saberes negro-indígenas na colônia imperial · voga junto aos naturopatas, bem como o cuspo eram...
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Saberes Negro-Indígenas na Colônia Imperial
Severino do Ramo Correia, MSc
Maria Amélia Monteiro, Dra
Resumo
O objetivo da presente proposta é evidenciar como determinados saberes negro-indígenas, os
quais até hoje circulam em nossos meios, foram valiosos em distintos recantos do espaço
colonial brasileiro. Estes saberes difundiram-se inclusive na primeira metade do século XIX,
mesmo com as academias médico-cirúrgicas transformadas nas Faculdades de Medicina da
Bahia e do Rio de Janeiro, a partir de Lei assinada em 3 de outubro de 1832, haja vista que o
Estado nunca empreendeu ações significativas em relação aos cuidados com a saúde dos
escravizados. A tal omissão, somavam-se ainda as péssimas condições de vida e a crueldade do
tratamento dado pelos senhores dos engenhos aos escravos, colocados em senzalas insalubres,
com alimentação deficitária e ainda submetidos a trabalhos forçados em excesso. Estas
condições os faziam presas fáceis dos vários tipos de doenças e consequentemente à organização
constante de revoltas libertárias. Escudado em um discurso moralista e higienizador, o poder
central, ao contrário do que se esperava de quem se sustentava da escravatura enquanto mão-de-
obra trabalhadora e produtora de sua ascensão, não tornou a escravaria como objeto de
considerações médicas. Essa omissão do poder público, fez com que os entes escravizados
tomassem mãos de seus saberes ancestrais e produzissem tudo o que fosse favorável à cura dos
males do corpo. Tanto os que já por aqui estavam - os indígenas - quanto os que aqui à força,
aportaram - os negros – valeram-se de suas práticas medicinais curativas, significativamente
diferentes dos aprendizados médicos trazidos da Europa pelos higienistas brancos. A medicina
dos excretos, por exemplo, fazia parte dos domínios das senzalas. A urinoterapia, hoje, tanto em
voga junto aos naturopatas, bem como o cuspo eram usados para a cura de males dos olhos; os
emplastros de fezes de vaca, para debelar as inchações são alguns dos elementos curativos que
faziam parte dos saberes de negros e indígenas, em circulação na colônia imperial. O Dr. Carlos
Alberto da Cunha Miranda, com seu A Arte de Curar no Tempo da Colônia, nos será de grande
valia em nossas buscas pelos limites e espaços da cura, desse período. Os males provocados pela
inanição e alimentação deficitária poderão ser esclarecidos pela Geografia da Fome, do geógrafo
e médico Josué de Castro. Acrescente-se um pouco do que vai através do imaginário popular e
da feitiçaria nos tempos coloniais. Por fim O Cacique Jecupé, dissertando sobre os clãs
indígenas mais velhos, aponta que estes desenvolveram uma medicina e uma tecnologia que
tinha ligações intimas com a Mãe Terra e, ainda, que há um sem número de características e
formas de relações do índio com ela, além de um equilíbrio parceiro entre ser e natureza na
História de Índio, mostrando que esta terra tinha dono que sabia muito, e a astúcia e a
criatividade dos escravizados, foram muito importantes para o avanço e a manutenção da
resistência e da saúde até contra o cólera em 1856.
Palavras-Chave: Práticas curativas, Saberes afro-indígenas, Curandeiros.
1.Saberes e Práticas Médicas no Brasil Colônia
Até meados do século XVIII, os estudos médicos no Brasil estiveram restritos aos
Colégios Jesuítas. Nestes, os religiosos estudavam a medicina europeia, além das propriedades
das ervas, com estas últimas facilitadas pelas interações com os indígenas. Lobo (1964)
menciona que o Colégio Jesuíta da Bahia, em Salvador (Largo do Terreiro de Jesus e depois
Praça XV), capital da colônia até 1763, era uma casa de estudos que se assemelhava à
Universidade de Évora, dirigida pelos Jesuítas durante duzentos anos. A instituição foi fundada
em 1559, pelo Cardeal D Henrique, que posteriormente, tornou-se Rei de Portugal.
