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  • BIBLIOTECA VIRTUAL DE CINCIAS HUMANAS

    AGRARISTAS

    POLTICOS

    BRASILEIROS

    Raimundo Santos

    BIBLIOTECA VIRTUAL DE CINCIAS HUMANAS

    GRARISTAS

    Raimundo Santos

  • Raimundo Santos

    Agraristas polticos brasileiros

    Rio de Janeiro 2008

    polticos brasileiros

    Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais - www.bvce.org

    Copyright 2008, Raimundo Santos Copyright 2008 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da ltima edio: 2007, Fundao Astrojildo Pereira/NEAD/IICA Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN 978-85-99662-81-6 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205 Ipanema - Rio de Janeiro - RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected]

  • I

    SUMRIO

    Nota de esclarecimento .............................................................................. III

    I Parte Agraristas e Polticos Brasileiros Caio Prado Jr.: Valorizao do Trabalho e Sindicalismo Rural .............1

    O sentido da trajetria de Caio Prado Jr. ....................................................... 3 A valorizao do trabalho na circunstncia nacional ..................................... 8 O papel do sindicalismo na reforma do mundo rural .................................... 13 O marxismo poltico de Caio Prado Jr. ......................................................... 20 Consideraes finais ...................................................................................... 26 Referncias bibliogrficas ............................................................................. 29

    Alberto Passos Guimares e a Revoluo Agrria No Camponesa ....34 As possibilidades da revoluo reformista .................................................... 36 O tempo no socialismo brasileiro .................................................................. 42 O papel dos sindicatos no movimento campons ...................................... 49 Lnin e a revoluo agrria no camponesa ................................................. 52 Os fundamentos prticos da mediao poltica ............................................. 59 Consideraes finais ...................................................................................... 67 Referncias bibliogrficas ............................................................................. 71

    Ivan Ribeiro: Via Prussiana, Democracia Poltica e Reforma Agrria .74 Um novo clima intelectual no campo pecebista ............................................. 76 Uma reforma agrria sob procedimentos democrticos ............................... 79 Referncias bibliogrficas ............................................................................. 85

    II Parte Textos Selecionados Caio Prado Jr.: O Estatuto do Trabalhador Rural .................................87 Alberto Passos Guimares: As Trs Frentes da Luta de Classes no Campo Brasileiro ....................................................................................98

    A opresso imperialista no campo ................................................................. 99 A teoria e o mtodo da luta de classes ......................................................... 100 As transformaes burguesas e as foras motrizes ...................................... 102 O caminho reformista e o caminho revolucionrio ..................................... 103 A frente dos assalariados e semiassalariados .............................................. 109

    II

    A frente contra o latifndio .......................................................................... 111 A frente de luta contra o imperialismo ......................................................... 113

    Ivan Ribeiro: A Agricultura e o Capitalismo no Brasil ...................... 116 1. Relaes intersetoriais na economia brasileira ....................................... 118 2. A nova etapa do imperialismo .................................................................. 120 3. O modelo de transio ao capitalismo no Brasil ..................................... 122 4. Qual reforma agrria? ............................................................................. 126

    III Parte Apndice Declarao sobre a Poltica do Partido Comunista Brasileiro ............. 129

    I O processo de desenvolvimento econmico do Brasil ............................ 129 II A democratizao da vida poltica nacional ......................................... 134 III Crescem no mundo inteiro as foras da paz, da democracia e do socialismo ..................................................................................................... 135 IV Aprofunda-se a contradio entre a nao brasileira e o imperialismo norte-americano ........................................................................................... 138 V A frente nica e a luta por um governo nacionalista e democrtico ....... 140 VI O caminho pacfico da revoluo brasileira ........................................ 147 VII Pela vitria da frente nica nacionalista e democrtica nas eleies .. 149 VIII Fortalecer o Partido para a aplicao de uma nova poltica ............ 152

  • III

    NOTA DE ESCLARECIMENTO

    Os textos que integram a I Parte deste livro provm da pesquisa Perfis agraristas brasileiros ora em andamento no CPDA (Programa de Ps-graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade), da UFRRJ, e cujo objetivo consiste em comparar autores da vertente comunista com a matriz representada por Jos de Souza Martins, socilogo que tem na reflexo de Florestan Fernandes sua referncia bsica.

    Enquanto j dediquei vrios textos a Caio Prado Jr., at agora s divulguei sobre Alberto Passos Guimares e Ivan Ribeiro registros pequenos. H muito tempo, saram em Estudos Sociedade e Agricultura (junho de 1994) notas de minha autoria a propsito dos 30 anos de Quatro sculos do latifndio. No final do ano passado, publiquei, naquela mesma revista, um curto artigo chamado O agrarismo inconcluso de Ivan Ribeiro.

    Correndo o risco de expor escritos com repeties e ainda carentes de mais investigao, resolvi compor este volume incluindo as duas partes do relatrio da pesquisa acima citada, relativas a Passos Guimares e a Ivan Ribeiro, assim apresentando um esboo da matriz em que se funda o agrarismo comunista no pas. O livro cumpre parcialmente a inteno da pesquisa, mas ainda fica pendente uma publicao sobre as ideias de Jos de Souza Martins. Este autor, no seria exagero dizer, tem muita influncia no s nos movimentos sociais (CPT-MST) do tempo mais recente, mas tambm em toda uma gerao de estudiosos. A nosso ver, atentar para essa dimenso da obra do socilogo da USP constitui um cometimento instigante na compreenso das mobilizaes rurais dos dias de hoje.

    Dei a este volume o nome de Agraristas polticos brasileiros, chamando a ateno para um aspecto importante no estudo dos trs ensastas aqui resenhados: so autores que formulam, para o campo de esquerda do seu respectivo tempo, argumentos muito alm do registro da presena comunista no mundo rural. Neste sentido, espero deixar seus nomes associados a lineamentos da matriz comunista, com todas as aporias que ela carrega: a interpretao de Brasil (Caio Prado), a habilidade no agir poltico (Passos Guimares) e a hiptese prussiana como cnone interpretativo-programtico (Ivan Ribeiro). O volume traz uma II Parte com

    IV

    textos dos prprios ensastas, selecionados entre os mais expressivos da publicstica que cada um deles dedicou ao tema agrrio e rural. O leitor encontrar no apndice uma resoluo pecebista que est presente em todos os ensaios da I PARTE: a Declarao sobre a poltica do PCB.

    Agradeo os apoios recebidos do Ncleo de Estudos sobre Agricultura e Desenvolvimento (NEAD), da Fundao Astrojildo Pereira, de Braslia, do Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA) e do CPDA, sem os quais a edio do presente livro no teria sido possvel.

  • 1

    I PARTE AGRARISTAS E POLTICOS BRASILEIROS

    CAIO PRADO JR.: VALORIZAO DO TRABALHO E SINDICALISMO RURAL

    Entendido como uma mobilizao interativa com o meio sociocultural, o marxismo poltico que se construiu no Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve certa gravitao entre ns, mesmo sem ter perfilado toda uma cultura poltica, como foi exemplar do Partido Comunista Italiano (PCI). O PC brasileiro conheceu uma via crucis de incompreenses que, no melhor dos casos, a bibliografia adversa apontou como falta de uma teoria sobre a circunstncia brasileira.

    De fato, com a distncia do tempo, hoje se pode dizer que os comunistas no souberam aproveitar alguns dilogos que lhe foram oferecidos, como, desde logo, o dilogo com Gilberto Freyre (1933), sendo bem posteriores os momentos discursivos do PCB, pelo menos os de maior relevncia. o caso da interpelao de Guerreiro Ramos nos tempos do centro-esquerda nacional-desenvolvimentista (Ramos, 1958; especialmente 1963). Com ressalvas aos temas caiopradianos da historiografia e da questo agrria, os crticos consideram o marxismo pecebista como uma ideologia meramente cosmopolita. Via de regra, o pecebismo daqueles anos alimenta-se de uma espcie de correio intramuros e da disputa pela posse da doutrina marxista-leninista com outros grupos militantes.

    Mesmo sem ser propriamente uma interlocuo, h uma segunda circunstncia, to constituinte quanto a narrativa freyriana, que precisa ser mencionada: o marxismo do Seminrio sobre Marx realizado por alguns intelectuais da USP em 1958. Observe-se que o evento foi levado a cabo no mesmo ano da chamada Declarao sobre a poltica do PCB, texto com que o partido comunista, por assim dizer, se refunda na sequencia dos abalos que aqui chegaram em 1956, com as revelaes sobre o stalinismo relatadas por Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica

    2

    (PCUS).1 No obstante esses estmulos, com sua mentalidade de autossuficincia patritica2, o PCB no registra maior presena na esfera pblica at os tempos bons e cleres da primeira Revista Civilizao Brasileira de nio Silveira, no interregno 1966-68. Neste ento tem curso um movimento que implicaria uma espcie de ampliao do marxismo brasileiro. Cria-se um clima intelectual no qual, mesmo sem os protagonistas planejarem os passos, disputavam-se os caminhos mais adequados resistncia ditadura de 1964. Em uma verdadeira cena intelectual, abria-se luz do dia um certo processo de arejamento do marxismo brasileiro.3

    Ainda no investigamos como gostaramos essas dimenses do marxismo brasileiro, quer as interpelaes mais antigas (do pr-64), quer as mais contemporneas. Em todo caso, em textos bem anteriores (Santos, 1993; 1996a e 1996b) havamos apresentado Nelson Werneck Sodr e Caio Prado como as referncias maiores do campo comunista. O primeiro, por valorizar os anos nacional-desenvolvimentistas e colocar-se a favor da tese da frente nica democrtica, que tambm julgava ser a via revolucionria adequada queles ltimos tempos de vigncia da Constituio de 1946; e o segundo, descrente na evoluo espontnea do capitalismo, por mostrar reservas diante do que chamava de aventura janguista. Vale dizer, a articulao de governo da qual participavam as foras populares e progressistas, cujo esquema poltico, dizia Caio Prado s vsperas do golpe de 1964, no tinha bases para radicalizar o frgil processo como, poca, determinadas reas suas vinham fazendo. No entanto, mais recentemente temos sugerido que se veja atentando-se aos textos de natureza publicstica uma outra disposio: Caio Prado e Alberto Passos Guimares como passagens bem mais expressivas da tradio comunista no Brasil.

