revista aproximação · spinoza ... agrigento e demócrito de abdera. ... ancient philosophy,...

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  • Revista Aproximao 1 semestre de 2013 N 4

    http://ifcs.ufrj.br/~aproximacao 2

    Revista Aproximao

    (Revista eletrnica dos estudantes de graduao em Filosofia da UFRJ)

    Volume 4 Edio 2013/01

    http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao

    A Revista Aproximao uma publicao acadmica eletrnica especializada em

    Filosofia. Seu objetivo principal veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da

    UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o

    da pesquisa filosfica.

    Instituto de Filosofia e Cincias Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Expediente Comisso Editorial

    Anna Figueiredo, Carmel Ramos, Edson Bezerra, Eduardo Lopes, Felipe Ayres de

    Andrade, Guilherme Santos, Jean Ilg, Pedro Rhavel N. Teixeira.

    Conselho Editorial

    Carolina de Melo Bomfim Arajo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha,

    Fernando Jos de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco

    Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mrio Antnio de Lacerda Guerreiro,

    Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael

    Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro,

    Wilson John Pessoa Mendona.

    Contato: [email protected]

    ndice

    Editorial........................................................................................................................... 3

    A fsica das percepes em Empdocles e Demcrito.................................................... 4

    Paralelos entre a teoria da demonstrao aristotlica e os modelos de explicao

    cientfica contemporneos ..............................................................................................14

    A defesa da adaequatio como critrio nico para a percepo da ideia verdadeira em

    Spinoza........................................................................................................................... 28

    O Problema de Molyneux e a relao entre percepo e linguagem em Diderot .......... 42

    Cincia e ascetismo a partir da Genealogia da Moral em Nietzsche ..............................52

    Adorno e Horkheimer: uma viso crtica sobre a indstria cultural ...............................63

    Repetio e identidade, entre Freud e Deleuze ...............................................................76

    Sobre a noo de causalidade .........................................................................................92

  • Revista Aproximao 1 semestre de 2013 N 4

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    EDITORIAL

    Aps um longo hiato, a Revista Aproximao retorna. com grata surpresa que

    o novo corpo editorial contempla o trabalho concretizado que no o teria sido sem o

    apoio dos membros fundadores em nos guiar nos nossos primeiros passos tmidos. Que

    esteja assim marcado o regresso forma da publicao, de volta a um caminho de

    realizaes e xitos.

    No nos contentemos agora, porm, em apenas nos congratular. Ao resgatarmos

    a Aproximao de seu abandono, nos deparamos com uma questo que esperamos

    superar ao longo de nossa participao nela. No vemos na Revista apenas um veculo

    para a circulao da produo filosfica dos graduandos o que j , em si, um projeto

    bem vultuoso mas tambm uma iniciativa que ultrapasse em largo nossa permanncia

    nela, da qual as levas vindouras de alunos do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais

    (IFCS) tomaro parte. No entanto, o desafio de pensar a Revista Aproximao para

    alm dos limites da nossa permanncia na graduao no seria sequer concebvel se

    nossa empreitada no tivesse sido to bem acolhida pelos nossos colaboradores

    pareceristas atenciosos vinculados a diversas instituies pelo pas, cuja disposio em

    nos auxiliar foi imprescindvel para a realizao de nossas ambies.

    No intuito de explorarmos ao mximo o potencial do peridico, com prazer

    que tambm anunciamos a nossa colaborao com o IX Seminrio de Graduao em

    Filosofia da UFRJ. Sem prejudicar a publicao do nosso prximo volume na segunda

    metade de 2013, faremos desse encontro fortuito uma edio extraordinria da Revista,

    agraciando os trabalhos expostos no Seminrio.

    Por fim, uma rpida introduo aos artigos que compem esta nossa quarta

    edio: Diego Sofritti vai buscar os fundamentos da sensibilidade na phsis de

    Empdocles e Demcrito, enquanto que Andr Sant'Anna nos mostra um Aristteles

    luz da cincia contempornea. J Carmel Ramos vai pleitear por um critrio nico de

    verdade das ideias em Espinosa. Anna Figueiredo, no entanto, ir alm do plano

    epistmico em sua anlise de Diderot, apontando para as consequncias insuspeitas de

    sua Carta Sobre os Cegos. Felipe Ayres retoma a discusso sobre a cincia, s que

    agora no tempo e nos termos do pensamento de Nietzsche. Kairon Arajo persiste no

    vis da denncia ao retomar o comentrio social de Adorno e de Horkheimer sobre a

    indstria cultural. Agenciando Freud e Deleuze, Dario Galvo nos leva a repensar a

    caricatura do filsofo francs a partir de sua leitura sobre o pai da psicanlise. Fechando

    a edio, Edson Bezerra toma para si a reflexo sobre a noo de causalidade, numa

    esteira de influncias que vai desde Schopenhauer at os lgicos contemporneos.

    Comisso Editorial Revista Aproximao

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    A FSICA DAS PERCEPES EM EMPDOCLES E DEMCRITO

    Diego Soffriti Cardoso

    Graduando em Filosofia da UFRJ

    Resumo: Dentre os diversos temas envolvidos na phsis dos pr-socrticos, a percepo

    um dos pilares fundamentais. Explicar como os elementos naturais se articulam para

    gerar viso ou tato foi uma grande tarefa. O presente artigo abordar a questo da

    sensibilidade no contexto antigo, sobretudo no pensamento de Empdocles de

    Agrigento e Demcrito de Abdera. As formulaes do primeiro autor sobre o tema sero

    descritas de acordo com quatro conceitos: emanao, poro, movimento e proporo,

    respectivamente. Cada conceito ser uma chave importante de leitura, j que

    demonstrar como o sistema corpreo se articula. O segundo pensador e seu modelo dos

    choques tambm ter valor, sobretudo pela escola atomista ser importante at os dias de

    hoje.

    Palavras-chave: Empdocles. Demcrito. Percepo.

    Abstract: Among the plurality of pre-socratic themes, perception is one of main themes

    for the discussion about the physis. Explain how the natural elements themselves

    produce vision or touch was a great problem. This paper will delineate sensations on

    ancient philosophy, focused on Empedocles of Agrigentum and Democritus of Abdera.