Até os jesuítas serem expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal, em 1759, os
Colégios Jesuítas abrigaram hospitais e boticas. Entre os anos de 1654 e 1681, por exemplo, os
religiosos fizeram várias tentativas junto às autoridades da Coroa, visando à criação de uma
escola superior a partir da estrutura dos Colégios portugueses. Em relação a este propósito, os
jesuítas não obtiveram êxito. No Brasil, a primeira instituição de ensino superior somente seria
criada no século XIX. Enquanto isso, nas colônias inglesas e espanholas das Américas, as
universidades haviam sido fundadas desde o século XVI.
Entre os séculos XVI e XIX, os agentes da cura no Brasil estiveram restritos aos
físicos 1 , cirurgiões, boticários e sangradores. Os físicos eram formados nas universidades
europeias, sendo estes em menor número que os cirurgiões. Exerciam suas funções tanto na
metrópole quanto na colônia e aprendiam o ofício na prática. Para isso, eram supervisionados por
um mestre cirurgião habilitado. A obtenção do exercício profissional dos físicos era concedida a
1 Esta terminologia foi usada no período Medieval para se referirem aos médicos que tratavam as enfermidades internas do corpo através do uso de drogas (NOGUEIRA, 2007).
partir de um exame prestado diante da autoridade sanitária, que, na colônia brasileira, a função
era exercida pelo físico-mor do Reino.
Aos boticários eram permitidas a preparação e a comercialização de medicamentos. Ao
sangrador, a aplicação de ventosas e sangraduras, supervisionada por um médico ou por um
cirurgião. Porém, de acordo com Pimenta e Dantas (2014), por se tratar de uma atividade manual
e pelo contato com o sangue, era relegada a pessoas das classes sociais inferiores, como os pretos
e os foros. Além das sangrias e ventosas, era permitido que realizassem corte de cabelos e barba,
além de extração de dentes. Porém, aos sangradores não era permitida a prescrição de
medicamentos. Posteriormente, essa atividade foi requerida aos estudantes das escolas médicas.
Na primeira década do século XIX, com a invasão napoleônica a Portugal e a vinda da
Família Real para o Brasil, em 1808, ocorreu a institucionalização da medicina no Brasil, a partir
da instalação de Escolas de Cirurgia no Rio de Janeiro e em Salvador, então as duas cidades mais
expressivas da colônia (TORRES, 1946).
A fundação da Escola de Cirurgia da Bahia se deu a partir da Decisão Régia de
18/02/1808, visando atender uma solicitação do médico pernambucano José Correia Picanço,
diplomado pela Universidade de Coimbra, que retornou ao Brasil em 1808 (LOBO, 1964). Essa
Escola foi sediada no então Hospital Militar da Bahia, antigo prédio do Colégio Jesuíta.
A partir do momento da criação até o ano de 1818, a Escola de Cirurgia da Bahia
funcionou basicamente com dois cirurgiões. Um deles, Manoel Jose Estrella, ministrava aulas de
cirurgia especulativa e prática, orientado pelo cirurgião-mor Correia Picanço (PEREIRA, 1923).
Para esses ensinamentos, seguiam a orientação médica de compêndios franceses, requerendo dos
alunos o pleno domínio da língua francesa para ingressar na intituição, evidenciando a condição
econômica dos pretendentes. A influência médica francesa acentuada a partir da independência
do Brasil de Portugal.
O outro médico, pioneiro no funcionamento da Escola de Cirurgia da Bahia foi
cirurgião José Soares de Castro, que ministrava aulas de anatomia e operação cirúrgica. As aulas
práticas e as demonstrações dos objetos cirúrgicos também eram desenvolvidas nas salas do
Hospital Militar da Bahia (PEREIRA, 1923). O curso possuía duração de quatro anos e após esse
período, o estudante era submetido a exames. Se aprovado neste, mediante pagamento,
requeriam o diploma a Universidade de Coimbra (NASCIMENTO, 1929).
Em 1832, deu-se a fundação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia.
Com estas, iniciou-se então um movimento de combate às práticas de cura não oficiais,
notadamente, tendo como alerta o caráter anti-higiênico destas.
