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Revista Ofaié - Edição 2 - Vol. 1

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Editorial

A revista Ofaié apresenta ao público sua segunda edição, correspondente

ao primeiro semestre de 2014. Na publicação que segue os leitores encontrarão

uma seção especial, dedicada a tradução e divulgação de artigos inéditos em

língua portuguesa. Nesta edição temos a honra de apresentar o artigo Universais

da Natureza Humana, de Noam Chomsky, um dos mais importantes e

representativos intelectuais do século XX. A arrojada e elegante tradução foi

elaborada pelo professor Ronaldo Maciel Pavão. Na seção de artigos contamos

com uma variada gama de temas e áreas das ciências humanas. O jornalista e

pesquisador Cleyton Pereira Lutz, por exemplo, nos presenteia com uma

interessante análise da política e da imprensa paranaense no artigo Política e

imprensa no Paraná: as eleições estaduais de 1955 e 1960. No campo da

historiografia, o professor Igor Vitorino da Silva propõe uma rica leitura do

fenômeno urbano através do artigo Estigma territorial e seus efeitos: Nova Rosa

da Penha II – Cariacica – ES. Também no campo da história nossos leitores terão

a satisfação de contar com a leitura do artigo Considerações sobre a crítica

presente na historiografia Mato-Grossense, de autoria da historiadora Ana Paula

Hilgert de Souza, pesquisadora vinculada à UFGD. Trata-se de um excelente guia

para a compreensão do fazer historiográfico regional. Na área de filosofia temos

a alegria de publicar dois belos textos, o primeiro, de André Campos de Camargo,

Pierre-Félix Guattari: uma vida em várias direções, apresenta ao leitor o percurso

intelectual e humano do filósofo francês Guatarri. Para aqueles interessados em

iniciar um estudo sobre a vida e obra deste autor o texto de Camargo constitui

um excelente “caminho das pedras”. O segundo texto sobre filosofia, de autoria

de Raphael Guazzelli Valério – colaborador e importante entusiasta do projeto da

Revista Ofaié desde seu início – nos aproxima do clássico texto de Aristóteles, a

saber, Ética a Nicômaco. A abordagem de Valério em A boa vida ou o bem viver

na Ética a Nicômaco de Aristóteles, dará ao leitor que desconhece tal obra a

imensa vontade de partilhar de tal leitura clássica, e aos que já leram Aristóteles,

certamente criará o forte desejo de revisitar as páginas do velho estagirita.

Desejamos a todos uma proveitosa leitura.

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Universais da Natureza Humana1

Noam Chomsky

Tradução: Ronaldo Maciel Pavão2

Receber um diploma honorário de uma das mais antigas e mais

prestigiadas universidades da Europa é o tipo de ocasião que, naturalmente, leva

a pensar novamente sobre questões fundamentais e preocupações de anos

anteriores - no meu caso, 50 anos de ensino universitário e de investigação, ao

lado de outros compromissos intensos, em ambos os casos remontando a anos

anteriores. Têm sido dois caminhos quase paralelos: quase paralelos, porque eles

fazem um curto encontro no infinito, embora exatamente como eles convergem

esteja longe de ser claro. Um caminho procura entender mais sobre a linguagem

e a mente. O outro é guiado por preocupações com a liberdade e a justiça - e,

lamentavelmente, a sobrevivência humana não é uma preocupação sem

propósito em nossa era. Deveria haver alguns elementos comuns: em particular,

que o co-fundador da teoria evolucionista moderna, Alfred Russel Wallace, esta

chamada de ‘natureza moral e intelectual do homem’: as capacidades humanas

para a imaginação criativa, linguagem e simbolismo em geral, interpretação e

registro de fenômenos naturais, práticas sociais intrincadas e afins. Em suma, um

conjunto de capacidades que parece ter cristalizado muito recentemente entre

um pequeno grupo no Leste da África, da qual somos todos descendentes. O

registro arqueológico sugere que o cristalização foi tão repentina no tempo

evolutivo que alguns eminentes cientistas chamam os eventos de ‘o grande salto

1 O presente artigo é uma tradução de Universals of Human Nature. Noam Chomsky é professor

emérito do Massachusetts Institute of Technology, Boston, Mass. , USA.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.

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à frente’, este o qual distinguiu acentuadamente os humanos contemporâneos de

outros animais, incluindo outros hominídeos.

Os princípios de nossa natureza intelectual e moral continuam a ser uma

mistério considerável, mas dificilmente podemos duvidar de sua existência ou de

seu papel central nas nossas vidas moral e intelectual. Estou ciente de que isto é

convencionalmente negado, mas sem crédito, na minha opinião. Os temas

também são muito amplos para tratar ao longo dos limites deste trabalho e, por

isso, eu gostaria de tomar dois aspectos principais: a linguagem humana, a qual

é considerada por muitos paleoantropólogos como o fator que estimulou ‘o

grande salto à frente’; e a nossa concepção dos direitos humanos fundamentais.

Em ambos os domínios devemos, penso eu, buscar universais, isto é, os

elementos da nossa dotação humana comum que provém os humanos com

capacidades cognitivas específicas e com os fundamentos para um juízo moral.

Há uma longa e interessante história do pensamento sobre eventuais

relações entre estes domínios, mas estes permanecem especulativo e

pobremente compreendidos. A única maneira de proceder é, tanto quanto posso

ver, dizer algumas palavras sobre a universalidade na linguagem e nos direitos

humanos, com apenas um dica sobre as possíveis conexões, um problema ainda

muito grande no horizonte de investigação.

1. Universalidade na linguagem

Para começar, que tal universalidade na linguagem? A forma mais

produtiva de abordar o problema, penso eu, está dentro do âmbito do que têm

sido chamado "a perspectiva biolinguística", uma abordagem da linguagem que

começou a tomar forma no início dos anos de 1950, muito influenciada pelos

desenvolvimentos recentes em matemática e biologia. A abordagem interagiu

produtivamente com uma mudança mais geral de perspectiva no estudo das

faculdades mentais, comumente chamada de ‘a revolução cognitiva’. Seria mais

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preciso, penso eu, descrevê-la como uma segunda revolução cognitiva, revivendo

e ampliando conhecimentos importantes e contribuições da revolução cognitiva

dos séculos XVII e XVIII, a qual, lamentavelmente, havia sido esquecida e são,

ainda, pouco conhecidas.

Na década de 1950, o estudo da linguagem e da mente era comumente

considerado como parte das ciências comportamentais. Como o termo indica, o

objeto da investigação foi o comportamento e, para a linguística, também os seus

produtos: textos, talvez um corpus extraído de informantes nativos. A teoria

linguística consistiu de procedimentos de análise, principalmente de

segmentação e classificação. Alguns dos mais influentes foram aqueles de Nicolai

Troubetzkoy e Zellig Harris. Os procedimentos desenvolvidos foram guiados por

suposições limitadas sobre as propriedades estruturais e sua disposição. O

proeminente teórico americano Martin Joos exagerou fortemente, em uma

exposição de 1955, quando ele identificou a ‘direção decisiva’ como a decisão de

que a linguagem pode ser ‘descrita sem qualquer esquema pré-existente do que

uma língua deve ser’. Abordagens predominantes no comportamento científico

em geral, foram semelhantes. Ninguém, é claro, literalmente acreditou na noção

incoerente de uma ‘lousa em branco’. Mas era comum supor que, além de alguma

delimitação inicial das propriedades detectadas no ambiente (um ‘espaço de

qualidade’, no quadro altamente influencial de W. V. Quine), os mecanismos de

aprendizagem indiferenciados de algum tipo contaram para o que os organismos

sabem e fazem, incluídos os seres humanos. A abordagem biolinguística,

juntamente com as áreas afins das ciências cognitivas, adotou uma postura

diferente. Eles tomaram como objeto de investigação não o comportamento e

seus produtos, mas sim os sistemas internos que entram em ação e em

interpretação; e em um nível mais profundo, a base em nossa natureza biológica

para o crescimento e desenvolvimento desses sistemas internos. O objetivo era

descobrir o que Juan Huarte descreveu, no século XVI, como a propriedade

essencial da inteligência humana: a capacidade da mente humana para ‘gerar

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dentro de si mesma, por seu próprio poder, os princípios em que se assenta o

conhecimento’- ideias que foram desenvolvidas de formas importantes nos anos

que seguiram. Para a linguagem, ‘os princípios em que se assenta o

conhecimento’ são aqueles da língua internalizada, de um certo estado cognitivo.

O conhecimento que repousa sobre estes princípios cobre uma ampla gama,

desde o som, à estrutura e ao sentido. Mesmo nos casos mais elementares, o que

é conhecido é bastante complicado.

Para tomar uma palavra que interessava aos empiristas britânicos,

considere a noção rio, julgada como uma ‘noção comum’, parte do nosso

conhecimento inato. Thomas Hobbes sugeriu que os rios são mentalmente

individualizados por origem. Mas porquanto há alguma verdade nesta

observação, ela não é realmente precisa, e isso apenas arranha a superfície de

nossa compreensão intuitiva do conceito. Assim, o rio Po permaneceria o mesmo

rio sob extremas mudanças - entre muitos outros, invertendo seu curso,

dividindo-o em fluxos separados que convergem em algum novo lugar,

substituindo qualquer H2O que ocorre estar nele por produtos químicos de uma

fábrica rio acima. Por outro lado, sob algumas mudanças triviais não seria mais

um rio em tudo: por exemplo, direcionando-o entre fronteiras fixadas e usando-

o para carga (em cujo caso, é um canal, não um rio) ou endurecendo a superfície

ao estado vítreo por alguma mudança física quase indetectável, pintando uma

linha no meio, e usando-o para ir à Veneza (em cujo caso, é uma auto-estrada).

À medida que avançamos, nós encontramos propriedades muito mais

complexas, não importando o quão simples são as palavras que investigamos.

Tais fatos corriqueiros solapam uma abordagem à referência baseada em alguma

relação mística palavra-objeto. Esclarecimentos sobre esses assuntos foram

desenvolvidos desde Aristóteles até os séculos XVII e XVIII, mas foram

principalmente perdidos hoje. Mesmo os mais simples conceitos humanos

aparecem como sendo inteiramente diferentes de qualquer coisa encontrada no

comportamento simbólico ou comunicativo dos animais, um problema

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significativo para a teoria evolucionista, um dos muitos. E os problemas crescem

muito rapidamente quando passamos das palavras às expressões formadas a

partir delas.

Uma tarefa essencial da investigação é determinar os princípios sob os

quais tal conhecimento se baseia para uma variedade maior de possíveis

linguagens humanas. Um problema mais complexo é descobrir o que Huarte

chamou ‘o poder de engendrar’ esses princípios da linguagem interna: em termos

atuais, a quase dotação biológica uniforme que constitui faculdade da linguagem

humana. O poder de engendrar uma linguagem interna é o tema da ‘gramática

universal’, adaptando um termo tradicional para um novo contexto. As

propriedades universais da linguagem constituem, com efeito, o componente

genético da faculdade da linguagem.

Deste ponto de vista, as línguas e outros sistemas cognitivos são tomados

por ser, com efeito, órgãos do corpo, principalmente do cérebro, a ser investigado

em muito à maneira de outros subcomponentes que interagem na vida do

organismo: visão, planejamento motor, circulação do sangue, e outros.

Juntamente com o seu papel no comportamento, os ‘órgãos cognitivos’ entram

em atividades tradicionalmente consideradas como mentais: pensamento,

planejamento, interpretação, avaliação, julgamento moral, e assim por diante. O

comportamento e os seus produtos – tais como os textos – fornecem dados que

podem ser úteis como provas para determinar a natureza e as origens dos

sistemas cognitivos, mas não têm status privilegiado para tais investigações.

Uma significativa visão da primeira revolução cognitiva é que não há

nenhum problema mente-corpo coerente. Isso é consequência imediata da

demolição da ‘filosofia mecânica’ de Newton, baseado no conceito intuitivo de

um mundo material. O próprio Newton considerava suas conclusões como um

‘absurdo’ e procurou para o resto de sua vida fugir delas, como fizeram muitos

cientistas eminentes em anos posteriores. Mas foi finalmente reconhecido que

elas devem ser aceitas, não importando quão absurdas elas são do ponto de vista

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do senso comum. O problema mente-corpo é, portanto, informulável . Nós só

podemos considerar aspectos do mundo ‘chamado mental’ como o resultado de

‘uma estrutura orgânica tal como a do cérebro’, como o químico-filósofo Joseph

Priestley observou no final do século XVIII. O pensamento é uma ‘pequena

agitação do cérebro’, observou David Hume. E como Darwin mais tarde

acrescentou, não há nenhuma razão para que ‘o pensamento, sendo uma

secreção do cérebro’, deveria ser considerado ‘mais maravilhoso que a gravidade,

uma propriedade da matéria’.

Em sua clássica história do materialismo no século XIX, Friedrich Lange

destacou que Newton efetivamente destruiu as doutrinas materialistas, bem

como os padrões de inteligibilidade que lhes estão associados, um ‘ponto de

virada’ na história do materialismo que remove resquícios remanescentes da

doutrina longe daquelas dos 'Materialistas genuínos’ do século XVII, e priva-os

muito de significado. Até então, uma concepção mais modesta dos objetivos da

ciência tornou-se senso comum científico: a conclusão relutante de Newton de

que nós devemos nos satisfazer com o fato de que a gravidade universal existe,

mesmo se não pudermos explicá-la em termos da auto-evidente ‘filosofia

mecânica’. Como os historiadores da ciência têm observado, este movimento

intelectual ‘estabeleceu uma nova visão da ciência’ em que o objetivo é ‘não

buscar as explicações finais’, mas encontrar o melhor cálculo teórico que

pudermos dos fenômenos de experiência e da experimentação (I. Bernard

Cohen). É uma curiosidade da história intelectual que o truísmo do século XVIII

seja agora comumente apresentado como um ‘hipótese surpreendente’, ‘a

afirmação corajosa de que os fenômenos mentais são totalmente naturais e

causados pelas atividades neurofisiológicas do cérebro’, a tese de que ‘as coisas

mentais, de fato as mentes, são propriedades emergentes dos cérebros’ – apenas

para citar alguns exemplos recentes de cientistas conceituados e filósofos. O

fraseado é quase idêntico ao do reconhecimento, dois séculos atrás, de que não

há alternativa, uma vez que Newton tinha mostrado que nada é uma máquina –

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ou físico, ou material, no único sentido coerente desses termos, em seguida, ou

depois.

Outra significativa visão da primeira revolução cognitiva foi que as

propriedades do mundo denominado mental podem envolver capacidades

ilimitadas de um órgão finito, o ‘uso infinito de recursos finitos’, na frase de

Wilhelm von Humboldt. Em uma tendência bastante semelhante, Hume tinha

reconhecido que nossos julgamentos morais são ilimitados em seu escopo, e

devem ser fundados sobre princípios gerais que fazem parte de nossa natureza,

embora eles estejam além de nossos ‘instintos originais’. Essa observação coloca

o problema de Huarte em um domínio diferente, onde podemos encontrar parte

da fina linha que liga a busca por universais cognitivos e morais.

Em meados do século XX, tornou-se possível enfrentar tais problemas de

forma mais substantiva do que antes. Até então, havia uma clara compreensão

dos sistemas gerativos finitos com um alcance ilimitado, os quais podem ser

prontamente adaptados à remodelagem e investigação de algumas das questões

tradicionais que necessariamente têm sido deixadas obscuras – embora apenas

algumas, é importante destacar. Humboldt referiu-se ao uso infinito da

linguagem, uma questão completamente diferente do âmbito ilimitado dos

recursos finitos. Outro fator de influência na renovação da revolução cognitiva foi

o trabalho dos etólogos, agora vindo a ser mais amplamente conhecido, com sua

preocupação pela ‘hipótese de trabalho inato presente em organismos

subumanos’ e o ‘humano a priori’, os quais teriam em muito a mesma

característica. Esse quadro também poderia ser adaptado ao estudo dos órgãos

cognitivos humanos e sua natureza geneticamente determinada, os quais

constroem a experiência e orientam o caminho geral de desenvolvimento, como

em outros aspectos do crescimento dos organismos.

Enquanto isso, os esforços para aguçar e aperfeiçoar as abordagens

processuais das linguísticas estruturais entrou em sérias dificuldades, revelando

o que parece ser insuficiências intrínsecas. Tornou-se cada vez mais claro que,

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mesmo os mais simples elementos não têm a propriedade ‘contas-de-um-rosário’

necessária para abordagens processuais. Em vez disso, eles se relacionam muito

mais indiretamente a forma fonética. Sua natureza e propriedades são fixadas no

sistema computacional interno que determina a gama ilimitada de expressões.

Estas expressões, por sua vez, podem ser consideradas como ‘instruções’ para

outros sistemas que são utilizados para operações mentais, bem como para a

produção e interpretação de sinais externos. Nas ciências do comportamento,

mais geralmente, um estudo mais aproximado dos mecanismos postulados da

aprendizagem também revelou insuficiências fundamentais, e logo perguntas

foram surgindo dentro das disciplinas como se até mesmo seus conceitos

fundamentais não pudessem ser sustentados.

Para a linguagem, a conclusão natural dava a impressão de que a

linguagem interna atingida tinha mais ou menos o caráter de uma teoria

científica: um sistema integrado de regras e princípios a partir do qual as

expressões da linguagem poderiam ser derivadas. A criança deve de alguma

forma selecionar o idioma interno a partir do fluxo de experiência. O problema é

semelhante ao que o filósofo Charles Sanders Peirce, um dos fundadores do

pragmatismo moderno, tinha chamado rapto em suas investigações dentro da

natureza da descoberta científica. E, como no caso das ciências, a tarefa é

impossível sem o que Peirce chamou um ‘limite sobre hipóteses admissíveis’ que

permite apenas algumas teorias para se divertir, mas não infinitamente muitas

outras compatíveis com dados relevantes. No caso da linguagem, verificou-se que

a gramática universal deve impor um formato para sistemas de regras que é

suficientemente restritivo para que as línguas candidatas sejam ‘espalhadas’, e

apenas um pequeno número pode até mesmo ser considerado no decurso de

aquisição de linguagem. Daqui resulta que o formato deve ser altamente

articulado, e específico para a linguagem. ‘O problema teórico mais desafiador

em linguística’ foi tomado por ser ‘aquele da descoberta dos princípios da

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gramática universal’, os quais ‘determinam a escolha de hipóteses’, as linguagens

internas acessíveis.

Também foi reconhecido que para a linguagem, como para outros

organismos biológicos, um problema ainda mais desafiador permanece no

horizonte: descobrir ‘as leis que determinam uma possível mutação bem sucedida

e a natureza dos organismos complexos’. Uma investigação de tais fatores parecia

muito remota para merecer muita atenção, apesar de que até mesmo alguns dos

primeiros trabalhos – por exemplo, sobre a eliminação da redundância nos

sistemas de regras – foram orientados implicitamente por tais preocupações, as

quais se sustentam muito diretamente sobre a universalidade na linguagem: na

medida em que esses fatores entram em crescimento e desenvolvimento, menos

precisam ser atribuídos à gramática universal como uma propriedade específica

da linguagem.

Nos anos que se seguiram, muito mais foi aprendido sobre os princípios

das línguas particulares e princípios gerais que as engendraram. No início da

década de 1980, uma mudança substancial de perspectiva dentro da linguística

reformulou as questões básicas consideravelmente, abandonando totalmente a

concepção da teoria linguística em favor de uma abordagem que procurou limitar

as línguas internas atingíveis a um conjunto finito, à parte das escolhas lexicais.

Como um programa de pesquisa, essa mudança tem sido muito bem sucedida,

produzindo uma explosão de pesquisa empírica em uma ampla variedade de

línguas tipologicamente variadas, colocando novas questões teóricas que

dificilmente teriam sido formuladas antes, frequentemente fornecendo respostas

pelo menos parciais, bem como ao mesmo tempo, também revitalizando áreas

afins de aquisição da linguagem e processamento. Outra consequência foi que a

mudança de perspectiva removeu algumas barreiras conceituais básicas à

investigação séria sobre os princípios mais profundos em crescimento e

desenvolvimento da linguagem. Nesta concepção, a aquisição é dissociada dos

princípios fixados da gramática universal, e não obriga à conclusão de que o

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formato fornecido pela faculdade de linguagem inata deva ser altamente

articulada e específica a ela, de modo a restringir o espaço das hipóteses

admissíveis. Isto abre novos caminhos para estudar a universalidade na

linguagem.

Tem sido reconhecido desde as origens da biologia moderna que as

restrições estruturais e de desenvolvimento geral entram no crescimento de

organismos e em sua evolução. Até agora essas considerações foram

apresentadas para uma ampla gama de problemas de desenvolvimento e

evolução, de divisão celular para a otimização da estrutura e função das redes

corticais e, muito recentemente, a descoberta de uma espécie de ‘andaime’ que

surge espontaneamente em circuitos corticais, com o agrupamento de conexões

que podem vir a ser de alguma significância em desenvolvimento cortical.

Supondo-se que a linguagem tem propriedades gerais de outros sistemas

biológicos, devemos, portanto, buscar três fatores que entram no crescimento da

linguagem no indivíduo: (1) Os fatores genéticos, o tema da gramática universal.

Estas interpretam parte do ambiente como experiência linguística, e determinam

o curso geral de desenvolvimento das línguas atingidas. (2) A experiência, que

permite a variação dentro de uma faixa bastante estreita. (3) Os princípios não

específicos para a faculdade de linguagem.

O terceiro fator inclui princípios de computação eficiente, os quais seriam

de se esperar ser de especial significância para os sistemas tais como a linguagem,

determinando o caráter geral das línguas alcançadas.

Neste ponto, teríamos que passar para uma discussão mais técnica do que

é possível aqui, mas eu acho que é justo dizer que tem havido um progresso

considerável em direção à explicação de princípios em termos de considerações

do terceiro fator. Isto tem acentuado consideravelmente a questão das

propriedades específicas que determinam a natureza da linguagem – de uma

forma ou de outra, o problema central do estudo da linguagem, desde a sua

origem há milênios atrás, e agora tomando novas formas.

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A busca pela explicação de princípios enfrenta tarefas assustadoras.

Podemos formular os objetivos com clareza razoável. A cada passo em direção à

meta, ganhamos uma compreensão mais clara dos universais da linguagem. Deve

ser mantido em mente, no entanto, que tal progresso ainda deixa sem solução

problemas que foram levantados por centenas de anos. Entre eles estão a questão

de como as propriedades ‘denominadas mentais’ referem-se ‘à estrutura orgânica

do cérebro’, e os problemas misteriosos do uso coerente e comum da linguagem,

um problema central da ciência cartesiana.

2. Direitos humanos universais

Estamos agora nos movendo para os domínios da vontade e da escolha e

julgamento, e os fios finos que podem conectar o que se assemelha dentro da

gama de investigação científica para os problemas essenciais da vida humana, em

particular às questões polêmicas sobre os direitos humanos universais. Uma

maneira possível de desenhar conexões é procedendo ao longo das linhas de

observações de Hume, que eu mencionei anteriormente: sua observação de que

a gama ilimitada de julgamentos morais deve ser fundada sobre os princípios

gerais que fazem parte da nossa natureza, embora eles se encontrem para além

dos nossos ‘instintos originais’, que em outro lugar ele tomou para incluir os

‘instintos das espécies naturais’ no que o conhecimento e a crença são fundados.