    1 Gilberto Freyre citado em registro positivo por alguns autores comunistas (dois

    exemplos: Caio Prado Jr., em Formao do Brasil contemporneo, 1942, e Alberto Passos Guimares, em Quatro sculos de latifndio, 1963). Acerca da controvrsia sobre o stalinismo no PCB, da qual resultou a Declarao de Maro de 1958, ver Santos, 1988. 2 A noo patriotismo de partido aparece em Eric Mathias (1957; 1978).

    3 Ver a ensastica de Leandro Konder desse imediato ps-64, poca da revoluo terica de

    Althusser (cf. Santos, 2002). Inscrita no debate sobre o novo marxismo cientfico, ela versa sobre a relao entre estruturalismo e poltica. Esse tipo de circulao de ideias traz baila o papel da Revista Brasiliense (1955-54), como assinalaremos adiante, enfocando concentradamente o tema nacional.

  • 3

    O sentido da trajetria de Caio Prado Jr. Logo advertimos que a presena desses autores no PCB no resulta

    apenas da inquietao interpelativa e afinidade em relao s posturas do partido comunista em determinadas conjunturas. Enquanto o historiador de So Paulo percorre grande parte da trajetria do PCB como seu alter ego, pelo menos desde 1947 e no s por meio da teorizao agrria , Alberto Passos Guimares emerge como autor influente na cena pecebista mais contempornea. Como veremos, Caio Prado estar presente nos momentos congressuais pecebistas do largo ps-guerra. Ter influncia mais visvel sobretudo aps os acontecimentos subsequentes ao suicdio de Getlio, a partir de 1955, quando lidera o empreendimento da Revista Brasiliense at o desfecho de 1964. Sua obra teve ainda alguma gravitao nos breves anos entre 1966-1968.

    Quanto a Alberto Passos Guimares, sua contribuio mais marcante ocorre no cenrio que se abre com os debates pecebistas sobre o Relatrio Kruschev (1956-1957), j aludido. Em particular no V Congresso do PCB (1960), no qual o grupo dirigente que, em 1958, havia assumido o comando partidrio com a Declarao de Maro, consagra como orientao oficial as linhas gerais da nova poltica ali anunciada. Alberto Passos Guimares aparece ento como um publicista a lastrear a renovao comunista desse tempo. Era uma virada que vinha se gestando desde os primeiros anos 1950, quando o partido comunista comea a abandonar o campesinismo dos tempos mais duros da Guerra Fria e passa a reorientar a atuao agrria, rea na qual mais se evidenciava o seu radicalismo.

    Foi nesse tempo que os comunistas deram os primeiros passos rumo ttica de fundar sindicatos rurais com vistas a alcanar os camponeses, a massa mais numerosa da nao, como diria a referida Declarao de Maro, aludindo conhecida expresso de O dezoito brumrio de Lus Bonaparte. Modesto, no entanto, o texto brasileiro de 1958 valoriza uma massa numerosa, cujo movimento era bastante atrasado, sendo baixssimo o seu nvel de organizao.4 Principal autor desse agrarismo

    4 Assim a Declarao de 1958 j delineava aquele caminho: a) Para impulsionar o

    movimento campons, preciso partir do seu nvel atual, tomando por base as reivindicaes mais imediatas e viveis, como o salrio mnimo, a baixa de arrendamento, a garantia contra os despejos, e evitando, no trabalho prtico, as palavras de ordem radicais que ainda no

    4

    novo, de tipo sindical-campons, Passos Guimares resistiria a duas presses. De um lado, nfase caiopradiana posta nas relaes de emprego de assalariamento dos grandes domnios rurais; terreno no qual, como veremos adiante, o historiador sugeria enraizar a ttica comunista. De outro lado, e ao mesmo tempo, Alberto Passos Guimares era combatido (e ento acusado de direitista) por reas conservadoras do partido comunista por querer prosseguir com a nova poltica no V Congresso de 1960. Alis, ele prprio teria exercido influncia na resoluo de 1958, a julgar pela semelhana entre algumas das proposies-chave desse texto e a argumentao apresentada pelo autor nos artigos que publica na Tribuna de debates daquele congresso.

    Esse breve excurso vem nos mostrar como esses comunistas um comentrio extensivo a vrios intelectuais adquirem realce diverso quando lidos a partir da vocao militante dos seus escritos. No caso daqueles autores, a inscrio partidria e a destinao de seus textos ao campo pecebista no s os mostram como publicistas de partido, entre outros nomes, como sobremaneira nos revelam ser eles clssicos do marxismo poltico representado entre ns pelo PCB. Nas pginas seguintes faremos um exerccio referido a Caio Prado, sublinhando a relao entre suas dissertaes sobre a revoluo e a poltica brasileira, no sentido da associao marxiana entre teoria e prxis (Marx e Engels, 1845; 1978).

    Em primeiro lugar, impressiona a disciplinada militncia do historiador, mesmo quando mostra independncia intelectual (e poltica) em relao s teses do seu partido, dele discordando em momentos importantes. Mencione-se o desencontro por ocasio dos acontecimentos de novembro de 1935, quando, por ocasio dos levantes militares, vice-presidente da Aliana Nacional Libertadora (ANL), a mobilizao de frente nica que ento se formava para intervir no ps-1930, Caio Prado viajava pelo Sul do pas, onde seria preso e depois deslocado para So Paulo.

    encontram condies maduras para a sua realizao; b) Tambm no campo, a experincia demonstra que a atuao atravs de formas legais de luta e de organizao aquela que permite alcanar xitos para as massas; c) Assim que tem progredido, alm das associaes rurais e cooperativas, a organizao dos assalariados e semiassalariados em sindicatos, que j obtiveram vitrias em contendas com fazendeiros; e d) Tem grande importncia a defesa jurdica dos direitos j assegurados aos camponeses (PCB, 1958; 1982: 188-89).

  • 5

    Especialmente expressivo o affaire dos chamados Comits de Ao, encontros de oposicionistas que viabilizariam uma nova sada superfcie aps as prises de 1940, que dizimaram o PCB; subida superfcie da qual Caio Prado foi um dos principais articuladores.5

    Recorde-se sua atuao na Assembleia Constituinte do Estado de So Paulo, em 1947, quando enfrenta a resistncia da direo partidria a iniciativas reformistas que encaminha no exerccio parlamentar (Prado Jr., 1960a).

    Como mencionado, Caio Prado interpelou os trs principais congressos comunistas: o IV Congresso, poca da primeira convocatria de 1947, para o qual escreveu Os fundamentos econmicos da revoluo brasileira (o congresso s se reuniria em 1954); o V congresso de 1960, para cuja Tribuna de debates destinou o longo texto As Teses e a revoluo brasileira; e, j sob ditadura militar, entre 1966-67, o VI congresso, quando publicou A revoluo brasileira (1966), uma espcie de sntese da sua obra. Nesse opsculo, o historiador justamente avalia o sentido geral da teoria pecebista; uma interpelao pblica que gerou reclamaes no PCB por ter Caio Prado recorrido na controvrsia a recurso desigual dada a clandestinidade em que viviam os comunistas.

    Caio Prado manteve essa qualidade interpelativa bifronte ao mesmo tempo em que se movia dentro do mundo comunista, sempre construiu vida publicstica de superfcie. Como tambm j aludido, passados os piores anos da Guerra Fria e da ilegalizao do PCB, logo aps o suicdio de Getlio, o historiador emerge em 1955 frente da Revista Brasiliense.6

    5 Manuel Batista Cavalcanti relata que os Comits de Ao foram uma iniciativa

    principalmente de comunistas de So Paulo e do Rio de Janeiro, para retornar ao poltica de frente nica em torno da Unio Democrtica Nacional (UDN), em 1943 (Cavalcanti, 1983). Na bibliografia pecebista, os Comits de Ao aparecem como um movimento liquidacionista ao modo do PC americano, que naquela poca teve reas suas postulando a substituio da forma-partido comunista por outro tipo de associao. Em vez daquela articulao pela redemocratizao, a chamada Comisso Nacional de Organizao Partidria (CNOP), que ento organiza o PCB marginalizando o grupo de Caio Prado (Id.), tornou orientao do partido a aproximao com Getlio, com o apoio de Prestes ainda na priso. 6 Elias Chaves Neto revela que o passo mais ambicioso do grupo caiopradiano aps 1947 consistiu em convencer o historiador a participar do concurso da cadeira de Economia Poltica na Faculdade de Direito de So Paulo, para o qual ele escreveu Novas diretrizes para uma poltica econmica brasileira (1954). No texto, Caio Prado ensaia uma explicao da responsabilidade que o imperialismo teve no atraso e na misria de amplas camadas da populao brasileira. A finalidade da operao era usar o evento para romper com o

    6

    Durante quase todo o decnio seguinte, o empreendimento marcaria a opinio pblica de esquerda, firmando a boa tradio de publicaes de intelectuais comunistas e no comunistas que o prprio PCB j ensaiara antes no nosso curto ps-guerra democrtico. Convocada por vrios nomes do mundo cultural a ser um centro de debates e de estudos brasileiros, a Revista Brasiliense se propunha no s difundir trabalhos sobre a circunstncia nacional como tambm influir na opinio pblica, levando-a a melhor compreender os problemas que afetam a vida do pas (Revista Brasiliense, 1955). Definia-se, no abaixo-assinado da sua fundao, que a revista, sem ligaes de ordem poltica e partidria, ser orientada pelos seus prprios redatores e colaboradores (Id.).