2. Dissenso Sobre as Causas das Doenças
Em 1793, o médico Luiz Antônio de Oliveira Mendes, graduado pela Universidade de
Coimbra, chamou atenção para as condições insalubres dos navios negreiros. Além disso, “no
porão dos navios faltava tudo: roupa, higiene, água, comida e ar.[...]. É evidente que, num
ambiente desses, disseminavam-se inúmeras doenças, as quais impediam que muitos
terminassem a viagem” (MIRANDA, 2004, p.342). Corroborando com esta, Coutinho (1934
assinala:
“Os negros vinham entulhados em porões imundos, húmidos, sem luz,
dos navios de tráfico, cujas viagens duravam dois e meio, três e até
quatro meses. As condições de tráfico eram tão miseráveis que Rugendas
no seu admirável livro sobre o Brasil, informa: Transportam-se,
anualmente, cerca de 120.000 negros da África; e raramente chegam
mais de 80 a 90.000 ao seu destino. [...] A falta d’agua era a
consequência quase inevitável da cobiça da que motivava a utilização do
menor espaço para tornar a carga mais rica, informa Rugendas”
(p.201).
Acentuando a tragédia, aqueles que conseguiam chegar com vida ao final do trajeto nos
navios, não recebiam por parte do poder público, nem dos grandes proprietários, nenhum
benefício em favor de sua saúde. Tampouco havia interesse ou tentativa de fazer algo nesse
sentido, vindo da parte dos que, na época, exerciam a medicina.
Não era de se estranhar que, submetidos a todo esse maltrato durante todo esse tempo, o
organismo desses seres sofresse graves alterações e, ao chegarem, estivessem todos em estado
deplorável em relação à saúde geral. “Não devemos nos admirar de tantas moléstias atacando os
recém-chegados como disenterias crônicas, hepatites, etc” (COUTINHO, 1934, p. 203).
Entre tantos males que acometiam a população destinada à escravidão, algumas faziam-
se mais frequentes, a saber:
“/.../ a bexiga foi sempre a doença companheira inseparável do negro
cativo. Sem falar na syphilis transmitida originariamente pelos
portugueses. Rara a senzala que não era, vez por outra, visitada por
alguma epidemia, ora se espalhando pela Provincia toda, ora ficando
adstricta à pequena região da Várzea ou do Brejo (VIDAL, 1934, pp.
143-44).
Quanto maiores fosses os ajuntamentos, mais as epidemias como do “Cholera-morbus,
da varíola e outras como a disenteria de sangue, produziam mortandade mais elevada”
(VIDAL, 1934, p. 144). Com condições de higiene abaixo de qualquer escala imaginável, a má
alimentação, a imundície e a ausência de assistência a que eram submetidos, para o escravizado
só restava uma saída: as graças divinas através dos Santos, embora não parecessem com os seus
fenotipicamente. Como os atributos por várias vezes coincidiam, como no caso e São Sebastião
e/ou São Lázaro, tido pelos padres como poderosos na luta contra a varíola, as rezas aprendidas
passavam à ordem do dia. O importante era aplacar o desespero e evitar a morte.
Muito antes de chegarem os africanos ao Brasil, os brancos já disseminavam por estas
terras uma série de “doenças gravíssimas como: sífilis, varíola, hanseníase, febre amarela,
cólera e, posteriormente, a peste bubônica. Assim como os escravos, os povos indígenas foram
as maiores vítimas dessas epidemias” (MIRANDA, 2003, p. 353). Também poderá: com defesas
orgânicas comprometidas pela má alimentação, maus tratos, perda forçada da identidade,
vestimentas impróprias e mudanças em suas condições originárias de vida, desenvolveram
campos favoráveis a um verdadeiro alastramento de enfermidades cujo caminho, para a maioria,
foi a morte.
Para os escravizados de um modo geral, negros e indígenas, as enfermidades que mais
os afetaram e dizimaram,
/.../ foram as infecto-contagiosas, como a catapora, o sarampo e suas
complicações, a varíola, a gripe, o tifo, a meningite, a tuberculose e a
hanseníase. [ ...] Contudo [...] doenças de pele, venéreas; além das
enfermidades nutricionais, tais como: anemia, raquitismo, avitaminoses
diversas e a inanição (Op.cit., p. 353).
Uma alimentação incompleta, sem os elementos nutritivos necessários e variados, é de
extrema gravidade para a sobrevivência do elemento humano, notadamente, associada à
excessiva quantidade de horas exercendo um trabalho que requeria o dispêndio de força física.
O escravo trabalhava de sol a sol. Por uma questão de economia para o senhor, a farinha
de mandioca ou o milho se constituíam na base da alimentação desses escravizados levando ao
longo do tempo, tanto os adultos quanto as crianças, a estados graves de deficiência orgânica.
“Deficiência que se revela de logo pelo crescimento insuficiente, pela
estatura abaixo do normal [...], alimentadas exclusivamente com milho.
