  Eu  não  conseguiria, 

entende? Eu  jamais mataria um frango, e nem um homem 

como você. Os frangos têm algo de nobre que me dá pena, 

já te falei isso, não é?  (pausa) Mas espere mais um pouco. 

Não,  não  vá  embora  tão  cedo.  Eu  estou  tão  sozinha,  por 

favor, não me deixe. Eu  contei minha vida  toda pra você, 

por  favor,  fique comigo.  (pausa) Você é muito menos que 

um frango! 

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5.  

Romualdo Ângelo 

 

 

Sim, eu  fiz. Tatuei o nome do meu marido na bunda. Não 

bem na bunda, um pouco acima, no cóccix. Ali, todo mundo 

sabe onde é. Não, não sei bem ao certo por que. Na época 

achei  que  era  uma  demonstração  de  amor  bem  legal. 

Achava que ele ao me pegar por trás sempre ia pensar que 

eu era mesmo a mulher dele. Romualdo Ângelo. Achei que 

não ficaria bem colocar sobrenomes. Iria parecer um cinto, 

sei  lá, com  todos aqueles silva e souza. Melhor só os dois 

prenomes mesmo.  Romualdo  Ângelo.  Em  letras  grandes, 

como  uma  manchete  de  jornal.  Depois,  quando  já  não 

estávamos mais  juntos, mas  eu  ainda  tinha  esperança  de 

voltar pra ele, achava que todo homem que me pegava por 

trás,  ao  ver  aqueles  dois  nomes  cheios  de  “as”  tônicos, 

Romualdo  Ângelo,  iria  saber  imediatamente:  essa mulher 

tem dono. Se fosse assim, né? Se bastasse a gente escrever 

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o nome de quem a gente gosta na pele para que o amor 

nunca  acabasse... Deveria  ser  assim. Que o  amor durasse 

enquanto durassem as tatuagens. Mas não é. E agora cada 

vez que me olho no espelho, de costas, eu vejo o quanto eu 

amei  Romualdo  Ângelo.  Louco,  não  é?  A  gente  faz  cada 

idiotice  quando  ama.  E  a  pior  delas  é  demonstrar  nosso 

amor. Deveria vir no manual de  instruções do amor,  caso 

ele tivesse algum, que para maior durabilidade do produto 

todas  as  demonstrações  de  amor  deveriam  ser  com 

moderação,  aliás,  com  absoluta  moderação.  É  o  que  eu 

acho, pelo menos. E cada vez que me olho de costas tenho 

mais  certeza  disso.  Não  é  apenas  porque  a  grana  dos 

presentes  não  volta,  o  tempo  de  espera  não  volta,  e  as 

tatuagens  são  para  sempre,  ou  quase.  É  porque  de  fato, 

sejamos francos, não damos valor ao que achamos que não 

vamos perder. Quando a gente fica ouvindo todo dia eu te 

amo,  duas  coisas  podem  acontecer:  ou  enchemos  o  saco 

dessa merda, ou encaramos isso como uma coisa tão usual 

como um bom dia, como vai? É sério. Qual a graça em ser 

amado  incondicionalmente?  Isso  só  funciona  com  pais  e 

filhos,  e  ainda  assim  às  vezes dá merda. Quando  a  gente 

ouve  ‘eu  te  amo’  todo dia  a  gente pensa que pode  fazer 

qualquer coisa e ser perdoada, porque na verdade a pessoa 

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nos ama tanto que não pode mais viver sem a gente. Nem 

sempre é verdade, nem todas as pessoas pensam como eu, 

mas  falando  por mim,  é  bem  isso mesmo.  Eu  penso  no 

Romualdo.  Todo  dia me  comendo  e  vendo  seu  nome  na 

minha  bunda.  Me  segurando  pelas  nádegas,  lendo  e 

relendo,    Romualdo Ângelo,  Romualdo Ângelo,  Romualdo 

Ângelo,  isso  enquanto  resfolegava  em  minhas  costas, 

enquanto  gozava  em mim, murmurando  o  próprio  nome 

repetidas  e  repetidas  vezes,  Romualdo Ângelo,  Romualdo 

Ângelo, Romualdo Ângelo... Essa mulher é minha, é o que 

ele deveria pensar. E eu era mesmo. Me considerava dele. 