    The formulations of the first about the subject will be given directly under four

    concepts: emanation, pore, motion and proportion. Each term will be an important key,

    demonstrating the articulation of body system. The following thinker and his shocks

    will also show value, since atomism school influences us until nowadays.

    Keywords: Empedocles. Democritus. Perception.

    Sobre o sistema de Empdocles, afirma-nos Teofrasto:

    , ,

    , , '

    (de sensu 7, DK 31 A 86).

    Analisando ao texto poderemos nos utilizar de duas tradues importantes. A

    primeira se d pela edio de Kirk e Raven1, onde encontramos:

    1KIRK, G. S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos Alberto

    L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010.

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    Empdocles apresenta a mesma teoria acerca de todos os sentidos, ao sustentar que a percepo

    surge, quando alguma coisa se ajusta aos poros de cada um dos sentidos. por isso que um

    sentido no pode julgar os objetos do outro, visto os poros de uns serem demasiado largos, de

    outros demasiado estreitos para o objeto percebido, de tal modo que algumas coisas passam a

    direito atravs deles sem lhes tocar, ao passo que outras no so capazes sequer de entrar. (KRS

    391)

    Paralelamente a esta, evocaremos a formulao de Burnet2:

    Empdocles fala de igual modo de todos os sentidos e diz que a percepo se deve s

    emanaes que se introduzem na passagem de cada um dos sentidos. E por isso que um no

    pode julgar os objetos de outro, pois as passagens de alguns deles so excessivamente largas e as

    de outros excessivamente estreitas para o objeto sensvel, de modo que o ltimo ora mantm seu curso do comeo ao fim sem fazer contato, ora no pode absolutamente entrar. (BURNET, 1994,

    p. 200)

    Ambas as tradues, quando comparadas, concordam sobre alguns pontos. Os

    autores afirmam que cada sentido opera em um tamanho prprio, em uma dimenso

    exclusiva: no podendo um julgar os objetos do outro. Ainda assim, o modelo da

    percepo exatamente o mesmo para todos, no qual sempre h alguma coisa

    atravessando as passagens/poros do sujeito.

    Antes da discusso sobre a categoria ontolgica do ente que atravessa,

    importante apontarmos a precariedade dos termos sujeito e objeto. No est claro

    no pensamento de Empdocles o que seriam tais termos. Apesar da noo de um sentido

    no poder julgar os objetos do outro, no se torna imediato o entendimento de um

    objeto nos moldes modernos: algo separado do sujeito de percepo. Sua teoria, pelo

    menos com os fragmentos que nos chegaram, pode estar puramente interessada na

    recepo, sem comprometimento com a fonte emanativa.

    Temos, ento, de debater a principal diferena entre as tradues: a

    nomenclatura sobre o emanado. Kirk e Raven optam por assumir alguma coisa, j que

    nenhuma entidade propriamente foi dita. Burnet apenas afirma a emanao, apesar do

    vocbulo grego ou no ocorrer. razovel afirmar que ambos tm

    uma justificativa para isso, uma vez que os primeiros se prendem puramente ao trecho,

    enquanto o segundo j leva em considerao o sistema fsico de Empdocles.

    J a noo de foi correspondida de duas formas no portugus. No

    primeiro texto como poros, a traduo literal, e no segundo como passagens. Ambas as

    2BURNET, John. O despertar da filosofia grega. Traduo de Mauro Gama. So Paulo: Siciliano, 1994.

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    expresses so bem utilizadas, uma vez que est no escopo do vocbulo o campo de

    abertura, passagem ou duto. Temos ento formulado que Empdocles compreende os

    sentidos como processos receptivos, ou seja, a percepo se d na passagem de algo por

    certas aberturas. No desenvolvimento do texto sero demonstrados argumentos da

    corporeidade destes dutos.

    Um deles est ainda no mesmo comentrio de Teofrasto: sendo os sentidos

    correspondidos com diferentes tamanhos na abertura, cada emanao s poder ser

    absorvida de forma simtrica, pois, se no, umas passariam e outras nem mesmo

    entrariam. Nessa defesa, o pensador de Agrigento no parece estar usando um recurso

    ilustrativo, mas realmente afirmando que cada sentido tem um tamanho prprio. Tal

    tamanho s poderia variar na matria, sendo, no caso dos animais, no corpo.

    O segundo motivo, apresentado por Aristteles, nos mostrar que, alm de ser

    corporal, os poros dos sentidos esto localizados em pontos mais especficos. Temos a

    seguinte construo:

    '

    , ,

    ,

    ' ,

    ' , ,

    '

    '

    ' ,

    ' , .

    (de sensu, 2, 437 b 23)

    Assumiremos como traduo3:

    Assim como quando, algum, ao planear uma viagem numa noite de invernia, prepara uma luz,

    uma chama de ardente fogo, ao acender o sopro dos ventos, quando sopram, mas a luz mais

    3KIRK, G. S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos Alberto

    L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 2010. P. 200.

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    tnue jorra para o exterior e brilha atravs do limiar da porta com raios que no vacilam: assim

    tambm, nessa altura, ela [SC. Afrodite] deu luz a redonda pupila, fogo primevo confinado ao

    interior de membranas e delicadas roupagens, e foram estas que contiveram a gua profunda que

    flua em redor, mas consentiram que para fora passasse o fogo mais subtil. (KRS 389)

    Temos aqui outro entendimento de como funciona a percepo, ou pelo menos a

    viso. O fogo da chama, por ser mais fino que o ar, se propaga em vrias direes; da

    mesma forma que o fogo dentro da pupila transpassa a gua que o cerca. Esse

    movimento se torna sensorial quando ambos os fogos se encontram.

    Surge aqui um problema na teoria: a viso o paradigma de todos os sentidos,

    ou a mobilidade do fogo, na viso, um caso singular? A princpio o fragmento de

    Teofrasto nos afirma que todos os sentidos operam de forma igual, porm, a luz tambm

    sugere fortemente a ideia de propagao que no se aplica a outros corpos. De qualquer

    modo, ocorre, nesse momento, uma possvel primeira definio do que perceber. Da

    ltima descrio sobre a chama e o olho seria razovel entender percepo como

    afinidade de mesmos tipos.