É que a proteína do milho é muito incompleta, faltando-lhe diversos
ácidos aminados indispensáveis ao crescimento e ao equilíbrio orgânico.
Mas também a mandioca é muito pobre em proteínas, mais pobre mesmo
do que o milho e qualitativamente inferior. [...] As primeiras
consequências diretas da deficiência alimentar são as que resultam de
sua insuficiência calórica, de sua pobreza energética” (CASTRO, 1948,
p. 70).
Afeito, quase sempre, a defender o senhor, principalmente a bondade do escravocrata
português no Nordeste, o sociólogo Gilberto Freyre, na obra Casa Grande e Senzala, afirmou
que os melhores alimentados nesta região foram os representantes dos dois extremos
econômicos: o senhor de engenho e o escravo” (FREYRE, apud CASTRO, 1948, p. 146). Tal
afirmação recebeu de pronto, por parte do médico Josué de Castro, veemente contestação,
assinalando:
“A rigor, o sociólogo não deveria escrever “os melhores alimentados”,
mas, os que comiam maiores quantidades de alimentos. Quando o senhor
fornecia ao negro uma dieta mais abundante de feijão, de farinha, de
milhou de toucinho, não melhorava o seu regime alimentar, senão num
único aspecto, no de lhe abastecer de maior potencial energético sem
minorar nenhuma das suas deficiências qualitativas, agravando mesmo
algumas delas [...] Dava-lhe maiores quantidades de combustível, sem
nenhum cuidado pelos reparos necessários da máquina de combustão”
(CASTRO, 1948, pp. 146-147).
Pode-se ver mais uma vez, o professor Josué de Castro esclarecendo e denunciando a
forma como eram tratados os escravos em relação aos cuidados com a saúde, mesmo por aqueles
que mais dependiam deles para ganharem mais. Não eram seres. Eram máquinas de produzir,
logo, uma quantidade maior de combustível como carvão “fazia com que [...] enquanto não
caísse minada pelas avitaminoses, pela tuberculose e por tantos males habituais, fosse um bom
animal de trabalho, com um rendimento compensador destes gastos feitos com feijão, milho e
farinha de mandioca” (Op.cit., p. 147). Assim, em sua prática, estava a alimentar a sua própria
lavoura de ganho, e não faltaria dinheiro para se comprar outras máquinas.
3.Negros e Indígenas e a Mobilização dos Saberes de Cura
Apesar das instalações tardias das escolas de saúde no Brasil, a preocupação com a
saúde dos escravos nunca esteve em pauta dos poderes da Colônia, tampouco dos médicos
diplomados. Porém, para esta situação, certamente vale a máxima de Plínio, dirigida aos
romanos: “Houve povos sem médicos, mas, não houve povos sem medicina”.
Diante dessa condição de abandono pelos poderes instituídos, assim como dos
acadêmicos, tanto negros quanto indígenas criaram suas frentes de cura, de sobrevivência.
Sobre a penetração dos saberes de curas populares, Ribeiro (1997) discute que, mesmo
as pessoas com posses financeiras que eram assistidas pelos médicos, faziam uso das
benzedeiras, curandeiras e similares, visando tratar dos males do corpo. Para isso, usavam ervas,
raízes e outros artifícios que lhes proporcionassem uma possível cura. Isso evidencia a eficácia
dos métodos de cura populares.
Com a fundação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Salvador, os médicos
começaram a combater as práticas de cura não oficiais com mais vigor. Diante do eminente surto
de epidemias, os médicos prescreveram reformas urbanas e comportamentais. Durante o surto de
cólera no Rio de Janeiro em 1885, por exemplo, os médicos tiveram um embate com as
autoridades, além de terem tido uma divisão interna quanto ao tratamento, a partir da adoção de
duas perspectivas – homeopatia ou alopatia. Além de prescreverem reformas urbanas, sugeriam
hábitos mais saudáveis a população (PIMENTA, 2004).
Uma das reações emblemáticas se deu entre Membros da Academia Imperial de Medicina
com a autorização do presidente da Província ao curandeiro africano Manuel, para atuar junto
aos pacientes com cólera, no Hospital da Marinha do Recife (PIMENTA, 2004). Notemos a
confiabilidade depositada nos conhecimentos de Manuel em relação as plantas medicinais. Sem
formação acadêmica, pertencente a classe subalterna, porém, autorizado a atuar em um hospital
da classe dominante.