Queria ser dele a todo custo. Mas e ele? A merda é que eu 

nunca  soube  se ele me queria pra  si de verdade. A gente 

enjoa de nossos brinquedos. Podemos sonhar a vida inteira 

com  a  boneca  cara  da  vitrine  e  esquecer  completamente 

das  que  temos  em  nossas  prateleiras.  O  Romualdo  por 

exemplo. Acho que ele nunca me disse, assim com todas as 

letras, na cara, olho no olho, que me amava. E eu implorava 

por isso às vezes. Diz que ama! Diz que me ama, por favor. 

Pelo amor de Deus, diz que me ama seu desgraçado! E ele 

nada.  Se  limitava  a  sorrir. Desviava o  assunto  e dizia que 

eram claros os seus sentimentos.   Os seus sentimentos! Era 

tão difícil assim dizer eu te amo, seu filho da puta! E eu me 

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esfalfava  tentando  fazer  aquele  desgraçado  manifestar 

qualquer  tipo  de  afeto. Não  precisava muito.  E  como  ele 

não  dava  nada,  ou  quase  nada,  esse  quase  nada  valia 

muito. Às vezes bastava um sorriso de satisfação depois de 

trepar comigo para me encher de alegria. Ele me ama, eu 

pensava depois que ele gozava. E até hoje eu não sei se ele 

amava mesmo ou se era coisa da minha cabeça. E é por isso 

que  até hoje  eu  não  paro  de  pensar  nesse  filho da puta. 

Com o  tempo eu  já não era mais  tão  louca por ele, mas a 

fixação  em  fazer  com  que  ele me  amasse  fazia  com  que 

cada vez mais eu implorasse por seu amor. Me pergunto se 

ao invés de parecer frio como uma rocha quando se tratava 

de  alimentar  o meu  amor,  ele me  dissesse  todos  os  dias 

que me  amava,  se  eu  continuaria  o  amando  tanto  assim 

quando  estávamos  juntos?  Não  consigo  imaginar  uma 

resposta.  Como  vou  saber  sobre  o  que  poderia  ser? Não 

tenho  perspectiva  para  saber  qual  seria  minha  reação. 

Talvez eu o tivesse deixado. Talvez eu pensasse que depois 

de tanto esforço, de tanta  labuta para conseguir o mínimo 

de retribuição a tudo o que eu fazia para demonstrar o meu 

afeto,  quando  ele  até  que  enfim  dissesse:  eu  te  amo;  aí 

talvez  eu  achasse  que  nada  daquilo  tudo  tivesse  valido  à 

pena, que  tinha desperdiçado meu  tempo, e que de  fato, 

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era  tudo  um  horrível  engano  da minha  parte,  e  que  na 

verdade eu o odiava profundamente. Podia ser, não é? Mas 

como vou saber. Estou aprisionada pela dúvida. É por  isso 

que  eu  digo:  toda  demonstração  de  amor  é  uma merda! 

Quer ser amada? Nunca diga que ama. Amantes perfeitos: 

duas almas encarceradas no silêncio e na dúvida. É o único 

remédio para o amor saudável, não demonstrar. Se o amor 

fosse  um  bicho,  e  estivesse  numa  jaula,  deveria  ter  bem 

grande  numa placa:  “Cuidado, morre  ao  ser  alimentado”. 

Essa  é  minha  experiência.  É  disso  que  sei.  Depois  do 

Romualdo eu  tive outros. Vários outros que  cada vez que 

me  pegavam  de  jeito  liam  e  reliam  incansavelmente  a 

infame  frase,  Romualdo  Ângelo,  Romualdo  Ângelo...  E 

todos eles uns amores, diziam que eu era gostosa, uns que 

gostavam de mim, e um ou outro que me amava. Ninguém 

nunca me deixou tão na dúvida quanto Romualdo. E talvez 

seja  por  isso  que  eu  sequer me  recordo  de  seus  nomes. 

Quanto ao Romualdo, que eu nunca esqueci, casou o filho 

da puta. Casou com uma megera, que engordou como uma 

vaca depois do segundo filho. E eu sei, porque toda mulher 

que  se  preza  sempre  sabe  da  vida  dos  homens  que  as 

abandonam,  ele  apanha  da mulher. O  Romualdo,  que  eu 

amava por ser um homem de verdade, macho e misterioso, 

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que  nunca  se  deixava  dominar,  apanha  da  mulher.  E 

engordou  como  um  boi  também.  Um  boi  pronto  para  o 

abate. (pausa) Meu deus, como está gordo aquele homem. 