    Nessa afinidade, no basta simplesmente os tipos/elementos se corresponderem,

    mas se darem de maneira nica. Veremos nessa proporo a terceira palavra-chave da

    sensao. Sobre isso nos afirma Plato no Mnon (76c):

    {.} { .} . {.}

    ' { .} . { .}

    , {.}

    .{.} {.} . {.}

    , . . {.}

    , , . {.}

    ,

    . (DK 31 A 92)

    Leremos por duas vias ao trecho acima, a fim de enriquecer a leitura. Na

    primeira delas4 encontramos:

    SO. No verdade que falais de certas emanaes dos seres, segundo Empdocles?

    MEN. Certamente. SO. E tambm de poros, para os quais e atravs dos quais correm as

    emanaes? MEN. Perfeitamente. SO. E, dentre as emanaes, algumas se

    adaptam a alguns dos poros, enquanto outras so menores ou maiores? MEN. assim. SO. E

    h tambm, no ? Algo a que ds o nome de viso. MEN. H. SO. A partir disso tudo ento,

    atende ao que digo, diz Pndaro. A cor pois uma emanao de figuras de dimenso

    4Plato, Mnon (Trad. de Maura Iglsias; Ed. Puc-Rio, Loyola; 2001)

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    proporcionada viso e perceptvel. MEN. Parece-me, Scrates, teres dado, com esta,

    uma excelente resposta. SO. que talvez tenha sido dada de maneira que te habitual; e ao

    mesmo tempo, creio, percebes que serias capaz de, a partir dela, dizer tambm o que o som,

    bem como o odor e muitas outras dentre as coisas desse tipo.

    Compararemos com a segunda:

    Scrates: Concordas ento com Empdocles, em que as coisas que existem emitem certos

    eflvios? Mnon: Sem dvida. S.: E que tm poros para os quais e atravs dos quais se deslocam

    os eflvios? M.: Sim. S.: E que de entre esses eflvios, uns se ajustam a alguns dos poros, ao

    passo que outros so demasiado pequenos ou excessivamente grandes? M.: Assim . S.: E no

    verdade que existe algo a que chamas de vista? M.: verdade. S.: Com base em tudo isto, pois,

    , para usar as palavras de Pndaro: a cor um eflvio de formas,

    proporcionado com a vista e perceptvel. M.: Essa tua resposta, Scrates, , a meu ver, excelente.

    S.: Talvez seja aquela a que ests habituado. E ao mesmo tempo, suponho eu, crs que ela te

    por em situao de dizeres tambm o que a voz, e o olfacto e muitas outras coisas

    semelhantes. (KRS 390)

    visvel que ambos os textos so muito prximos, no houve nenhuma

    discordncia importante. A noo dos poros se manteve igual, respeitando de forma

    mais prxima ao argumento original. A diferena est na traduo de , pois foi

    entendido, por um lado, como emanao e de outro, como eflvio.

    A expresso do emanado est em dilogo com aquilo que se expande, aquilo que

    deriva de alguma fonte. No exemplo anterior da chama, a emanao essa extenso do

    fogo, que atravs do ar, se manifesta at ser encontrado por outro fogo de mesmo tipo.

    Se a referncia de Plato a Empdocles estiver correta, os poros no seriam

    exclusividade daquele que recebe, mas estariam tambm naqueles que provm. Deste

    modo, seria plausvel entender como objeto tudo aquilo que possui poros prprios e

    emana atravs deles. Tal processo possibilitaria aos viventes figur-los, fazendo deles

    sujeitos.

    O movimento das emanaes, sobretudo no exemplo anterior da chama, sugere

    fortemente a noo de fluido. Isto possibilita a traduo de eflvios, onde a tese sobre

    a natureza se reforaria na constante mudana. Derivamos dessas teses um modelo onde

    todos os objetos esto emanando a todo o tempo, e tambm em uma proporo.

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    Como o prprio Plato havia formulado no Mnon, a viso e outros sentidos s

    poderiam sentir as formas proporcionadas vista e outros correspondentes. Nesse

    escopo, cada percepo ajuste de figuras em simetria ao corpo.

    Aproveitando-se esse vocabulrio, vale o esforo de demonstrar como a

    proporo se manifesta na fsica do autor. sabido que Empdocles foi o primeiro a

    assumir, pelo menos na terminologia do sistema aristotlico, quatro causas materiais.

    Assumimos que essas causas so elementos, apesar da expresso no ocorrer

    diretamente no pensador.

    So chamadas quatro razes (rizmata) e podem se expressar em diversos

    quartetos: ar, terra, fogo, gua; pena, cabelo, folha, escama; Hera, Edoneu (ou Hefesto),

    Zeus e Nstis. Toda raiz pode se manifestar em diversos formatos, mas jamais podem

    deixar de existir.

    Sobre isso nos afirma Lloyd5:

    O termo elemento ambguo, sendo usado (i) como substncia original -- substncias que

    existem a tanto tempo quanto qualquer coisa existiu e (ii) como substncias simples

    substncias em que coisas compostas so analisadas, mas elas propriamente no podem ser

    redutveis. (LLOYD, 1970, p. 40, traduo nossa).

    Havendo na sequncia um elogio a Empdocles:

    Mas Empdocles expressou mais claramente que qualquer outro escritor antigo a idia de

    substncias originais e simples. verdade, ele no usa o que se tornou o termo tcnico para

    elemento em grego, stoicheion, no introduzido at Plato, mas ele se refere terra, gua, ar e

    fogo como rhizomata, razes, no sentido definido. Primeiramente, as razes propriamente no vieram a ser, mas so eternas e incriadas: elas so, ento, elementares no sentido de substncia

    original. (LLOYD, 1970, p. 40, traduo nossa).

    Assim, as razes so incriadas e indestrutveis; mas tambm, sendo quatro,

    nenhuma se sobrepe ontologicamente outra. Um reforo a esse ponto est em: Suas

    razes so eternas e simpleselas so constituintes irredutveis dentre as coisas que

    podem ser analisadas. (LLOYD, 1970, p. 41, traduo nossa)

    5LLOYD, Geoffrey E R. Early Greek Science: Thales to Aristotle. New York: W.W. Norton &

    Company, 1970.