O médico Joaquim d’Aquino Fonseca, presidente da Comissão de Hygiene Pública relata
acusações ao curandeiro Manuel, bem como aqueles que o procuravam. Em relação a esses,
assinala:
/.../pessoas incompetentes em medicina nem mesmo refletindo que se
essa afecção fosse conhecida na costa da Guiné e aqi houvesse um preto
que a curasse, na Bahia, foco dos pretos da costa d’África, não teria
deixado de aparecer algum que a conhecesse e soubesse curá-la,
/.../apregoam as virtudes rerapêuticas das ervas empregadas por esse
preto em fricções e bebidas” (apud, FREIRE, 1981, p. 506).
Várias foram às tentativas de suplantar o trabalho de Manuel. Porém, a aceitação dos
trabalhos do preto era crescente não apenas entre os desfavorecidos, mas, também entre pessoas
da classe abastarda. Assim, aumentava a resistência a ordem estabelecida. Sobre está resistência,
destaca-se o manifesto do Dr D’Aquino, no Diário de Pernambuco, 29/02/1956, assinala:
“/.../pessoas que ocupam posição elevada na sociedade tomaram esse
preto sob sua proteção; um até desejava que houvesse uma sublevação
popular a fim de de por-se a sua frente ametralhar médicas /.../ e por fim
esse preto não só poz-se a vender publicamente e por alto preço o seu
remédio, senão a ser levado de casa em casa” (Op.Cit, p. 506).
Por fim, Manuel foi recolhido a Casa de Detenção do Recife. No entanto, a capital da
província foi tomada por insurgentes pedindo a liberdade do curandeiro e ameaçavam um
quebra-quebra nas boticas da cidade. Reclamavam que as autoridades queriam a morte das
pessoas de cor.
O desentendimento entre as ordens Jesuítas e Dominicanas no sentido de obter a
supremacia do ensino em Portugal, provocou o sumiço de extravio de vários documentos que
poderiam ter sido de grande ajuda para a história da medicina, e conhecimentos em relação às
doenças que acometiam os povos indígenas nos primeiros períodos coloniais. A luta pelo poder
entre essas ordens religiosas causou grandes dificuldades ao estudo dos processos terapêuticos
usados pelos índios e seus conhecimentos medicinais, através de documentos portugueses,
principalmente nos primeiros tempos da colônia. Entretanto as narrativas de viagem do alemão
Hans Staden, que capturado pelos índios tupinambás em 1549, e vivendo “entre eles por quase
onze meses, sendo finalmente resgatado por um navio francês, em 1554” (MIRANDA, 2003, p.
194). Esses foram de grande importância para nossos conhecimentos atuais.
Em 1557, Staden publicou suas narrativas aventureiras junto aos índios brasileiros, e até
ilustrou, usando a xilogravura, as representações mágicas que carregavam à terapêutica desses
povos, bem como suas maneiras de diagnosticarem. “A sucção e o sopro eram processos
curativos largamente empregados na terapêutica dos povos da floresta. Através da sucção,
imaginavam retirar do doente os corpos estranhos causadores do mal” (Op.Cit, p. 199).
Ainda segundo Miranda (2003), havia uma grande probabilidade de que a prática
utilizada pelos pajés, no que diz respeito à sucção, fosse originária da “observação do
comportamento dos animais que lambem suas feridas e lesões provocadas por causas diversas”
(p. 200).
Entre os procedimentos terapêuticos dos índios brasileiros, estavam também a
fumigação, que consistia em deitar os que fossem acometidos de flechadas profundas e outros
tipos de ferimentos, de bruços, acima do fogo, numa cama de varas, visto que “com a quentura
se lhe saem todo o sangue que tem dentro e a umidade, e ficam as feridas sem nenhuma
umidade; as quais depois curam com óleo e o bálsamo e ervas” (SOUSA, apud, MIRANDA,
2003, p.201).
Em conversa com os mais velhos em Belém do Pará, sobre tais técnicas, fomos
informados que o óleo mais utilizado era o de copaíba, pelo menos naquela região, por seu efeito
cicatrizante; ainda muito utilizado na atualidade.
Segundo o cacique Jecupé “Não existe um levantamento exato das espécies vegetais
conhecidas e utilizadas pelos indígenas, mesmo porque os índios “batizaram” as plantas em sua
língua nativa” (1998, p. 89). Isto, por outro lado denuncia o pouco interesse pelo estudo das
línguas indígenas ainda existentes, na pesquisa farmacopéica.