    Lembrando esse seu tipo de interpelao, qual o lugar do historiador no PCB e nas demais esquerdas? No obstante a longa trilha que o converteria em um clssico da revoluo, Caio Prado Jr. teve sua obra apropriada de maneira irregular. Ao mesmo tempo em que fundamentava o agrarismo com o qual o PCB construa a rede sindical rural brasileira e tambm oferecia ao partido sem muita acolhida explcita uma concepo de reformismo, que o teria posto em condies mais competitivas naqueles anos ideolgicos do nacional-desenvolvimentismo, o militante era empurrado para a margem do pecebismo oficial.7 Doutra parte, Caio Prado teve alguns textos especialmente A revoluo brasileira recolhidos por reas (inclusive dissidncias comunistas) que, depois de 1964 e s vsperas dos anos de chumbo, radicalizaram-se e viram no opsculo amparo ao confronto armado com o regime militar, um confronto no qual iriam se envolver com alto custo.

    simplismo puramente denuncista com o qual o PCB via o movimento nacionalista, conferindo-lhe um novo sentido (Chaves Neto, 1977. p.142). Ao dinamizar o debate, a operao tambm amadureceu o projeto da Revista Brasiliense. 7 Uma lista de artigos da imprensa partidria da poca bem expressiva: Um falso conceito

    da revoluo brasileira, assinado por Rui Fac em resposta aos comentrios de Caio Prado s teses do IV Congresso (Os fundamentos econmicos da revoluo brasileira (cf. A Classe Operria, Boletim de discusso n. 13, 1947); necessrio combater e desmascarar os defensores e porta-vozes do nacional-reformismo, comentrios de Luiz Carlos Prestes Revista Brasiliense (cf. Voz Operria, 28/04/56); A revoluo brasileira, no qual Assis Tavares critica o livro de 1966 (cf. Revista Civilizao Brasileira, n. 11-12, set. 1967); Os equvocos de Caio Prado Jr., folheto de Paulo Cavalcanti sobre o mesmo volume (So Paulo: Argumentos, s. d.).

  • 7

    No entanto, as dissertaes que o historiador produz no eram lidas como partes da interpretao de Brasil com a qual fundamentava sua teoria revolucionria. A dissertao sobre o Brasil-Colnia o seu captulo mais aceito; desenvolvida em Evoluo poltica do Brasil (1933) e em Formao do Brasil contemporneo (1942), no era vista como uma narrativa que conferia o sentido geral reestruturador do capitalismo que a revoluo iria assumir no Brasil. Os excursos sobre a revoluo burguesa (Histria econmica do Brasil, 1945) tambm encontravam dificuldade em serem reconhecidos pela bibliografia como partes do constructo de um ensasta que se debruou no estudo da nossa formao social com intenes revolucionrias. A esses excursos Caio Prado acrescenta instigantes, embora pouco desenvolvidas, aluses ao que chama de capitalismo burocrtico e de Estado cartorial, na acepo de Hlio Jaguaribe, autor citado no Adendo Revoluo brasileira como uma preciosa chave para a melhor compreenso e interpretao mais autntica da realidade poltica brasileira (Prado Jr., 1967: 238; 1978).8 Em certo sentido, essas aluses atualizavam sua imagem originria de Brasil.

    So essas passagens dissertativas e no a busca de exclusividade marxista, para fins ideolgicos ou cientficos, como se viu em certas reas de esquerda nos anos 1960 e 1970 que qualificam Caio Prado como ensasta da nossa modernizao de incorporao seletiva, de classes e vida associativa dbeis e de cena poltica superficial, como ele costumava dizer. num terreno nacional como este que teria curso a revoluo brasileira, como a preferia chamar Caio Prado; uma ideia de revoluo desenhada a partir das dissertaes dedicadas: a) nossa formao sob forma da colnia de produo; b) ao desenvolvimento agrrio-burgus e ao nosso industrialismo; e c) ao renovamento do mundo rural, por ele entendido

    8 A remisso a Jaguaribe mostra o historiador s voltas com a frmula

    estrutura/superestrutura em contexto de estruturao no clssica do capitalismo. Por esta via, a dialtica da interao foras produtivas/relaes de produo opera refratada pela contemporaneidade de tradio e modernidade. Na interpretao da sua grande circunstncia, 1945 mostra a importncia que conferia institucionalidade democrtica. Aps 1964, o autor voltou a criticar a teoria orientalista da revoluo, segundo ele, de serventia para operaes de risco e aventura. Como veremos, no ocaso do regime de 1964, a sua dissertao sobre o industrialismo torna-se um excurso sobre o capitalismo burocrtico como um meio de retomar o tema do produtivismo, realando a figura de uma burguesia tradicional-produtiva, agora (em 1977) convergente, alis, com a redemocratizao do pas desse tempo (Prado Jr., 1967 e 1977; 1978).

    8

    como questo nacional. Neste sentido, pode-se falar da obra caiopradiana como busca de uma teoria revolucionria desde os primeiros escritos publicsticos (se j no nos artigos de 1935, bem visvel em Os fundamentos econmicos da revoluo brasileira, de 1947, j citado) at A revoluo brasileira, seu Adendo de 1967 e o texto Perspectivas em 1977, da 6 edio.

    A valorizao do trabalho na circunstncia nacional

    Ao revelar desapreo pelo cnone (no s interpretativo) que orienta a interpretao do Brasil de Caio Prado, a prpria bibliografia crtica sublinha a questo-chave: o circulacionismo do seu marxismo.9Com efeito, em seu registro da Economia Poltica clssica o segundo ensaio instigante sobre nossa sociedade civil, logo depois de Gilberto Freyre10 , Caio Prado v que a singularidade brasileira no radicava no caldeamento racial propiciado pela colonizao portuguesa, mas na circunstncia de termos nascido como colnia de produo, na qual se conforma um povo com dbil integrao econmica, social e poltica. A estava, mutatis mutandis, a esquematizao caiopradiana da nossa contemporaneidade.11 O historiador se coloca o problema da necessidade de um marxismo que desse conta do padro civilizatrio sob o qual se estruturara a nao. No obstante a filiao ao marxismo clssico, em especial teoria do capitalismo e suas categorias econmicas, o objeto da investigao de Caio Prado se concentra naquele padro civilizatrio, no mesmo estilo de ensastas como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, cada qual, dito assim s para figurar a ideia, com sua esquematizao.

    O comunista de So Paulo debrua-se sobre uma formao social que no se constitui esta marca percorre sua obra com base em um processo

    9 A passagem mais extensa encontra-se em Formao do Brasil contemporneo, onde se l:

    A anlise da estrutura comercial de um pas revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares da produo, o carter de uma economia, sua natureza e organizao. O estudo que vamos empreender do comrcio colonial em princpios do sculo passado vir assim como coroamento e concluso de tudo quanto se tratou acima (Prado Jr., 1942: 226). 10

    A propsito desse sentido da obra de Gilberto Freyre, ver Moreira (1988). Para uma comparao entre os ensastas, ver Santos, 2001; 2006a. 11

    Faz-se aqui uma alegoria em torno do conceito de raiz em Charles Taylor, segundo a verso que nos apresenta Jess Souza em sua reinterpretao da modernidade perifrica. Souza usa essa mesma conceituao para interpelar Florestan Fernandes (Souza, 2002).

  • 9

    de criao, no prprio povo, do mercado para sua produo, primeiro mercantil, depois burguesa e moderna. Iria discernir que aqui, diferentemente do industrialismo europeu e americano, o mercado se torna a questo bsica, enquanto a produo o fora para a economia poltica da industrializao clssica e para Marx. Essa circunstncia merecia toda a ateno, como passo indispensvel tematizao do desenvolvimento dos pases que se haviam formado na periferia capitalista, como o Brasil, marcados por aquele trao primordial.

    Caio Prado chega a calibrar o marxismo brasileiro abrindo sua Economia Poltica ao tema do consumo (e da populao), considerado assim em acepo, digamos, nacional-popular , visando a explicar uma formao social ao mesmo tempo dependente (construda naquele sentido da colnia de produo) e contempornea (industrializada de modo superficial e pouco incorporador). Dessa gnese e evoluo ele extrai uma imagem do Brasil como sociedade de modernizao tardia e incompleta, particularmente de classe econmica dbil e campo popular pouco coeso; um tema, inclusive, j presente em Evoluo poltica do Brasil (1933) e tambm descrito em Formao do Brasil contemporneo (1942).12

    No entanto, a bibliografia crtica daquele trao circulacionista no discernia que era ele que distanciava o marxismo de Caio Prado da prpria matriz marxista-leninista. esse marxismo que orienta as dissertaes sobre o Brasil com as quais o historiador no s delineia um programa de reformas reestruturadoras do nosso capitalismo, como ainda, fiel tradio leninista, enraza a teoria revolucionria na economia, na luta de classes e no Estado, tomando-o, porm, como esfera de uma generalidade chamada a processar os interesses da maioria da populao; e esta ltima noo se

    12 No primeiro livro, h aluses aos desdobramentos da Revoluo da Independncia,

    chegando Caio Prado a registrar a atitude inconsequente das classes subalternas aps o nosso 1848. Menciona a grande massa escrava (50% da populao), de baixo nvel intelectual e cultural, isolada principalmente nos grandes domnios rurais e cujo processo de constituio em classe politicamente pondervel s se daria no decorrer do tempo. Refere-se ainda s camadas mdias livres, grupo sem coeso social e tampouco sem possibilidades de uma eficiente atuao poltica (Prado Jr., 1933). Em Formao do Brasil contemporneo, o autor faz referncias aos contingentes de desclassificados e aos seres sem bagagem cultural e ainda prximos do mundo escravista (Prado Jr., 1942).

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    mostra intercambivel com a questo da nacionalidade, tal como a deriva daquele padro civilizatrio.13

    Mas o publicista no se confunde com a demiurgia frequente no primeiro ensasmo clssico. Mesmo sem formalizar completamente o constructo, o historiador procura divisar impulso mudancista em atores cujo potencial estava dado pela dinmica da vida nacional, deitava razes nos interesses econmico-sociais e semeava associativismo de tipo permanente. Ao recortar o campo do agir revolucionrio na interseo das dimenses da economia, das classes e do poder, por conta da fraqueza da vida produtiva e da debilidade dos protagonistas, Caio Prado atribui relevo opinio pblica, a qual ganharia fora medida que se desenvolvessem os grandes debates nacionais e manifestaria sentido renovador, quando tais debates se polarizassem em razo dos interesses da maioria da populao. Esse constructo qualifica-o ponto de vista do proletariado que o historiador assume tanto na obra historiogrfica como nos textos propriamente publicsticos.14

    Vejamos como o autor, em outros textos, valoriza o ponto de vista do trabalho e dos interesses da maioria da populao a partir da circunstncia de uma revoluo burguesa fraca. So referncias em escritos expressivos de momentos nos quais o seu marxismo poltico torna-se mais visvel e o historiador interpela o PCB, particularmente quando a teoria pecebista seria posta prova pelos acontecimentos que levariam ao desfecho de 1964.