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    Nesse sistema, todas as coisas so constitudas por mistura das razes; mas, a

    mistura deve se dar exclusivamente para gerar um objeto. Um exemplo disso

    fragmento 96: (Simplcio in Phys. 300, 21.):

    ,

    ' '

    . (DK 31 B 96)

    Como traduo6: E a terra amavelmente recebeu nos seus amplos cadinhos duas

    das oito partes do fulgor de Nstis, e quatro de Hefesto; e em alvos ossos elas se

    converteram, maravilhosamente unidos pela cola da Harmonia. (KRS 374)

    A razo de 4:2:2, respectivamente, para fogo, gua e terra o que forma aos

    ossos. Assim, entendemos que Empdocles imaginava aos objetos como certos padres

    materiais na natureza; os mesmos padres que, se repetindo em determinados rgos,

    gera percepo. Se aceito o argumento, poderamos resumir aos processos sensoriais

    como: relao entre objeto e sujeito onde h similaridade de proporo e matria atravs

    de seus poros e suas emanaes.

    O ltimo argumento, em favor da importncia da distribuio formal dos

    objetos, nos ser dado novamente por Simplcio no fragmento 98 (in Phys. 32,6):

    ,

    ' ,

    ,

    '

    . (DK 31 B 98)

    Em portugus7:

    E a terra encontrou-se em igual quantidade com estes, Hefesto [o fogo], a chuva e o ar cintilante

    [aither] ancorada nos perfeitos portos de Cpria [amor], numa proporo um tanto maior ou

    menor, entre a maioria deles. Destes surgiram o sangue e as diversas formas de carne.

    6KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos

    Alberto L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010. P. 317. 7ibidem, p. 317.

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    Dessa passagem podemos ver a preocupao do pensador em definir os

    compostos dos entes, sobretudo os orgnicos (sangue, carne e ossos). Apesar da sua

    zoogonia no ser exatamente o tema da presente dissertao, importante entender as

    pistas que a matemtica, tanto no nmero de elementos, quanto sua distribuio, podem

    oferecer a percepo.

    Remetendo-nos agora a escola atomista e a Demcrito de Abdera, ser

    pertinente ver as analogias de seu sistema perceptivo com Empdocles. Apesar de

    semelhantes na explicao, interessante como esta escola rompeu a tese do Ser

    unoeleata, duplo em uma leitura de Herclito e qudruplo em Empdocles: o Ser seria

    infinito em sua constituio. Sobre isso temos8:

    sem dvida com os atomistas que as teorias da percepo atingem o seu maior refinamento e

    distncia, embora impliquem ainda um total materialismo. Sendo a natureza na

    totalidade, constituda por tomos unos e indivisveis, e vazio; a percepo d-se quando tomos

    de imagem das coisas chocam com os tomos dos sentidos, produzindo a sensao. Aqui

    encontraremos os famosos eidolon de Epicuro, que constituem o elo de ligao entre os eflvios de Empdocles e a speciesmedieval. Os eidolon so reflexos sensveis das coisas que afectam

    sensorialmente o homem. (GRADIM, 1999)

    Pela natureza ser composta unicamente por duas categorias, os tomos e os

    vazios, a fsica atomista explica a constituio de todos os entes como agregados dessas

    partculas; bem como o movimento sendo o deslocamento das mesmas para um dos

    espaos vazios. Quanto percepo, esta s poder ocorrer na interao atmica, pois o

    vazio apenas potencialidade.

    Acio corrobora para o raciocnio (IV, 8, 10): , ,

    (DK 67 A 30). Com a traduo:

    Leucipo, Demcrito e Epicuro dizem que a percepo e o pensamento surgem, quando

    entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a

    coliso de uma imagem. (KRS 588).

    8GRADIM, Anabela. Sinais de privao: de volta a uma sensibilidade original. Lisboa: 1999. Em:

    . Acesso em: 10

    dezembro 2012.

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    Se a tese for correta, Demcrito mantm a noo de a percepo ser a interao

    de algo fora com aquilo que nos prprio (o corpo). Contudo, a interao no se d

    exatamente em uma passagem, mas em atrito, em choque. Alm disso, o descrito

    simplesmente como emanao em Empdocles e emanaes de figuras (skhemata) em

    Plato, agora o como eflvio de imagens (eidolon/eidola).

    Assim,

    .

    (Alexandre de sensu 56, 12, DK 67 A 29). Em portugus: Eles atriburam

    vista a certas imagens do mesmo formato que o objeto, que estavam continuamente a

    fluir dos objetos da viso e a colidir com os olhos. Esta era a opinio da escola de

    Leucipo e Demcrito.

    Importante ver a expresso aporronta, em concordncia com o aporro

    empedocltico. Os eidola visuais, ento, seriam o emanado do ambiente externo ao

    indivduo, acertando aos olhos e virando sensibilidade. H aqui talvez uma divergncia

    entre os modelos. Pois enquanto Empdocles prope uma afinidade entre poros e

    emanaes, uma passagem devida mesma configurao, Demcrito pensa basicamente

    em um choque, um atrito dos tomos. Nesse escopo, o pensador de Agrigento conseguia

    diferenciar os sentidos pelos tamanhos e formatos dos poros, enquanto o cidado de

    Abdera no teria fornecido uma resposta a isso.

    Kirk e Raven acabam por reafirmar esse fato quando afirmam: [...] como todos

    os sentidos dependem, em ltima anlise, deste sentido [o tato], um problema bvio

    saber como que a vista ou o gosto, por exemplo, diferem dele. (p. 453). Aristteles

    tambm possui uma crtica, pois afirma Demcrito e a maioria dos filsofos da

    natureza, que se ocupam da percepo, so culpados de um grande absurdo; pois

    reduzem ao tacto toda a percepo. (de sensu, 4, 442 a 29).

    Quando se descreve a sensibilidade como choque de tomos, tudo seria tato:

    olfato como tato do nariz, paladar como tato da lngua etc. Essa questo no impede

    que haja uma possibilidade de diferenciao nas propriedades das coisas, pois:

    O sabor amargo causado por tomos pequenos, lisos e redondos, cuja circunferncia , na realidade, sinuosa; portanto, ele ao mesmo tempo pegajoso e viscoso. O sabor salgado

    causado por tomos grandes, no redondos, mas nalguns quase pontiagudos... (Teofrasto de

    sensu 66, DK 68 A 135).