Nos últimos anos, tem havido trabalhos intrigantes em filosofia moral e

ciência cognitiva experimental que carregam estas ideias adiante, investigando o

que parecem ser intuições morais profundas que muitas vezes têm um caráter

muito surpreendente, em casos inventados. Para ilustrar, ao invés, eu vou dar um

exemplo real que leva diretamente à questão da universalidade dos direitos

humanos.

Em 1991, o economista-chefe do Banco Mundial escreveu um memorando

interno sobre a poluição, no qual ele demonstrou que o banco deveria ser o

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encorajador da migração de poluentes industriais para os países mais pobres. A

razão é que ‘a medição dos custos do prejuízo à saúde pela poluição depende

dos lucros cessantes decorrentes de uma crescente morbidade e mortalidade’,

por isso é racional que o ‘ prejuízo à saúde pela poluição’ seja enviado para os

países mais pobres, onde a mortalidade é maior e os salários são mais baixos.

Outros fatores levam à mesma conclusão, por exemplo, o fato de que as

‘preocupações da poluição estética’ são ‘melhoradoras do bem-estar’ entre os

ricos. Ele destacou, precisamente, que a lógica de seu memorando é ‘impecável’,

e quaisquer ‘razões morais’ ou ‘preocupações sociais’ que pudessem ser aduzidas

‘poderiam ser invertidas e usadas mais ou menos eficazmente contra cada

proposta do Banco para a liberalização’, de tal modo que elas não podem ser

relevantes.

O memorando vazou, e levou a uma reação furiosa, dirigida pelo Secretário

de Meio Ambiente do Brasil, o qual lhe escreveu uma carta dizendo que seu

‘raciocínio é perfeitamente lógico, mas totalmente insano’. Ele foi demitido,

enquanto que o autor do memorando tornou-se Secretário do Tesouro no

governo Clinton e agora é o reitor da Universidade de Harvard. A reação foi

realmente furiosa, levando a evasões e negativas que podem ser ignoradas aqui.

O que é relevante é a virtual unanimidade do julgamento moral de que o

raciocínio é lógico, mas insano. Isto merece um olhar mais atento, agora se

voltando para a história moderna das doutrinas dos direitos humanos.

A codificação padrão dos direitos humanos no período moderno é a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DH), aprovada em dezembro de

1948 por quase todas as nações, pelo menos em princípio. Os DH refletiram um

amplo consenso transcultural. Todos os seus componentes foram levados a ter

um estatuto de igualdade, dos direitos contra a tortura até os socioeconômicos,

tais como os enumerados no artigo 25: ‘Todos tem o direito a um padrão de vida

adequado para a saúde e o bem-estar de si mesmos e de suas famílias, incluindo

alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais básicos,

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bem como o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,

viuvez, velhice ou em outros casos de perda dos meios de subsistência em

circunstâncias fora de seu controle’. Estas disposições foram reafirmadas nas

convenções capacitadas da Assembleia Geral e em acordos internacionais sobre

o direito ao desenvolvimento, quase nas mesmas palavras.

Parece razoavelmente claro que esta formulação de direitos humanos

universais rejeita a lógica impecável do economista-chefe do Banco Mundial, se

não como insana, ao menos como profundamente imoral – que foi, de fato, o

julgamento virtualmente universal, pelo menos daqueles dispostos a aparecer em

público.

É, no entanto, importante frisar a palavra ‘virtualmente’. Como é bem

sabido, a cultura Ocidental condena algumas nações como ‘relativistas’, as quais

interpretam a DH seletivamente, rejeitando os componentes desagradáveis. Tem

havido grande indignação sobre os relativistas asiáticos, ou os Comunistas

inefáveis, os quais descendem desta prática degradada. Menos notado é que o

líder do campo relativista é também o líder dos auto-designados ‘estados

iluminados’, o mais poderoso estado do mundo. Vemos exemplos quase que

diariamente, apesar de que ‘ver’ seja, talvez, a palavra errada, uma vez que os

vemos, mas não os notamos. Vou manter para os Estados Unidos, mas isso é

enganoso. Às vezes pode-se estar alguns passos à frente do mundo Ocidental

nestes aspectos, mas há de fato muito pouca diferença, além da distribuição de

força.

Em março de 2005, a imprensa apresentou histórias de capa sobre o

lançamento do relatório anual do Departamento de Estado sobre direitos

humanos ao redor do mundo. O porta-voz na coletiva de imprensa foi Paula

Dobriansky, Subsecretária de Estado para Assuntos Globais. Ela afirmou que

“promover os direitos humanos não é apenas um elemento da nossa política

externa, é a base da nossa política e nossa principal preocupação”. Existe, no

entanto, um pouco mais nesta história. Dobriansky foi Secretária Adjunta de

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Estado para os Direitos Humanos e Relações Humanas nas administrações

Reagan e Bush (pai), e nessa qualidade, ela procurou desfazer o que ela chamou

de “mitos” sobre os direitos humanos, o mais saliente sendo o mito do assim dito

“direitos econômicos e sociais”. Ela denunciou os esforços para ofuscar o discurso

dos direitos humanos pela introdução destes direitos espúrios – os quais estão

entrincheirados na DH, a qual foi formulada pela iniciativa dos EUA, mas a qual o

governo dos EUA rejeita explicitamente, e crescentemente, além do Ocidente

inteiro, dentro da fronteira das doutrinas neoliberais sobre as quais o economista-

chefe do Banco Mundial se fiava.

Gostaria de salientar que é o governo dos EUA que rejeita estas

disposições dos DH. A população discorda fortemente. Um exemplo atual é o

orçamento federal de 2005, juntamente com um estudo das reações comuns a

ele, realizado pela instituição de maior prestígio do mundo para o estudo da

opinião pública. Os apelos públicos para cortes drásticos em gastos militares

estão lado a lado com um forte apelo ao aumento do gasto social: educação,

pesquisa médica, capacitação profissional, conservação e energias renováveis,

bem como o aumento dos gastos para a ONU e a ajuda econômica e humanitária,

e reversão dos cortes de impostos de Bush para os ricos. A política do governo é

drasticamente a oposta em todos os aspectos. Estudos de opinião pública, os

quais demonstram regularmente esta acentuada divisão, são raramente

relatados, para que o público não seja apenas retirado da arena de formação

política, mas também seja mantido inconsciente da opinião geral.

Há, com razão, a preocupação internacional quanto às consequências da

rápida expansão dos déficits gêmeos nos EUA: dos déficits do comércio e

orçamento. Intimamente relacionado está um terceiro déficit: o crescente déficit

democrático, não apenas nos EUA mas geralmente no Ocidente. Isto não é

discutido porque é tolhido pela riqueza e pelo poder, que tem toda a razão para

querer que o público seja em grande parte removido das escolhas políticas e de

sua implementação, uma questão que deveria ser de considerável preocupação,

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para além da sua relação com a universalidade dos direitos humanos. É fácil

deprimir-se ao acrescentar muitos outros exemplos, alcançando o espectro total

dos direitos afirmados nos DH. Eles nos ensinam sobre dois importantes tópicos:

juízos morais universais, e a cultura moral e intelectual de elite em que vivemos,

que dramaticamente e fortemente os rejeita.

3. Conclusões

Finalmente, algumas observações sobre a cena atual. O ano de 2005 marca

o 25º aniversário do assassinato do Arcebispo Oscar Romero, de El Salvador, uma

“voz para os sem voz”, e o 15º aniversário do assassinato de seis dos principais

intelectuais latino-americanos, padres Jesuítas. Os dois eventos estão

enquadrados na terrível década de 1980, na América Central. O Arcebispo

Romero e os intelectuais Jesuítas foram assassinados pelas forças de segurança,

armadas e treinadas por Washington – na verdade, os atuais titulares ou seus

mentores imediatos. O mesmo é verdade para a maioria das centenas de milhares

de outras vítimas. O Arcebispo foi assassinado enquanto realizava uma Missa,

pouco depois de ter escrito ao presidente Carter, articulando com ele para não

enviar ajuda à junta militar brutal em El Salvador, a qual iria “aguçar a repressão

que tem sido desencadeada contra as organizações populares lutando para

defender seus direitos humanos mais fundamentais”. Foi a escalada do terror

estatal, sempre com o apoio dos EUA e o silêncio e cumplicidade Ocidentais. Se

qualquer coisa remotamente semelhante acontecesse na Europa Oriental

naqueles anos, os eventos seriam conhecidos, e os aniversários comemorados –

assumindo, isto é, que o ultraje não tenha levado tão longe quanto uma guerra

nuclear.

O princípio de diferenciação é claro, provavelmente perto de um universal

histórico. Para os poderosos, os nossos próprios crimes não existem. Não

devemos lembrar o destino sombrio daqueles que estavam “lutando para

Page 22: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

21

defender seus mais fundamentais direitos humanos”, e que têm a

responsabilidade por estas atrocidades.

Nas sociedades que valorizaram sua liberdade, seria desnecessário contar

qualquer coisa disso, porque seria ensinada nas escolas e bem conhecida por

todos. E o mesmo seria verdade para as contínuas atrocidades que tomam lugar

bem agora por forças militares armadas e treinadas por Washington, com o apoio

de seus aliados Ocidentais: para exemplo, na Colômbia, o principal violador dos

direitos humanos no hemisfério, e por muitos anos o principal destinatário da

ajuda militar e treinamento dos EUA. O Departamento de Estado relata que no

ano passado a Colômbia reteve seu recorde de matar mais ativistas sindicais do

que o resto do mundo combinados. No início de 2005, os militares invadiram a

primeira e mais importante das cidades que se declararam uma zona de paz,

assassinando um de seus fundadores e outros, incluindo crianças com idade entre

2 e 6 anos.

Pouco se sabe sobre esses assuntos, além dos círculos de pessoas que se

dedicam a defender os direitos humanos universais.

Estes poucos exemplos servem para nos lembrar que não estamos

meramente envolvidos em seminários sobre princípios abstratos, ou discutindo

culturas remotas que não compreendemos. Estamos falando de nós mesmos, e

os valores intelectuais e morais das comunidades da elite privilegiada em que

vivemos. Se não gostamos do que vemos quando olhamos para o espelho

honestamente, nós temos todas as oportunidades para fazer algo sobre isso.

Page 23: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

Política e imprensa no Paraná: as eleições estaduais de 1955 e 1960

Cleyton Pereira Lutz1

Resumo: O presente trabalho aborda as eleições de 1955 e 1960 para o governo do Estado do

Paraná, Brasil, sob o ponto de vista dos jornais curitibanos Gazeta do Povo e O Estado do Paraná,

analisando a ligação dos candidatos ao governo do Estado com cada publicação, além de verificar

qual o discurso de modernização do Paraná feito pelas publicações para seus respectivos

candidatos. Assim, é possível comparar se as propostas veiculadas pelos periódicos correspondem

às mesmas destacas pela bibliografia que trata do tema, principalmente as obras relacionadas à

história política do Estado no período estudado, analisando a similaridade dos discursos oficiais

com os produzidos por parte da imprensa estadual, sempre ressaltando seus vínculos com os

partidos políticos paranaenses.

Palavras-chave: eleições; política paranaense; imprensa paranaense; jornal Gazeta do Povo;

jornal O Estado do Paraná.

1. Redemocratização e contexto político no Paraná

Terminado o Estado Novo (1937-1945) e o período de Manoel Ribas como

interventor e governador do Paraná (1932-1945), os governadores do Estado

voltaram a ser escolhidos através de eleições diretas. No retorno do processo

democrático, tanto em âmbito nacional quanto estadual, se acirraram as disputas

eleitorais marcadas pelo confronto entre grupos políticos, mas que apesar da

oposição entre si possuíam em comum a apresentação de propostas de

“modernização” para o Paraná2.

Tais propostas passaram a ser marcadas pelo debate mediado através dos

jornais, importantes meios de comunicação no período, que se vinculavam a

grupos políticos específicos, escolhendo determinados candidatos para apoiarem

em cada eleição. As publicações serviam para propagar os ideais de

1 Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS). Email: [email protected] 2 O discurso de “modernização” do Paraná não é uma novidade do período e já havia sido feito

anteriormente, durante o governo de Ribas no Estado. A proposta colocada por ele em prática se

caracterizou por iniciativas vinculadas à modernização burocrática do Paraná, no incentivo à

industrialização e na criação de uma infraestrutura, principalmente na área de transportes (Oliveira,

2004, p. 26-7).

Page 24: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

23

modernização e propostas dos candidatos através de entrevistas, reportagens e

colunas, articulando o discurso de maneira consonante com o dos editoriais, nos

quais cada jornal defende abertamente seu candidato escolhido.

O embate entre os veículos de comunicação impressos durante a década

de 1950 teve como principais rivais os jornais Gazeta do Povo, criado em 1919, e

O Estado do Paraná, surgido em 1951, ambos de Curitiba – o último foi criado

justamente para fazer oposição a influência da Gazeta, publicação de maior

circulação na capital do Paraná até então.

Apesar de definir-se como um jornal “apolítico e independente”, desde sua

fundação (OLIVEIRA FILHA, 2000, p.86), a Gazeta contava entre seus acionistas

com o empresário e governador do estado Moysés Lupion, que adquiriu parte da

propriedade do jornal durante a expansão dos negócios de suas empresas, entre

1949-1951, ligadas inicialmente a indústria madeireira (KUNHAVALIK, 2004, p. 88-

9). Sucessor de Ribas no governo do Estado, Lupion venceu as eleições de 1947

(IPARDES, 1989, p. 210) e se tornou figura presente na política paranaense a partir

do período.

Como resposta ao espaço conseguido pelo seu rival político, Bento

Munhoz da Rocha Neto, derrotado por Lupion em 1947, ao vencer as eleições

para o governo do estado em 1950, articulou a criação de O Estado do Paraná no

ano seguinte (OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 91), criando um espaço para responder à

Gazeta. A partir do período, além da disputa por leitores e anunciantes, as

publicações se caracterizam pelo embate discursivo no campo político, se

vinculando a grupos distintos.

Com base nessas considerações, convém analisar as duas primeiras

eleições para o governo do Estado após ser estabelecida a concorrência entre

Gazeta e O Estado, ocorridas em 1955 e 1960, enfatizando as ligações entre os

jornais e os candidatos. Além disso, também há a preocupação com os aspectos

discursivos utilizados pelos jornais para propagar o discurso de modernização de

Page 25: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

24

seus respectivos candidatos, uma vez que no período pode ser notada uma

mudança no ideal de modernização do Paraná.

Enquanto nas décadas de 1940 e 1950 o desenvolvimento do Paraná

estava ligado à ocupação territorial do Estado, na década de 1960, o objetivo

passou a ser a industrialização (IPARDES, 1989, p. 86-7). Assim, torna-se

importante verificar se os jornais acompanham esses discursos através das

mensagens dos governadores ao poder legislativo3.

2. Escolha e uso dos jornais

Em uma sociedade que sofre forte influência midiática, os jornais são uma

importante fonte de análise das características políticas de determinado período,

uma vez que a mídia fornece a representação que uma sociedade política faz de

si mesma (JEANNENEY, 2003, p. 213).

Devido à relação bastante próxima entre imprensa e opinião pública4 –

sendo que vários aspectos da última podem ser revelados através da primeira

(BECKER, 2003, p. 195) – a presente pesquisa se concentra sobre os grupos

políticos que se utilizam da imprensa, característica de diversos outros trabalhos

do gênero, voltando seu olhar exclusivamente para o Paraná, sempre levando em

consideração elementos relacionados à publicação como o formato, o tipo de

papel, o uso de publicidades, o padrão da capa, o uso de fotos, a estrutura interna

das publicações, os principais colaboradores/responsáveis pelos jornais e suas

respectivas biografias, sem esquecer ainda preocupações com o público-alvo e a

relação do jornal com o mercado (LUCA, 2008, p. 118-9). Trata-se de considerar

3 O trabalho do Ipardes (1989) se baseia nas mensagens oficiais enviadas pelos governadores ao

poder legislativo paranaense. 4 Segundo Morel (2008), a “opinião pública” possuía dois sentidos básicos e contrários, quando

do surgimento da expressão no Brasil nas duas primeiras décadas do século XIX, ligados aos

impressos: um de guiar a opinião das pessoas através da ação de letrados/intelectuais e outro de

resumir a opinião da maioria.

Page 26: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

25

o jornal como fonte, e ao mesmo tempo, objeto de pesquisa devido à relação das

publicações com os grupos políticos no período.

Para a análise política do período escolhido, os jornais são de extrema

importância, uma vez que permitem historicizar a política, fornecendo diferentes

concepções e múltiplas práticas em tempos históricos distintos (D’ALESSIO, 2008,

p. 138). Cabe também destacar a importância da imprensa para o

desenvolvimento da “história política revisada”, caracterizada pelo retorno das

preocupações históricas com aspectos políticos, baseado em uma série de

acontecimentos do século XX tal como guerras, a importância das políticas

externas, as crises econômicas, a ênfase em políticas públicas, nas relações entre

política e economia, etc. (RÉMOND, 2003, p. 32). Assim, os meios de comunicação,

apesar de não apresentarem realidades políticas por natureza, podem apresentá-

las em virtude do destino que recebem (Ibid., 441).

3. Os jornais Gazeta do Povo e O Estado do Paraná

Fundado em 1919, sendo o jornal paranaense mais antigo em circulação,

a Gazeta do Povo foi criada graças do empenho de uma dezena de ricas famílias

curitibanas, que participaram da montagem do parque gráfico da publicação

(OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 87). Apesar de se declarar desde o início “independente”

e “apolítico”, a Gazeta logo na sua primeira edição defendeu a candidatura de Rui

Barbosa a presidência da república.

Na verdade, o caráter político presente na imprensa brasileira se verifica

desde o início do jornalismo no Brasil (COHEN, 2008, p. 104). Inclusive, o ideal de

modernização técnica dos jornais brasileiros a partir do começo do século XX e o

discurso de privilegiar os fatos em detrimento da opinião pode ser considerado

um gesto retórico, uma vez que a imprensa continuava a ter uma estreita ligação

com a política (LUCA, 2008, p. 153).

Page 27: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

26

No auge da expansão dos negócios da família Lupion, ligada

principalmente a indústria madeireira, no final da década de 1940 e início da de

1950, o então governador adquiriu 50% das ações da Gazeta, a incluindo em seus

negócios relativos à fabricação de papel (OLIVEIRA FILHA, 2004, p.91).

Nos embates políticos travados após o fim do período de Manoel Ribas no

governo do Estado, Bento Munhoz, que venceu as eleições de 1950 depois de

perder as de 1947 para o próprio Lupion, fez parte da criação de uma nova

publicação, O Estado do Paraná, logo em seu primeiro ano de governo, com o

objetivo de ter um veículo capaz de expressar opiniões favoráveis ao seu mandato

(KUNHAVALIK, 2004, p.190), já que sofria oposição de dois dos jornais curitibanos

do período, a Gazeta e O Dia, ambos ligados a Lupion – Munhoz, curiosamente,

chegou inclusive a escrever para ambas as publicações na década de 1940

(KUNHAVALIK, 2004, p.153).

Com o apoio de Aristides Merhy, José Luiz Guerra Rego e Fernando

Camargo, este empresário da Caixa Econômica Federal, o jornal foi fundado em

1951 e logo se tornou porta-voz do então governo, recebendo, além de verba

publicitária estatal, os editais e decretos oficiais (OLIVEIRA FILHA, 2004, p. 91).

4. As eleições de 1955

Na eleição de 1955 para o executivo estadual, a Gazeta apoiou

abertamente o acionista do jornal, Lupion, candidato que concorria pela segunda

vez ao governo do Estado. O apoio se deu através de editoriais, reportagens

assinadas e artigos de opinião.

Com relação às propostas apresentadas por Lupion no período analisado,

entre os dias 27 de setembro e 3 de outubro, algumas se destacam como

prioridades no discurso “lupionista”. Entre elas está a construção de mais estradas,

em especial a que ligaria Curitiba a Guaratuba: “Cabe, portanto aqui, uma

Page 28: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

27

sugestão no sentido de que as autoridades estudem um traçado tal que demanda

de Curitiba e a ligue ao município de Guaratuba”5.

As principais propostas de Lupion, candidato pela coligação PDC-PSD-PTN,

se encontram publicadas no plano de governo do candidato, veiculado pela

Gazeta em 1º de outubro de 1955. O documento está dividido em áreas como

barateamento do custo de vida, energia elétrica/industrialização, habitação,

transporte/exportação (que surge novamente como uma das prioridades

discursivas de Lupion), saúde, entre outras.

O tema transporte/estradas é abordado também no item “barateamento

do custo de vida”, além de receber um subtítulo destinado a tratar unicamente

do tema:

Ao nosso ver duas questões se ligam diretamente ao assunto: o

de transporte e o de crédito. É preciso assegurar escoamento

oportuno e eficiente da produção rural para que os alimentos

chegue aos consumidores6.

O suporte financeiro a ser oferecido aos agricultores também é citado

como essencial para o desenvolvimento da economia estadual. Além de se

preocupar com temas como a habitação, propondo iniciativas como

financiamento, o documento volta a focar os aspectos econômicos necessários

para o desenvolvimento do Estado como energia elétrica, industrialização,

transportes e exportação:

Temos que vencer o estágio da economia essencialmente

agrícola em que nos encontramos. A industrialização

incipiente do Paraná tem que ser incentivada e para isso há

que se produzir energia elétrica, aproveitando as

magníficas possibilidades naturais do território

paranaense7.

5 Rodovia para Guaratuba. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 3, 27 set. 1955, nº 639. 6 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 1, 1º out. 1955, nº 643. 7 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 7, 1º out. 1955, nº 643.

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28

Com relação à construção de estradas, Lupion promete privilegiar o que

ele chama de “estradas-tronco”, citando os trechos Curitiba-Paranaguá, Curitiba-

Ponta Grossa, Apucarana-Ponta Grossa e Ponta Grossa-Guarapuava, além do já

citado entre Curitiba-Guaratuba. Ele comenta a necessidade de escoamento,

principalmente com relação ao norte do Paraná: “O escoamento de cereais do

norte deixará de ser problema para ser fator de destaque no enriquecimento

regional”8.

Na campanha por seu segundo mandato, Lupion privilegia em seu discurso

a construção de estradas, como forma de integrar o Estado e escoar a produção

evitando a perda de rendas com o transporte através de estradas paulistas,

seguindo uma tendência iniciada com o primeiro governo de Lupion e seguida

pela gestão de Bento Munhoz (IPARDES, 1989, p.75).

No entanto, no programa de governo de Lupion, publicado na Gazeta, fica

ausente a temática da ocupação do Paraná, assunto pertinente na gestão do

mesmo e de Bento Munhoz, principalmente graças à necessidade de ocupar o

território e incentivar o incremento econômico no Estado (Ibid., p.43).