    Antes, porm, um pequeno excurso sobre o tema da previso do curso revolucionrio e suas conjunturas, um excurso com o qual se pode aferir o sentido de dois livros revolucionrios: o caiopradiano A revoluo brasileira (1966) e A revoluo burguesa no Brasil (1975), de Florestan Fernandes. Caio Prado v a concretizao da revoluo em processos em que os atores so chamados a ter iniciativa. Por mais dbeis e inorganizados que surgissem em sua descrio, Caio Prado reserva-lhes protagonismo pblico, suposto um sistema poltico aberto, mesmo no perodo

    13 Era de tal ordem a envergadura da reestruturao exigida para que alcanssemos

    o nvel dos pases que trilharam o primeiro industrialismo que Caio Prado dizia ser necessrio, aqui, esforo similar ao dos primeiros planos quinquenais da URSS. 14

    A noo tomada de Adolfo Snchez Vsquez em sua crtica ao divrcio entre teoria e prtica na obra de Althusser (Vzquez, 1978).

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    autoritrio,15 diferentemente de Florestan Fernandes em A revoluo burguesa no Brasil, um texto que tambm se consagraria nas esquerdas, sobretudo intelectuais.

    Recorde-se, apenas para sugerir um termo de comparao, que no captulo 1 da primeira parte daquele ensaio (escrita em 1966, sob registro weberiano), Florestan faz aluses ao modelo da revoluo passiva do Risorgimento italiano, que levara Gramsci a propor, como alternativa via diruptiva de 1917, uma estratgia socialista de progressiva acumulao de foras, alis, tal como sugerira Engels no seu testamento poltico (Engels, 1895; 1977). No entanto, ao redigir, em 1973, a terceira e ltima parte da monografia hoje clssica, o socilogo da USP redimensiona o modelo interpretativo esboado na primeira e na segunda seo. Como j foi dito, na seqncia do Ato 5, sob impacto do endurecimento do regime de 1964, Florestan v cristalizar-se no processo brasileiro a tendncia dos pases latino-americanos autocratizao noo com que Lnin qualificava o czarismo russo como uma lei de ferro do capitalismo dependente. O socilogo da USP da extrai o dilema: ditadura ou revoluo, perdendo-se proveitosa aquela conjectura a respeito do Risorgimento uma alternativa analtica a esta disjuntiva catastrfica, qual, de resto, tambm levava o marxismo estruturalista operante entre ns no imediato ps-64.16

    Do qualquer modo, a propsito da previso do curso revolucionrio, chamam a ateno os artigos publicados na Revista Brasiliense, nos quais Caio Prado examina os tempos nacional-desenvolvimentistas at o golpe de 1964 sob o prisma das dissertaes sobre o Brasil mais contemporneo. Mirando alm da conjuntura aparente, o historiador desqualifica a funo dos dispositivos partidrios volta da figura de Vargas PSD-PTB que ento dominavam a vida nacional, dissimulando um capitalismo de incorporao social limitada, baixa sociabilidade e avesso institucionalizao democrtica. Em vez de divisar na cena pblica um

    15 Em A revoluo brasileira, Caio Prado disserta programaticamente, como se o novo

    quadro comportasse a ao transformadora das classes e o regime de 1964 no fosse uma circunstncia altamente restritiva (Prado Jr., 1966; 1967; 1978). 16

    Curiosamente, a pista indicada por Gramsci est numa espcie de guerra de posies que emergiria noutro ambiente como uma estratgia para deter o processo de fascitizao, que o regime militar experimenta justamente aps 13 de dezembro de 1968, com o Ato 5. Seria um partido marxista-leninista o PCB quem iria imprimir o sentido gramsciano da guerra de posies resistncia ditadura daqueles anos de chumbo (PCB, 1970 e 1971).

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    terreno para iniciativas imediatistas, Caio Prado segue a esquematizao com que construra sua imagem de Brasil (fraqueza da revoluo burguesa, debilidade das classes e da vida poltica) e releva vetores intervenientes no quadro nacional que haveriam de produzir resultados duradouros.17

    Mal compreendida a cena do ltimo tempo da Constituio de 1946 18

    (e vista sem as marcas histrico-estruturais), o ator revolucionrio tendia a no levar na devida conta que ela tambm j ensejara o populismo e alimentava a aventura janguista, como dizia o historiador na Revista Brasiliense s vsperas de 1964, alertando para a falta de bases polticas da radicalizao crescente naqueles anos turbulentos. Ao mesmo tempo em que refere tal circunstncia ao padro de modernizao superficial, Caio Prado tambm reconhece debilidades no campo das foras progressistas e

    17 Associe-se aos traos j referidos: a) a dimenso de generalidade do Estado, concretizvel

    a partir de governos adminstrativo-polticos, como dizia o historiador, com rumo, sustentao na opinio pblica e suporte influente dos partidos; b) os debates nacionais, conferindo sentido mudancista ao curso poltico; e c) uma polarizao de foras (aberta a oportunidade para um campo expressivo dos interesses da maioria da populao). Na poca, Caio Prado valorizou a eleio de Juscelino pelo fato de espelhar os ventos de mudana do ps-guerra com seu clima de reconstruo e desenvolvimentismo. Alm disso, a nova administrao ainda podia ser impulsionada pela opinio pblica antigolpista dos tempos anteriores eleio e posse de JK (Prado Jr., 1956a). Em relao ao papel dos partidos, ver Prado Jr., 1956b. No imediato pr-64, Caio Prado no v o rumo dos acontecimentos como favorvel ao processo revolucionrio, especialmente a aproximao das foras populares e progressistas com Jango, para ele, uma aliana subordinada a interesses personalistas. 18

    A propsito desse tempo, Elias Chaves Neto provocou celeuma com seu artigo inaugural da Revista Brasiliense. A noo de Unio Nacional ali presente alude conformao de uma fora poltica capaz de sustentar uma nova poltica econmica que proporcione(asse) nossa indstria e nossa agricultura os meios, no somente de suportar esses encargos elevao dos salrios em face de carestia mas de neles encontrar novas possibilidades de desenvolvimento (Chaves Neto, 1955, p.29). Sua convocao das foras nacionais democrticas em torno da Constituio visava a assegurar condies preliminares para que tivesse livre curso um processamento das reivindicaes populares de modo construtivo; em outras palavras, a luta econmica, dentro dos direitos para esse fim estabelecidos em nossa Constituio o direito de greve, de sindicalizaro, de reunio , que torna possvel o constante ajuste dos salrios segundo as condies variveis da produo (Id.). Assim como na Revoluo Francesa, que no sculo XIX trouxera enorme progresso ao mundo, aqui a defesa da Constituio , portanto, o ponto bsico de uma poltica que visa, pela unio de todos os brasileiros, a resolver os problemas dos quais depende a nossa prosperidade (Id.). So afirmaes que nascem na conjuntura da reconstitucionalizao do pas. Ver os comentrios de Prestes no texto citado (Prestes, 1956).

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    populares e do associativismo popular, especialmente sindical, recusando, todavia, a propenso a messianismos, inclusive o de tipo revolucionrio a que tambm induzia a tradio comunista.19

    Caio Prado mantm sua viso sobre nossa revoluo burguesa de novo tipo na periferia capitalista ao longo de pelo menos 30 anos (desde 1947, em Os fundamentos econmicos da revoluo brasileira) at 1977 (em A revoluo brasileira, com o Adendo de 1967 e as Perspectivas em 1977). notvel ver como, alheio ao momento de ditadura (Coelho, 2000), no livro de 1966 retoma o sentido programtico da narrativa sobre nosso capitalismo: sob evoluo espontnea, a modernizao (o industrialismo substitutivo) no alargaria social e territorialmente sua capacidade de incorporao, por si j muito seletiva. Da o tema da integrao percorrer todo o volume. Esta viso de uma grande reestruturao da vida nacional mediante processo revolucionrio que revertesse o padro estruturante da nacionalidade sob condies de uma revoluo burguesa dbil traa uma linha de separao entre o historiador e a esquerda da poca de A revoluo brasileira, uma esquerda cujas reas mais militantes estavam marcadas fortemente pela ideia de revoluo disruptiva e socialista como poder popular e alterao radical do regime de propriedade.20

    O papel do sindicalismo na reforma do mundo rural

    Relembremos agora como o ponto de vista do trabalho orienta a dissertao agrria. luz da interpretao de Brasil, ela pode ser vista como marco de um campo intelectual que no restringe a reforma do

    19 O livro de Paulo Iumatti sobre os dirios caiopradianos de 1945 veio lanar luz sobre a

    presena de Caio Prado Jr. na segunda metade dos anos 1940. H vrios registros seus sobre o PCB, e dois deles merecem ser retidos: o populismo revolucionrio e a subestimao das eleies. Mesmo que a sua recusa principal se volte para o populismo pelo alto do Estado Novo, Caio Prado Jr. tambm se refere ao populismo que medrava em torno da figura de Prestes em diferentes mobilizaes do PCB daquela poca (Iumatti, 1978). 20

    A Florestan no passaria desapercebido o sentido da revoluo brasileira de que falava Caio Prado. Comentando, na poca, o alcance revolucionrio de A revoluo brasileira, o socilogo da USP dizia do historiador: No descobri nele uma irrefutvel substncia socialista. Existe uma inteno socialista, sem dvida, mas o programa proposto seria perfeitamente exeqvel por uma burguesia nacional bastante autnoma, inteligente e criadora para combinar, em bases puramente capitalistas, alguma sorte de welfare state com crescimento econmico acelerado (Fernandes, 1968; 1980. p. 87).