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    O entendimento da percepo, ento, no est mais se pautando na afinidade de

    mesmos tipos, mas em choques que levam em considerao a geometria atmica. O

    problema persiste na dificuldade de se separar quais colises tornam-se sensoriais e

    quais no; j que estamos em contaste frico com tomos externos.

    De qualquer modo, so inegveis as contribuies que ambos os filsofos

    tiveram, tanto pela descrio da fsica, quanto de algo que geraria a atual fisiologia.

    Lidar com os sentidos normalmente acarreta ao estudo de uma multiplicidade difcil de

    averiguao (os quatro elementos de Empdocles) ou a uma reduo que acaba por

    limitar as diferenciaes naturais (tudo como tato, contato atmico).

    Referncias:

    BURNET, John. O despertar da filosofia grega. Traduo de Mauro Gama. So

    Paulo: Siciliano, 1994.

    GRADIM, Anabela. Sinais de privao: de volta a uma sensibilidade original.

    Lisboa: 1999. Em: . Acesso em: 10 dezembro 2012.

    KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo

    de Carlos Alberto L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010.

    LLOYD, Geoffrey E R. Early Greek Science: Thales to Aristotle. New York: W.W.

    Norton & Company, 1970.

    PLATO. Mnon. Traduo de Maura Iglsias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola,

    2001.

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    PARALELOS ENTRE A TEORIA DA DEMONSTRAO ARISTOTLICA E

    OS MODELOS DE EXPLICAO CIENTFICA CONTEMPORNEOS

    Andr Rosolem SantAnna

    Graduando em Filosofia pela UEM

    Resumo: Neste artigo apresentarei uma caracterizao geral de dois modelos de

    explicao cientfica recorrentes na literatura em filosofia da cincia: (i) o modelo

    dedutivo-nomolgico; e o (ii) o modelo estatstico-relevante. No contexto desta

    exposio, tentarei explicitar como estes modelos pretendem explicar as diferenas

    entre sentenas descritivas e sentenas explicativas. Posteriormente, tentarei demonstrar

    que a teoria da demonstrao desenvolvida por Aristteles nos Segundos Analticos

    capta alguns aspectos destes modelos, alm de apresentar respostas para algumas das

    objees feitas a estes ltimos.

    Palavras-chave: Explicao cientfica. Teoria da demonstrao. Aristteles.

    Abstract: In this paper I will provide a general overview of two contemporary models

    of scientific explanation in philosophy of science: (i) the deductive-nomological model;

    and (b) the statistical relevance model. In the context of this exposition, I will try to

    make explicit how these models accommodate within their framework the differences

    between descriptive sentences and explanatory sentences. After that, I will try to

    demonstrate that the theory of demonstration developed by Aristotle in his Posterior

    Analytics is sensible to some aspects of these models and also that Aristotles theory

    provides answers to some objections made to these contemporary models.

    Keywords: Scientific explanation. Theory of demonstration. Aristotle.

    INTRODUO

    Um aspecto importante dos modelos contemporneos de explicao cientfica

    a distino entre a descrio de um fenmeno e a explicao deste mesmo fenmeno.

    Apresentarei na primeira seo deste artigo uma caracterizao geral de dois destes

    modelos: (i) o modelo dedutivo-nomolgico; e (ii) o modelo estatstico-relevante. Ainda

    nesta seo, tentarei explicitar como estas teorias pretendem abarcar a distino entre

    sentenas descritivas e sentenas explicativas. Na segunda seo, apresentarei de modo

    geral a teoria da demonstrao de Aristteles e tentarei demonstrar que esta teoria

    tambm sensvel distino entre sentenas descritivas e sentenas explicativas, alm

    de fornecer respostas a algumas das objees feitas s teorias contemporneas aqui

    tratadas.

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    1. OS MODELOS CONTEMPORNEOS DE EXPLICAO CIENTFICA

    Os modelos de explicao cientfica contemporneos atentam para uma

    importante distino entre o modo pelo qual possvel descrever um fenmeno que se

    pretende explicar, tentando captar quais tipos de sentenas apresentam uma explicao

    satisfatria do fenmeno em questo, isto , o por que1 de um fenmeno ocorrer, e quais

    sentenas somente apontam para uma descrio efetiva de que tal fenmeno o caso,

    sendo que estas sentenas no oferecem condies suficientes para afirmar por que de

    fato este fenmeno aconteceu. Assim, explicar um fenmeno da natureza requer no

    somente o conhecimento de que um fenmeno x seja o caso, mas antes, a sentena

    fundamental qual se deve aduzir quando se utiliza a palavra explicao requer que

    seja explicitado por que x o caso. Entretanto, nem toda sentena do tipo x o caso

    porque y o caso satisfaz os critrios necessrios para que uma explicao seja

    conclusiva. Quando afirmamos que um homem no engravidou porque tomou plulas

    anticoncepcionais2, afirmamos que x o caso e por que x o caso, todavia, no se

    explica de fato por que x ocorreu, visto que, dado que indivduos do sexo masculino no

    podem engravidar, o fato de que o homem em questo tenha tomado plulas

    anticoncepcionais torna-se irrelevante. Neste caso, embora a sentena por que x tenha

    sido satisfeita, no podemos deduzir desta resoluo que tal sentena seja de fato uma

    explicao de x.

    Em face da dificuldade apresentada acima, Hempel (1974) aponta para um

    requisito importante ao qual uma explicao deve atender para que seja considerada

    uma explicao legtima3. Este requisito denominado requisito da relevncia

    1 Em termos gramaticais, o vocbulo correto a ser utilizado aqui seria porqu. Uso, no entanto, o termo

    por que em um sentido tcnico, isto , como referncia oposio entre sentenas que (sentenas

    descritivas) e sentenas por que (sentenas explicativas). Este uso se justifica na medida em que quando o

    termo utilizado ao longo do texto, tem-se em vista no somente a denotao de um substantivo como o

    motivo de um fenmeno ocorrer, mas sim uma referncia distino feita acima. Assim, cabe enfatizar que os usos subsequentes do termo por que em itlico no decorrer deste artigo tem em vista esta distino

    tcnica. 2 SALMON, 1971. 3 A abordagem de Hempel acerca da explicao cientfica denominada modelo dedutivo-nomolgico.