É necessário destacar que a campanha de Lupion aqui analisada se refere

a sua segunda tentativa se chegar ao governo do Estado. Talvez por isso mesmo,

as prioridades dele estejam em um período de transição que antecede os

governos de Ney Braga (1961-1964) e Paulo Pimentel (1966-1971), marcados pelo

incentivo da industrialização em detrimento do apoio a ocupação do Estado,

características que marcam um novo estágio na economia paranaense – uma vez

que o território já se encontra ocupado – e uma ruptura com as gestões anteriores

(Ibid., p.86-7). Isso explica também a preocupação de Lupion com a

industrialização, tema mais recorrente nas gestões posteriores.

Além das propostas apresentadas, a Gazeta se caracteriza na reta final da

campanha de 1955 pelo ataque a gestão de Bento Munhoz, principalmente

8 Programa de governo para o povo. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 7, 1º out. 1955, nº 643.

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29

através de denúncias de corrupção contra o ex-governador, que apoia Mário de

Barros, adversário de Lupion e candidato pela coligação PR-PTB. Numa tentativa

de desqualificar o apoio recebido pelo concorrente, Lupion – muito criticado pela

forma como geriu a distribuição de terras no Paraná, tendo, segundo seus

detratores, beneficiado exclusivamente suas empresas (SALLES, 2004, p.88) –

tenta inverter os papeis, passando a acusar Munhoz.

Uma série de textos intitulados “Devassa nas podridões do bentismo”,

destaca o que os textos chamam de superfaturamento em obras públicas na

gestão de Munhoz, apropriação indébita do dinheiro público e enormes

empréstimos adquiridos, que teriam acarretado em grandes dívidas públicas. Já

O Estado, na condição de concorrente da Gazeta e ligado a Munhoz, conforme já

citado, apoia Mário Barros, principal adversário de Lupion. Apesar de faltar ao

jornal a publicação de um plano de governo, como foi feito por Lupion na Gazeta,

impedindo uma análise mais aprofundada do padrão de modernização do Estado

idealizado por Barros, é possível identificar algumas características do discurso

realizado em prol da candidatura do mesmo.

Além da coluna “Panorama Político Estadual”, que apresenta informações

sobre a campanha do candidato, o jornal publica uma série de matérias sobre o

apoio recebido por Barros em diversas cidades do Paraná. Outro ponto a ser

destacado é a vinculação feita entre a gestão de Munhoz e a candidatura de

Barros. Uma matéria do dia 28 de setembro de 1955 tem como título “Aspectos

da administração Munhoz da Rocha” – O Estado também atua como órgão oficial

do governo ao publicar os editais oficiais do executivo paranaense.

No texto são destacadas ações de Munhoz como o aumento do

patrimônio líquido da administração estatal, a construção de estradas – tema

também de Lupion – e a realização de obras como a Casa do Estudante e a

Colônia Agrícola Penal, além dos ataques a Lupion em casos qualificados pelo

jornal como de corrupção.

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30

A campanha feita pelo jornal a favor de Barros também procura vincular o

candidato a Getúlio Vargas, morto um ano antes e também pertencente ao PTB,

conforme demonstra uma mensagem publicada um dia antes das eleições:

Ao encerrar nossa memorável campanha cívica, pela

redenção do Paraná, volto o pensamento para o bravo

povo paranaense, para seus trabalhadores e para suas

famílias [...] Nada, porém, conterá a marcha desta cruzada,

porque conosco está a proteção de Deus em torno da

bandeira trabalhista de Vargas [...] Cumprirei meu dever

para com o povo, marchando ombro a ombro com os meus

devotados trabalhistas, lídimos continuadores da caravana

dos ideais que Getúlio Vargas repassou pelo território da

pátria para redimi-la9.

Também seguindo uma tendência iniciada por Bento Munhoz, que visava

fortalecer o papel de Curitiba enquanto capital e principal cidade do Estado

(KUNHAVALIK, 2004, p.144), alguns textos publicados por O Estado na última

semana antes da eleição de 1955 enfatizam a situação da cidade na gestão de

Lupion:

O atual senador [e candidato ao governo, Lupion] foi o

administrador do Estado por quatro longos anos e esta era

a sede do governo – uma sede que então dependia

integralmente da boa ou má vontade do chefe do

executivo nacional. Ele nada fez. Ou antes, fez. Fez coisas

negativas. Agiu contra os interesses da capital do Paraná10.

Outro texto também destaca o que o jornal qualifica como “abandono” de

Curitiba: “A capital completamente abandonada de serviços públicos com suas

repartições espalhadas em casas particulares não tendo uma só de suas estradas

de acesso em condições de tráfego”11.

9 Mensagem de Mário de Barros ao povo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 2 out. 1955, nº 1257. 10 Um comício e uma pergunta. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 28 set. 1955, nº 1253. 11 Aspectos da administração Munhoz da Rocha. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 8, 28 set. 1955,

nº 1253

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31

5. As eleições de 1960

Nas eleições para o governo do Paraná realizadas em 1960, a Gazeta faz

campanha para Plínio Costa, candidato ao governo pelo PSD e apoiado pelo

então governado Moysés Lupion – o próprio jornal o trata como “candidato

situacionista”. Nas páginas do periódico, Costa é exaltado, pelo que o jornal

considera, por sua “competência administrativa”, dominando a burocracia

necessária ao chefe do executivo estadual:

Técnico de projeção administrativa em vários setores em

que tanto já se distinguiu, laurido nos problemas que teve

que enfrentar, cabal experiência de todas as questões que

implicam no nosso maior progresso, o futuro ocupante do

Palácio do Iguaçu tem o êxito do seu governo assegurado

pelo renome de sua operosidade e pelo respeito que

inspiram as demais12.

Vale ressaltar que essa mesma ênfase com relação à competência

administrativa, valorizando aspectos tecnocráticos, é destacada em Ney Braga,

outro candidato que concorre ao governo do Estado em 1960 (KUNHAVALIK,

2004, p.284). Além de Lupion, Costa também aparece ligado às propostas de

Marechal Henrique Lott, candidato a presidência do Brasil na eleição daquele ano.

Com relação à Lott, o jornal propaga que as propostas do candidato em

âmbito nacional – relativas, por exemplo, a construção de estradas e aplicação do

desenvolvimentismo13 – beneficiarão também o Paraná. Na verdade, o momento

político vivido no Paraná, e no Brasil, se caracteriza pelo desenvolvimentismo –

ou seja, tal discurso não restringe apenas a campanha de Costa realizada via

12 Plínio. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 3, 1º out. 1960, nº 12.415. 13 Segundo Magalhães (2001), o Paraná nas décadas de 1950 e 1960 adota uma política

subordinada a do Governo Federal, caracteriza pelo “desenvolvimentismo”, que teve como

principal instrumento o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) nos períodos Juscelino

Kubitschek e João Goulart.

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32

Gazeta. O termo, impulsionado na presidência de Juscelino Kubitschek, também

será mais tarde um dos traços do governo de Ney Braga (MAGALHÃES, 2001,

p.66), adversário de Costa e vencedor das eleições de 1960.

Enquanto faz campanha para Costa, a Gazeta também exalta as realizações

de Lupion, governador no período e que apoia o candidato do PSD. Entre elas

estão o término de alguns trechos de estradas pelo Estado, como, por exemplo,

um entre Apucarana e Arauva, fato tratado como “marco decisivo para o governo

econômico do estado” 14 . É necessário observar que a temática referente à

construção de estradas perpassa o período analisado independente da prioridade

de cada governo, seja ela povoar o território (gestões Lupion e Munhoz) ou

incentivar a industrialização (gestões Braga e Pimentel).

Ainda sobre o projeto de industrializar o Estado, no período analisado, não

há qualquer menção a proposta de Costa na área, embora o trecho citado

anteriormente demonstre a preocupação do jornal com o desenvolvimento

econômico do Estado. Nas eleições de 1960, por sua vez, O Estado apresentou

matérias e textos favoráveis a dois dos candidatos: Ney Braga, candidato pela

coligação PDC-PL, e Nelson Maculan, candidato pelo PTB. Enquanto os textos

favoráveis a Braga ocupam normalmente as páginas 3 e 4, que incluem editorial

e textos de opinião do periódico, o espaço destinado a Maculan é na maioria das

vezes a página 7.

É importante destacar que, apesar da divulgação de textos que fazem

propaganda aos dois candidatos, a posição oficial do Estado é apoiar Braga, haja

vista os editoriais – que trazem a opinião do veículo – que exaltam as qualidades

do candidato. Com relação à posição dúbia adotada pelo jornal a explicação mais

provável é que as matérias realizadas pelo periódico tenham sido incentivadas

pelo apoio maciço de grandes empresários a candidatura de Braga (KUNHAVALIK,

2004, p.274), incluindo o sogro do futuro governador Paulo Pimentel, um dos

14 Marco decisivo para o progresso econômico do estado. Gazeta do Povo. Curitiba, p. 4, 2 out.

1960, nº 12.416.

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33

maiores proprietários de terra do Estado e um dos principais financiadores da

campanha de Braga.

Ainda que se pese o poder do grupo econômico ligado a Braga, tido como

um legítimo representante da burguesia comercial e industrial (Ibid., p.272), a

referência constante que O Estado faz a Maculan se deve muito provavelmente

ao fato de o candidato ser apoiado pelo ex-governador Bento Munhoz, um dos

fundadores do jornal e, ao que tudo indica, figura ainda influente na publicação

antes das mudanças que ocorreriam no jornal ao longo da década de 1960

(OLIVEIRA FILHA, 2004, p.93).

As propostas de Braga veiculadas pelo jornal, assim como as de Costa na

Gazeta, abordam o desenvolvimentismo, embora O Estado seja mais direto

quanto ao tema – cabe ressaltar ainda que para as eleições presidenciais o jornal

apoia Janio Quadros. Ao tratar da necessidade de desenvolvimento do Estado, a

publicação apela para o que ela qualifica como falta de força do Paraná em

âmbito nacional. No editorial do dia 29 de setembro, tal insatisfação fica clara:

Num momento em que todos os Estados do Brasil se

beneficiam de créditos e auxílios federais para a realização

de empreendimentos necessários ao seu desenvolvimento

econômico e ao bem-estar de suas populações, o Paraná

não recebeu nem a 10º parte do que tinha direito15.

No mesmo texto, a direção do jornal reclama a falta de representantes

paranaenses no Instituto Brasileiro do Café (IBC), apesar de o Estado ser o maior

produtor nacional, além de pedir pela construção de uma estrada federal, a BR-

2, que ligaria o Paraná a Santa Catarina e São Paulo. A matéria critica ainda o nível

de industrialização do Estado: “No setor de energia elétrica, o espetáculo é o

mesmo: todo o Brasil caminha para a industrialização e o Paraná fica para trás” 16.

15 Queremismo dele mesmo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 29 set. 1960, nº 2.787. 16 Queremismo dele mesmo. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 4, 29 set. 1960, nº 2.787

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34

Na verdade, as melhorias relativas às rodovias e sistema de energia elétrica

são consideradas essenciais para o processo de industrialização do Paraná, a

“nova vocação econômica” do Estado (IPARDES, 1986, p.96) e principal projeto de

modernização do Paraná nas gestões Braga e Paulo Pimentel (1966-1971). O

editorial do dia seguinte volta a fazer menção à opinião do jornal de que o Paraná

precisava ganhar força a nível nacional, por ocasião da passagem de Jânio

Quadros pelo Estado: “Seu pronunciamento foi incisivo: o Paraná está

abandonado pelo governo federal e é vítima das maiores injustiças” 17.

Fortalecer o Estado no contexto nacional é também a principal proposta

de Maculan. Em um texto do dia 2 de outubro, no qual várias personalidades

políticas do Estado falam sobre a candidatura dele, isso fica evidente:

“Alcançamos o significado político e social da sua empreitada de que o nosso

Paraná deverá sair unificado e renovado para seu grande futuro na Federação

Brasileira”18.

O mesmo texto aborda a necessidade de integração entre as regiões do

Estado – consequentemente Maculan é tido como o candidato ideal para a

realização de tal intento: “A missão do vereador Nelson Maculan será de melhorar

as relações norte-sul, fazendo com que os homens do norte melhor conheçam

os do sul, e que os homens do sul melhor conheçam os do norte”19, afirma Luiz

Carlos Tourinho, membro do PSP.

Em outro trecho, o então deputado estadual pela UDN, Haroldo Perez

destaca a importância de Maculan para o Norte do Paraná e para a integração do

Estado: “Não poderíamos deixar nós do Norte, deixar de acompanhar um

candidato identificado com os problemas da região que, além do mais, reúne

17 Lapa. O Estado do Paraná. Curitiba, p.4, 30 set. 1960, nº 2.788. 18 É Nelson Maculan que vai governar o Paraná. O Estado do Paraná. Curitiba, p. 7, 1º out. 1960,

nº 2.789. 19 Ibid., p. 7

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35

condições para administrar o Paraná com um sentido de integração entre todas

as regiões do Estado” 20.

6. Considerações finais

Conforme explicado anteriormente, o objetivo do artigo foi verificar o

posicionamento dos jornais curitibanos O Estado do Paraná e Gazeta do Povo

frente aos candidatos ao governo do Paraná nas eleições de 1955 e 1960, além

de analisar o discurso criado pelos periódicos em torno do ideal de modernização

do Estado para o candidato defendido pelas respectivas publicações.

Com relação ao primeiro item, nota-se que os jornais apoiam candidatos

concorrentes nas duas eleições. No pleito de 1955, a Gazeta faz campanha para

Moysés Lupion da coligação PDC-PSD-PTN, por razões já explicadas no trabalho,

enquanto O Estado defende a candidatura de Mário de Barros da coligação PR-

PTB. Já nas eleições de 1960, a Gazeta apoia Plínio Costa do PSD, enquanto O

Estado publica textos positivos a dois candidatos: Ney Braga, coligação PDC-PL, e

Nelson Maculan, PTB – embora seja importante destacar que o apoio maior da

publicação é dado a Braga, como é possível notar através dos editoriais.

Com relação ao discurso de modernização articulado pelos jornais para

seu candidato escolhido, algumas considerações são necessárias sobre o assunto.

No curto período analisado, sete dias antes de cada eleição, especificamente com

relação ao pleito de 1955, notou-se a ausência do tema “imigração”, principal

ideal de modernização para o Paraná no período (IPARDES, 1989, p.47), para

ambos os candidatos/jornais – o tema foi uma constante nas políticas de governo

entre 1946 a 1960, gestões de Lupion, duas vezes, e Bento Munhoz da Rocha

Neto, de acordo com as mensagens enviadas por ambos ao legislativo.

Também é importante destacar que o tema “industrialização”,

característico dos dois governos posteriores – Ney Braga, de 1961 a 1964, e Paulo

20 Ibid., p.7.

Page 37: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

36

Pimentel, de 1966 a 1971 (Ibid., p.86-7) – já se encontra presente, principalmente

na campanha de Lupion. A presença do tema em uma época anterior a marcada

pelo discurso em prol da industrialização se deve ao fato de o segundo governo

Lupion (1956-1961) estar em um período de transição entre sua gestão anterior,

de Bento Munhoz e a de Braga e Pimentel. Pelo mesmo motivo, a temática da

ocupação territorial está ausente do discurso “lupionista” no período.

Já nas eleições de 1960, as principais propostas dos candidatos são o

fortalecimento do Paraná em âmbito nacional e o desenvolvimento do Estado

através da criação de estradas e indústrias, temas integrantes do

desenvolvimentismo aplicado no contexto nacional do período. A proposta da

criação de indústrias, por sinal, substitui a imigração como prioridade na pauta

do governo estadual, a partir do começo da década de 1960 (IPARDES, 1989, p.86).

Convém destacar ainda que a construção de estradas já é tema das

preocupações dos candidatos, pelo menos no aspecto discursivo, nas eleições de

1955, mostrando a pertinência do assunto independente da prioridade

governamental, seja ela a ocupação do território ou o processo de

industrialização do Estado. Verifica-se aí uma permanência que independente de

uma possível ruptura nas prioridades do executivo paranaense.

7. Bibliografia

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Page 39: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

Estigma territorial e seus efeitos: Nova Rosa da Penha II – Cariacica ES

Igor Vitorino da Silva1

Resumo: Por que não dizer onde mora? O que se deseja esconder? Do que se deseja escapar?

No desenvolvimento de uma pesquisa nos anos 2007-2008 sobre a expansão da periferia no

Espírito Santo, optou-se por estudar a formação de um bairro periférico, denominado Nova Rosa

da Penha II no município de Cariacica (ES), pertencente à região metropolitana do Estado. Assim,

este artigo discute a visão que esses moradores têm sobre os efeitos negativos do estigma

territorial a partir do controle político sobre este segmento em um contexto instituído sobre o

pobre da e na periferia da cidade. A metodologia usada foi fazer o levantamento bibliográfico e

documental, através de consulta ao acervo eletrônico dos jornais A Gazeta e A Tribuna dos anos

de 2006-2008. Com leitura de entrevistas, busca-se apreender os significados do conceito de ser

pobre e viver em territórios periféricos estigmatizados.

Palavras- chave: território; estigma; pobreza; urbanização.

“As cidades também acreditam ser obra da

mente ou do acaso, mas nem um nem o outro

bastam para sustentar as suas muralhas. De

uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou

setenta e sete maravilhas, mas a resposta que

dá às nossas perguntas. Ou as perguntas que

nos colocamos para nos obrigar a responder,

como Tebas na boca da Esfinge”. Calvino2

1. Introdução

“Mora mal, hein!”. Esta é uma expressão que quase todos os dias os

moradores dos diversos espaços periféricos do Brasil (favelas, bairros pobres,

loteamentos precários, cortiços, etc.) ouvem, inclusive, dos próprios amigos de

periferia, quando dizem onde moram. Essa é uma fala recorrente quando estes

moradores revelam o lugar em que vivem ao final de um dia de serviço, ou

1 Professor titular de História. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato

Grosso do Sul (IFMS), campus Nova Andradina.

2 Calvino, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Page 40: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

39

quando participam de algum processo de cadastramento ou, ainda, quando estão

em um bar, uma igreja. Estes, de certa forma, já se acostumaram com o olhar

sarcástico, de espanto ou ainda aquele comentário malicioso das pessoas. Para

quebrar o clima de constrangimento tentam, muitas vezes, dar uma resposta

bem-humorada: “eu não moro, eu me escondo”. O que, muitas vezes, acaba

reafirmando esse preconceito.

O preconceito territorial pode ser entendido como o julgamento

preestabelecido de grupos sociais e indivíduos a partir de imagens, ideias e

valores assentados em generalizações estigmatizantes sobre outras pessoas e os

territórios onde estas vivem, e isso independe do conhecimento da realidade e

da experiência de vida daqueles. Tal prática social expõe os moradores daquelas

áreas urbanas difamadas e malvistas a situações de insultos, humilhações e

constrangimentos que, muitas vezes, produzem indignação, aversão ao lugar em

que vivem e distúrbios psicoemocionais.

Assim, percebe-se que não se deve subestimar o peso e as consequências

do estigma territorial, pois elas podem induzir ao sentimento de indignidade

pessoal que pode ter consequências diretas sobre as relações interpessoais e

afeta negativamente as oportunidades nos círculos sociais, nas escolas e nos

mercados de trabalho (WACQUANT, 2005, p.33).

O que os moradores dos espaços periféricos pensam de si mesmos é

ignorado e negligenciado pela força do estigma territorial que homogeneíza a

realidade social dos lugares, universaliza eventos particulares e nega a

representação independente de seus moradores. A historiadora Geisler (2004),

investigando a situação das favelas cariocas, aponta a dramaticidade das imagens

negativas sobre esses lugares:

Desrespeitada em suas particularidades, a favela é vista sob um

único e, muitas vezes, monocromático prisma: território de

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40

aglomeração de camadas pobres, lugar de privação e perigo.

(GEISLER, 2004, p. 31-32).

Essa homogeneização imposta pelo estigma territorial reafirma as

observações de Santos (2007, p.139), sobre as relações entre cidadania e território:

“o valor do indivíduo depende, em larga escala, do lugar onde está”. Assim o lugar

em que os indivíduos e grupos sociais vivem na cidade é tomado como

texto/contexto para definir como se deve vê-los, pensá-los e tratá-los. Para

Raffestin (1993), o território “não poderia ser nada mais que o produto dos atores

sociais” [...]. Deste modo, existe um modelo de território, dominado por relações

de poder, traduzidas por malhas, redes e centralidades cuja permanência é

variável, mas que constituem invariáveis na “qualidade de categorias obrigatórias”.

Isto porque o espaço é anterior ao território, e este só se instaura com o

estabelecimento na e pela manutenção de relações de poder. Neste sentido,

argumenta Soares (2007), discutindo as contradições do espaço urbano brasileiro:

Os direitos democráticos são amplamente garantidos, na letra da

Constituição, mas a prática os distribui de acordo com idade,

gênero, cor e classe social – e local de moradia, posto que a

segregação seja também espacial, ou melhor, que a segregação

especificamente espacial tem sua especificidade. (SOARES, 2007,

p.19).

Costa (2004), analisando os significados da moradia e a hierarquia social,

revela os efeitos perversos do estigma territorial na vida urbana:

moradia representa o homem no mundo e é através do seu

endereço fixo que ele confirma seu lugar no espaço urbano

e na hierarquia social. Assim sendo, da mesma forma que

as condições de vida de uma pessoa se refletem na

qualidade da sua habitação, a relação da sua habitação com

o resto da cidade reflete a própria relação social entre o

indivíduo e sua sociedade (COSTA, 2004).

Page 42: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

41

Essas populações urbanas não somente são vítimas da experiência da

violência de negação da qualidade vida e da habitação, mas também da negação

do direito de fala e de representação do lugar onde vivem. Na realidade, o

estigma territorial acaba funcionando como um mecanismo de controle político

dessas populações urbanas, principalmente quando estas passam a se ver e se

perceber a partir das imagens, ideias e valores impostos por ele, desvalorizando-

se, e até mesmo, negando-se o lugar em que moram.

É quase sintomático que se faça a associação cruel entre “camadas pobres

e classes perigosas” (ZALUAR, 2004), fortalecendo a relação entre

pobreza/violência/criminalidade nas periferias. Torna-se válido tratar os

referenciais característicos desta configuração da pobreza urbana: a periferia

torna-se sinônimo de tudo que é ruim, feio, ameaçador e inseguro tornando

“natural” a desqualificação social do “pobre” encarnada na imagem do

suspeito/perigoso/violento – potencialmente criminalizável e submetido a um

processo de acusação social a priori (MISSE, 2006a).

As relações de vizinhança que eram solidárias e amistosas na maioria das

vezes (ex: mutirão para fazer a laje da casa do vizinho, reunir todos em uma

mesma casa para ver televisão) tornam-se relações de medo da violência, fazendo

com que os próprios moradores se tornem “olhos” de setores da segurança

pública vigiando, inspecionando e tentando controlar os riscos à tranquilidade e

a segurança de sua família (colocando grades, chegando em casa o mais possível),

tornando-se um refém do seu medo. Afinal, ele não quer ser visto ou reconhecido

como “alguém do mal”. Assim, os espaços urbanos apartados e afastados desses

imperativos passam a se constituir por sinais de insegurança, desordem, pavor e

terror que marcam a ordem urbana contemporânea, sendo reconhecidos como

“zonas proibidas e a serem evitadas”, intensificando o estigma territorial.