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    mundo rural questo fundiria. Caio Prado Jr. confere importncia ideia de uma reforma agrria no camponesa; um tema continuado sob registro diverso por outros autores no pr-64 e depois da destituio de Jango, inclusive em tempos bem recentes.

    Na poca da Declarao de Maro de 1958, embora refratado, o agrarismo de Caio Prado fez-se presente no PCB, em particular, como j aludido no princpio deste ensaio, na frmula da reforma agrria inicialmente no camponesa, que se tornaria reforma agrria camponesa numa segunda fase.21 Por sua viso no estagnacionista ps-1958, o PCB adota, naqueles anos radicalizantes da pr-revoluo brasileira (Furtado, 1962), a proposio programtica das medidas parciais de reforma agrria, bem eclticas e nada catastrficas, nelas, alis, refletindo-se o argumento no campesinista de Caio Prado. Fora desse campo, naquela poca o conceito de reforma agrria ainda se amplia mediante o equacionamento propriamente nacional-desevolvimentista, como se pode ver em textos isebianos.22 Desperta particular interesse a modalidade de reforma agrria de Igncio Rangel, autor que, avaliando a falta de condies polticas para um processo redistributivista, argumenta a favor de uma reforma agrria centrada em questes no propriamente agrrias (problemas estritamente agrcolas, como produo, preos, intermediao, etc.).

    Em relao ao seu prprio campo, o historiador valoriza a ateno especial com os assalariados e semiassalariados, elemento que, no pr-64, compunha a ttica agrria sindical-camponesa dos comunistas. Mas, ao mesmo tempo, via na mistura errtica de reivindicaes trabalhistas e camponesas que, segundo ele, aparecia no novo agrarismo do PCB a

    21 No PCB, tal noo foi posta em circulao por Alberto Passos Guimares, e o enunciado

    completo este: Enquanto, como est nas Teses, a reforma agrria no se transforma em bandeira dos prprios camponeses diz o autor, concordando com o texto do V Congresso, que provavelmente influenciara , possvel revolucionar certas relaes agrrias mediante uma reforma que no , fundamentalmente, uma reforma agrria camponesa [Este argumento provm de uma citao de Lnin]. E continua: E, medida que os camponeses forem levados a participar do movimento agrrio, conduzidos pelo proletariado, em aliana com este, a reforma agrria ainda no camponesa se transformar numa reforma camponesa, o que acontecer na segunda etapa da revoluo anti-imperialista e antifeudal (Passos Guimares, 1960). Essa frmula foi acolhida no V Congresso de 1960. 22

    O autor isebiano serviria de referncia a Jos Graziano da Silva ao colocar o tema da reforma agrria no essencialmente agrcola na ordem do dia aberta pelo chamado novo mundo rural dos ltimos anos do sculo XX. Ver Silva, 1996; 1998.

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    primazia do tema da luta pela terra, o que levava a se perder a rstia de bom senso que os comunistas haviam adquirido quando passaram a dar ateno ao sindicalismo rural (Prado Jr., 1966).

    O modelo caiopradiano da revoluo agrria e nacional na aparncia, simples inverso da frmula anticolonialista e agrria antifeudal prescrita pela III Internacional aos pases coloniais e dependentes sugere uma grande transformao ao modo americano, no sentido de que aqui tambm era possvel buscar dinamismo em um Oeste (o largo mercado rural) complementar a um Leste (nossa industrializao) insuficientemente modernizado.23 Diversamente da tradio comunista, Caio Prado atribui essa funo a um protagonismo popular no campons assentado em reivindicaes trabalhistas da fora de trabalho dos grandes setores da agropecuria, mobilizada por sindicatos estveis e espalhados pelos municpios brasileiros. Fazendo decorrer a ideia de revoluo agrria da sua interpretao de Brasil, o clssico pensa na renovao do mundo rural como avivamento de um capitalismo dbil que, entregue prpria lgica, ver-se-ia incapaz de modernizar o pas e abrir espao aos contingentes devastados, particularmente os excludos do sistema produtivo agrrio.

    Ao contrrio do vazio social que Gilberto Freyre debitava s nossas revolues polticas,24 Caio Prado referencia sua ideia de revoluo agrria justamente na Abolio. esta filiao que o historiador confere s vsperas de 1964, tempo de urgncias e radicalismos ao Estatuto do Trabalhador Rural (1963), comparando o alcance desta lei ao impacto generalizante que tivera o 13 de maio de 1888, ao conformar o contingente nacional da fora de trabalho livre. No caso, como proteo de direitos, o Estatuto viria a universalizar processos socioeconmicos por meio da expanso de sindicatos nos grandes setores da agropecuria, onde estava

    23 Elias Chaves Neto traz referncias ao homestead da experincias americana (Chaves Neto,

    1955). Chaves Neto relembra que foram justamente a distribuio de terras alm do Mississipi, conforme o programa farmer de Lincoln, a contnua expanso territorial e a abertura de grandes mercados consumidores que serviram de base para o desenvolvimento industrial daquele pas no sculo XIX (Id.). Seguindo Caio Prado Jr., Chaves Neto tambm via na misria e na fome da grande massa popular a questo estratgica de cuja soluo dependeriam as possibilidades do movimento de renovao da estrutura econmica da nao (Id.). 24

    Como se sabe, em alguns textos do ps-guerra, Freyre faz referncias trilha da revoluo social abolicionista de Nabuco, ao mesmo tempo em que, em outros escritos, v as revolues positivista e comunista como revolues unidimensionais por carecerem de alcance sociolgico.

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    vale repetir o autor o ncleo estratgico da revoluo agrria, do qual se difundiriam economia rural impulsos transformadores sustentveis: os assalariados e semiassalariados, os empregados agrcolas.

    Em vez de um movimento campons pela terra confinado em poucas regies, Caio Prado aposta na mobilizao desse campo popular, nico capaz de assegurar trabalho revolucionrio expansivo, em profundidade, como ele dizia. Para alm dos termos e paradigmas pecebistas, o historiador apresenta ao partido comunista uma teorizao do rural derivada da sua hiptese sobre nossa gnese e evoluo no sentido de um modernismo inconcluso. Como se observou no princpio destas notas, o autor prope essa problematizao nas categorias marxianas, mas, em vez de evocar um ser demirgico do processo modernizador, o Capital, como se v em outros constructos acadmicos, era o trabalho mediado por uma extensa mobilizao social por meio da forma sindical moderna que ocupava centralidade no tema da modernizao e da reforma do mundo rural.

    Em artigo sobre o Estatuto do Trabalhador Rural publicado na Revista Brasiliense (1963), o autor diz que no se sustentava uma transformao completa da estrutura e organizao dos grandes setores da economia agrria sem um amplo movimento social reivindicatrio. Citemos o autor: Seria naturalmente ingenuidade pura imaginar que um simples texto legal, estabelecendo a reorganizao de nossas principais atividades agrrias e dando-lhes estrutura e funcionamento da produo completamente distintos e originais, tivesse a virtude, somente por si, e sem o amparo, impulso e instrumento de poderosas e ativas foras sociais, de determinar tais consequncias. Ora no se apresenta nenhum sintoma pondervel da ao dessas foras. As reivindicaes dos trabalhadores empregados na grande explorao rural brasileira vo noutro sentido que no o do fracionamento da base fundiria em que se assenta aquela grande explorao; e o da transformao deles, de empregados que so, em pequenos produtores individuais e autnomos. As reivindicaes desses trabalhadores so as de empregados, que a sua situao econmica e social. A saber, reivindicaes por melhores condies de trabalho e emprego (Prado Jr., 1963: 6-7).25

    25 Segue a passagem: E de um tipo desses de reivindicaes no possvel esperar que

    resulte uma ao voltada para a subdiviso e retalhamento da propriedade e destruio com isso da grande explorao. Se assim fosse, as reivindicaes pendentes deveriam conter, em

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    Esse grande movimento social reivindicatrio poderia desequilibrar, a favor da fora de trabalho, a lgica estruturante do mundo rural: a contradio entre os monopolizadores das condies de trabalho e os despossudos rurais. Era essa, e no a contradio antifeudal e antilatifundiria, como pensavam os comunistas e outros grupos militantes, a dialtica econmica que tensionava o mundo produtivo e rural brasileiro (Prado Jr., 1966). Assim, em vez da frmula marxista-leninista, era tal desequilbrio que estimulava os conflitos pela terra, os quais, por serem pontuais e espordicos, no possuam amplitude suficiente para sustentar a renovao do mundo rural ao modo americano. Para Caio Prado, a luta pela terra, usando expresso bem mais contempornea, no era a questo poltica do campo (Martins, 1982). O acesso terra pressupunha forma associativa moderna e permanente; movimento esse que, afinal, se firmaria com a rede sindical inicialmente assentada por todo o pas a partir da estruturao da Unio dos Lavradores e Trabalhadores da Agricultura do Brasil (Ultab), em 1954, e da Confederao dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), em 1963, construes j mencionadas anteriormente.

    Faamos agora um outro tipo de observao: a pequena presena de Caio Prado na controvrsia sobre o ento chamado objetivismo burgus.26 Em um dos textos publicados na referida Tribuna de debates, na qual tambm v a tributao como meio para forar o acesso terra, Caio Prado diferencia o ponto de vista do trabalho do tributo proposto nas teses oficiais, o qual aparecia mais como medida de incentivo produtividade das grandes propriedades (Prado Jr., 1960a; 1996: 69).27 Continuemos com o

    grmen, a soluo das questes econmicas e de ordem tcnica que se proporiam numa tal transformao do sistema produtivo. O que no o caso. 26

    A expresso aparece no interior dos debates preparatrios do V Congresso de 1960, demarcando um grupo ortodoxo que reage viso das Teses oficiais sobre o capitalismo brasileiro,j anunciada na Declarao de 1958 (Nos quadros desta estrutura atrasada dizia este documento sobre o estgio de desenvolvimento do pas foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional, que constitui o elemento progressista por excelncia da economia brasileira (PCB, 1958; 1982: 176). 27

    O comentrio se referia s erradas premissas tericas da tese 41, por no trazerem argumento dirigido melhoria das condies de vida da populao trabalhadora rural (Isso constitui uma tpica formulao burguesa do problema agrrio. O incremento da produtividade ser uma consequncia da reforma agrria: disso no restam dvidas) (Prado Jr., 1960b; 1996: 69).