    Todavia, vale ressaltar que o exemplo apresentado por Salmon para ilustrar o carter da irrelevncia

    explanatria de algumas sentenas por que no de fato superado pelo modelo dedutivo-nomolgico.

    Em linhas gerais, o exemplo aduzido satisfaz as condies exigidas pelo modelo de Hempel: tem-se leis

    gerais e casos particulares dos quais, tomados como verdadeiros, pode-se deduzir o explanandum. A objeo de Salmon consiste em apontar justamente para a incapacidade do modelo dedutivo-nomolgico

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    explanatria que, segundo Hempel, ocorre quando: a informao aduzida fornece um

    bom fundamento para acreditar que o fenmeno a ser explicado de fato aconteceu ou

    acontecer. (HEMPEL, 1974, p. 66). Nesse sentido, explicar o fato de um homem no

    engravidar porque tomou plulas anticoncepcionais no considerada uma explicao

    porque no atende ao requisito da relevncia explanatria, isto , o fato de um indivduo

    do sexo masculino ter tomado plulas para no engravidar no satisfaz o critrio de

    relevncia para explicar o fato em questo, visto que homens no possuem um tero

    nem outras disposies fisiolgicas necessrias para que seja possvel o estado de

    gravidez.

    Neste contexto, possvel distinguirmos entre o que uma explicao e o que

    somente uma descrio. Quando observamos que certa amostra de gua submetida a um

    aumento de temperatura inicia o processo de ebulio, temos a descrio do fato de que

    a gua est passando do estado lquido para o estado gasoso, e que tal passagem se d

    concomitantemente ao aumento da temperatura na amostra considerada. Assim,

    possvel apontarmos para evidncias de que a gua est passando do estado lquido para

    o estado gasoso, mas ainda no possvel sabermos por que este processo ocorre nas

    condies determinadas.

    O aumento da temperatura fornece boas razes para acreditarmos que o

    fenmeno o qual a nossa investigao tem como escopo ocorreu ou ocorrer novamente,

    visto que, dado o ponto de ebulio da gua, sabemos que o um aumento de temperatura

    at 100C4 nos permitir observar que o processo de ebulio tem incio. Nesse sentido,

    temos que o requisito da relevncia explicativa satisfeito, uma vez que a evidncia a

    qual aduzida, a saber, o aumento da temperatura, um fator relevante para que

    saibamos que o fenmeno investigado de fato ocorreu nas condies descritas at aqui.

    Ainda que tenha sido explicitado que o fenmeno em pauta o caso, estas

    condies descritivas ainda no fornecem condies suficientes para que possamos

    em captar fatores relevantes para uma explicao (Cf. WOODWARD, 2010, The SR Model). A partir

    disso, podemos observar que embora Hempel explicite os requisitos para uma explicao cientfica, a sua

    proposta no sensvel considerao de fatores relevantes em algumas situaes, conforme exemplifica

    Salmon (1971). Assim, o exemplo aqui apresentado tem somente o objetivo de ilustrar a no suficincia

    de algumas sentenas que satisfazem o requisito do por que e introduzir o requisito da relevncia

    explanatria. 4 Considerando que a experincia esteja sendo realizada ao nvel do mar.

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    elaborar uma explicao satisfatria para o fenmeno, embora seja necessrio para uma

    explicao que o fato seja afirmado como sendo o caso e as informaes que sustentem

    esta afirmao sejam aduzidas. Nesse sentido, considerando o exemplo do aquecimento

    da gua, s teremos o fator relevante que exercer poder explicativo na medida em que

    consideramos por que o aumento de temperatura responsvel pelo processo de

    ebulio. Para que tal resoluo seja satisfeita, devemos considerar que um aumento de

    temperatura proporciona um aumento na energia cintica das molculas da amostra, de

    modo que a tenso da superfcie da gua lquida exceda a tenso exercida pela coluna de

    ar, possibilitando que estas molculas escapem em forma de vapor. Podemos

    concluir, por conseguinte, que uma aluso s leis da fsica (o aumento de temperatura

    proporciona o aumento da energia cintica, por exemplo) nos permite extrapolar o

    estatuto de uma descrio e fornecer uma explicao satisfatria para o fenmeno

    colocado em foco no incio da nossa investigao.

    Tendo em vista esta distino fundamental, modelos que pretendem integrar as

    explicaes referentes aos fenmenos da investigao cientfica so propostos por

    filsofos da cincia, buscando a partir deles abarcar as peculiaridades apresentadas pelas

    sentenas explicativas e pelas sentenas descritivas. No mbito deste artigo, sero

    tratadas duas propostas que pretendem sistematizar os conceitos que permeiam uma

    explicao cientfica: (i) o modelo dedutivo-nomolgico, proposto por Hempel (1974), e

    (ii) o modelo estatstico-relevante, defendido por Salmon (1971, 1989).

    O modelo dedutivo-nomolgico pode ser descrito mediante a seguinte estrutura:

    as sentenas que descrevem o fenmeno a ser explicado so denominadas sentenas

    explanandum, ao passo que as sentenas que possuem carter explicativo relacionado ao

    fenmeno so as sentenas explanans5. O modelo dedutivo-nomolgico exige que o

    explanans seja verdadeiro, possua contedo emprico e abranja sentenas em forma de

    leis gerais. Deste modo, podemos dizer que as sentenas referentes explicao de um

    fenmeno (F) devem conter leis gerais (L) e contedo emprico representado por casos

    particulares (P). O explanandum, por sua vez, deve atender igualmente a exigncia de

    contedo emprico, isto , deve ser empiricamente observvel.

    5 Por questes de brevidade, as referncias a estas sentenas sero feitas simplesmente por explanandum e

    explanans.

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    A caracterizao de leis gerais entre o explanans justifica a denominao

    nomolgico. A denominao dedutivo, por sua vez, pode ser descrita do seguinte

    modo: a explicao deve ter a forma de um argumento dedutivo em que o

    explanandum segue como concluso das premissas no explanans (Trad. minha)

    (WOODWARD, 2010). Nesse contexto, o modelo dedutivo-nomolgico pode ser

    esquematizado da seguinte forma:

    (I) L1, L2, L3, ..., Ln

    (II) P1, P2, P3, ...,Pn

    (III) Portanto, [dedutivamente] F.