Page 43: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

42

Raúl Zivechi (2008), docente e investigador sobre movimentos sociais na

Multiversidad Franciscana da América Latina, e colaborador mensal do Programa

das Américas afirma:

As periferias urbanas dos países do terceiro mundo têm se

convertido em cenários de guerra, onde os Estados tentam

manter uma ordem baseada no estabelecimento de um tipo de

“cordão sanitário” que consiga isolar os pobres da sociedade

normal. (ZIVECHI, 2008).

Pierre Bourdieu (1997, p.160) certamente diria que: “[...] a posição de um

agente no espaço social se exprime no lugar do espaço físico em que está situ-

ado”. Este lugar definido pela exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o

constituem se reproduz no espaço físico e nas estruturas mentais sendo incorpo-

rado por elas. É nesse ambiente que o poder se afirma e se exerce sob a forma

de uma violência simbólica capaz de criar imagens, discursos e práticas sociais

que definem esse lugar social conferido aos agentes ou da sua posição de classe,

e estes tem o mesmo resultado de poder sobre a forma como essas pessoas se

veem.

O coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Sócio-

Espacial da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Marcelo Lopes de Souza, juntou

as palavras gregas phobos, que quer dizer medo, e pólis, que significa cidade, para

criar o neologismo fobópole. O termo sintetiza a imagem de uma cidade onde o

medo assume presença acentuada nas conversas diárias e nos jornais e boletins

da grande imprensa. Esse imaginário do medo e da insegurança aponta

Wacquant (2001, p.32) produz:

“regiões problema”, “áreas proibidas”, circuito “selvagem”,

territórios de privação e abandono a serem evitados e temidos,

porque têm ou se crê amplamente que tenham excesso de crime,

de violência, de vício e de desintegração. (WACQUANT, 2001, p.

32).

Page 44: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

43

Além disso, Lopes (2008) lembra a observação da arquiteta Sônia Ferraz

após estudos realizado por dois anos com estudantes da Universidade Federal

Fluminense sobre percepção de segurança e moradia quando esta afirma que

“atualmente as moradias parecem verdadeiros presídios” e que “foi-se o tempo

em se pedia uma xícara de açúcar ao vizinho”. A cidade com “enclaves fortificados”,

caracterizados por uma territorialidade seletiva e excludente, marcada por uso

privativo da infraestrutura, separada do “caos urbano” por barreira física e sistema

de vigilância e controle (Caldeira, 2000), reproduzindo as imagens e narrativas

negativas dos demais lugares está fora dessa lógica urbana.

“Arquitetura do medo”; “Cidade sitiada”; “Cidadela”; “Cidade estilhaçada”;

“Cidade murada”; “Cidade fortaleza”. São inúmeros os conceitos acionados pelos

diversos campos dos saberes para explicar ou compreender a cidade tecida no

quadro de generalização do medo e da insegurança, em que o controle,

seletividade, vigilância, homogeneização e segregação dos espaços, passam a se

constituir em princípios básicos da produção da cidade.

Em nome da segurança e redução do risco urbano negam-se as

características fundamentais da cidade atribuídas por Lefebvre (2002): diferenças,

encontros e circulação. Desta maneira, coloca-se o estigma territorial no centro

da vida urbana, já que funcionaria como estratégia de valorização em

determinadas partes da cidade ao separá-la em área famosa (segura, tranquila,

bonita, arborizada) e difamada (inseguras, perigosa, com vielas, sem esgoto, em

áreas distantes ou na parte mais alta do centro). Tal mapeamento urbano, apoiado

em índices sociais, econômicos, de violências e criminais, dos lugares em que

reinam a desordem e o perigo ou paz e tranquilidade urbanas, vigiado pela mídia,

definem os percursos urbanos, as imagens e práticas sociais em relação a esses

determinados lugares, fazendo do estigma territorial um instrumento de controle

da circulação das populações urbanas periféricas pelo espaço urbano.

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44

Ribeiro & Lago (2000, p.21) ao analisar o processo segregação na

metrópole afirmam:

a desapropriação simbólica dos moradores destes territórios da

capacidade de controle da sua representação social nas formas

coletivas de classificação das divisões da sociedade e, portanto, da

sua identidade como grupo. É esta (des)possessão que permite

transformar os desiguais em proscritos sociais, e como tais vivendo

na desordem ou em outra ordem social considerada

legitimamente como inaceitável (RIBEIRO & LAGO, 2000, p.21).

Com o crescimento da criminalidade e da violência que pairam sobre as

cidades brasileiras existe a exacerbação do medo e das táticas de proteções

baseadas em um modelo militarizado e prisional (muitas grades, cercas elétricas,

muros altos com cacos de vidro, cães de guarda), consolidando um clima

generalizado de desconfiança do outro, estimulando o estigma territorial. Para

Tuan:

o aumento gradativo da criminalidade violenta, constatado nas

últimas três décadas nas principais cidades brasileiras, tem influ-

enciado um rearranjo na morfologia urbana. “Paisagens do

medo” veem sendo configuradas e novos padrões de sociabilida-

des desenvolvidos [...] essas paisagens do medo são estabeleci-

das pelas percepções do ambiente real, se sobrepondo à racio-

nalidade (TUAN, 2005, p.12).

O medo social (BAIERL, 2004, p. 26), acaba sendo coletivo e vai alterando

hábitos (medo de novos vizinhos é um deles). Esse medo que inicialmente é in-

dividual acaba por criar o sentimento generalizado de impotência da sociedade

frente ao aumento da criminalidade, favorecendo a ampliação do medo de ser

vítima de algum tipo de violência.

Com a sensação de insegurança permanente e ampliação do referido

medo, os habitantes das grandes cidades se lançam em uma corrida pela “segu-

rança total”, alterando suas práticas sociais e proporcionando a configuração de

paisagens e espaços hostis. Cabe dizer que de forma diferenciada nos territórios

estigmatizados, isso também ocorre com o medo de ser vítima de “bala perdida”,

Page 46: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

45

de ser confundido com alguém do tráfico e sofrer um desaparecimento súbito

(ver o recente caso do pedreiro Amarildo). É preciso lembrar ainda do compo-

nente étnico-racial desses lugares, cuja maioria é negra, desconhecedora de seus

direitos constitucionais, e, portanto, mais passível de ser vítima de abuso de poder

das autoridades com excesso do uso da força e corrupção.

Na pesquisa 2009 do PNUD por amostragem no Espírito Santo, assim

como foi constatado para o país, 7,3% da população residente com 10 anos ou

mais de idade foi vítima de roubo ou furto. Desse total, 53,1% eram pessoas do

sexo masculino e 46,9% eram mulheres. As estatísticas apontam que 44,1% das

vítimas eram pessoas de cor ou raça branca e 54,8% eram pessoas de cor ou raça

negra ou parda. Dessa forma, percebe-se que o perfil das vítimas potenciais de

roubo e furto, com base na pesquisa de vitimização, são homens e pessoas de

cor ou raça negra ou parda (LIRA, 2009, p.24). Ora, se os negros somam mais de

50% da população brasileira, isso significa que eles circulam por outros territórios

que não são aqueles estigmatizados, em geral, seu local de moradia, tornando-

se também alvo da violência urbana:

O Espírito Santo acompanhou o padrão nacional, dos 106 mil

roubos, 64,0% ocorreram em via pública, 14,7% ocorreram na

própria residência e ou de terceiros e 12,0% ocorreram em esta-

belecimento comercial. Os principais bens roubados foram tele-

fone celular (56,0%), dinheiro, cartão de débito/crédito ou che-

que (49,8%) e documentos ou objetos pessoais (23,6%). Das víti-

mas de roubos no estado do Espírito Santo, 62,7% não procura-

ram pela polícia em decorrência do último roubo sofrido. As prin-

cipais justificativas para não se procurar a polícia eram não acre-

ditar na referida instituição (37,6%), não considerar importante

procurar a polícia (28,4%) e não querer envolver a polícia ou ter

medo de represálias (22,0%). Em 2009, das 39.000 vítimas de rou-

bos que procuraram a polícia, 83,3% registraram o último roubo

na delegacia. Portanto, observa-se que, no estado, do total das

vítimas de roubos, a maioria não procurou pela polícia e nem to-

das as pessoas que procuraram, foram até a delegacia e registra-

ram a ocorrência (LIRA, 2011, p.26).

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46

Assim, para se produzir “a cidade segura”, desejada pelas forças de

segurança pública, associada às políticas de planejamento urbano, coloca-se em

suspenso as contradições, as disputas e as diferenças, reforçando o estigma

territorial sobre determinados pedaços da cidade caracterizados como violentos,

perigosos, feios, desordenados. Conforme Vainer esse modo de planejar as

cidades:

Implica a direta e imediata apropriação da cidade por interesses

empresariais globalizados e depende, em grande medida, do

banimento da política e da eliminação do conflito e das

contradições de exercício da cidadania. (VAINER, 2000, p.78).

Com a desigualdade de proteção dos riscos que marca “a cidade do medo”,

as demandas por segurança, também, são diferentemente tratadas pelas

autoridades públicas. Assim, a população de baixa renda, despossuída dos meios

de produção de representação e imagens, acaba não tendo suas demandas por

segurança acatadas: elas ficam circunscritas aos bairros de classe média alta e

comércio da cidade. Seus lares, local de descanso e compartilhamento de afetos

com sua família tornam-se “alvos” da desordem urbana e da violência. Essa

percepção social consolida e legitima estratégias de política de segurança que

transformam “os territórios periféricos” em espaço de privação do direito ou em

territórios de exceção (AGAMBEN, 2004), naturalizando a produção e os efeitos

do preconceito territorial.

A má fama ou reconhecimento socialmente negativo do lugar ou da região

onde se mora pode produzir inúmeras “dores de cabeça” para os seus moradores.

Ela pode ter efeitos negativos sobre as possibilidades de conseguir emprego,

identidade dos moradores, a valorização dos bairros e até mesmo sobre os laços

interpessoais construídos pelos moradores. Santos apontava a dupla condenação

econômica/social, e simbólica, experimentada pelos moradores dos espaços

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47

periféricos, que ainda desconsidera e a credibilidade das representações que

foram construídas na luta e suas experiências sociais:

Morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza. À pobreza

gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de

trabalho e das classes sociais, superpõe-se a pobreza gerada pelo

modelo territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou

menos pobre somente por morar neste ou naquele lugar. Onde

os bens sociais existem apenas na forma mercantil, reduz-se o

número dos que potencialmente lhes têm acesso, os quais se

tornam ainda mais pobres por terem de pagar o que, em

condições democráticas normais, teria de lhe ser entregue

gratuitamente pelo poder público. (SANTOS, 1993, p. 115).

2. Vivendo o estigma territorial na periferia de Cariacica – ES

A região metropolitana nos anos 80 era chamada de região de Vitória e

era formada pelos municípios de Vila Velha, Vitória, Cariacica, Serra e Viana. Com

os desdobramentos do processo de desenvolvimento industrial e econômico

concentrado na cidade de Vitória, impulsionando esse processo, foi instituída

pelo governo estadual a Região metropolitana da Grande Vitória, para fins de

planejamento e formulação de políticas públicas, sendo integrados à região o

município de Fundão e Guarapari. Análise dos pesquisadores do Instituto Jones

dos Santos Neves (IJSN) mostra que, na classificação dos estados mais populosos,

o estado do Espírito Santo situou-se na 15ª posição, representando 1,8% da

população brasileira.

Segundo dados do Censo, o estado do Espírito Santo apresentou uma

população de 3.514.952 habitantes, evidenciando aumento de 13,5% (417.720

habitantes) em relação à população registrada em 2000 (3.097.232 pessoas

residentes). A análise verificou certa similaridade entre a distribuição da

população do ES por microrregiões nos anos de 2000 e 2010. Somados, esses

números representam 48% do total de habitantes de todo o estado. A RMGV

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48

representa 4,95% do território do estado, estimado em 46.184 km2, o que indica

a intensa concentração da população urbana. Tal fenômeno é resultado do

intenso processo de migração gerado pela modernização econômica do estado,

ocorrida nos anos 70 e 80.

O Atlas de Desenvolvimento Humano (IJSN, 2007) registra que Cariacica é

o município mais pobre da região metropolitana: tem 20.706 famílias com renda

de até R$120,00 sendo beneficiárias do Programa Bolsa Família e 30.438 famílias

inscritas no Cadastro Único da Assistência Social com renda familiar de até

R$175,00, segundo informações do Ministério de Desenvolvimento Social e

Combate a Fome da Presidência da República (MDS). Cariacica ficou conhecida

na década de 1970 como o município “dos rejeitados”. A origem de seu nome

corrobora com essa visão: essa nomenclatura provém de “caria ou carie” que em

tupi-guarani significa “estrangeiro”, ou “estranho” e “cica” que aparece ou chega

de fora (OLIVEIRA 2007, p.7).

Os bairros de Nova Rosa da Penha I e II têm vários problemas de ordem

social e econômica: precariedade do transporte público coletivo, a falta de áreas

de lazer, coleta de lixo insipiente, poucas ruas pavimentadas, poucos postos de

saúde e escolas. A maior parte da população residente nestes bairros ocupa

subempregos, fazem parte da economia informal e/ou estão desempregadas e

recebem algum benefício através dos programas governamentais. As taxas de

natalidade são elevadas e os novos arranjos familiares estão presentes na maioria

das moradias (ROSSI, 2012, p.2).

A história de sua formação, em 1982, envolveu os movimentos sociais de

ocupação de terra urbana que marcaram a região da cidade de Vitória na década

de 80. As imagens sociais que marcaram o reconhecimento público desse bairro

desde sua fundação foram amalgamadas pela desordem urbana e moral, pobreza,

violência e criminalidade. O jornal A Tribuna, através da seção “A tribuna com você”

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49

(1999, p.7) relembrou manchete do jornal A Gazeta na década de 1980 onde

aparece o registro dessa realidade:

a invasão em Cariacica já tem mais de quatro mil barracos.

No dia 6 de março começou a invasão em Rio Marinho e

depois de um mês já é considerada a maior invasão em

menor período da história do Estado do Espírito Santo. (A

Tribuna, 1999, p.7).

Essas imagens sociais tendem se reproduzir independente das mudanças

sociais, econômicas e urbanas positivas que vem ocorrendo no município, isto

porque permanecem elevados os índices de homicídios. Buscando escapar dessa

estigmatização negativa, a Associação Comunitária de Nova Rosa da Penha nos

anos 80 mudou o nome do bairro de Itanhenga para Nova Rosa Penha I e II, em

homenagem a luta pela moradia dos primeiros moradores. Essa ação política

desejava neutralizar a negatividade histórica da região de Itanhenga, já que desde

1934 abrigava o hospital leprosário – Pedro Soares e segundo a tradição popular

o nome Itanhenga significava “pedra do inferno”, o que coadunava com as

imagens negativas de lugar de esquecimento, banimento e sofrimento.

Percebe-se a existência desse estigma territorial, até mesmo, entre muitos

funcionários da prefeitura e das autoridades locais quando reduzem e simplificam

a situação social do bairro Nova Rosa da Penha I e II ao problema da criminalidade

e violência, principalmente aquele advindo do tráfico e da ausência de formação

profissional. No diagnóstico realizado pela Secretaria Municipal de Assistência

Social e Secretaria Municipal de Educação (PMC, 2006c, s/p) sintetiza-se a

imagem do bairro pelo poder municipal:

um elevado grau de violência doméstica sofrida por mulheres e

crianças, sendo esta a mais evidente. Somando-se a isto, o alto

índice de alcoolismo, consumo e venda de drogas, além da

prática de roubos e furtos. A alta taxa de mortalidade adulta e

juvenil é reflexo direto do aliciamento ao tráfico de drogas,

conflito entre grupos rivais, totalizando cerca de 97% dos

assassinatos e/ou tentativas de assassinatos registrados na

região. (SEMAST/SEME/PMC, 2006c, s/p).

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50

Um missionário conhecido como Bernardino (2007) que também passou

pelo bairro no início de sua história ao escrever sua biografia relembra as imagens

negativas atribuídas ao bairro naquela época:

atuando especificamente na evangelização e implantação de

congregações no município de Cariacica, especificamente

quando da formação do Itanhenga (hoje, Nova Rosa da Penha),

Mucuri, Itanguá e outras áreas dominadas pelo banditismo e

pelas drogas. (BERNARDINO, 2007).

O bairro Nova Rosa da Penha além de ser apresentado como bairro

problema tanto do ponto de vista da miséria, pobreza e desemprego, também

aparece como área de elevado número de homicídios e criminalidade, o que

acaba consolidando o estigma territorial em sua direção.

Aponta Zanotelli (2006) que a violência criminalizada produz uma

determinada paisagem urbana onde se associam lugares de alta criminalidade e

violência com lugares marcados pelo desemprego, infraestrutura e ausência do

Estado, em que Nova Rosa da Penha I e II seria um dos grandes exemplos, se

aproximando, também, das afirmações de Ribeiro:

crescimento das taxas de homicídios, o que pode estar

revelando que nessas áreas integradas esteja ocorrendo a

concentração dos efeitos negativos decorrentes da combinação

entre crise dos laços sociais e os processos de segmentação e

segregação residencial. (RIBEIRO, 2006, p.224).

Além disso, tal processo de violência tem como principais vítimas a

população jovem, masculina, baixa escolaridade, e de faixa etária entre 16-24

anos e com “problemas familiares”, fato já apontado por diversas pesquisas sobre

violência e juventude (CAMACHO, 2003). O município de Cariacica vem

apresentando a situação mais alarmante na Região Metropolitana, de janeiro de

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51

2011 até maio de 2013 foram 139 assassinatos, contra 107 no mesmo período

em 2011, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social.

Em uma pequena pesquisa no banco de dados do Jornal A Gazeta entre

2006 e 2007 sobre o bairro, percebe-se a força da reprodução da imagem

negativa sobre o lugar. As matérias relacionadas ao bairro estão sempre

relacionadas ao tráfico, assalto, assassinato e protestos. A identificação da

população vítima e agente da criminalidade e violência como a população jovem,

entre 16-24 anos, do sexo masculino, negra, pobre, desempregada, com baixa

escolaridade e de “família desorganizada” é importante para desvendamento das

populações mais vulneráveis socialmente, mas também pode servir como

processo de estigmatização e julgamento moral da população que mora no bairro,

pois generaliza a situação social do bairro, assim como reatualiza a imagem de

conivência dos moradores com os grupos criminosos (LEITE, 2002).

As imagens veiculadas pela mídia capixaba constroem, nesse quadro, a

ideia de um bairro repleto de crianças e adolescentes desocupados que podem

se constituir em futuros componentes do tráfico, além de ser tornarem “gentes

de homicídio”, podendo operar como efeito negativo no acesso de

oportunidades de trabalho e renda, como indica o depoimento do morador:

somos discriminados; a maioria das empresas aí fora quando as

pessoas vão procurar serviço e falam que é daqui, eles não

pegam. Por isso que a gente não quer nem saber mais da palavra

Itanhenga (Entrevista 2 apud LÍRIO, 2004, p.47).

Também uma jovem aluna de um grupo focal misto denuncia o impacto

das imagens negativas sobre as possibilidades de trabalho:

Ó, a gente sai para procurar emprego, assim, eu e algumas

colegas minhas, a gente saiu para “caçar” emprego, a gente vai

fazer um negócio de estágio, ai você vai lá, já aconteceu isso

comigo um monte de vezes, você vai lá faz a entrevista, faz prova,

tudo bem. Mas quando chega na parte da onde você mora, do

bairro onde você mora. Ah não! Cariacica não. Aí vaga não dá,

eles discriminam, isso faz a pessoa ficar violenta, porque a

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52

pessoa vai indo, vai indo e a vida não melhora pra ela (LÍRIO,

2004, p.46)

Numa conversa informal pelo MSN a moradora X do bairro Y(em Cariacica-

ES) relatou um acontecimento de sua vida escolar, que bem retrata o debate

travado até aqui:

A minha amiga, ela mora lá pro lado de Vila Velha. Ela mostrou

para o pai dela uma foto minha e do Isaque e falou pro pai dela

que somos amigos dela, aí o pai dela perguntou de onde nos

somos aí ela falou que era de Nova Rosa da Penha. Ela disse que

ele deu um salto e disse que lá só tem malandro mafioso, que não

quer que ela ande com essa gente (grifo nosso). É mole! Olha aí

o preconceito. E pior causa revolta e indignação contra o bairro.

Vai ver se tem mais argumentos, tem gente que cansa de ouvir

esse tipo de coisa, sabe! O que fazem? Mudam ou simplesmente

passam a odiar o bairro. Algumas pessoas sempre dizem que

gostam do bairro, outras não. Só estão aqui por falta de opção.

(Moradora X, 26/10/2007).

Em relação ao acesso ao emprego ou trabalho, vive-se o efeito do estigma

territorial. As ideias que outros grupos sociais da cidade tem ou imaginam sobre

determinado bairro podem influenciar na aquisição de uma oportunidade de

emprego. É claro que, também, deve ser considerada a questão espacial da

distância do bairro em relação ao trabalho (efeitos de localização), que pode ser

agravada pela ausência de uma política de transporte coletivo eficaz e pelas

políticas macroeconômicas e de reestruturação produtiva, mas não se podem

minimizar os efeitos perversos dessa associação simplista e preconceituosa da

probabilidade de que aquela pessoa esteja envolvida na criminalidade daquele

bairro ou região resulta na perda da oportunidade.

Tais efeitos se agravam, principalmente, quando a visibilidade social dos

espaços periféricos em que moram se realiza pela negatividade, começando pela

própria categoria de lugares violentos ou bairros perigosos, não os conceituando

como lugares onde acontecem crimes e por falta de infraestrutura e

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53

investimentos sociais massivos se tornam lugares com mais possibilidades de

perigo.

Assim, os jovens, principais vítimas, denunciam que as diferentes formas

dos empregadores disfarçarem a discriminação territorial é usando desculpas

como a distância entre local de moradia e do trabalho. Mas, esses jovens também

têm suas estratégias é uma delas, bastante comum, é dar o endereço de algum

amigo ou familiar que more fora daquele bairro e assim aumentar sua chance de

conseguir o emprego. O relato de um professor de uma escola da periferia

(Cariacica-ES) ao participar de um grupo focal reforça essa prática:

Eles não querem saber disso [de um futuro]. E, às vezes, os

próprios bairros que eles moram como sai no jornal, morte não

sabem aonde, eles acham que eles não terão um futuro melhor,

nem podem conseguir um emprego digno por morarem no

bairro, entendeu. Já tem três anos que eu trabalho aqui na escola

e sempre vejo a mesma coisa. Os nossos alunos que saem daqui

pra fazer estágio em outra empresa, eles tinham que dar nomes

de lugares diferentes de onde realmente moram, só pelo fato de

que se os empregadores soubessem que ele moram, ou

moravam neste bairro, eles não dariam o emprego, não dariam

o estágio. Então quer dizer, o quanto é desmoralizado o bairro

em que eles vivem. (LÍRIO, 2004, p.48).