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    autor: Essa melhoria no ser trazida pelo simples aumento da produtividade, como mostramos acima; e ocorrem mesmo frequentemente situaes em que o aumento da produtividade agrcola acompanhada pelo agravamento das condies de vida do trabalhador. A contradio fundamental na economia agrria brasileira reside, como vimos, na oposio de grandes proprietrios e a massa trabalhadora efetiva ou potencialmente a servio deles, seja qual for a forma das relaes de trabalho vigente salariato, semiassalariato, parceria ou formas mistas. no terreno da luta social em que aquela oposio se manifesta, que a reforma agrria deve ser colocada. A par das reivindicaes imediatas (legislao trabalhista, regulamentao da parceria em benefcio do trabalhador, etc.), figurar a facilitao do acesso da massa trabalhadora propriedade da terra, o que determinar condies mais favorveis luta dos trabalhadores. A tributao, como medida essencial para aquele fim de proporcionar terra aos trabalhadores, deve portanto visar, em primeiro e principal lugar, o barateamento e a mobilizao comercial da terra, e no a simples produtividade, que ser consequncia da reforma e no constitui condicionamento dela (Id.: 69-70).

    Mediado por tal tipo de movimento social, em Caio Prado o tema do trabalho no mobilizado de modo impreciso nem constitui simples evocao do princpio marxista-leninista da superioridade operria em relao aos seus aliados, mas advm de uma interpretao de Brasil. Alis, a propsito da questo poltica do campo, registre-se um ponto da bibliografia que est a merecer tratamento: por trs da busca da questo poltica no campo ou da questo nevrlgica, como preferia o historiador, radicam, a rigor, imagens de Brasil diferenciadas por suas origens e significados singulares. Em uma comparao entre Caio Prado e Jos de Souza Martins, j se apontou o par explorao versus expropriao (Faria, 1990) como uma polaridade que distingue os autores em suas nfases no trabalhismo e na terra, respectivamente.

    Tambm se sugeriu que esse mesmo par no apenas diferencia sindicatos e ligas camponesas, negociao e confronto, presso por polticas pblicas e reivindicao de terra, como tambm, no fundo, configura dois estilos de mobilizao agrria. Vistos de um ponto amplo, tais polaridades expressam linhagens de interpretao do Brasil, cujas construes explicitam isso importantssimo modos desiguais de conceber a conexo teoria-prtica; ponto este sempre reivindicado pelos grandes nomes desses mesmos

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    campos intelectuais,28 sobressaindo-se Caio Prado Jr. como outsider do primeiro deles. Vale dizer, um militante pouco valorizado pelo partido comunista como um dos clssicos do nosso ensasmo e no assumido plenamente, mediante interpelaes sua teoria do Brasil e excursos sobre a revoluo, proveitosos que teriam sido para o pecebismo contemporneo.

    Assim, luz desse tipo de associao entre pensamento social e poltico, Caio Prado se nos afigura no apenas como pensador agrarista, mas tambm um dos publicistas constituintes do marxismo poltico brasileiro, como temos sugerido desde o princpio destas pginas. Ou seja, e dizendo de modo paradoxal, Caio Prado e Alberto Passos Guimares (voltando ao outro autor comunista) respondem pelos registros mais expressivos dos xitos de um partido que se esgotou com o fim da URSS. E falamos em xitos, no obstante o partido comunista se exaurir na passagem aos anos 1990, aps haver sido, em menos de um decnio, deslocado pelos novos grupos petistas, com a ajuda da Igreja, tanto do associativismo quanto do mundo intelectual. E isto mesmo que, neste mundo intelectual, os comunistas tenham produzido controvrsias sobre vrios temas da chamada revoluo brasileira, sempre expondo os seus argumentos, intramuros e na esfera pblica, quer nas suas publicaes quer em espaos da mdia nacional.

    Com a distncia do tempo e vendo as coisas a partir de hoje, podemos afirmar que a primeira e talvez a principal realizao daquele partido comunista consiste em haver deixado na esquerda militante uma tradio de poltica democrtica, anunciada em 1958 na seqncia dos debates sobre o stalinismo. So elementos de uma cultura poltica valiosa por sua origem difcil (forando passagem em meio ao marxismo-leninismo e a posturas dogmticas, algumas radicalizadas); uma cultura de esquerda tambm muito educativa, por causa da presena de no poucas ambiguidades, persistentes no PCB ao longo do tempo, mas no s nele, j que algumas ainda so visveis hoje em outros grupos, inclusive do PT. Depois, mas no com menor importncia, est o valor da contribuio dos comunistas para a melhora do mundo rural, tanto em termos da extenso de direitos (por meio do agrarismo sindical-campons) quanto em relao ao que chamavam de medidas parciais de reforma agrria, cuja proposio mais significativa recordem-se os tempos teve incio no imediato pr-64.

    28 Referimo-nos matriz ora em tela a conexo Caio Prado-PCB e ao campo que tem

    Florestan como referncia clssica e Jos de Souza Martins como principal autor agrarista.

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    Como igualmente j referimos, aquele tipo de sindicalismo prossegue em nossos dias na Contag, que ainda mantm certos traos antigos e faz lembrar a inspirao em Caio Prado. Por sua vez, foi por meio de um agrorreformismo de solues positivas e gradualista, como aquele a que tende o PCB pelo menos desde meados dos anos 1950, que viria a se consolidar digamos ao velho modo um campesinato, ao qual Alberto Passos Guimares, em seu tempo, se refere como um campesinato ainda por se constituir. Um campesinato que, ao fim do sculo do comunismo, j se visualiza na figura da agricultura familiar, florescente aqui e em muitas partes do mundo desenvolvido. No entanto, como ainda veremos, Alberto Passos Guimares e Caio Prado no so clssicos do marxismo poltico brasileiro apenas por trazerem at ns o registro intelectual da presena pecebista no nosso mundo rural.

    O marxismo poltico de Caio Prado Jr.

    Diferente do pecebismo inspirado na reflexo leniniana sobre a via prussiana no PCB,29 a contribuio caiopradiana percorre outro caminho.30 Conhecedor do primeiro ensasmo (Alberto Torres e outros), de Casa grande & senzala (1933) e, naturalmente, de Monteiro Lobato, o historiador tem como importante ponto de referncia, como j anotamos, a comparao entre o padro capitalista europeu e americano e nossa modalidade de constituio nacional. A distino recorrente, quer quando o autor tematiza as marcas da

    29 A ideia de via no clssica da revoluo burguesa j est em Marx e Engels (Marx, 1852;

    1977; Engels, 1895; 1977; 1891; 1973). Lnin sublinha do modelo original as duas formas de evoluo do mundo rural a prussiana conservadora (em andamento na Rssia da segunda metade do sculo XIX) e a via farmer. No caso russo, por ocasio da Revoluo de 1905, ainda estava aberta a porta via americana, sendo possvel a revoluo assumir um curso burgus conduzido por uma coligao heterognea de classes (campesinato, classe operria) (Lnin, 1905 e 1907). Voltaremos ao tema do uso dessa construo no PCB em um texto dedicado a Alberto Passos Guimares. Por ora registremos que o recurso ao conceito leniniano abre uma trilha que, com o correr do tempo, afirma no PCB: a) a ideia da democratizao poltica como sentido geral de uma revoluo chamada a reverter o padro autoritrio da modernizao e b) o valor do mundo da poltica como terreno da concretizao contnua das mudanas sob Estado democrtico de direito. 30

    Aqueles publicistas (antigos e novos) no advertiram que havia em Caio Prado outros suportes para o reformismo democrtico. Para a questo acerca do lugar das formulaes de Caio Prado no seu partido comparadas suas referncias intelectuais com as do pecebismo acima aludido , ver um breve registro em Santos, 2006b.

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    colnia de produo e do escravismo, quer quando disserta sobre a modernizao e o industrialismo inconclusos mais contemporneos.

    Ao investigar o terreno nacional sob o prisma da conexo passado-presente, o historiador, como vimos, refaz axiomas da economia poltica sagrados na tradio marxista , adequando a disciplina para assim equacionar o tema da dependncia e chegar meta que buscava: uma anlise poltica habilitada a inferir o padro das contradies e solues de conflitos, da relevando a contrapelo do marxismo-leninismo , o sentido institucionalizador (positivo) de processos sociopolticos modernos (opinio pblica, partidos, sindicalismo, etc.). Ao repetir em vrias passagens da sua obra o contraponto entre a trilha dos pases que se desenvolveram no capitalismo com democracia e institucionalidade robusta e o curso defeituoso da revoluo burguesa no Brasil31, Caio Prado deixa indcios do seu compromisso com o emblema ocidental. Poder-se-ia dizer que, neste emblema, o autor divisa o programa-destino da nossa ida ao moderno, a despeito da sua longa filiao do socialismo real.