Era tão altivo, tão orgulhoso, e hoje parece um ruminante, 

de cabeça baixa, pastando à sombra da mulher. Eu garanto 

que ele diz todo dia pra ela: eu te amo, eu te amo... E ela, 

eu  poderia  apostar  nisso, deve  sempre  dizer  que  ele  não 

presta, que é um gordo nojento, que  trepa mal,  se é que 

eles trepam, e que a pior coisa que fez na vida foi casar com 

ele.  Ele  engordou,  ficou  feio,  velho  antes  do  tempo, 

cansado, infeliz. Não, não fico feliz com isso. Um pouquinho 

só, vá lá, também não sou santa. Mas é uma coisa triste. Eu 

ainda  penso  às  vezes  em  salvá‐lo  desse  inferno. Gostaria 

que ainda uma última vez ele pudesse ler em minhas costas 

o  seu  nome  escrito.    Uma  tatuagem  assim  como  ele, 

desbotada, desgastada pelo tempo, ferida, apagada. Gosto 

de pensar que  foi o envelhecer da tatuagem que o deixou 

assim.  De  que  se  ele  tivesse  ficado  comigo,  e  eu  tivesse 

alimentado  o  nosso  amor  retocando  a  tinta  daquelas 

palavras  em minha  pele,  ele  ainda  seria  jovem  e  bonito, 

misterioso e sem amor para demonstrar. Mas  isso não vai 

acontecer. Hoje estou aqui para resolver isso. Uma enorme 

mancha  negra,  como  uma  nuvem  de  tempestade.  É  isso 

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que  eu  quero  no  lugar  dessas  palavras  horríveis  que me 

fizeram sofrer tanto, e que você há tanto tempo tatuou em 

mim. E eu tanto que quis ser amada, ou enganada de que 

era  amada. Então, depois de  relembrar  e  te  contar  assim 

como quem  se  confessa o horror  e o  fracasso de minhas 

demonstrações de amor, eu quero que essas duas palavras, 

essas  duas  horríveis  palavras  que  tanto marcaram minha 

vida e meu corpo, por  tempo demais e  inutilmente, eu as 

quero  encobertas  por  uma  nuvem  de  esquecimento,  um 

nuvem  negra,  com  raios  e  alguma  chuva,  para  que  se 

apague  para  sempre  esse  homem  de minha  vida,  e  esse 

nome, que a  tinta e  sangue, eu nunca  consegui esquecer, 

Romualdo Ângelo. (ruído de caneta tatuadora).  

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6.  

Cuidado para não se apaixonar 

 

Duas cadeiras, uma para a atriz e outra para a espectadora. 

Cuidado  para  não  se  apaixonar  por mim,  você me  disse.  

Que diabo de frase é essa? Não entendo o que quer dizer? 

Que você não presta? Que é perigoso gostar de você? Pra 

quê  isso? Devo  agora  ter medo de me  aproximar porque 

você  vai  me  fazer  mal,  decepcionar,  trair,  o  quê?  Não 

entendo. Do que é que devo ter medo? Não precisa vir com 

essas desculpas. Basta dizer, não gosto de você! Ou, até te 

acho  legal, mas não pra mim. É mais honesto dizer  isso. E 

menos  dolorido  também.  Eu  até  tento  entender.  Nós  já 

tivemos  tantos  amores desfeitos,  tanta gente  já nos usou 

como  um  capacho,  como  algo  descartável,  como  um 

produto com preço, que temos medo, eu sei. O que fazer? 

Viver  só  enquanto  o  medo  de  sofrer  nos  dilacera 

continuamente  até  uma  velhice  solitária?  Basta  dizer  eu 

não  te  quero.  É  o  suficiente. Agora,  recusar  o meu  amor 

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com  a desculpa de me proteger é muita  falta de  afeto, é 

como  tentar  me  proteger  do  seu  desprezo.  Não  há 

proteção  pra  isso.  “Cuidado  para  não  se  apaixonar  por 

mim!” Não  entendo. O  que  você  quer  dizer?  É mais  fácil 

pensar que o que você quer que eu tenha é coragem para 

me apaixonar por você, e por isso devo tomar cuidado. Mas 

acho que nem eu nem você precisamos desses avisos. Que 

o amor é perigoso nós já temos experiência de sobra. Que é 

preciso coragem para amar já é um lugar comum. Será que 

não sabemos disso o suficiente ainda? Sim, eu tenho medo 

também.  Tenho  medo  de  te  perder  ao  dar  um  passo 

adiante. Aí  sim,  talvez possamos  justificar o  seu  “cuidado 

para não se apaixonar”. Sim, eu tenho medo de te perder. 