Inverter a consolidação de anos de imagens e ideias negativas sobre os

bairros periféricos não é tarefa fácil. Principalmente, se levarmos em conta que

esses lugares não significam somente um local de moradia, mas representam o

prestígio social do grupo ao qual esses indivíduos fazem parte, tornando-se

indicativos de autossegregação. Daí a classificação como bairros populares,

nobres, de elite, etc. Os espaços periféricos de alguma maneira no imaginário da

sociedade tendem a ser usados como uma forma de denunciar quem são os

indivíduos que nele moram, assim como dizer que tipo de tratamento eles

merecem ter. Na visão de Hermann:

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54

Obviamente, esse funcionalismo atribuía um lugar certo para

cada função. Há o lugar da moradia, o lugar do trabalho, o lugar

das compras. Há o lugar da saúde, da pobreza e da educação nas

cidades. É também ingênuo dizer que esse modelo urbanístico

“caiu como uma luva” aos interesses de acumulação capitalista

no espaço citadino, tanto no que concerne a sua organização

para a circulação do mesmo quanto no que diz respeito à manu-

tenção do espaço organizado para ordenar determinadas hierar-

quias sociais. Muito pelo contrário: a gênese do espírito moder-

nista já está associada ao progresso como premissa para o de-

senvolvimento, visto aqui como atrelado ao desenvolvimento in-

dustrial e mantenedor da ordem dominante na lógica sócio-es-

pacial capitalista . (HERMANN, 1994, p.6).

Daí que a questão da classificação social dos espaços periféricos envolve

uma luta política, uma disputa pela cidade, uma definição das formas de ser visto.

Por exemplo, dizer que um determinado espaço periférico é perigoso implica

desvalorização dos imóveis, dificuldades de transporte público, serviços

comerciais (táxis, caminhão de gás, etc.). Por isso, muitos moradores não se

cansam de denunciar a discriminação e de explicar que a fama do bairro não é

de todo verdadeira. Discutem, protestam e pedem segurança e policiamento, mas

não são ouvidos. Criticam a imprensa por suas matérias preconceituosas e sem

as vozes dos moradores.

Não estamos aqui a desconsiderar que nestes lugares existe uma parte

mais miserável onde a cada nova notícia de assassinatos, de assaltos e tragédias

reforça-se o estigma territorial: o espaço periférico perigoso e proibido. Esses

lugares considerados áreas de risco, de maneira geral, estão nos pontos menos

acessíveis, onde é possível ter mais “liberdade” para o tráfico. Existem vários

jovens da própria comunidade que estão vivendo de “serviços ilícitos” ou que

partilham um mesmo estilo musical, entre eles o Funk “pancadão” que veem na

negatividade do bairro um instrumento positivo.

Ser temido, ser “o terror”, “o sinistro”, “o bonde do mal” se constitui num

dos muitos elementos da sua identidade social e alimentam as disputas

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55

territoriais entre galeras, gangues, quadrilhas e traficantes. Essa realidade gera

dificuldades na construção de relações de amizades e de redes impessoais, pois

impera a desconfiança sobre o morador daquele bairro que mesmo cumprindo

com todas as suas obrigações, não consegue ter retorno da garantia de direitos

socioeconômicos. Tal atitude amplia e consolida as imagens e ideias negativas

sobre o bairro, criando mais possibilidade de discriminação territorial daqueles

que não estão envolvidos com as “carreiras criminosas”, instituindo aquele

território como “lugar a ser evitado”, “zona de contaminação”, em zonas proibidas.

3. Considerações finais

Na análise de Wacquant (2005), o estigma territorial imposto aos “novos

párias urbanos” das sociedades contemporâneas produz efeitos sociais em seus

moradores. Isso promove efeitos de lugar: o sentimento de revolta, indignação

pessoal, desvalorização enquanto pessoa por ser pobre e morar na periferia da

cidade. Verifica-se que esse desvalor se traduz na ausência de investimentos pú-

blicos no seu bairro, sendo ele duplamente massacrado: primeiro por aqueles que

na falta de perspectiva se mostram ao mundo de forma negativa reforçando essa

visão tanto dos que estão dentro como para os “fora” de que devem ser evitados.

Nessa cidade tomada pelo medo e violência, o lugar onde os indivíduos e

grupos sociais se localizam define não somente como serão vistos, mas a maneira

como serão tratados, principalmente pelas instituições públicas. Define o

tratamento a que têm direito. Esses espaços periféricos estigmatizados

constituem-se em “territórios nus”, ou seja, territórios destituídos de direitos,

territórios onde a institucionalidade democrática está suspensa, em que a

exceção é a regra. Daí o medo e desconfiança da polícia não serem simplesmente

ausência de valores republicanos e democráticos.

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56

As formas de percepção desses territórios diluem as ideias universais de

igualdade e dignidade humana fazendo com que seus moradores sejam excluídos

da qualidade de homens, de cidadãos. Sob o imperativo do estigma territorial,

seus territórios se configuram em selvas, e eles em selvagens. Assim, a questão

colocada não é discutir se é verdade ou não tais estigmas e preconceitos, mas em

entender os efeitos que causam sobre as trajetórias dos moradores da periferia e

como eles legitimam por parte do Estado enquanto instituição tratamentos

desiguais. Mesmo que saibam que a maioria dessa massa é formada por

moradores que são trabalhadores, com um senso moral e ético consolidado que

querem viver em lugar melhor, com toda a infraestrutura a qual tem direito, que

sempre estarão nas ruas protestando contra esses estigmas que os ridiculariza,

tira oportunidades na vida e não apenas no mundo do trabalho, talvez nunca

visitem um espaço periférico classificado como violento e perigoso.

O estigma territorial acaba transformando-se num insulto moral, pois nega

aos moradores o direito de serem reconhecidos como cidadãos e pessoas dignas

(negam-lhe até o princípio da honestidade). Cobre-lhes sobre a humilhação da

suspeita de serem partícipes da criminalidade ou de serem proto-criminosos.

Impedem que eles se mostrem como são, preferindo as ideias e preconceitos

reproduzidos automaticamente, consolidadas por fatos e eventos que não

representam a totalidade do lugar onde moram.

Impõem-lhes um espelho que lhes ferem e lhes desrespeitam, pois lhe

negam o direito de autorrepresentação, de dizer quem são e de se verem

reconhecidos porque são. Enfim, até quando a voz dos espaços periféricos

continuará sendo ignorada? O que adianta fortalecer autoestima do bairro se

continua reprodução do preconceito territorial? Como as classificações sociais

dos territórios da cidade não são neutras e nem harmoniosas, mas envolvem

projetos de cidade, interesses políticos e controle do movimento das populações

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57

na cidade, precisamos politizar o debate do estigma territorial, indo além da

dimensão psicológica.

A forma de enfrentar essa questão tem vindo através da organização dos

moradores que buscam através das instituições do terceiro setor resgatar a

autoestima revalorizando a história do bairro, buscando diluir às imagens

negativas, como fazem inúmeras associações pelo país (Afro reggae, Cufa, etc.).

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Pierre-Félix Guattari: uma vida em várias direções

André Campos de Camargo1

Resumo: O objetivo deste texto é desenvolver uma biografia de Félix Guattari (1930-1992).

Procurar-se-á uma compreensão das práticas militantes, analíticas e filosóficas realizadas pelo

pensador francês.

Palavras-chave: biografia; filosofia francesa; práticas militantes; Guattari.

“Recordo-me da impressão, eu diria

fisiológica, que Guattari me causou de

imediato – uma espécie de estado

vibratório incrível, como um processo de

conexão. O contato com ele aconteceu ali, e

eu aderi mais ao movimento de energia do

que à personalidade, a pessoa. Sua

inteligência era excepcional, o mesmo tipo

de inteligência que Lacan, uma energia

luciferiana. Lúcifer sendo o anjo de luz”.2

Por ter vivido e trabalhado durante alguns anos em La Borde, de 1966 a

1972, Jean-Pierre Muyard percebe que Guattari portava uma luz natural, uma

originalidade de pensamento, um modo interdisciplinar e transversal de abordar

as várias questões de seu tempo. Diferente do anjo da história3 , do filósofo

alemão Walter Benjamin, o anjo de Muyard não tem o rosto só voltado para o

passado, ele não vê apenas as catástrofes acumuladas, não responsabiliza o

progresso pelos acontecimentos desastrosos do presente e mesmo quando é

1 Mestrando do programa de filosofia e história da educação, Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP). Contato: [email protected]

2 Em uma entrevista concedida a François Dosse, Jean-Pierre Muyard lembra seu encontro com

Félix Guattari em um seminário da oposição de esquerda que se realizou na cidade de Poissy em

1964.

3Neste trecho a figura do anjo da história de Walter Benjamim serve como contraponto ao anjo

de Muyard. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7° edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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63

impedido de agir, resiste. Esse anjo conhece os efeitos da desesperança quando

invadem a subjetividade humana, sabe do poder revolucionário do devir, pensa

cartograficamente o campo histórico, por isso se transmuta a todo instante em

militante político, analista e filósofo.

Caçula de uma família tradicional e conservadora, Pierrre-Félix Guattari

nasce em 30 de março de 1930 em Villeneuve-les-Sablons (atual Villeneuve-le-Roi)

próximo a capital francesa. Depois de alguns anos a família se instala em um HLM

(Habitation à Loyer Modere), conjunto habitacional em Cité des Oiseaux, em

Montrouge, região mais próxima de Paris. Em 1934 seu pai consegue um

empréstimo e se torna dono de uma pequena e próspera empresa de chocolates

em La Garenne-Colombes (cf. DOSSE, 2010, p. 30). Com o crescimento da empresa,

os pais do pequeno Pierre já não tinham a mesma disponibilidade de tempo para

o caçula. Foi nesse momento que o mal-estar causado pelo sentimento de

abandono transparece. Preocupados, os pais resolvem consultar um médico, que

recomenda ao menino uma temporada no campo.

É na casa dos avôs em Louviers, após a morte trágica do avô em 1939, que

o garoto reservado e tímido muda radicalmente de comportamento e se

transforma em uma criança extrovertida e expansiva. Exemplo dessa

transformação é a recusa do diretor da escola do bairro em aceitá-lo como aluno;

a saída na época para seus pais foi matriculá-lo em um estabelecimento distante

de sua casa.

Nos primeiros dias de aula, o pequeno Pierre conhece Fernand Oury, um

discípulo do pedagogo Célestin Freinet. Foi nas aulas de ciências naturais do

professor Oury, que depois se tornou célebre no campo da pedagogia

institucional, que Pierre se abre para o universo social e político (DOSSE, 2010, p.

30). Porém, o contato com o professor dura pouco, pois Fernand Oury desaparece

preso pelos nazistas em 1943. A passagem do professor de ciências, mesmo que

rapidamente, pela vida de Pierre foi extremamente motivadora, ao ponto dele se

inscrever, depois da Libertação em 1945, como colaborador nos Albergues da

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Juventude onde Oury era encarregado da coordenação. Os Albergues da

Juventude (AJ) permitiam aos adolescentes de famílias modestas viajarem em

férias pela França. Em uma das viagens realizadas pelo grupo, Pierre conhece um

rapaz com o mesmo nome, para diferenciá-los e facilitar a comunicação grupal,

pede que lhe chamem pelo seu segundo nome. O segundo nome acaba se

impondo e Pierre se transforma em Félix.

A partir de sua vivência nos Albergues da Juventude que estimulava nos

jovens a participação política em várias esferas da sociedade, Félix começa a

militar no Partido Comunista Francês (PCF), como também no Partido Comunista

Internacionalista (PCI), seção da IV Internacional Trotskista. Mesmo tendo seus

engajamentos reprovados pela família, ele continua participando ativamente dos

movimentos. Conjuntamente à militância, Félix obteve sucesso nos seus estudos

no liceu Paul-Lapie de Courbevoie e depois no liceu Condorcet, obtendo na série

final do ensino médio seu baccalauréat em filosofia-ciências em 1948 (DOSSE,

2010, p. 33).

Apesar de sua paixão pela filosofia, seguiu a sugestão do irmão mais velho,

Jean, e começou a cursar Farmácia em julho de 1948 em Bécon-les-Bruyères.

Desgostoso com o curso, repentinamente se vê reprovado nos exames do

primeiro ano. Desde 1946, Félix mantinha um namoro com uma jovem moça de

origem chinesa, Micheline Kao. Em 1951 decidem viver juntos na casa dos pais de

Kao. Nesse mesmo ano, Félix resolve definitivamente largar o curso de farmácia

e se inscrever em filosofia na Sorbonne. A sua paixão filosófica nesse momento é

Sartre, a ponto de adotar a linguagem sartriana e a temática existencialista em

seus escritos. Ao mesmo tempo em que mantinha o relacionamento com Kao,

Félix sustentava teoricamente um jornal existencialista e ainda arranjava tempo

para a militância no Partido Comunista Francês (PCF) e no Partido Comunista

Internacionalista (PCI), como também, nos Albergues da Juventude, além dos

contatos com militantes maoistas. Foi por meio de diferentes contatos em

diversos grupos militantes e de seu apoio à revolução liderada por Mao Tsetung,

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65

que Félix viajou para a China em 1951. Por conta dessas relações, Félix firmou

amizade com o historiador e sinólogo Jean Chesneaux, que na época fazia a

aproximação entre os intelectuais franceses e os militantes do Partido Comunista

Chinês (PCC) (DOSSE, 2010, p. 30).

Em 1952, Félix participa das reuniões de um grupo de estudantes de

filosofia da Sorbonne ligados ao PCF. Nessas reuniões, influenciados por Félix, os

jovens estudantes se dedicam, a partir do uso de pseudônimos, a escrever

panfletos de claro posicionamento trotskista. Intituladas Tribune de Discussion, as

publicações são postadas nas caixas de correio de outros estudantes ligados ao

PCF, causando profundo descontentamento entre os mais ortodoxos. Por esse

motivo, Félix e alguns amigos do grupo de filosofia foram expulsos em 1958 da

União dos Estudantes Comunistas (UEC), grupo ligado ao PCF.

No final dos anos 50, Félix deixa o Partido Comunista Francês e

acompanhado de seu amigo Raymond Petit edita o jornal A Via Comunista.

Nascido em plena contestação da guerra da Argélia, o jornal se preocupava em

debater questões ligadas à política colonial francesa. No início de 1961, como

repórteres do jornal, Félix e mais dois amigos realizam uma entrevista com Sartre,

abordando assuntos ligados à guerra de independência da Argélia e o

posicionamento do Partido Comunista Francês no cenário mundial. Entre 1958 e

1965, o jornal publicou 49 números sem nenhum apoio institucional. Os assuntos

ligados à política eram variados e o posicionamento dos membros do jornal era

uma mistura de trotskismo e maoismo. Descontente do caminho seguido pelo

jornal, Félix afasta-se em 1964 do grupo. Em 1965 ao publicar o Manifesto dos

121 sobre o direito à insubmissão na Guerra da Argélia, o grupo viu suas edições

apreendidas e seus editores ameaçados de prisão pela polícia, era o fim do jornal.

Além de sua identidade de militante político, Félix era admirado na

Sorbonne por sua prática como psicanalista junto à clínica La Borde e pelo seu

conhecimento das teses lacanianas. Seu encontro com o psiquiatra Jean Oury,

fundador da clínica La Borde, se deu em 1945 em uma das reuniões que o irmão

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66

de Oury, Fernand, realizava com os membros do Albergue da Juventude (AJ). A

amizade entre Félix e Jean só começou a se estreitar em 1950, quando Jean

aconselhou Félix a ler as obras de Lacan, como ainda em mantê-lo a par das

pesquisas desenvolvidas por esse teórico, já que seu tempo era consumido

integralmente pelas práticas psiquiátricas. A partir da amizade com Oury, Félix se

torna fascinado pelos textos de Lacan. Em 1953 no Collège de Philosophie, na Rue

de Rennes, Félix segue fielmente as conferências de Lacan sobre Goethe. Um ano

depois, é o primeiro não psiquiatra a ser convidado por Lacan para assistir o seu

seminário em Sainte-Anne. Nesse momento, Lacan realizava suas pesquisas

objetivando compreender o funcionamento da língua, já que a linguística estava

se tornando, nesse momento, uma importante ferramenta de pesquisa.

A demonstração de sua aproximação com Lacan se deu a partir do

momento em que Félix começou a frequentar o divã do psiquiatra. A vida de Félix

estava mudada, suas atividades intelectuais se concentravam para a absorção dos

saberes lacanianos. Em suas anotações registradas em seu diário, Félix deixa

transparecer um tema que estava presente nos cursos de Lacan, e que depois

seria trabalhado e aprofundado por ele: a noção de máquina (DOSSE, 2010, p. 36).

A prática clínica de Félix se realizava em La Borde, um antigo castelo

localizado na comuna de Cour-Cheverny, na região de Chambord, próximo a Blois,

transformado em uma clínica psiquiátrica em 1953. Circunscrito em um parque

de 18 hectares, o castelo contava com o essencial para o funcionamento de uma

clínica. Este local de renovação psiquiátrica foi inspirado na clínica psiquiátrica

fundada em 1921 pelo doutor Tissot em Saint-Alban, em Lozère. A clínica de

Saint-Alban, além de realizar durante a Segunda Guerra Mundial mudanças nas

práticas psiquiátricas, serviu de reduto para a resistência francesa enquanto a

guerra durou. Com a chegada do psiquiatra catalão François Tosquelles, fugido

da Espanha franquista por ser o responsável pelo serviço psiquiátrico do exército

republicano espanhol, a clínica de Saint-Alban se transforma, com sua

colaboração, em um centro de renovação psiquiátrica. Os posicionamentos

Page 68: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

67

emancipatórios de Tosquelles foram inspirados pela experiência clínica do

psiquiatra alemão Hermann Simon, criador da terapêutica ocupacional.

Jean Oury se dirigiu para Saint-Alban em 1947, para engrossar o quadro

de pessoas comprometidas com posicionamentos de renovação psiquiátrica. Sua

admiração por Tosquelles é imediata e sua proposta de compor com os colegas

um trabalho libertário fez de Oury um membro respeitado e admirado pelo grupo.

Jean Oury permanece em Saint-Alban até 1949, quando é chamado para

substituir, em Saumery, um amigo de Tosquelles. É em Saumery, na clínica de La

Source que se forma a futura equipe que iria compor os quadros profissionais de

La Borde. Em Saumery, Oury desenvolve e aperfeiçoa sua prática psiquiátrica na

linha de Saint-Alban. Contudo, pressionado pelos proprietários da clínica que

queriam retomá-la, Oury decide levar a experiência para outro lugar. Em 1953

descobre que o castelo de La Borde, próximo dali, estava à venda. Ele o adquiriu

e levou consigo todos os internos de Saumery e sua equipe.

A nova clínica fundada por Jean Oury parte do pressuposto que o grupo

terapêutico deve se organizar a partir de três princípios: primeiro, o princípio do

centralismo democrático, que assegurava as decisões mais importantes para o

grupo gestor; segundo, o princípio de revezamento das tarefas, que toda pessoa

deve ser capaz de passar do trabalho manual ao trabalho intelectual e vice-versa;

terceiro, o princípio da antiburocracia, no qual instituía uma organização

comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários.

Esses princípios fazem com que o grupo terapêutico de La Borde se desfaça de

suas especializações e hierarquizações e que não reproduza o que se passava na

maioria das clínicas da França na época.

Desde 1950, Félix mantém Jean Oury atualizado de sua militância política

e dos seminários de Lacan. Em 1955 é convidado a se instalar em La Borde com

sua companheira Micheline Kao. Ela trabalha na clínica como secretária médica,

além de se dedicar a outras atividades. Félix é incumbido da organização do

trabalho e do clube terapêutico da clínica. Aproveitando os espaços de trabalho

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68

para manter um diálogo amplo com os cuidadores e com os pacientes, Félix

procura acabar com determinados papéis estereotipados, fazendo com que todos

fizessem de tudo dentro da clínica. Espantados pelo dinamismo de suas ideias e

pela facilidade que as colocava em prática, logo é apelidado de “Speedy Guatta”.

Depois de um ano vivendo em La Borde, Micheline Kao se separa de Félix e se

muda da clínica. Abatido, Félix conhece a nova monitora, Nicole Perdreau, que

acabara de chegar à La Borde. Desse encontro nascem seus três filhos: Bruno,

Stephen e Emmanuelle.

Depois de algum tempo instalado em La Borde, Félix convida alguns

amigos do mundo da cultura e da militância de esquerda para se instalarem

temporariamente na clínica. A vinda dos estudantes pode ser explicada

principalmente pelo desejo de conhecerem o mundo da psiquiatria, como

também, de constatarem uma “utopia” sendo realizada em uma instituição. La

Borde também era um local de encontros, já que um tempo importante das

atividades com os pacientes era destinada à organização de festas que recebiam

pessoas de toda região.

Em 1960, Jean Oury e outros psiquiatras, além de Félix, criam um grupo de

reflexão sobre a prática psiquiátrica: o Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de

Socioterapia Institucionais (GTPSI). O grupo define um campo teórico e prático

de pesquisa e intervenção que recebe o nome de psicoterapia institucional.

Inicialmente Félix modera suas intervenções, mas depois de algum tempo elas se

tornam longas e fundamentadas; o segredo dele estava em relacionar os vários

campos do conhecimento em geral com o campo da psiquiatria. Já com uma

experiência acumulada, Félix participa da criação da Escola Freudiana de Paris

junto com Lacan, em 1964.

Um ano depois Félix cria a Federação de Grupos de Estudo e de Pesquisas

Institucionais (FGERI) com o objetivo de converter o trabalho intelectual em um

grupo de pesquisa transdisciplinar e não acadêmico. Em torno do projeto se

associam professores, urbanistas, arquitetos, economistas, cineastas etc. Para dar

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maior visibilidade aos trabalhos realizados, o grupo publica a revista Recherches

em 1966. A revista preconizava as pesquisas que se desenvolviam a parir de

práticas sociais e institucionais, fugindo dos estudos puramente conceituais em

voga na França. Em junho de 1967, sob a direção de Liane Mozère, a revista

Recherches deixa de publicar em suas edições mensais assuntos diversificados

para centralizar suas análises em temas específicos. Ainda nesse mesmo ano, Félix

participa junto a Liane Mozère da criação do CERFI, um organismo agregador de

grupos autônomos e livres de pesquisadores. A proposta desse grupo de

pesquisa era criar uma vida comunitária entre os seus membros. Ao mesmo

tempo em que Félix participa da revista Recherches e da CERFI, ele colaborava

ativamente com a Oposição de Esquerda (OG), uma nova organização política,

bastante atuante no meio estudantil, e que mantinha um pequeno jornal, o

Bolletin de l’Opposition de Gauche (BOG). Ainda no ano de 1967, Félix e alguns

amigos criaram a Organização de Solidariedade à Revolução Latino-Americana

(OSARLA).

1967 é também o ano em que Félix se apaixona por uma jovem enfermeira

de uma clínica de Marseille, que foi estagiar em La Borde, Arlette Donati. Sua

ligação com a estagiária leva Félix a romper com sua esposa Nicole Perdreau.

Paralelamente à sua vida com Arlette, Félix se envolve com muitas outras

mulheres. A postura de liberação sexual e de questionamento de todas as formas

de familiarismos fazia parte, naquele momento, da capacidade de um

revolucionário romper com os padrões normativos da sociedade.