    A composio desta estrutura pode ser interpretada do seguinte modo: (I) e (II)

    so considerados as sentenas explanans e (III) a sentena explanandum. Uma

    caracterstica importante do modelo dedutivo-nomolgico caracterizado deste modo o

    que Salmon (1989) denomina de expectabilidade nmica: a essncia da explicao

    cientfica pode ser descrita como expectabilidade nmica isto , expectabilidade

    baseada em conexes vlidas regidas por leis [lawful]6 (Trad. minha) (SALMON,

    1989, p. 57). Podemos dizer que h expectabilidade nmica quando dado as sentenas

    constituintes do explanans, o explanandum esperado com certeza (no caso do modelo

    dedutivo-nomolgico) ou com alta probabilidade (no caso do modelo indutivo-

    estatstico)7.

    Outro modelo proposto recentemente desenvolvido por Salmon (1971, 1989).

    Este modelo denominado modelo estatstico-relevante e busca englobar casos aos

    quais o modelo dedutivo-nomolgico no sensvel, casos estes que so exemplificados

    por explicaes probabilsticas. importante notar que alm de buscar captar as

    explicaes de baixa probabilidade, o modelo estatstico relevante procura fornecer

    tambm um novo critrio para que seja possvel distinguir os aspectos relevantes para

    uma explicao cientfica, uma vez que casos como o do homem que toma plulas

    6 Traduzi a expresso lawful por conexes vlidas regidas por leis fazendo referncia a uma validade

    lgica regida pelas leis que compem o explanans. 7 A expectabilidade nmica no uma peculiaridade do modelo dedutivo-nomolgico. Tendo em vista a

    importncia das explicaes estatsticas, Hempel (1974) prope o modelo indutivo-estatstico no qual a

    passagem do explanans para o explanandum no se d dedutivamente em um sentido estrito, mas a

    inferncia condicionada por um alto grau de probabilidade. Nesse sentido, possvel observar a

    expectabilidade nmica tambm no modelo indutivo-estatstico.

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    anticoncepcionais parecem atender a todos os requisitos do modelo dedutivo-

    nomolgico, ainda que no satisfaam as condies para uma explicao satisfatria8.

    Tendo em vista este ltimo contraexemplo, o modelo estatstico-relevante

    introduz o conceito de partio homognea. Em linhas gerais, uma partio homognea

    representa determinada parte de uma classe de indivduos que se excluem mutuamente

    das outras partes do todo, no podendo, deste modo, haver divises subsequentes dentro

    desta subclasse. Assim, dado uma classe de indivduos A relacionada a um atributo B, os

    indivduos representado pela subclasse Cx de A s sero uma partio homognea se

    Cx Cy, de modo que a probabilidade de B ser estatisticamente relevante em relao

    Cx deve ser necessariamente distinta da probabilidade resultante da relao entre B e

    Cy9.

    Deste modo, o modelo estatstico-relevante pode ser posto nos seguintes termos:

    Dado uma classe ou populao A, um atributo C s ser estatisticamente relevante para um

    atributo B se e somente se P(B|A.C) P(B|A) isto , se e somente se a probabilidade do

    condicional B em A e C for diferente da probabilidade do condicional B em A isoladamente.

    (Trad. minha) (WOODWARD, 2010)

    Assim, a ineficcia explanatria relatada no exemplo do homem que toma

    plulas anticoncepcionais captada pelo modelo estatstico-relevante, uma vez que a

    probabilidade de um grupo de indivduos homens que tomam plulas (C) no

    engravidarem (B) estatisticamente irrelevante quando se assume a classe total dos

    homens (A). Em termos formais, o argumento pode ser exposto da seguinte forma:

    P(B|A) = P(B|A.C). Isto demonstra que a subclasse dos homens que tomam plulas (C)

    no uma partio homognea, visto que, podemos dividir C subsequentemente, de

    modo que P(B|A.C.Ca) = P(B|A.C), o que no alteraria a relao estatstica em relao

    ao atributo de no engravidar (B). possvel ainda que seja escolhida qualquer outra

    subclasse dentro de A, por exemplo, a subclasse dos homens que tomam cerveja (E),

    sem que a relevncia estatstica seja alterada isto , P(B|A.C.E) = P(B|A.C). Deste

    modo, uma vez que C no uma partio homognea, este no pode ser o princpio

    adequado para se explicar a ocorrncia de B dentro de A.

    8 Cf. nota 2 deste artigo, ver tambm WOODWARD, 2010, The SR Model. 9Em termos formais: P(B|A.Cx) P(B|A.Cy).

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    De acordo com esta breve exposio do modelo estatstico-relevante, possvel

    enunciar a ideia que subjaz a este modelo:

    A intuio que subjaz ao modelo estatstico-relevante que propriedades estatisticamente

    relevantes (ou informaes sobre relaes estatisticamente relevantes) so explanatrias e

    propriedades estatisticamente irrelevantes no o so. Em outras palavras, a noo de uma

    propriedade fazendo a diferena em relao a um explanandum apresentada em termos de

    relaes estatsticas relevantes. (Trad. minha) (WOODWARD, 2010)

    2. A EXPLICAO CIENTFICA EM ARISTTELES

    A identificao de propriedades relevantes a partir de informaes

    estatisticamente relevantes constitui uma singularidade do modelo de Salmon (1971,

    1989) em relao ao modelo de Hempel (1974), visto que o primeiro consegue explicar

    situaes s quais o segundo modelo no sensvel. possvel observarmos, no

    entanto, o que talvez seria a noo de propriedade explicativa relevante na obra de

    Aristteles, mais especificamente, no primeiro livro dos Segundos Analticos.

    De acordo com Aristteles, conhecer cientificamente conhecer a respeito da

    causa pela qual a coisa , que ela causa disso, e que no possvel ser de outro modo

    (71b 10-11). A causa pela qual a coisa , [...], e que no possvel ser de outro modo

    s pode ser explicitada atravs da demonstrao. O conhecimento cientfico, deste

    modo, s possvel atravs da demonstrao, a qual Aristteles define por silogismo

    cientfico (71b 18). Uma demonstrao deve atender a alguns requisitos para que,

    conforme ser demonstrado posteriormente, seja diferenciada de alguns silogismos que,

    embora vlidos, no captam a verdadeira causa de algo que se pretende explicar. Para

    que tal resoluo seja satisfeita, Aristteles assume que uma demonstrao deve provir

    de itens verdadeiros, primeiros, imediatos, mais cognoscveis que a concluso,

    anteriores a ela e que sejam causa dela (71b 20-21).