Tenho medo de forçar a barra, de ser inconveniente, de ser 

chata... Mas tenho mais medo de que você se apaixone por 

outra  pessoa  antes  que  eu  possa  te  dizer  que  eu  tenho 

coragem de me apaixonar por ti. Eu tenho mais medo disso. 

Li há pouco, não sei onde, que não devemos esperar nada 

do amor. Que a esperança do amor só nos faz sofrer, que é 

a expectativa que nos destrói. Começo a achar que é a mais 

pura verdade, mas eu não consigo não ter expectativas. Eu 

não  consigo  não  esperar  te  beijar  cada  vez  que  nos 

encontramos.  Eu  não  consigo.  Eu  sei  que  seria mais  fácil 

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deixar o barco correr e ir vivendo como se o fluxo de nosso 

rio fosse desaguar num mar tranqüilo. Mas cada vez que te 

vejo é  como  se as águas desse  rio  se  transformassem em 

uma  corredeira  perigosíssima,  destruindo  nas  pedras  e 

cachoeiras de meu peito esse pequeno barco que nos leva. 

Sim, eu agradeço  teu aviso, mas ele é  inútil. É como dizer 

cuidado com o ar! Não há alternativa, entende? Não tenho 

como  evitar  o  risco. Outro  dia  você me  disse  que  somos 

apenas  amigas.  E  ainda me  fez  confirmar  dizendo,  não  é 

verdade que ainda  somos amigas? É  claro que  somos. Ou 

você acha que não há amizade no amor? Que amantes não 

são amigos, que um casal não pode ser amigo? Sim, somos 

amigas,  se  é o que  você quer  saber.  Somos  amigas  tanto 

quanto éramos quando caminhávamos de mãos dadas, sem 

ressalvas pelo o que os outros iam pensar, ou pelo que nós 

mesmas  iríamos pensar. Onde  foi parar  aquela  época  em 

que  éramos  amigas  de  caminhar de mãos  dadas?  E  hoje, 

que  você  me  cumprimenta  a  distância,  quase  com  um 

aceno,  como  se  fôssemos  estranhas,  onde  está  nossa 

amizade? Escondida atrás do medo de  se apaixonar? Sim, 

somos amigas. Somos amigas de um  tipo de amizade cuja 

ressalva em  se apaixonar poderia por  tudo a perder,  caso 

não fôssemos tão fiéis uma a outra. (pausa) Falando nisso, 

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você  nunca  mais  me  beijou.  Para  não  confundirmos  as 

coisas, você me disse. Pois não funcionou. Agora é que tudo 

se  tornou  confuso. Eu não  sei o que pensar. Eu não  sei o 

que fazer.   Era para esse perigo que você me alertava? Não 

funcionou. Eu estava  tranqüila como um  lago silencioso. E 

agora, com essa amizade distante e misteriosa,  repleta de 

ressalvas  e  indefinições,  de  perigosas  possibilidades  e 

palavras que não devem ser ditas, me sinto em meio a uma 

tempestade no mar, me afogando em mim mesma. Como 

lidar com  isso? Como  lidar com o afogamento  iminente de 

nossa  relação?  Eu  gostaria  tanto  de  nadar  até  a margem 

contigo,  e  nos  salvarmos,  e  nos  deitarmos  na  praia, 

exaustas,  mas  vivas,  e  nos  beijaríamos  pela  alegria  de 

termos  sobrevivido,  de  ainda  estarmos  juntas  após  uma 

tempestade que poderia  ter nos matado. Mas para  isso é 

preciso ter coragem de se  jogar no mar. De mergulhar até 

quase perder o fôlego, e confiar que caso a superfície não 

esteja  tão  perto,  não  estamos  sozinhas  no  fundo  do 

oceano. Você seria capaz? Não apenas de mergulhar, mas 

de olhar para o lado e confiar em mim? De confiar em nós? 