    Essa adeso certamente comporta no pouca ambiguidade em um ensasta que intui muito cedo que o socialismo um programa, escrevia em 1934, usando o termo em linguagem impressionista nunca se realizaria como uma sociedade sem classes.32 grande a tentao de ver nas passagens

    31 Nelson Werneck Sodr, autor to acusado de linearidade (para ele, 1930 era uma

    revoluo antifundiria cf. Sodr, 1963), tem uma nota na qual diz que a poltica de frente nica da ANL, derrotada em 1935, fora um ponto alto da transio republicana que se iniciara em 1930, depois de o pas ter passado pela revoluo burguesa sem o proletariado (Sodr, 1962). 32

    Citem-se, de URSS. um novo mundo, algumas passagens. Em relao eventualidade de diferenciao de classes, peculiar ao novo regime, entre a massa e uma minoria, o autor diz: Nenhuma organizao social (pelo menos as j de certa forma evoludas e por isso mesmo complexas) pode dispensar uma direo. Nestas condies dever surgir na prpria sociedade que vir substituir a sociedade burguesa uma diferenciao entre o grupo investido desta direo e o resto da populao. O socialismo portanto nunca passar de um programa: uma sociedade sem classes impossvel (Prado Jr., 1934: 234). Caio Prado aduz um grande testemunho: um escritor alemo, Robert Mitchels, quem primeiro, creio, aventou este argumento. O historiador brasileiro lembra que Les Partis politiques fora escrito em 1911, sem o exemplo da Revoluo Russa, e continua: Ele [Mitchels] diz o seguinte: Ainda mesmo que as massas conseguissem arrancar o poder aos burgueses, no haveria a seno uma aparncia: surgir sempre e necessariamente, no seio das massas, uma nova minoria organizada, que se elevaria posio de uma classe dirigente. Eternamente em minoridade, a maioria dos homens se veria obrigada mesmo predestinada triste fatalidade histrica de

    22

    citadas um ponto de vista antiapriorstico a marca posterior da interpelao ao PCB (Prado Jr., 1966) em relao doutrina que j se cristalizava volta do novel socialismo, no obstante repita-se a aceitao sem reservas da URSS, que o historiador manteria em escritos bem posteriores (Prado Jr., 1960b e inclusive 1982). Fazendo alegoria com a introduo escrita por Leandro Konder para uma coletnea de textos luckasianos (Konder, 1980b), dir-se-ia que o compromisso de Caio Prado Jr. com o socialismo sovitico o converte numa espcie de Lukcs brasileiro.

    Registremos, agora, que h em Caio Prado Jr. uma espcie de ampliao da teoria social marxiana, um movimento pouco desenvolvido que teria sido se valorizado benfico ao discurso pecebista. Trata-se de pontos inseridos em uma doutrina fechada assim chegava aqui o marxismo , sendo o principal deles a referida nfase na circulao, com a qual o autor esquematiza a questo da colnia de produo brasileira. Com efeito, Caio Prado Jr. vale-se do Prefcio Contribuio crtica da economia poltica (1859), fonte corrente ou quase nica para publicistas que se veem limitados por vrios motivos a trabalhar com a bibliografia clssica da tradio.

    No caso do PCB, j foram apontados como causas dessa limitao o contexto de atraso cultural no qual os comunistas receberam o marxismo de verso sovitica, ampliando sua pobreza terica, bem como o isolamento intelectual a que foram obrigados pela clandestinidade intermitente. No entanto, o exemplo de Gramsci, ao produzir uma obra fur ewig confinado nas prises mussolinianas, testemunha a possibilidade de superao dramtica do constrangimento. De qualquer modo, tanto o historiador

    suportar a dominao de uma pequena minoria sada do seu seio e de servir de pedestal grandeza de uma oligarquia (Id.: 235). E completa: Este argumento tanto mais interessante no momento atual que toda a ala dissidente da 3 Internacional, chefiada por Trotski, descobre no regime sovitico os germens desta diferenciao, a constituio de uma oligarquia dirigente: a burocracia (Id.). certo que o perigo assinalado por Mitchels existe acrescia, recorrendo, desta vez, a Bukharin, segundo o qual aquela degenerao prosperava medida que caam as foras produtivas nacionais, e seria paralizada com o seu crescimento e a supresso do monoplio da instruo dos quais resultaria essa era a soluo apontada pelo terico russo para o eterno problema de Mitchels a produo em grande escala de tcnicos e organizadores em geral sados da classe operria. O jovem externava sua f no regime dos soviets, que, como ele mesmo dizia ento, era de ampla abertura e podia vir a alargar as margens daquela educao poltica e administrativa (Id.: 236-7).

  • 23

    brasileiro como o PCB, para no falar de ensastas isebianos, com frequncia usaram o Prefcio de 1859.33

    Todavia, Caio Prado no recorre ao trecho marxiano destacado pelo terico italiano nos Cadernos do crcere, a saber, a passagem sobre a tempestividade das mudanas revolucionrias.34 com aquela chave topogrfica do Prefcio de 1859 dialetizada pelo cnone circulacionista que o historiador tece excursos de pensamento social sobre uma formao marcada pela ciso entre economia e populao. Assim, ao caracterizar o processo da nossa estruturao, Caio Prado Jr. serve-se do modelo de Marx e Engels traado com grande abstrao sobre os largos ciclos histricos (Marx e Engels, 1847-1848; 1977). Os clssicos expunham a lgica que estrutura e governa toda e qualquer formao social fundada na determinao em ltima instncia da economia e inteligvel atravs da dialtica entre o crescimento progressivo das foras produtivas e a transitoriedade das relaes de produo. Tal lgica evidencia-se nos embates de classe e nos enfrentamentos sociopolticos, requerendo nveis de anlise mais concretos de sociedades historicamente determinadas, em particular nas circunstncias de crise e mudana (a Revoluo de 1848, a Frana at o golpe de Lus Bonaparte, etc.) (Marx e Engels, 1850-1851 e 1852; 1977).

    No entanto, como sublinhamos, economia e populao termos com que Caio Prado Jr. procura decifrar a formao brasileira aparecem em

    33 Alm desta smula marxiana, h na literatura isebiana referncia proposio leniniana do

    Que fazer?: Sem teoria revolucionria, no h movimento revolucionrio. expressivo o lema de lvaro Vieira Pinto: Sem ideologia do desenvolvimento nacional, no h desenvolvimento nacional (Pinto, 1960: 29). 34

    Eis o cnone usado por Gramsci: Nenhuma formao social desaparece antes que se desenvolvam todas as foras produtivas que ela contm, e jamais aparecem relaes de produo novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da prpria sociedade antiga as condies materiais para a sua existncia. Por isso, a humanidade se prope sempre apenas os objetivos que pode alcanar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que esses objetivos s brotam quando j existem ou, pelo menos, esto em gestao s condies materiais para a sua realizao (Marx, 1859; 1977: 302). J o trecho a que recorre Caio Prado antecede esta passagem: Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade se chocam com as relaes de produo existentes, ou, o que no seno a sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade dentro das quais se desenvolveram at ali. De formas de desenvolvimento das foras produtivas, estas relaes se convertem em obstculos a elas. E se abre, assim, uma poca de revoluo social (Marx, 1859; 1977: 301).

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    ordem diversa da Economia Poltica clssica, como se pode ver, de modo bem explcito, em Diretrizes para uma poltica econmica brasileira (1954). Nesta monografia nada desimportante, na qual no por acaso a teoria revolucionria se nutre do seu tempo e de tema contemporneo, o objeto a poltica econmica, e o historiador interpela Keynes e Cepal35.

    Em suma, com esse tipo de marxismo e com a inscrio no ensasmo clssico, o labor do publicista consiste em refazer a ideia de revoluo, recebida pelo PCB da III Internacional como uma luta nacional-libertadora Oriente (Prado Jr., 1966). Ao longo dos seus textos problematiza a contemporaneidade brasileira como um processo duradouro de concluso da nacionalidade e radica a revoluo no renovamento da vida nacional com base na valorizao do trabalho e tambm do prprio mundo produtivo; mundo econmico que, por sua vez, necessita se modernizar e se estender horizontal e socialmente no mesmo sentido do primeiro industrialismo clssico, conforme a trilha da Europa e Estados Unidos, pases que, inclusive, haviam feito correes nos termos do Welfare State.

    Com esse tipo de registro possvel acentuar dimenses menos aparentes do pensamento caiopradiano. O livro Formao do Brasil contemporneo, por exemplo, pode ser relido no s a partir do Prefcio de 1859, como tambm de um recorrente raciocnio comparativo entre o caso brasileiro e a colnia de povoamento americana, de onde Caio Prado

    35 Citemo-lo: Mas antes de considerar especificamente o caso brasileiro no ser fora de

    propsito lembrar que a prpria teoria econmica, no que tem hoje de mais autorizado e acatado, vem deslocando h muito tempo (quase vinte anos pelo menos) seu ponto de vista antes e tradicionalmente fixado de preferncia no lado da produo do valor, para o do fim a que se destina, pelo menos em princpio essa produo, a saber, o consumo. Durante um sculo e mais, ou seja praticamente da aurora da Economia Poltica, tal como a entendemos hoje, a teoria econmica ortodoxa se construiu na presuno da famosa lei atribuda ao francs Jean-Baptiste Say (e por isso conhecida por lei de Say, mas na realidade devida a James Mill), segundo a qual a produo cria o seu prprio mercado. As repetidas crises do sistema capitalista e finalmente a estagnao contempornea s vezes interrompida por breves perodos de prosperidade (o inverso portanto do passado, quando a prosperidade era a regra e a depresso, o eventual e transitrio), isso obrigou os economistas burgueses a confiarem menos na lei de Say e no presumido automatismo do ajustamento entre produo e consumo; e a voltarem suas atenes para o verdadeiro mecanismo desse ajustamento ou antes desajustamento, como a experincia tinha demonstrado. A chamada revoluo keynesiana, hoje consagrada, no vem a ser em ltima instncia seno uma explicao e tentativa de correo daquele desajustamento (Prado Jr., 1954: 194-95).

  • 25

    recorde-se um dos primeiros pontos-chave do autor extrai a conhecida proposio do sentido da colonizao36.

    Conhecedor dos primeiros ensastas, e vindo logo em seguida a eles, Caio Prado tece rounder points sociolgicos e de anlise poltica (contemporneo que era do Iseb, especialmente de Hlio Jaguaribe). Esses rounder points levam-no a fazer qualificaes importantes na sua teoria revolucionria: a) sempre recorre sua viso da industrializao brasileira, de negcios fceis, como um industrialismo incapaz de incorporar produtivamente os numerosos contingentes do pas de desocupados; b) recusa os efeitos do domnio britnico na ndia, que tambm aqui trariam consequncias desastrosas modernizao do mundo rural;37 e c) no tema da vida poltica, dirige a ateno para as marcas e sedimentaes passivas que a colnia de produo teria imprimido nas mediaes do mundo social e partidrio, dissimulando, no personalismo e nas agitaes, a superficialidade do sistema poltico brasileiro contemporneo.