Poderíamos ter mais ganhos, caso a ganância de profissionais, o monopólio dos
laboratórios – fazendo até ameaça de morte a pesquisadores – não prevalecesse. Nossas avós
tiveram o privilégio, por exemplo, de utilizarem a erva-cidreira, em alguns lugares conhecidos
como melissa, ou vice-versa, para o tratamento da neurastenia, dores de cabeça e,
principalmente, em casos de ausência das regras em mulheres, buscando nos quintais e terrenos
baldios. Hoje encontra-se escassa e vendidas em farmácias e casas do ramo, muitas vezes por
preços fora do alcance do povo, desde que se descobriu nos anos 1980, o ácidoacetilsalicilico,
como princípio ativo na planta.
Seguindo o preceito popular do “quem não tem cão, caça como gato”, foram
desenvolvidas pelos negros, também várias espécies de técnicas curativas para suas
enfermidades. Para curar a sarna, ou coceira, por exemplo, as escravas usavam “folhas amornada
de mamona branca” (carrapateira), nas regiões afetadas pela doença” (Mendes, apud Miranda,
2003, p. 369), fato que recebeu crítica por parte do autor citado, pelo fato de não levarem o
paciente ao médico.
Como o negro não tinha a saúde cuidada pelo senhor nem pelas instâncias públicas e
faltava-lhe tanto a farmácia como o médico, tinha que se voltar para os remédios, apontados
pelas suas próprias experiências. Principalmente pelas lições ancestrais. Sabe-se de antemão que,
inconscientemente, os mais velhos projetam suas praticas visando em suas “imortalidades”,
perpetuá-las.
“Assim é que os doentes de olhos quando não se serviam do cuspo se
utilizavam da própria urina para lava-los de manhãzinha. As inchações
eram curadas com emplastros de fezes de vaca, enquanto a sezão (febre
intermitente – malária) desaparecia com purgante de “batata cabeça de
negro e urina de menino macho”. Se eram as dores de estômago e fígado
tinham lá a sua receita: urina de dois dias, fermentada, além de um
pouco de água morna para temperar” (VIDAL, 1940, p.33).
Vê-se, por aqui, um verdadeiro tratado de uninoterapia, coisa do tempo da senzala, que
tem seu auge entre os praticantes da naturopatia desde os finais do século passado. Assim, “o
negro que sofresse de erisipela ficaria bom na certa se usasse banhos locais de urina de mulher
grávida. Esses remédios escatophilos não eram discutidos porque os efeitos de sua aplicação
autorizavam a fé dominante” (Op.Cit. p. 34). Como a penicilina ou a benzetacil não tinham sido
descobertas e mesmo que tivessem sido, o acesso não era assegurado a todos, a solução era
encontrada na senzala ou há três casas depois.
Ainda em relação às práticas da medicina popular, temos:
“Para as dores nas pernas e no baixo ventre nada como esterco de vaca
ainda húmido (os doentes de apendicite fariam melhor negocio não se
arriscar a operações melindrosas). Aplicavam-no envolvido em folha de
bananeira. Também servia, em forma de cataplasma, nos tumores
testiculares, depois de passar pelo fogo, cozinhado com farinha de
mandioca” (Op. Cit, p. 34).
Notemos que a medicina acadêmica e a popular se distinguiam não apenas pelas
condições dos praticantes, mas também por quem as procurava. Enquanto os praticantes da
medicina acadêmica eram pessoas de posição financeira e social privilegiadas, os praticantes da
medicina popular encontravam-se na base social. Condição semelhante também incidia sobre os
pacientes. Somente os membros da classe privilegiada economicamente que recorriam a aos
membros da medicina acadêmica. Isso não impedia que muitas vezes esses pacientes
recorressem aos praticantes da medicina popular, caracterizando um reconhecimento na
competência dos saberes desses praticantes (PIMENTA, 1998).
Considerações Finais
Pode-se ir muito mais além e encontrar várias outras técnicas de tratamento de saúde e
cura, oriundas das práticas negro-indígenas, no período do império colonial, ou muito mais
anterior.
Talvez precisemos retomar esta parceria com a natureza externa, tentar ver se buscamos
formas mais saudáveis de viver e criar práticas educativas com esta finalidade. Quem sabe assim
consigamos preservar muito mais a natureza em geral.
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