Quando os movimentos de contestação estouram em 68, Félix vê no

movimento estudantil o grupo capaz de conduzir a luta social sem ser capturado

pelos aparelhos burocráticos. Entusiasmado pelos acontecimentos, Félix vai de

Paris a La Borde para convocar toda a equipe e os pacientes da clínica para

participarem das manifestações nas ruas parisienses (DOSSE, 2010, p. 148). Sua

participação na articulação e no planejamento das ações revolucionárias de Maio

de 68 pode ser constatada pelas ações realizadas por ele e seus amigos, como

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70

por exemplo, a ocupação do Instituto Pedagógico Nacional e do Théâtre de

L’Odéon.

Em junho de 1969, em La Borde, Jean-Pierre Muyard decide apresentar

Félix a Gilles Deleuze. Mayard estudara medicina em Lyon no final dos anos 1950.

Militante, se torna presidente em 1960 da Union Nationale des Étudiants de France

(UNEF). Paralelamente à especialização em psiquiatria, faz cursos em sociologia

na Faculdade de Letras de Lyon. Seu encontro com Félix ocorre em 1964, por

ocasião de um seminário que se realizou em Poissy. Em 1966 é convidado a

clinicar em La Borde, onde permanece até 1972. Quando era estudante em Lyon

ouvira falar dos cursos de Deleuze com admiração. Em 1967 fica entusiasmado

com a publicação de Sacher-Masoch e se aproxima de Deleuze, com quem

mantém um canal de diálogo sobre o mundo dos psicóticos. O encontro

articulado por Muyard entre Félix e Deleuze ocorre em Saint-Léonard-de-la-

Noblat, em Limousin. O encontro é descrito por François Dosse(2010, p. 14),

como uma sedução mútua e imediata entre os dois pensadores. Após o contato

com Deleuze, Félix aproveita para aprofundar sua contestação ao lacanismo e

iniciar seu período de grande produção escrita. Guattari entra em cena.

Lacan fica sabendo da empreitada mútua de Guattari e Deleuze em

escrever um texto sobre psicanálise. Com medo de eventuais críticas, pede a

Guattari os manuscritos do livro, que viria a ser publicado em 1972. O pedido de

Lacan é rejeitado, porém Guattari procura tranquilizá-lo, explicando algumas

noções não relacionadas diretamente às teses lacanianas. O objetivo de Guattari

na época não era escrever um texto contra Lacan, mas superar o lacanismo

(DOSSE, 2010, p. 158). Um tempo depois, quando Lacan toma conhecimento do

caráter devastador da obra em relação as suas teses, o vínculo com Guattari é

definitivamente rompido.

O grupo de pesquisa CERFI, no qual Guattari participa como membro

permanente, começa, a partir de 1970, a obter vários contratos de pesquisa,

sendo o mais importante com o Ministério do Equipamento Francês. Desse

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71

ministério, o grupo recebeu grandes verbas para ajudar a identificar as zonas em

que o governo poderia intervir para atender melhor às necessidades públicas. A

primeira ação do CERFI em 1971 foi realizar para o Ministério do Equipamento

uma pesquisa sobre as possibilidades da implantação de um hospital psiquiátrico

na cidade de Évry. O sonho de uma pesquisa coletiva remunerada se tornava

realidade (DOSSE, 2010, p. 224).

Os princípios esquizoanalíticos desenvolvidos por Guattari são colocados

em prática para a integração do grupo. Nas reuniões eram discutidas as pesquisas

em curso, mas ainda a implicação subjetiva de cada um para com o grupo. Além

dessa análise coletiva, as reuniões serviam para esquerdistas de toda Paris

exporem seus projetos a procura de financiamento. Em 1973, o grupo está no

auge, graças às suas pesquisas que lhes rendem contratos vantajosos e à

repercussão das pesquisas publicadas na revista Recherches. Entre as edições mais

célebres da revista aparece a edição especial sobre os equipamentos coletivos, na

qual Deleuze e Foucault são convidados para uma série de debates em torno da

questão. Outra edição que marcou a história da revista foi um número sobre as

homossexualidades. Esse número foi lançado em março de 1973 com o título Três

Bilhões de Perversos e contou com a participação de grandes intelectuais

franceses, entre eles: Deleuze, Guattari, Jean Genet, Michel Foucault, Jean-Paul

Sartre e Jean-Jacques Lebel. Apesar de contar com o apoio e a participação dos

maiores intelectuais franceses da época, o número dedicado às

homossexualidades é apreendido pela polícia e o diretor da publicação, Guattari,

é processado e condenado a pagar uma multa por ser contra os bons costumes

(DOSSE, 2010, p. 228). Aproveitando o bom momento, Guattari publica em 1974,

pela editora François Maspero, uma coletânea de ensaios escritos entre o ano de

1955 a 1970, intitulada Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise

institucional. Um ano depois, com Deleuze publica Kafka: por uma literatura

menor.

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Com a chegada de Valéry Giscard d’Estaing ao poder em 1975, o CERFI

deixa de contar com os grandes contratos provenientes do Estado. Foi nesse

momento que o Ministério dos Equipamentos propôs incorporar alguns

pesquisadores do grupo, no entanto a posição tomada foi de recusa. Para fazer

frente a falta de recursos, o grupo decide colocar em prática uma política de

edição de livros com a criação da coleção Encres (Tintas) e a reedição em formato

de bolso de alguns números de maior tiragem da revista Recherches (DOSSE, 2010,

p. 229). A partir desse momento, a revista Recherches se transforma em uma casa

editorial e a coleção Encres publica em 1977: La Révolution Moléculaire, de

Guattari e La Force Dehors, de George Préli. De forma geral, desde 1971 até 1977,

podem-se agrupar as múltiplas publicações do grupo em três grandes setores,

são eles: primeiro, a loucura, pois parte dos membros do grupo tiveram como

suporte teórico e prático para o desenvolvimento de suas pesquisas as

experiências na clínica La Borde; segundo, uma vertente das publicações é

consagrada aos mundos disciplinares, pois as pesquisas giravam em torno da

interrogação sobre o passado e o presente das instituições do Estado em uma

abordagem inspirada em Foucault; terceiro, uma parte das publicações foram

dedicadas à questão da sexualidade. As abordagens utilizadas para essas

publicações foram múltiplas(DOSSE, 2010, p. 231). Dois anos depois da

publicação de Revolução Molecular, Guattari publica O inconsciente maquínico:

ensaios de esquizoanálise, também pela editora Recherches.

Algumas discordâncias entre alguns membros do grupo a respeito da

extrema esquerda italiana e alemã, atuantes no final dos anos 70, leva o CERFI a

uma divisão interna. Em 1981 Guattari se afasta da direção da Recherches

deixando para Liane Mozaré o comando da revista. Depois da reviravolta

administrativa, a Recherches deixa de ser apresentada como uma revista do CERFI.

Publica mais alguns números e encerra suas atividades no início de 1983 (DOSSE,

2010, p. 232).

Page 74: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

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No ano de 1972 Guattari conhece o francês Sylvére Lotringer, professor da

Universidade de Columbia e admirador da obra O Anti-Édipo. Em 1974, Lotringer

aproveita suas férias em Paris para trabalhar conjuntamente com Guattari no

CERFI. Dessa parceria resultará um número da revista sobre Saussure. Influenciado

pelos ares parisienses, decide, nesse mesmo ano, publicar nos Estados Unidos a

revista Semiotext(e). A revista tinha como objetivo divulgar o pensamento de

alguns filósofos franceses no meio acadêmico estadunidense, em especial o

pensamento deleuzo-guattariano. Em 1975, Lotringer e seu amigo John

Rajchman decidem organizar, com uma pequena equipe, um simpósio dedicado

à “Esquizocultura” na Universidade de Columbia. Inicialmente, o grupo esperava

contar com a participação de alguns intelectuais franceses de renome, entretanto,

logo se viram sem recursos financeiros. Para que o problema fosse resolvido, o

grupo busca ajuda do responsável pelas missões francesas no exterior, Yves

Mabin, que decide ajudar. Resolvido o problema financeiro, o grupo tem a

oportunidade de convidar para o simpósio, além de Guattari e Deleuze, Jean-

François Lyotard, Jean-Jacques Label e Michel Foucault. Dos cinco convidados

franceses, apenas Deleuze, avesso às viagens e congressos, não aceita o convite

de imediato, ocasionando um novo problema. Mais uma vez Yves Mabin é

chamado, não mais para resolver dificuldades de ordem econômica, mas para

convencer Deleuze da importância de sua presença no simpósio. Depois de uma

longa conversa, Mabin acaba convencendo-o (DOSSE, 2010, p. 380).

Lotringer, por sua vez, convida alguns intelectuais estadunidenses de

renome para participar do simpósio, como é o caso do filósofo e crítico de arte

Arthur Danto e o psiquiatra Joel Kovel, além do compositor e teórico musical John

Cage, do escritor William Burroughs, do dramaturgo Richard Foreman e da

feminista Ti-Grace Atkinson. Confirmada a presença dos palestrantes

estadunidenses e franceses, a rádio WBAI, emissora da esquerda nova-iorquina,

convida exaustivamente durante toda a semana a população para fazer parte do

evento. Mesmo com o pagamento de quinze dólares para participar do simpósio,

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74

uma vasta multidão comparece nas apresentações. A primeira apresentação do

grupo francês fica a cargo de Deleuze. Sua estratégia é não utilizar um tradutor,

falar bem devagar e usar um quadro para expressar suas ideias. Sua recepção por

parte do público é satisfatória. O mesmo não acontece com Guattari e Foucault.

Guattari prefere a tradução simultânea e quando começa a desenvolver seu

raciocínio ligado a questão do desejo, a feminista Ti-Grace Atkinson e suas

companheiras, aos gritos, acusam-no de falocrata. Depois chega a vez de

Foucault ser a vítima, quando começa o seu discurso sobre a sexualidade da

criança, criticando alguns pontos da Escola de Frankfurt, vê um grupo marxista, o

Comitê Sindical Revolucionário Larouche, acusar-lhe de ser pago pela CIA. Muito

abalado pelas agressões, Foucault não consegue dormir bem à noite, mas se

prepara para enfrentar as novas ofensas. No dia seguinte, a mesma cena: um

provocador o acusa de ser agente da CIA. No mesmo instante Foucault rebate:

eu e meus amigos somos todos agentes da CIA, menos o senhor que é um agente

da KGB. O sujeito fica quieto, a plateia cai na gargalhada e Foucault continua sua

argumentação. Terminado o simpósio, o grupo percebe que os enfrentamentos

foram importantes para que a obra de Guattari e Deleuze pudesse ser conhecida

entre os estadunidenses. A eficiência do encontro pode ser comprovada pelo

sucesso que a tradução do livro O Anti-Édipo, prefaciado por Foucault, obteve

nos Estados Unidos em 1977 (DOSSE, 2010, p. 382).

A viagem para Guattari e Deleuze não termina com o fim do simpósio.

Guiados por Jean-Jacques Label, eles percorrem alguns meios alternativos nos

Estados Unidos. Primeira parada é Lowell, no estado de Massachusetts, para um

show de Bob Dylan e Joan Baez, com a participação do poeta Allen Ginsberg. Em

seguida, o pequeno grupo assiste no estado da Califórnia a apresentação da

poetisa e musicista Patti Smith. À noite vão à cidade de San Francisco para

encontrar o poeta Lawrence Ferlinghetti, e em seguida seguem a estrada para

visitar a casa do escritor Henry Miller em Big Sur. Depois dos encontros com os

poetas e escritores da geração beat, Label leva Guattari para conhecer o psicólogo

Page 76: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

75

Arthur Jdanov, mais conhecido por ter iniciado John Lennon na “Terapia do Grito

Primal”. Nessa viagem, Guattari conhece também uma antiga atriz de teatro

francesa, Martine Barrat que o leva para conhecer as gangues do Bronx e do

Harlem, onde realiza trabalhos com fotografia e vídeo (DOSSE, 2010, p. 383). A

viagem de Deleuze e Guattari pelos Estados Unidos pode ser chamada de uma

pequena On the Road.

Ainda em 1972, Guattari conhece a brasileira Suely Rolnik, tornando-se

analista e amigo desta. Em 1982, convidado por Rolnik, Guattari desembarca pela

segunda vez no Brasil em meio às campanhas eleitorais para governadores,

deputados e vereadores (GUATTARI & ROLNIK, 2000, p. 11). Participa de várias

reuniões, renovando o modo de problematizar as questões colocadas

tradicionalmente pelos representantes dos diversos campos sociais, inclusive o

educacional. Aproveita esse momento de transformações políticas para conversar

e entrevistar Lula, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse mesmo ano a

entrevista é publicada, com o título Guattari entrevista Lula, pela editora

Brasiliense. Em 1986 é lançado o livro Micropolítica: cartografias do desejo,

assinado por Suely Rolnik e Félix Guattari. Essa obra é resultado dos registros

feitos pela analista dos debates, mesas-redondas, conferências e entrevistas

concedidas por Guattari em sua passagem pelo Brasil em 1982. Na última vez que

Guattari esteve no Brasil, em maio de 1992, foi organizada uma mesa redonda

pela Editora 34 e o colégio Internacional de Estudos Filosóficos no Rio de Janeiro,

para o lançamento de seus dois últimos livros, Caosmose: um novo paradigma

estético e em coautoria com Gilles Deleuze, O que é a filosofia? (DOSSE, 2010, p.

396).

Exatamente uma década depois de Maio de 68, Guattari observa irromper

na Itália, em meio a uma crise econômica sem precedência na história do país,

uma revolução contra os aparelhos de poder do Estado. Porém, não são as

reivindicações por melhorias salariais e aumento dos empregos que mobilizaram

amplamente o movimento, mas questionamentos ligados às relações de poder, a

Page 77: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

76

falta de espaços coletivos de convívio e de lugares autogeridos, etc. Nesse grande

caldeirão contestatório se reuniam desde os grupos que faziam uso do terrorismo

até aqueles que buscavam por meio de uma nova linguagem e métodos

totalmente originais modificar as estruturas políticas e sociais italianas. Foi

principalmente nesse segundo grupo que as teses deleuzo-guattarianas,

particularmente aquelas que estavam presentes n’O Anti-Édipo, traduzido para o

italiano três anos antes, foram colocadas à prova (DOSSE, 2010, p. 238).

Outra obra presente nos agitados anos de protesto na Itália foi Psicanálise

e Transversalidade de Félix Guattari. Esse livro, em particular, marcou a vida do

coordenador da Rádio Comunitária Alice de Bolonha e antigo dirigente do grupo

esquerdista Potere Operaio (Poder Operário), Franco Berardi (Bifo). Acusado de

incitação à revolta, Bifo teve que fugir para a França em 1977. Em Paris é recebido

pelo seu amigo e pintor Gianmarco Montesano e pelo filósofo Toni Negri que o

leva até Guattari. Em junho desse mesmo ano, Bifo é preso pela polícia francesa

e ameaçado de extradição. Um mês depois, é considerado não extraditável e

consegue se instalar na França como refugiado político. O local escolhido para

morar foi a casa de Guattari, na Rue Conde. Dessa amizade nasce o livro

prefaciado por Guattari sobre a rádio Alice (DOSSE, 2010, p. 241).

Em setembro de 1977 toda a extrema esquerda italiana se reúne para um

grande encontro de três dias na cidade de Bolonha. Bifo passa esses dias se

informando ao telefone sobre os principais acontecimentos do encontro. Guattari,

por sua vez, estava nas ruas de Bolonha acompanhando tudo de perto.

Considerado por muitos como um dos principais inspiradores do esquerdismo

italiano, Guattari vê suas teses serem debatidas e colocadas à prova pelos diversos

grupos que estavam presentes, desde a ala terrorista à corrente da autonomia

operária, passando pelos índios Metropolitanos, pelas feministas, pelos

homossexuais, pelas lésbicas vermelhas, etc. Depois da realização do encontro, a

imprensa italiana publica a foto de Guattari na capa dos jornais apresentando-o

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77

como idealizador do movimento que agitou a cidade de Bolonha (DOSSE, 2010,

p. 242).

Alguns meses depois do encontro em Bolonha, Guattari recebe a visita de

dois representantes das comunidades alternativas da Alemanha ocidental. O

motivo da visita era buscar apoio internacional para enfrentar a repressão do

governo alemão contra os membros dessas comunidades. A situação repressiva

havia se instalado por conta do governo alemão acusar alguns membros das

comunidades alternativas de envolvimento com o bando de Baader Meinhof.4

Guattari decide apoiar o grupo, no entanto não pôde viajar imediatamente para

a Alemanha, pois havia se comprometido em visitar no Brasil o líder do Partido

dos Trabalhadores, Luis Inácio Lula da Silva. Retornando do Brasil, Guattari vai

diretamente para a Alemanha participar das mobilizações esquerdistas (DOSSE,

2010, p. 244).

Acusado por determinados intelectuais europeus de apoiar membros ou

simpatizantes dos grupos terroristas na Itália e Alemanha, Guattari parece ter feito,

como mostra François Dosse, um trabalho de dissuadir, mais do que condenar, os

que nutriam simpatias pelas ações terroristas. Esse posicionamento parece ser

comprovado pela aproximação que Guattari teve com os antigos militantes da

extrema esquerda italiana. Como é o caso do fundador do grupo Potere Operaio

(Poder Operário) e da Autonomia Operaia (Autonomia Operária) o filósofo Toni

Negri. Negri foge para Paris em setembro de 1977, após ter um mandato de

prisão expedido pela justiça italiana. Durante os anos de 1978 e 1979 começa a

dividir seu tempo entre França e Itália, e é nesse momento que Negri assiste às

aulas de Deleuze sobre Espinosa. Em 1979 é preso pelas autoridades italianas

pelo envolvimento no assassinato do líder da Democracia Cristã, Aldo Moro. Após

a prisão, Deleuze redige uma carta aos juízes defendendo a inocência de Negri.

Mesmo com o apoio de parte dos intelectuais franceses, Negri ficará preso até o

4O Bando Baader Meinhof, cujo nome oficial era Rote Armee Fraktion, foi um grupo de esquerda

engajado na luta armada contra o governo da Alemanha ocidental na década de 70.

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final do processo, em 1983, como também será condenado a 30 anos de prisão

por constituição de associação subversiva e de grupo armado. Antes da

condenação definitiva, para ajudar o amigo a suportar a prisão, Guattari propõe

a Negri em 1982 escrever um livro juntos, mas em junho de 1983 Toni Negri é

libertado por ter sido eleito deputado europeu pelo Partido Radical italiano.

Vendo sua imunidade parlamentar ser retirada e com medo de voltar à prisão,

foge para a Córsega em um navio provavelmente pago por Guattari. Da Córsega

segue para Paris, onde finalizará com Guattari o livro Les Nouveaux Espaces de

Liberté (Novos espaços de liberdade), publicado em 1985. Nesse livro, os autores

defendem um novo comunismo como uma via de uma libertação das

singularidades individuais e coletivas (DOSSE, 2010, p. 247). Nesse mesmo ano,

Guattari publica um conjunto de entrevistas entre ele, Jean Oury e François

Tosquelles, intitulada Pratique de l’institutionnel et politique pela editora Matrice,

de Paris.

Ainda no final dos anos 70, Guattari se envolve na luta pelas rádios livres

na França. É a partir desse envolvimento que ele e mais algumas personalidades

do meio acadêmico assinam um apelo da Associação pela Liberdade das Ondas

(ALO) a favor da liberdade de transmissão para as rádios livres. Logo depois,

Guattari funda a Federação Nacional das Rádios Livres Não Comerciais e com

François Pain criam a Rádio Libre Paris, que se torna em dezembro de 1980 a

Rádio Tomate. A emissora transmite, 24 horas por dia, assuntos relacionados ao

cinema, música, teatro, além de debates e análises políticas (DOSSE, 2010, p. 249).

De meados dos anos 70 até 1989 Guattari encontra tempo para participar,

em companhia de Mony Elkaïm, Robert Castel e Franco Basaglia (1924-1980), da

Rede Alternativa à Psiquiatria. Sua participação nesse grupo não significa a

adesão completa de Guattari aos posicionamentos da antipsiquiatria italiana de

Basaglia, nem seu engajamento na antipsiquiatria inglesa de Ronald Laing e David

Cooper, muito menos seu apoio incondicional à antipsiquiatria alemã do doutor

Hubber. O que Guattari procura nesse momento é a constituição de um grupo

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79

que combata determinadas práticas psiquiátricas em vários lugares do mundo

(DOSSE, 2010, p. 278). Em 1980 ocorre à publicação de Mil Platôs: capitalismo e

esquizofrenia, obra colossal assinada por Deleuze e Guattari.

Após a eleição de 1981 na França, o presidente eleito François Mitterrand

nomeia Jack Lang para ocupar o Ministério da Cultura. Tal notícia é bem recebida

por grande parte dos intelectuais franceses, inclusive Guattari, que vê nesse

governo uma disposição para transformar profundamente as práticas culturais.

Quando Lang é acusado de tentar estatizar a cultura francesa, Guattari escreve

um artigo em sua defesa. Aos poucos Guattari ganha espaço e respeito dentro

do ministério da cultura e começa a sugerir várias ideias. Entre elas, aquelas que

foram propostas no início dos anos 80, como a criação de uma quarta rede de

televisão cultural, voltada para a criação e a experimentação e a criação de uma

fundação para iniciativas locais que busquem inovações institucionais, pesquisas

em ciências sociais e animação. E aquelas que foram propostas no final dos anos

80, como uma exposição universal para 1989, ano do bicentenário da Revolução

Francesa, sobre o tema: “Encontro do Quinto Mundo” que reuniria representantes

de minorias étnicas de todo o mundo e a sugestão para a implantação de um

colégio internacional de filosofia. Além dessas ideias, Guattari se ocupa do

centenário de Kafka e ainda presta alguns serviços discretos, como por exemplo,

a redação do discurso de Mitterrand sobre a cultura na Sorbonne. Como

agradecimento pelos serviços prestados, Guattari é homenageado pelo ministro

Lang com o título de comendador das Artes e das Letras em 1983 (DOSSE, 2010,

p. 314). Foi durante esse período, especificamente em 1985, que Guattari

escreveu os textos que ficaram conhecidos como Os 65 sonhos de Franz Kafka5.

A relação de proximidade de Guattari com o ministério da Cultura não o impede

de manifestar suas discordâncias com o governo de Mitterrand. Em 1983, o porta-

5 Os Textos foram publicados pela primeira vez, em 2002, no jornal Le Magazine Littéraire, com o

título Kafka o rebelde. Posteriormente em 2007, os textos foram organizados e publicados como

livro pela editora Nouvelles éditions Lignes, com o título: Soixante-cinc rêves de Franz Kafka et

autres textes. No Brasil a editora n-1utilizou os textos para produzir o livro Máquina Kafka.

Page 81: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

80

voz do governo, Max Gallo, se queixa do silêncio dos intelectuais de esquerda

que não defendem a política seguida pelo governo. Prontamente, Guattari

condena esse posicionamento por acreditar que os intelectuais de esquerda não

deveriam se erigir em porta-vozes do governo. Um ano depois, Guattari

repreende publicamente a atitude do governo em extraditar os nacionalistas

bascos do ETA para a Espanha. Ele, Deleuze e Châtelet, assinam uma carta aberta

enviada a François Mitterrand e ao primeiro-secretário do Partido Socialista,

Lionel Jospin, no jornal Le Monde intitulada: “Por um direito de asilo político uno

e indivisível” (DOSSE, 2010, p. 315).