    36 Se vamos essncia da nossa formao, veremos que na realidade nos constitumos para

    fornecer acar, tabaco, alguns outros gneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodo, e em seguida caf, para o comrcio europeu. Nada mais que isto. com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do pas e sem ateno a consideraes que no fossem o interesse daquele comrcio, que se organizaro a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se dispor naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do pas. Vir o branco europeu para especular, realizar um negcio; inverter seus cabedais e recrutar a mo de obra de que precisa: indgenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organizao puramente produtora, industrial, se constituir a colnia brasileira (Prado Jr., 1942: 26). 37

    Marx v a ao britnica na ndia (uma Itlia de propores asiticas) como uma revoluo social: bem verdade que, ao realizar uma revoluo social no Hindusto, a Inglaterra agira sob os impulsos dos interesses mais mesquinhos, dando provas de verdadeira estupidez na forma de impor esses interesses. Mas no se trata disso. Do que se trata de saber se a humanidade pode cumprir a sua misso sem uma verdadeira revoluo a fundo do estado social da sia. Se no pode, ento, e apesar de todos os seus crimes, a Inglaterra foi o instrumento inconsciente da histria ao realizar essa revoluo (Marx, 1853; 1980: 291). Em outro texto: A Inglaterra tem de cumprir na ndia uma dupla misso: destruidora, por um lado, e regeneradora, por outro. Tem que destruir a velha sociedade asitica e assentar as bases materiais da sociedade ocidental na sia (1853; 1980: 292). Todavia qualificava: Os britnicos destruram a civilizao hindu quando dissolveram as comunidades nativas, arruinaram por completo a indstria indgena e nivelaram tudo que era grande e elevado da sociedade nativa. As pginas da histria do domnio ingls na ndia mal oferecem alguma coisa mais do que destruies. Atrs dos montes de runas distingue-se com dificuldade a sua obra regeneradora. E, contudo, essa obra comeou (Id.: 293).

    26

    Consideraes finais

    Esse tipo de releitura renova o interesse pelos textos publicsticos do autor. o caso de ver como a proposio circulacionista (Prado Jr., 1942 e 1945) reaparece posteriormente. Relembremos como uma primeira referncia o exemplo, no artigo de 1947, dedicado revoluo burguesa de novo tipo, que Lnin pensara para um contexto capitalista perifrico (qualificada a circunstncia brasileira pela dependncia).

    No interior da frmula leniniana, Caio Prado tece fios dissertativos diferenciadores: a) a estreita correlao entre a descrio do curso burgus, singularizado aqui pela ausncia de robustas classes revolucionrias bsicas nos modelos de Marx e de Lnin (burguesia e proletariado, para o primeiro, e camponeses, para o ltimo) , e o conceito de poltica econmica (lugar estatal supletivo da ao inovadora daquelas classes), referenciado o conceito pela valorizao do trabalho; e b) a importncia da grande empresa e seus empregados agrcolas e a revoluo agrria centrada na lei trabalhista; nfase vista no como formalizao do papel do proletariado como condottiere dos camponeses, conforme prescrevia o marxismo-leninismo. Radicadas numa interpretao do Brasil, essas linhas dissertativas conformam a ideia caiopradiana de revoluo como reorganizao econmico-social e adensamento da vida nacional, aparecendo os constructos sobre a modernizao menos completos do que a teorizao agrria.

    Todavia, h uma trilha a merecer melhor investigao: as referncias externas tradio comunista com as quais o historiador recusa a frente nica do PC, vale dizer, alguns axiomas prprios do primeiro ensasmo clssico. Para ilustrar a questo, retomemos o emblema de anlise poltica mais antigo: 1945, ou seja, a circunstncia da segunda metade dos anos 1940.38 Ento, o grupo de Caio Prado tinha certa gravitao, sendo

    38 Decorridos quinze anos da Revoluo de 1930 (com engessamento da superestrutura, mas

    tambm expanso das foras produtivas), 1945 encerrava tudo em si, registra Caio Prado Jr. nos seus dirios (cf. Iumatti, 1998). E explica: A poltica se agita, j agora sem reservas e publicamente. Arregimentam-se grupos, alianas e partidos... A luta comeou, aberta e rasgada. Como terminar, por onde e para onde levar o Brasil? (Ib.). O autor anota o aprendizado que as massas estavam tendo ao emergirem vida pblica numa situao dramatizada pela falta de alicerces polticos que permitissem superar tanto o alheamento da maioria em relao vida cvica, quanto as agitaes que marcavam a vida nacional. Se o

  • 27

    notvel a movimentao do publicista. Trata-se de uma conjuntura para cujo entendimento, no grupo caiopradiano, convergiam os seus constructos j esboados. O desenho do emblema 1945 j exibe o marxismo refeito por exigncia da tematizao da colnia de produo. Este marxismo, depois, encerraria aos olhos dos crticos do historiador um paradoxo: quanto mais economicista a narrativa (vrios autores indicam este ponto), tanto mais o marxista considera a poltica, campo do qual, alis, provinha, por estar inscrito no PCB.

    A rigor, Caio Prado um publicista do pensamento social que mobiliza a noo de luta de classes na poltica segundo parmetros que fincam sua anlise no solo nacional: a) o da pobreza da populao, ao modo do axioma do pas sem povo com que Louis Couty alude nossa conformao (Caio Prado traduz este tema para um contexto de capitalismo fraco); e b) o da falta de slidos alicerces para a vida poltica nacional (recordar a contraposio entre Brasil real/legal, que reaparece em Caio Prado sob a chave da dialtica torta entre sociedade e poltica, rounder point sobremaneira recorrente na sua ensastica)39.

    novo daquele momento anunciava o fim da ditadura, o novssimo era a irrupo das massas na vida pblica, que s se consolidaria medida que se criassem as instituies democrtico-liberais. As oposies saam superfcie, trabalhavam na organizao da UDN e geravam massa crtica para a vida nacional, espalhando-a como opinio pblica pela imprensa, pela poltica e pelos grupos partidrios (Ib.). 39

    Em 1945 Caio Prado Jr. j assinala as marcas das agitaes e da esterilidade da vida poltica movida a partir de cima e defende a aliana do PCB com os liberais que se reuniam em torno da UDN. A amplitude desta aliana levaria ao fim da ditadura e a um caminho que daria curso s reivindicaes populares, procurando-se assim afastar as massas do populismo e obter seu apoio duradouro. O historiador volta ao ltimo tema no livro de 1966 como uma verdadeira estratgia poltica (Iumatti, 1998). No PCB iriam se contrapor a ideia de aliana com os liberais e o critrio da avaliao da conjuntura da guerra defendido pela CNOP (cf. Cavalcanti, 1983). O novo ncleo dirigente muda o eixo da poltica de unio nacional, e o PCB se volta para as mobilizaes queremistas da Constituinte com Getlio, da decorrendo dois movimentos: a) a reorganizao do PCB margem do trabalho de unidade entre as esquerdas e o centro-esquerda, desperdiando-se, no dizer de Caio Prado, aquele momento de democratizao (cf. Iumatti, 1998); e b) a substituio do que seria a esfera ideolgica e intelectual dos Comits de Ao. Por causa da falta de embasamento, segundo descrevem passagens dos dirios caiopradianos, a nova orientao do partido de Prestes (assim passava a se chamar em certas reas, cf. Cavalcanti, 1983) primava pela vagueza e o irrealismo das palavras de ordem e pela improvisao (sic) (Iumatti, 1978).

    28

    As dissertaes sobre a revoluo brasileira so coordenadas de uma arquitetura que singularizam a postura do historiador tanto na conjuntura crtica de 1945 como no movimentado pr-1964, expondo suas desavenas com o partido comunista. Por viver a um s tempo o comunismo e o ensasmo, Caio Prado era de fato um outsider. Essa referncia simultnea o distancia, por um lado, dos prussianismos quer o propedutico de Freyre (no sentido da ao reitora do Exrcito, chamado em momentos instveis a vertebrar uma sociedade civil dbil), quer o transicional de Jaguaribe (por meio de um Welfare State neobismarckiano Partido do Congresso, de Nehru) (Freyre, 1950; 1965, e Jaguaribe, 1962). E, por outro, a boa dupla militncia de Caio Prado diferencia-o das vises das esquerdas da poca, seja a sociologia das contradies catastrficas (que alimentava grupos mais radicalizados), seja a variante pecebista do frentismo pluriclassista de inspirao nacional-popular, tambm recusada pelo historiador, sobretudo nas suas intervenes dirigidas aos V e VI Congressos, de 1960 e 1967. Tais intervenes, como j se frisou, s se entendem plenamente a partir do prisma da sua interpretao do Brasil.

    Esta interpretao do Brasil guardadas as distines necessrias lembra Gilberto Freyre, o qual chegou a sugerir que sua obra representava uma alternativa ao que chamava de positivismo e ao comunismo polticos, carentes de lastro sociolgico. No caso de Caio Prado, trata-se de uma interpretao marxista do Brasil comprometida com a busca da nossa especificidade, da o verdadeiro teor dos seus desencontros com o seu partido. Alis, com a distncia do tempo, essa filiao merece ser evocada de um modo vvido e paradoxal. Dito de outro modo: se o PCB no adotou o seu terico e o manteve margem, faltou a Caio Prado o faro poltico dos comunistas brasileiros uma falta da qual estes ltimos ainda reclamavam na poca de A revoluo brasileira (1966).

    Foi com a intuio que, aps 1964, o PCB soube encontrar no que restava do mundo poltico destroado pelos militares e assaz desacreditado, como neste nosso tempo de governo das esquerdas militantes o ponto de Arquimedes a partir do qual se faria a resistncia democrtica naqueles anos difceis. E no entanto, l atrs, em 1945, o historiador tambm lanara um olhar muito interessado na aliana das esquerdas com os liberais, convergncia esta por muitos anos perdida. Em suma, nessa difcil convivncia e por trs das tenses que os distanciavam, o historiador e o partido comunista mostraram cada qual no seu elemento mais prprio,

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    a criao intelectual e a ao poltica o que mais sabiam fazer, sem, no entanto, se aproximarem suficientemente, como seria da natureza tanto de uma elaborao intelectual com vocao para o marxismo poltico quanto de uma ao poltica que necessitava fundamentar-se numa teoria do Brasil.

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