Não sei se você tem coragem. Você seria capaz? O mundo é 

tão  cheio  de  reviravoltas,  de  acasos,  de  coisas  sobre  as 

quais não  se pode  ter o mínimo de  certeza... Viver  é um 

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risco  grande demais para  escolher. Deve  ser por  isso que 

não temos escolha. Podemos até escolher não continuar a 

viver, mas não a viver sem riscos. Tudo pode acontecer, e 

isso dá medo. Agora resta escolher se continuaremos tendo 

medo dos  riscos  imaginários ou do perigo  real e  iminente 

que nos encontra de frente todos os dias. É desse perigo de 

todos  os  dias  que  tenho  medo.  Não  adianta  fugir,  é 

inevitável.  Somos  obrigadas  a  escolher,  e  ter  medo  de 

nossas escolhas é como temer o que ainda não aconteceu, 

e  não  temos  sequer  idéia  do  que  vai  ser.    O  futuro 

certamente  nos  oferecerá  sua  alegria  ou  horror  não 

importa o medo que  tenhamos, a  fuga que planejemos, a 

escolha  que  fizermos.  Nunca  iremos  saber,  e  isso  é 

apavorante, não é? Tão apavorante quanto  inevitável. Não 

posso dizer se seremos felizes, nem se ficaremos juntas por 

toda  vida.  (pausa)  Ficar  juntas por  toda  vida.  Isso me  soa 

tão  fantasioso  como  um  conto  de  fadas,  mas  como  eu 

gostaria  de  acreditar.  Você  entende?  Não  há  garantias, 

nunca  haverá  garantias,  seja  comigo  ou  com  qualquer 

pessoa.  É mais  uma  expectativa  infundada,  que  pode  ou 

não  se  concretizar.  E  nunca  saberemos  a  não  ser  se 

tivermos coragem de correr o risco. Você acha o quê? Que 

eu tenho medo de me apaixonar por você? É óbvio que eu 

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teria, caso  já não estivesse apaixonada. É óbvio que  teria, 

tanto  quanto  teria  medo  de  mergulhar  em  águas 

profundas. Mas  se  não  tivéssemos  esperança  de  voltar  à 

superfície  em  segurança,  jamais  afundaríamos  a  cabeça 

sequer  no  raso  daquelas  praias  onde  tantas  vezes 

mergulhamos.    Não  posso  permitir  que  você  tente  me 

proteger  de minhas  próprias  decisões,  de meus  próprios 

sentimentos. Você não  tem  nem  esse  direito  e  nem  esse 

poder. Também não posso te proteger de meus erros. Não 

sou perfeita, e nem conseguiria ser. Eu poderia até  tentar 

ser perfeita para você, mas sem meus defeitos será que eu 

seria eu mesma? Não sei o que poderia acontecer. Não sei 

o que  acontecerá  a partir de  agora, mas quero que  saiba 

que apesar de assustada e  com medo, eu  sou  capaz de  ir 

adiante.  Eu  sou  capaz  de  ir  além  de  teus  avisos,  de  tuas 

preocupações,  de  tuas  inquietações,  que  são  minhas 

também. Eu sou capaz até de ter cuidado, mas não de fugir 

ao  perigo.  Sei  que  já  enfrentamos  coisas  terríveis,  já 

choramos cada uma o seu amor perdido. Mas não podemos 

nos  resignar  às  lágrimas que  já derramamos. E é por  isso 

que eu ainda não entendo o seu alerta, “cuidado para não 

se  apaixonar  por  mim”.    É  como  se  você  não  soubesse 

quem somos. Como se fingisse não perceber que há muito 

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mais  em nossa  amizade do que  caberia  em nossa  singela 

alegria de amigas. É como se você não soubesse de que eu 

sou capaz de  tudo por você, de que  tenho  tanta coragem 

quanto um explorador submarino, e que não terei medo de 

ir até o fundo de nossas expectativas. É como se você não 

soubesse  que  te  quero  com  todo meu  fôlego,  com  toda 

minha coragem. É como se você nunca tivesse desconfiado 

dessa verdade evidente e escancarada que é o meu amor. E 

eu te amo, sua grande idiota.  

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