Paralelamente às atividades de apoio e crítica ao governo Mitterrand,

Guattari encontra tempo para apoiar a causa da Frente Sandinista na Nicarágua

contra a ditadura de Somoza e se engajar nos movimentos ecológicos franceses.

Do cruzamento da experiência ecológica, com as análises das relações sociais e

das subjetividades humanas, Guattari acumula material para a elaboração do livro

As três ecologias, publicado em 1989. Três anos antes, Guattari publica o livro Les

années d’hiver (1980-1985), pela editora Bernard Barrault (DOSSE, 2010, p. 319).

Durante a década de 80 Guattari experimenta vários tipos de expressão literária:

romances, poesias, peças de teatro, roteiros, confissões, ensaios críticos, etc. Entre

essas várias maneiras de se expressar destacam-se: 1) Uma coletânea de poemas

de 1986, que acaba não sendo publicada. 2) Uma autobiografia fragmentária

intitulada “Ritornelos”, de 80 páginas, divididas em dois números e publicadas em

1999 com ilustrações do pintor francês Gérard Fromanger. 3) Duas peças de

teatro, a primeira, escrita em 1985, “Le Maître de Lune”, não encenada, e a segunda,

intitulada “Sócrates”, encenada no Théâtre Ouvert. 4) Dois textos sobre arte

escritos por Guattari, o primeiro de 1980 sobre o afresco intitulado “A noite, o Dia”

e o segundo, de 1986, comentando a série “Cythére, ville nouvelle”, ambas de

Fromanger. 5) Um roteiro de cinema para o amigo, o diretor Robert Kramer, no

início dos anos de 1980, batizado de “Unamour de UIQ”. Além disso, um texto

sobre cinema intitulado “O cinema: uma arte menor” publicado na edição

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81

francesa do livro A revolução molecular. 6) Um texto sobre enunciação

arquitetural, publicado em 1988 (DOSSE, 2010, pp. 350-352).

Vários acontecimentos, em meados da década de 1980, desestabilizam

emocionalmente Guattari. Primeiro perde a locação do castelo de Dhuizion,

próximo à clínica La Borde. Em seguida é despejado do apartamento parisiense

da Rua Condé. Depois, se envolve em um relacionamento amoroso bastante difícil

com uma mulher trinta anos mais nova, Joséphine. Para piorar a situação, perde

sua mãe. Somam-se a essas perdas, as dolorosas crises de cólica renal, o clima

político de reação na França e o ressurgimento do racismo em sua expressão

política com a extrema-direita de Jean-Marie Le Pen. É nesse estado de fragilidade

emocional que Guattari e Joséphine se casam em 1986 e vão morar em um

excelente apartamento na Rua Saint-Sauveur. Enquanto Guattari se endivida para

adquirir o apartamento e custear as múltiplas despesas de Joséphine, ela o

incomodava com numerosos casos amorosos. Um deles é o relacionamento

duradouro com o escritor Jean Rolin, que a homenageia com um livro após sua

morte por overdose em 1993 (DOSSE, 2010, p. 347).

Mesmo vendo sua saúde piorar devido aos vários infartos que sofre em

1990, Guattari não se cuida e continua a trabalhar normalmente em La Borde.

Para facilitar sua relação com os pacientes e escapar um pouco do contato com

Joséphine, Guattari aluga uma casa próxima à clínica e monta um pequeno

escritório. Na noite de 29 de agosto de 1992, falece em seu escritório, aos 62 anos

de idade. Junto ao seu corpo, sobre a mesa, são encontrados os livros Les Chiens

d’Éros, de D.H. Lawrence e Ulisses, de Joyce em inglês. No enterro, ao som de uma

orquestra de jazz, uma multidão de amigos comparece para se despedir daquele

que a partir da militância política, da análise e da filosofia fez de sua vida uma

obra heterogênica (DOSSE, 2010, p. 403).

O anjo de Pierre Muyard (Guattari) contou com vários intercessores, entre

eles: Antonio Negri, Sueli Rolnik e Gilles Deleuze. Desses encontros resultaram

livros sobre os mais variados aspectos da realidade, além de uma constelação de

Page 83: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

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conceitos abordados de uma maneira criativa e problematizadora. Entre os seus

diversos livros que foram traduzidos para o português, destacamos:

a) aqueles que foram escritos em parceria com o filósofo francês Gilles Deleuze:

1. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Georges Lamazière. Rio

de Janeiro: Imago Editora, 1976. (O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.)

2. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Rafael Júlio Castañon Guimarães.

Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. (Kafka: para uma literatura menor. Tradução

de Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.)

3. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Tradução de Aurélio Guerra

Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 4ª reimpressão – 2006.

4. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 2. Tradução de Ana Lúcia de

Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2005.

5. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. Tradução de Aurélio Guerra

Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34,

2ª reimpressão – 2004.

6. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução de Suely Rolnik. São

Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002a.

7. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. Tradução de Peter PálPelbart

e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002b.

8. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz. Rio

de Janeiro: Ed. 34, 1992.

b) aquele que foi escrito em parceria com a analista brasileira e crítica cultural

Suely Rolnik:

1. Micropolítica: cartografias do desejo. 6º Edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

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c) aqueles que escreveu sozinho.

1. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12º Edição,

Campinas: Papirus Editora, 2001.

2. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e Lúcia

Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2ª reimpressão, 1993.

3. Guattari entrevista Lula. São Paulo: Brasiliense, 1982.

4. Máquina Kafka. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: n-1 edições, 2011.

5. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de Constança

Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1988.

6. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução de

Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias& Letras, 2004.

7. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3°

edição, São Paulo: Brasiliense, 1986.

Entre os livros de Guattari que não foram, até esse momento, traduzidos

para o português, destacamos:

1. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.

2. Écrits pour L’Anti-Oedipe. Paris: Éditions Lignes/Manifeste, 2004.

3. La Philophie est essentielle à l’existence humaine. La Tour-d’Aigues: L’Aube, 2002.

4. Les années d’hiver, 1980/1985. Paris: Bernard Barrault, 1986.

5. Les nouveaux espaces de liberté (com Toni Negri). Paris: Dominique Bedoux,

1985.

6. Lignes de fuite: pour um autre monde de possibles. Paris: Éditionsde L’aube, 2011.

7. Pratique de l’institutionnel et politique (entrevistas; com Jean Oury e François

Tosquelles). Paris: Matrice, 1985.

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Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7° edição. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: Biografia Cruzada. Tradução de

Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.

Deleuze, Gilles; Guattari, Félix.O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.

_____Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Rafael Júlio Castañon

Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.

_____Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Tradução de Aurélio

Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 4ª reimpressão – 2006.

_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 2. Tradução de Ana Lúcia

de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 3ª reimpressão – 2005.

_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. Tradução de Aurélio

Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo:

Ed. 34, 2ª reimpressão – 2004.

_____ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Tradução de Suely

Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002a.

_____Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. Tradução de Peter

PálPelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1ª reimpressão – 2002b.

_____ O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz.

Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GUATTARI, Félix; NEGRI, Antonio. Les nouveaux espaces de liberté. Paris:

Dominique Bedoux, 1985.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely.Micropolítica: cartografias do desejo. 6º Edição,

Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

GUATTARI, Félix.As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12º

Edição, Campinas: Papirus Editora, 2001.

_____ Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e

Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2ª reimpressão, 1993.

_____ CartographiesSchizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.

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_____ Écrits pour L’Anti-Oedipe. Paris: Éditions Lignes/Manifeste, 2004a.

_____Guattari entrevista Lula. São Paulo: Brasiliense, 1982.

_____ La Philophie est essentielle à l’existence humaine. La Tour-d’Aigues:

L’Aube, 2002.

_____Les années d’hiver, 1980/1985. Paris: Bernard Barrault, 1986a.

_____ Lignes de fuite: pour um autre monde de possibles. Paris: Éditions de

L’aube, 2011a.

_____Máquina Kafka. Tradução de Peter PálPelbart. São Paulo: n-1 edições, 2011b.

_____ O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de

Constança Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1988.

_____ Pratique de l’institutionnel et politique. Paris: Matrice, 1985.

_____Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução

de Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias& Letras, 2004b.

_____Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely

Rolnik. 3° edição, São Paulo: Brasiliense, 1986b.

_____Ritournelle(s). Paris: Éditions de la Pince à Linge, 1999.

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A boa vida ou o bem viver na Ética a Nicômaco de Aristóteles

Raphael Guazzelli Valerio1

Resumo: trata-se de uma breve análise da Ética a Nicômaco de Aristóteles onde procuramos

descrever, segundo o filósofo o que é, ou antes, como praticar uma boa vida ou o bem viver.

Mostraremos que este bem viver é a vida ética que, segundo seus termos é a vida virtuosa. Deste

modo alguns conceitos aristotélicos serão desenvolvidos, em maior ou menor medida, tais como:

bem, função, excelência, virtude, justa medida. Concluímos que por se pautar em uma justa

medida (mesotés), sua ética não está presa a regras imutáveis e universais, tais como na filosofia

moderna, mas das circunstâncias que se apresentam ao vivente, num interessante equilíbrio entre

ética e política.

Palavras-chave: Ética; política; Aristóteles; boa vida; justo meio.

Aristóteles é o primeiro pensador a distinguir a ética da política, no

entanto, como veremos, o seu projeto ético está estritamente ligado ao seu

projeto político, até mesmo porque na célebre passagem da Política2 ele define

o homem como um “animal político”. Na Ética a Nicômaco três candidatos se nos

apresentam como representantes da vida ética, ou a boa vida, ou seja, a vida

virtuosa; a vida contemplativa, a vida dos prazeres e, por fim, a vida política, esta

subdividida em duas: a vida das honras e a vida das virtudes. Aqui já é possível

vislumbrar qual destes gêneros de vida é o bem viver, contudo, não nos

adiantemos e passemos a analisá-los.

A vida dos prazeres, que nós identificamos com a vida natural, pelo

simples motivo de que esta é comum a todos os seres viventes, não pode ser a

vida virtuosa justamente por este motivo. Não que Aristóteles não visse um bem

no simples fato de viver, pois, diz3 que muitos homens se apegam a vida, pois

nela existe uma espécie de doçura natural, mas, o fato é que nem os escravos,

1Graduado em História (Frea) e Mestre em Filosofia (Unesp). Contato:

[email protected] 2 ARISTÓTELES. Política. Lisboa. Vega. 1998. 1253a,4. 3 IBID., 1278b, 28.

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nem as crianças, tampouco os animais em geral podem ser virtuosos, já que não

encontramos em sua alma os elementos desenvolvidos para uma vida desta

espécie. Fundamental, portanto, é compreender a divisão da alma (psiqué\ânima)

dentro da teoria aristotélica.

Dois princípios agem dentro da alma, um, o racional; outro, o irracional.

Estes, por seu turno, também se subdividem em dois. A parte irracional da alma

compreende um princípio desiderativo, ou seja, responsável pelos apetites ou

desejos, e, um princípio vegetativo que comanda as funções de crescimento,

nutrição, etc. Já em seu lado racional podemos encontrar uma parte raciocinativa

(teorética) que deve se ocupar de princípios invariáveis, como a matemática, por

exemplo, e uma parte calculativa, responsável por princípios variáveis, uma razão

prática portanto.

É fácil perceber que todos os seres viventes possuem um princípio

vegetativo em sua constituição, no entanto, com relação às outras partes da alma

o problema se mostra mais complexo. Não é nosso interesse aprofundar este

debate, pois aqui nos preocupa o problema ético, faremos, portanto, uma

brevíssima análise das outras partes da alma tendo em vista este objetivo e na

medida em que isto for importante para compreender nosso problema.

Assim, descartamos a parte vegetativa da alma como agente da vida

virtuosa e compreendemos que os seres dotados apenas da parte irracional da

alma são incapazes de uma vida virtuosa, caso dos animais ditos, por isso mesmo,

de irracionais, dos escravos e das crianças que ainda não desenvolveram,

segundo Aristóteles, a sua faculdade racional. Também nos parece claro que a

vida dos prazeres não pode ser virtuosa já que uma vida desta espécie de nada

se ocupa o raciocínio.

Descartamos, portanto, a vida prazerosa; resta-nos duas espécies de vida

como candidatas ao bem viver ou a boa vida, que Aristóteles identifica com a

felicidade (eudainomia). Para avançarmos, contudo, é preciso compreender o

Page 89: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

88

que Aristóteles compreende por felicidade, e mais, o que ele entende por bem,

já que estes dois conceitos estão estritamente ligados em seu projeto ético e em

seu projeto político.

A noção de bem nos parece de capital importância no projeto ético-

político aristotélico, pois, é interessante notar que, tanto a Ética a Nicômaco

quanto a Política são abertas procurando definir este conceito; gostaríamos de

citar:

Toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda

escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito, não sem

razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem.4Observemos

que toda a cidade é uma certa forma de comunidade e que toda

a comunidade é constituída em vista de algum bem. É que, em

todas as suas acções, todos os homens visam o que pensam ser

o bem.5

Aqui já é possível perceber que o bem é uma espécie de finalidade ou um

objetivo a ser alcançado. Contudo, na Ética a Nicômaco Aristóteles prossegue

demonstrando que algumas finalidades (bens) são realizadas visando um bem

(fim) ulterior, assim, temos um bem como finalidade e um bem como meio para

alcançar esta finalidade. Assim, o fim que é buscado por si mesmo, ou seja, o fim

ulterior é o bem supremo, os demais fins são meios para se chegar a este fim

ulterior.

Como, contudo, determinar nesta cadeia de fins qual o fim supremo?

Aristóteles nos responde que o bem ou o fim supremo é determinado pela

ciência política, pois é ela que determina o que deve ser feito e estudado na pólis,

mais perfeito tipo de comunidade, bem como legisla sobre as ações humanas,

4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural. 1991.1094a.

5 ARISTÓTELES. Política. Lisboa. Vega. 1998. 1252a.

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89

portanto, a finalidade da ciência política abrange as demais finalidades, ciências

e atividades humanas.

Aqui nos encontramos diante de dois problemas. Primeiro, o bem

supremo é do indivíduo ou da pólis? Alguns autores sugerem que este ponto é

uma aporia dentro da ética aristotélica, emergindo daqui duas possibilidades de

política. Preferimos, contudo, acreditar que no projeto de Aristóteles a ética está

subordinada à política, o que, inclusive, nos mostra a riqueza de seu projeto, na

medida em que sua ética, ao estar subordinada as esferas mais variáveis da ação

humana, nos dá a possibilidade de aplicá-la aos mais diferentes contextos ou

culturas.

O segundo problema diz respeito à definição do conceito de bem. Nos

parece que este conceito, dada sua universalidade, não pode ser abarcado em

algum gênero. Notemos, portanto, que o conceito de bem não é unitário e

universal e daqui procede a crítica a Platão. Para Platão o conhecimento da ideia

de bem levaria o homem a praticá-lo, na medida em que este teve acesso ao

bem perfeito, ou seja, sua ideia. Como explicar, contudo, a figura do incontinente

(acrático) que conhece o bem, mas é incapaz de praticá-lo? Para Aristóteles este

problema não se apresenta, pois, sua ética, bem como, sua política, tem em mira

as ações humanas e não o conhecimento.

Dizíamos que, segundo Aristóteles, o bem ou o fim supremo é aquele que

deve ser buscado por si só e não por interesse de outra coisa, em outras palavras,

o bem supremo deve ser autossuficiente. Para o filósofo, este tipo de bem só

pode ser identificado com a felicidade. Mas, o que é isto, a felicidade? Permita-

nos dar uma nova volta e definir primeiramente a noção de função que é similar

ao pensamento socrático-platônico.

Para Aristóteles todas as coisas na natureza possuem uma função, aquilo

que somente esta coisa pode executar, ou, se duas ou mais executam, aquela

que executa com mais excelência, sendo esta regra também aplicável aos

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90

homens. Se recorrermos novamente à divisão da alma, notaremos que somente

os homens possuem a parte racional desenvolvida, sendo assim, é lícito se

esperar que a função do homem na natureza seja a atividade racional. O melhor

homem será aquele que realiza sua função com mais excelência (areté), o bem

do homem vem a ser, portanto, a atividade da alma conforme a virtude (areté).

Definamos, então, a felicidade como a atividade da alma conforme a

virtude, ou seja, ser feliz é a prática de atos conforme a virtude. Identificamos

duas espécies de virtude, uma, intelectual; outra, moral. Deixemos, por hora, a

virtude moral de lado e passemos, de posse da virtude intelectual, a análise da

vida contemplativa. Segundo o filósofo a vida contemplativa traz a mais perfeita

felicidade, pois, nesta atividade nos valemos da mais alta virtude, justamente a

virtude intelectual, e exercitamos, portanto, o que existe de melhor e mais divino

em nós, a razão.6 Assim, se retornarmos a divisão da alma veremos que para a

atividade contemplativa usa-se a parte raciocinativa da alma que se ocupa de

analisar os melhores objetos, pois, mais perenes e invariáveis. Além disso, é a

atividade mais contínua e o homem poderia contemplar isoladamente, portanto

é auto-suficiente no ato contemplativo.

Por fim, a atividade contemplativa é um fim em si mesmo, diferente da

atividade política cujos fins são meios 7 . Como se pode observar a vida

contemplativa é a mais perfeita e feliz, contudo, inacessível aos homens, pois,

dada nossa natureza composta, não podemos nos dedicar integralmente a

atividade contemplativa já que temos uma série de outras necessidades.

Eliminamos, assim, a vida dos prazeres e a vida contemplativa, resta-nos a vida

política, único gênero de vida integralmente humana, pois, dedica-se a ação

(práxis). No interior da vida política é possível, como já foi notado, delinear dois

6 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.1991.1177a, 14. 7 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.1991.1177b, 17-

25.

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91

subgêneros de vida, a vida das honras e a vida virtuosa. A vida das honras não

pode ser a boa vida já que a honra, conforme observa Aristóteles, depende de

quem a concede e, além disso, alguns homens buscam a honra visando o seu

valor e não pela prática da virtude que, como já visto, é elemento essencial ao

bem viver.

Se, contudo, podemos desenvolver em nossa alma dois tipos de virtude,

não é, certamente, a virtude intelectiva aquela que deve ser praticada pela vida

política, mas sim, a virtude moral. Esta, no entanto, deve ser adquirida pelo

hábito (ethos), pois, a virtude moral não está em nós naturalmente; a natureza

nos dá a capacidade de receber tais virtudes, mas, é somente através dos hábitos

que desenvolvemos certas disposições morais que acabam incutindo em nós

uma espécie de segunda natureza, daí a necessidade da política, ou seja, de bons

legisladores para a pólis que, com boas leis, serão capazes de desenvolver nos

cidadãos boas disposições morais e, portanto, capazes de uma atividade virtuosa.

A prática da virtude leva a virtude, porém, diferentemente de outras artes,

pois, os produtos das artes têm seu mérito em si mesmas, já a atividade virtuosa

depende das circunstâncias apresentadas, ou seja, um ato moralmente bom,

quer dizer, conforme a virtude, é relativo dependendo da ocasião. Para não cair

em um relativismo absoluto, contudo, Aristóteles precisa elaborar uma regra

segura que determine uma ação moralmente boa; que regra é essa? Trata-se do

justo meio ou justa medida, ou ainda, a regra justa (mesotés).

A regra justa é o princípio formal a priori da ação virtuosa ou moralmente

boa. Esta regra é uma espécie de meio termo entre a falta e o excesso de um

determinado desejo, assim, por exemplo, a virtude chamada de coragem é o

meio termo entre a temeridade que é o excesso de coragem e a covardia que é

a falta de coragem. Notemos que a regra justa não é uma medida geométrica,

mas, é dada pelo momento apropriado e conforme a constituição de cada um.

Deste modo, o justo meio é a virtude, a falta ou o excesso, é o vício.

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92

Como, no entanto, determinar com precisão qual é o justo meio para cada

ocasião? Para Aristóteles, somente o hábito pode desenvolver as corretas

disposições para que o indivíduo aja de forma moralmente boa. Esta mediania

se encontra, com efeito, no próprio indivíduo e é dada através da figura do

phronimos, ou seja, aquele que melhor consegue detectar o justo meio no

momento apropriado, sendo ele, portanto, aquele que melhor desenvolveu a

parte calculativa da alma. Entra em jogo aqui uma complexa relação entre a parte

racional e irracional da alma.

Para Aristóteles, diferentemente de Platão, a razão por si só não é capaz

de engendrar a ação, sendo assim, a parte desiderativa da alma tem, em sua ética,

função essencial, na medida em que é por desejarmos certos fins que agimos

pra alcançá-los. Desejamos, portanto, os fins e escolhemos os melhores meios

para buscá-los, a escolha, como pode se notar, é dada pela parte calculativa da

alma, pois requer do indivíduo um princípio racional de modo que este possa

agir acertadamente, ou seja, mirando a justa medida.

Para que a escolha seja feita de modo acertado é necessário um

movimento racional a fim de investigar qual a melhor forma de agir, esta

investigação, Aristóteles dá o nome de deliberação. Assim, pelo desejo dá-se a

finalidade por estabelecida e deliberamos sobre o modo mais correto para

alcançá-la; a escolha é, portanto, uma espécie de desejo deliberado daquilo que

está ao nosso alcance fazer8. Temos, assim, a seguinte equação: pelo desejo

estabelecemos os fins, para alcançar tais fins escolhemos, após deliberação e,

portanto, conforme a justa medida, os melhores meios para tal. Finalizando,

podemos dizer que, conforme Aristóteles, a virtude ética está relacionada aos

meios, sendo assim, está ao alcance dos homens escolherem ser virtuosos.

8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural. 1991. 1113a, 12.

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93

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo. Nova Cultural.

1991.

_____________. Política. Lisboa. Vega. 1998.

PLATÃO. A República. Os Pensadores. 4ª ed. São Paulo.

Page 95: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

Considerações sobre a crítica presente na historiografia mato-grossense

Ana Paula Hilgert de Souza1

Resumo: Inicialmente refletindo sobre a discussão historiográfica referente ao conceito de região,

este artigo faz apontamentos acerca das noções sobre a historiografia de Mato Grosso elaborada

por Osvaldo Zorzato e Lylia Galetti em suas respectivas teses de doutoramento. Zorzato aponta

os caminhos que fundamentaram a produção da memória mato-grossense por meio de obras de

intelectuais e memorialistas mato-grossenses ao passo que Galetti envereda por esses caminhos,

utilizando, às vezes, essas mesmas fontes, mas tratando de inferir as representações sobre Mato

Grosso e sua gente ao longo do século XX. Analiso como esses historiadores se posicionaram

frente aos discursos de suas fontes e como construíram sua própria interpretação em relação à

história de Mato Grosso.

Palavras-chave: historiografia mato-grossense; memória historiográfica; identidade mato-

grossense.

Componente de uma área da história local/regional, o presente texto

buscará refletir sobre aspectos relacionados à história e historiografia de Mato

Grosso. Desse modo, identificamos a necessidade de inserir breve discussão

relacionada ao tratamento dado ao estudo da história regional no Brasil.

Não é nova a noção de que estudos provenientes dos grandes centros

produtores de cultura, tais como, São Paulo e Rio de Janeiro tendem a oficializar

sua história local tornando-a legítima, digna de ser estudada e ensinada por todo

o Brasil. Tal noção tende a considerar sua história como parte fundamental da

História do Brasil, deixando a desejar na aceitação das peculiaridades regionais

de cada estado da federação, e, por vezes, elevando a história regional (além de

sua localidade) a um nível “não necessário” a se estudar.

Um grupo de historiadores tem levantado a bandeira contra esse

posicionamento intelectual grosseiro de parte da elite acadêmica brasileira. Vários

1 UFGD. Contato: [email protected]

Page 96: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

95

trabalhos, sobretudo artigos científicos, vêm tentando demonstrar que a história

regional necessita de inclusão no campo da história nacional2.

Agnaldo de Sousa Barbosa (1998) defende a ideia de que assim como

tantas outras histórias, a História Local e Regional apresenta inúmeras

possibilidades de descrição, de análise, de crítica, de interpretação e, ademais, de

revisão historiográfica. Para o autor, os problemas de aceitação da História

Regional provêm, em parte, do desconhecimento da história reivindicada, história

essa entendida como “fruto do preconceito que tende a depreciá-la como uma

história de preocupações menores, virtualmente debilitada por sua íntima relação

com superficialidades localistas e regionalistas”. (BARBOSA, 1998, p. 2)

Irrefletidamente, a história nacional dominante, tem tornado a História

Regional vazia de significado, retirando o mérito dessa modalidade da escrita da

história, entendida como a busca da extravagância, das peculiaridades e das

singularidades, enfim, da diversidade na história. Apontando as deficiências

próprias e inegáveis da história regional, Durval Muniz de Albuquerque Júnior

(2008) considera que nos estudos regionais,

O espaço é visto como instância que nega o tempo, que subjaz à

história, [...] As experiências espaciais, as relações espaciais, os

fluxos e movimentos de espacialização, as implantações e

deslocamentos no espaço não vêm fazer parte destas

modalidades de narrativa historiográfica. (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2008, p.56)

A título de orientação ao historiador que pretende estudar história

regional, o mesmo autor aponta que se deve estar pronto para perceber,

sobretudo, os afrontamentos políticos, lutas pelo poder, estratégias de governo,

entre outros aspectos relacionados ao regional. Aludindo a breve reflexão acima

apresentada acerca do tratamento dado a história regional e, relacionando-a com

2 Prova disso é a coletânea de textos coordenada por Marcos A. da Silva, intitulada República em

Migalhas, de 1990, obra que reúne textos de historiadores brasileiros que, por caminhos teóricos

e metodológicos distintos, apresentam o tema "História e Região".

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a proposição de Albuquerque Júnior, indica-se que a intenção do trabalho aqui

proposto seria, precisamente, a de refletir sobre alguns aspectos de duas teses de

doutoramento, sendo a primeira de Osvaldo Zorzato (1998) e a segunda de Lylia

Galetti (2000). Ressaltando a crescente importância dos estudos comparativos,

realizar-se-á, de modo vil, um confronto entre ambas, destacando pontos de

semelhanças e divergências.

Osvaldo Zorzato em sua tese intitulada Conciliação e Identidade:

considerações sobre a historiografia de Mato Grosso (1904-1983), concluída em

1998, procura fazer uma análise da história oficial de Mato Grosso, apontando

para isso algumas características. A matriz teórica seguida por Zorzato esta

embasada, sobretudo no autor Maurice Halbwachs3.

Além da intenção de mostrar como a memória historiográfica de Mato

Grosso se constituiu durante o período que vai de 1904 a 1983, Zorzato tem um

segundo objetivo decorrente do primeiro. Ele pretende averiguar a maneira com

que essa memória sequenciada é utilizada como justificativa de ações políticas e

conduta moral de determinados agentes.

Apontando como os “memorialistas”, historiadores locais e

intelectuais mato-grossense registraram os fatos políticos, econômicos e sociais

referentes ao Mato Grosso, Zorzato utiliza-se de obras como: História de Mato

Grosso, de Virgílio Corrêa Filho; Datas Mato-Grossenses, de Estevão de Mendonça;

Dicionário Biográfico Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça; o Álbum Gráfico

publicado a partir da colaboração de diversos personagens, desde figuras

políticas mato-grossenses até algumas acima citadas, entre outras obras

publicadas em Mato Grosso no período estudado pelo autor.

A construção identitária de Mato Grosso, processo nomeado pelo autor,

ocorre, segundo ele, a partir de 1904, momento em que o estado passa a receber

3 Maurice Halbwachs, autor que trabalha “memória” considerou que a memória de um indivíduo

remete-se sempre a um grupo, uma vez que as lembranças se constituem na esfera coletiva. Para

mais informações ver: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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investimentos estrangeiros e imigrantes que chegam ao Estado sob a promessa

de construir uma nova vida garantida pela abundância de terras cultiváveis em

Mato Grosso.

Na medida em que isso ocorre, Zorzato verifica que, concomitantemente,

a historiografia memorialista de Mato Grosso tratou de construir um imaginário

que desse conta de fortalecer uma identidade mato-grossense tratando, inclusive

de distanciar-se de certos estereótipos associados aos mato-grossenses. Para o

autor, as imagens negativas que faziam referência a Mato Grosso eram

enxergadas e disseminadas por personagens estrangeiros ou mesmo por

militares e comerciantes dos mais importantes centros econômicos do Brasil e do

exterior. Zorzato aponta que essas representações negativas, nada propensas a

Mato Grosso

(...) fazem referência a um Estado “atrasado”, “incivilizado” e

“selvagem”, dotado de uma gente “sanguinária”, “vingativa”,

“preguiçosa” e “ignorante”. No conjunto, estes adjetivos

compõem um estereótipo nada favorável a Mato Grosso. Pior

ainda: eles são incorporados como referência explicativa pela

intelectualidade local (...) (ZORZATO, 1998, p. 16)

Em contrapartida a essas características pejorativas, o autor nota que os

escritores trataram de elaborar novos conceitos, pois, necessitam

construir uma memória que os afaste daqueles adjetivos

indesejáveis. Colocando-se como herdeiros e guardiães do povo

a que pertencem, buscam construir imagens e representações

através das quais querem ser vistos. Passam então a se considerar

como sentinelas avançadas da civilização no sertão. Ao invés de

“selvagens”, reforçam a origem paulista quando não “da melhor

estirpe europeia”, e, ao invés de “sanguinários”, constroem

imagens de “revolucionários”, “patriotas” e “destemidos”. (...) se

dizem amantes das artes, da religião, cultuadores da ciência e,

sobretudo da história e da geografia. (ZORZATO, 1998, p. 16)

É no Álbum Gráfico de Mato Grosso, publicado em 1914, que os intelectuais

mato-grossenses encontram um meio de divulgar informações que possam

provar as qualidades de sua gente. Zorzato percebe que essa obra cumpre a

dupla finalidade de, por um lado construir um imaginário capaz de estabelecer

Page 99: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

98

laços identitários, e, por outro, afastar estereótipos elaborados externamente.

É relevante considerar que o autor se posiciona de modo impessoal ao

referir-se aos escritores intelectuais do período estudado. Não deixando se

seduzir pelo discurso de suas fontes, Zorzato por vezes percebe a intenção nada

ingênua dos escritores locais de forjarem uma memória peculiar para Mato

Grosso. De acordo com o autor, essa memória estaria preocupada em descrever

acontecimentos, lugares e pessoas, ação que, posteriormente, fundamentaria um

“estoque” de lembranças de uma memória que se quer preservar.

Ao enfatizar a necessidade de se intitularem “gente de boa origem”

“amantes do progresso”, entre outras qualidades, Zorzato percebe que isso ocorre

para garantir a primazia do mando diante das pessoas que migram para Mato

Grosso. Como numa tentativa de se impor e de impedir que os novos habitantes

venham a ocupar o mesmo espaço na escala social dos mato-grossenses natos.

A construção da memória mato-grossense passa, então, de almejada para

ferramenta de poder:

Se, num primeiro momento, esta historiografia surge como

suporte de uma identidade almejada, num segundo ela se

transforma claramente em suporte de poder. Isto é, o processo

mais geral do exercício de poder incorpora a memória ao

processo histórico, estando a primeira a serviço do segundo.

A exaltação do poder, visível em algumas figuras locais como o Marechal

Rondon, por exemplo, tornam-se suficientes para justificar um estilo de mando

no qual os sujeitos comuns reconhecessem o seu posicionamento na sociedade

mato-grossense.

Permitir compartilhar um espaço comum na escala da ‘pirâmide social’

mato-grossense significava partilhar o prestígio político, igualar-se nas posses e

até mesmo ocupar cargos públicos. Isso, na concepção de Osvaldo Zorzato é

exatamente o que a elite mato-grossense não desejava para si e, portanto,

trataram de forjar uma memória que reforçasse a identidade local, a partir de

Page 100: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

99

elementos com os quais desejariam ser lembrados4.

Uma vez dispostos os apontamentos e reflexões contidos na tese de

doutoramento de Osvaldo Zorzato, passemos para uma análise geral da tese de

Lylia Galetti intitulada: Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas

representações sobre Mato Grosso.

A obra é rica em referências, possui uma introdução bem concisa, porém

incitante. No discorrer da obra, Galetti apresenta um conjunto de ideias,

fundamentado no ideário liberal-burguês que se dissemina no ocidente a partir

de países como França, Alemanha, e Bélgica, os quais constroem representações

de progresso. Para fundamentar tal tese, Lylia Galetti bebe, no sentido figurativo,

em fontes como Eric Hobsbawm e Nobert Elias. Tais autores afirmaram que as

ideias de progresso adquirem, sobretudo no início do século XX, muita força e se

disseminam Europa a fora.

Para fundamentar sua tese, a autora utiliza-se de um conjunto de fontes

históricas que vai desde documentos oficias escritos que fazem referência sobre

a sociedade e seus modos de ser, a natureza, a geografia, o solo, fauna e flora,

comércio e outras atividades econômicas, até documentos que tratam da ordem

política, econômica e social da sociedade mato-grossense.

A autora também trata da presunção produzida pela historiografia

europeia acerca da questão eurocentrista, enfatizando a fatuidade de que a

superioridade europeia serviria para dominar o outro. Nesse contexto de

civilização e progresso, Galetti cita a América Latina e salienta que foi uma das

poucas exceções (uma vez que o Japão se inclui) em que com mais empenho se

desenrola a modernização ou tentativas de adaptação de progresso.

Lylia Galetti na parte inicial de sua tese apresenta como o espaço

geográfico compreendido pela capitania de Mato Grosso se materializa como

4 E, também, tratando de eliminar da memória historiográfica aspectos de sua história que

queriam esquecer.

Page 101: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

100

uma região colonial. Quanto a segunda parte, utilizo-me das palavras da própria

autora para defini-la: Trata “das representações acerca de Mato Grosso e de suas

populações nas narrativas de viajantes estrangeiros”. Esse momento de sua obra

assume uma característica muito peculiar na medida em que a autora aponta de

maneira organizada as descrições desses personagens sobre o espaço geográfico

dado como mato-grossense.

É ainda na segunda parte da tese que Galetti demonstra as características

(não apreciadas pelos mato-grossenses), de isolamento, vastidão territorial,

pouco populacional, etc.

Na terceira parte de seu trabalho, Lylia Galetti insere uma discussão

pautada na ótica de que embora os brasileiros da capitania fossem influenciados

pelo ideal de progresso e civilização europeu – e tenham, em grande medida

vivido sob esse paradigma – os mesmos encontram-se envolvidos com as

imbricações decorrentes da consolidação de Mato Grosso como Estado da

Federação. Outro fator relacionado a esse momento vivido pelos habitantes de

Mato Grosso colonial foi a questão, fortemente alicerçada, sobretudo na elite

provincial, da construção identitária da nação brasileira.

Ainda na parte III delineia-se a questão do “outro geográfico”, termo de

Marck Bassin, emprestado por Galetti. Para a autora, na perspectiva do “outro

geográfico” o sertão cumpriria uma função arbitrária e negativa de “bode

expiatório”, elemento interno a nação. Contudo, a autora nota que para além

dessa arbitrariedade relacionada ao sertão, os mato-grossenses passam a tomá-

lo como referência para a própria nacionalidade.

Os conflitos políticos eram muito intrincados no início da República,

permitindo que o personalismo imperasse, assim como as vaidades e egos das

figuras políticas daquele momento, que eram evidentes. Contudo, Galetti lembra

que esse cenário não era apenas verificado no sertão como também o era em

outras regiões da República. Esses apontamentos de Galetti são relevantes

por mostrar que mesmo desejando livrar-se das referências pejorativas (a

Page 102: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

101

exemplo de serem habitantes do sertão) para celebrarem o progresso e a

civilização que Mato Grosso vivia, seus habitantes não se desvinculam de seus

modos de ser/viver. Isso porque eles também desejam naquele momento

fundamentar os elementos que comporiam a identidade local (do Estado recém-

criado) e, além disso, os mato-grossenses estavam formulando a imagem que a

nação como um todo teria acerca de Mato Grosso.

Países com histórico colonial, representados como vazios viam a sua

própria fronteira como lugar privilegiado onde o discurso se detém para

diagnosticar o atraso da nação e aferir suas possibilidades de encurtar as distâncias

que a separam do modelo europeu de progresso e civilização (GALETTI, 2000, p.

26). No caso do Brasil, a autora inclui esse mesmo modo de constatar a

ambiguidade sertão/progresso, uma vez que percebe os sertões da pátria como

um limite entre a barbárie e a civilização na própria nação:

Entretanto, na condição de espaço da nação, o sertão passaria a

ser visto também como um patrimônio territorial não explorado,

com o qual o Brasil podia contar nas projeções de seu futuro de

nação grande e rica, com amplas possibilidades de vencer os

obstáculos que se interpunham em sua marcha para a civilização

e, ainda, como um espaço onde se podia encontrar genuínas

expressões da cultura e das tradições nacionais. (GALETTI, 2000,

p.165)

Com efeito, Lylia Galetti infere que ao mesmo tempo em que Mato Grosso

era desvalorizado em virtude das distâncias geográficas, históricas e culturais que

o separavam do mundo e do Brasil civilizado, havia a valorização em torno das

noções de sertão e fronteira da pátria na medida em que ambas tornam-se

fundamentais para a ideia de nacionalidade brasileira, um duplo conceito que

estava sendo fundamentado e discutido nas primeiras décadas do século XX.

Assim,

ao contrário do viajante estrangeiro, para quem esse lugar era

parte de um país estranho e com o qual estabelecia uma relação

de completa exterioridade, para aqueles brasileiros a região era

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102

parte de um espaço geográfico que se definia no mapa do

mundo como o seu país. Desse modo, quando falavam sobre

Mato Grosso eles falavam também do Brasil, elaborando uma teia

de representações em que o território e a gente mato-grossense

eram percebidos a partir de um referencial simbólico que está de

todo ausente da literatura estrangeira: a nação brasileira.

(GALETTI, 2000, p. 162)

Galetti aponta que o modelo de civilização europeia, ao ser adotado pelas

elites sul-americanas sofreu contradições, pois as elites tinham a necessidade de

se modernizar sem perder suas concepções identitárias. Ou seja, não se

abandonava aspectos da sua própria identidade para se auto-determinar no

ideário liberal-burguês, havendo, portanto, um limite para a colonização. Estão

inclusas no texto, uma tipologia de atitudes associadas a maneira como os mato-

grossenses colocavam-se diante das imagens estigmatizadas e, conforme

lembrou ZORZATO (1998, p.16), os habitantes dali necessitam construir uma

memória que os afaste daqueles adjetivos indesejáveis, dos estigmas. Contudo,

confrontando o autor, Galetti trata de indicar que o estigma da barbárie não é

associado diretamente a todos os habitantes da província. Para a autora, essa

barbárie remontava apenas aos nortistas (sobretudo, cuiabanos) e estes,

tomavam suas providências para tornar o estado conhecido e para fortalecer a

identidade mato-grossense.

Repudiar os mato-grossenses do sertão significava repudiar suas posses,

o que lhes feria e causava-lhes angústia. Essa constatação remete ao pensamento

de Pierre Bourdieu, ao afirmar que ninguém é obrigado a aceitar os estigmas.

Esses intelectuais que produziram grande parte da historiografia mato-grossense

reagiram aos estigmas de maneiras distintas, ora reconhecendo as críticas ao

estado, porém, em maior proporção, tomando posse dos discursos e defendendo

sua região a partir de fatores históricos, já que para BOURDIEU (1989) a região se

impõe pela manifestação.

Page 104: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

103

Irrefutavelmente, havia o apego tanto aos bens materiais como também

aos bens simbólicos5. A população mato-grossense do início do século não se

sentia incivilizada e, justamente por isso surge a necessidade daquela sociedade

se impor e mostrar aos quatro cantos do país que os cidadãos mato-grossenses

também conheciam e (em grande parte) viviam o progresso6.

É possível inferir o dilema apresentado por Galetti – embora nada inocente

como demonstrou ZORZATO (1998) – uma vez que, os símbolos maiores de

modernidade, tais como o telégrafo, a ferrovia e as fábricas, quando não existiam,

eram precários. Mas o simples fato de existirem servia como justificativa aos

mato-grossenses para assegurar que faziam parte da civilização.

Para compreender esse dilema, deve-se perceber que elementos externos

ao sertão, tal como o fato de localizar-se distante demais dos grandes centros,

servia para justificar o atraso econômico e cultural da região. Elementos internos

também pesavam nessa luta de representação7 ou de afirmação nacional, na

medida em que existia, e em boa medida ainda hoje existe, a noção de que a elite

diferencia-se da “ralé”. Essa angústia sentida pela elite mato-grossense resolve-

se de certa forma, no momento em que eles se reconhecem como civilizadores

do sertão assumindo para o Estado, mas não para elite dele, parte da culpa por

serem assim estigmatizados.

À medida que Osvaldo Zorzato (1998) entende o Instituto Histórico e

Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) como o responsável pela elaboração e

consolidação da memória local mato-grossense ou como instituição guardiã do

5 A discussão acerca de bens simbólicos e produção cultural pode ser encontrada na obra de

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed. Trad. Fernando Thomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

1989.

6 A Ferrovia Noroeste do Brasil, inaugurada em 1914 é um fator de progresso justificado pelos

mato-grossenses. Para consulta detalhada sobre a ferrovia ver: QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Uma

ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na 1ª metade do século XX. 1ª. ed. Bauru:

EDUSC, 2004. v. 1. 526 p. 7 Ver CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre

incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002,

p. 61-80.

Page 105: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

104

ideal que se desejava para constituir a identidade mato-grossense, Lylia Galetti

vai mais a fundo, constatando que essa instituição procura naquele momento,

realizar uma inversão dos elementos negativos que projetavam a

imagem de um Mato Grosso bárbaro e incivilizado. Investindo na

memória de um épico passado bandeirante e na projeção de um

futuro de progresso e civilização, os intelectuais mato-grossenses

reservaram aos índios e à população pobre mestiça, aqueles

mesmos atributos raciais e a mesma avaliação negativa sobre

seus hábitos e costumes que permitiram aos viajantes

estrangeiros considerá-la como uma gente indolente, falta de

espírito empreendedor, numa palavra, incivilizada. (GALETTI,

2000, p. 33)

Parafraseando E. Hobsbawm, com zelo e brutalidade, a autora remete a

questão dos indígenas, entendida como um entrave para o progresso. Tendo em

vista que a política do branqueamento ocorre no Brasil principalmente após 1930,

já com o advento da República, o extermínio dos indígenas, seria, portanto,

requisito para se atingir a civilização ideal.

Zorzato, por sua vez, bem observou a maneira como a

historiografia local retratou a questão dos indígenas. Evidenciando que a posição

do índio ao ganhar visibilidade era secundária (e até mesmo negligenciada em

algumas circunstâncias), mesmo tendo o conhecimento de que a participação do

índio no processo de formação daquela sociedade fosse inegável. No entanto, se

incluíssem o índio como agente ativo na historiografia local, os intelectuais

memorialistas mato-grossenses entrariam em choque com a proposta por eles

apresentada de possuírem origem europeia.

Page 106: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

105

Considerações Finais

Atitude comum na historiografia brasileira e, logo, na regional, é a de

fornecer explicações dos fatos a partir de elementos externos à região. Os

memorialistas e historiadores locais de Mato Grosso, não escaparam desse

paradigma, tratando de explicar as características negativas de Mato Grosso,

deixando, por vezes, de considerar os fatores internos. Como em uma perspectiva

na qual os acontecimentos ocorridos no interior da sociedade mato-grossense

pudessem encontrar explicações fora dessa sociedade.

Os estigmas abordados por Zorzato servem de exemplo na medida em

que a ausência de progresso, por exemplo, explica-se pelo fato de Mato Grosso

encontrar-se muito distante dos grandes centros do país. Na obra de Lylia Galetti,

é possível perceber certa preocupação em evidenciar que as elites mato-

grossenses eram componentes de um mundo civilizado que aspirava para si um

futuro de glórias sem apagar a memória de um povo que se dizia orgulhoso por

terem desbravado o sertão. Além desse desejo, Galetti enxerga nas leituras das

representações por ela pesquisada, que havia também a necessidade de incluir

Mato Grosso como essencial na narrativa da nação brasileira, papel esse que vai

além de ser um mero apêndice da epopeia bandeirante. Motivo de orgulho, entre

tantos outros, era o fato de terem garantido a preservação de sua gente,

mantendo acesa a luz da civilização brasileira.

Ponto de encontro entre as teses aqui discutidas é o fato de ambas terem

produzido uma leitura acerca das representações presentes na historiografia

mato-grossense. Contudo, na medida em que Zorzato direcionou seu trabalho

para uma análise das obras de escritores mato-grossenses e de relatos de

viajantes que para Mato Grosso se direcionavam, o autor limitou sua pesquisa ao

fazer apenas uma análise da constituição da história oficial de Mato Grosso,

Page 107: Revistaofaié Ed.2 Vlo.1

106

através de um caminho calcado por “tramas de uma memória elitista e

excludente”.

Enquanto a tese de Osvaldo Zorzato apresenta o resultado do processo

pelo qual Mato Grosso viveu no século XX, Lylia Galetti demonstra como esse

processo se desenvolveu, identificando que as representações lidas por ela

tratam-se de uma visão linear da história.

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Objeto em Fuga: algumas reflexões

em torno do conceito de região. Fronteiras, Dourados, MS, v. 10/17, p. 55-67,

2008.

BARBOSA, Agnaldo de Souza. Redescobrindo o Brasil: os desafios da História

Local e Regional. XII Semana de História. Franca: UNESP, 1998. Disponível em:

http://www.franca.unesp.br/PROPOSITO_REGIONAL.pdf

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed. Trad. Fernando Thomaz. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e

identidade nas representações sobre Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese

(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

SILVA, Marcos A. (coord.) República em Migalhas: história regional e local. São

Paulo: Marco Zero, 1990.

ZORZATO, Osvaldo. Conciliação e identidade: considerações sobre a

historiografia de Mato Grosso (1904-1983). 1998. Tese (Doutorado em História

Social). FFLCH/Universidade de São Paulo, São Paulo.