    Por primeiros e imediatos, Aristteles se refere aos itens que [explicam]

    adequadamente o objeto assumido como explanandum.10

    (ANGIONI, 2007. p. 3).

    Assim, no que diz respeito ao tringulo issceles, por exemplo, a propriedade de possuir

    seus ngulos internos igual a 180 (2R) no se atribui primeiramente ao tringulo

    10 E a partir de primeiros a partir de princpios apropriados pois entendo primeiro e princpio

    como o mesmo. (72a 5)

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    issceles enquanto issceles, mas antes, a propriedade de ter 2R primeira e imediata

    em relao ao tringulo, e no a issceles11

    .

    No que diz respeito aos itens mais cognoscveis, Aristteles faz uma distino

    entre mais cognoscveis para ns e mais cognoscveis por natureza. Os primeiros,

    diz Aristteles, se referem aos itens que esto mais prximos de ns no que se refere

    sensao, ao passo que os segundos representam as coisas mais afastadas, ou seja, os

    universais. Smith (2009) defende que familiaridade e inteligibilidade para ns

    altervel atravs da habituao (Trad. minha) (SMITH, 2009, p. 54), o que indica que

    podemos chegar ao que mais familiar ou inteligvel por natureza partindo do que

    mais familiar ou inteligvel para ns12

    .

    Os pontos apresentados at aqui podem ser resumidos no seguinte trecho de

    Smith (2009):

    [C]incia o conhecimento da causa por que algo do modo que ; ns estamos em posse da

    cincia quando estamos em posse de uma demonstrao. Uma demonstrao um silogismo do

    qual as premissas so verdadeiras e elementares. Possuir uma demonstrao requer que as

    premissas sejam mais familiares ou mais inteligveis para ns do que a concluso (Trad. minha) (p. 55).

    Dado que o conhecimento cientfico um conhecimento necessrio da causa

    pelo qual algo , e deste modo, no podendo ser de outro jeito, Aristteles conclui que

    uma demonstrao s pode provir de itens necessrios. Para esclarecer esta noo,

    necessrio compreendermos o que se entende por atribuio a respeito de todo, por si

    mesmo e universal.

    Em primeiro lugar, algo atribudo a respeito do todo na medida em que no

    a respeito de apenas alguns e no de outros, nem apenas s vezes, mas s vezes no;

    [...]. (73a 28-29). Assim, um exemplo que podemos utilizar aqui o do ponto e da

    11 Uma proposio imediata uma proposio que no necessita de um termo mediador para que seja

    demonstrada, ou seja, sua verdade provm da prpria definio da coisa considerada. Como coloca Smith

    (2009): Se no h nenhum termo mdio, [...], ento a proposio em questo amesos, sem

    intermediador. Isto o que imediato significa para Aristteles (Trad. minha) (SMITH, 2009, p. 53). 12 Para uma argumentao mais detalhada, Cf. SMITH, 2009, p. 54. A argumentao de Smith baseada

    em uma passagem da Metafsica (1029b310), na qual Aristteles afirma: [E]nto, o nosso trabalho

    comear do que inteligvel [familiar] para ns e fazer o que inteligvel [familiar] por natureza tambm

    inteligvel para ns (Trad. minha).

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    linha, isto , o ponto atribudo a respeito de toda linha, uma vez que se se tem uma

    linha, ter-se- tambm o ponto.

    Em segundo lugar, algo atribudo por si mesmo pelo menos de dois modos:

    primeiramente atribui-se por si mesmo tudo aquilo que est contido na definio do

    sujeito, como, por exemplo, a linha se atribui ao tringulo por si mesmo.

    Paralelamente, atribui-se por si mesmo tambm os predicados que esto contidos na

    essncia do sujeito, como o caso de se atribuir par e mpar ao nmero, visto que o

    nmero em sua essncia ou par ou mpar.

    No que diz respeito ao universal, este se refere a tudo aquilo que se atesta a

    respeito de qualquer caso que se tome, e primeiramente (73b 32-33). Deste modo,

    possuir dois ngulos retos no atribudo universalmente figura, visto que o quadrado,

    por exemplo, possui a soma de seus ngulos internos igual a 4R. No que se refere ao

    issceles, possuir 2R tambm no atribudo universalmente, j que, embora todos os

    issceles tenham 2R, esta caracterstica no atribuda primeiramente, mas antes,

    aplicvel a mais casos, como o caso dos tringulos equilteros e dos tringulos

    escalenos.

    Tendo em vista estes esclarecimentos conceituais, possvel atentarmos para

    algumas das implicaes da noo de explicao cientfica para Aristteles. Conforme

    demonstrado na primeira parte deste artigo, os modelos de explicao cientfica

    contemporneos atentam para a distino entre sentenas que afirmam que um

    fenmeno o caso e sentenas que afirmam por que este fenmeno o caso. Com esta

    distino em vista, possvel observarmos que a teoria da demonstrao aristotlica se

    preocupa em distinguir entre um silogismo do que e um silogismo do por que. Assim,

    para que a teoria seja sensvel a esta distino, Aristteles aduz a diferenas presentes

    entre silogismos verdadeiros que, embora logicamente vlidos, no expressam o por que

    ou a causa do que se pretende explicar, de silogismos que captam a causa primeira e

    explicam por que determinada coisa o caso.

    Para que esta distino seja possvel, Aristteles argumenta que em uma

    demonstrao, isto , em um silogismo do por que, o temo mdio (intermediador) deve

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    ser atribudo necessariamente a ambos os termos maior e menor, caso contrrio, a

    concluso pode ser necessria, mas ainda no se conhecer por que.

    Outro ponto importante desta discusso diz respeito aos princpios dos quais se

    origina a demonstrao, isto , mesmo que os princpios sejam verdadeiros,

    indemonstrveis e imediatos, isto no significa que sejam apropriados para que da se

    construa um silogismo do por que. Assim, Aristteles aponta para a necessidade de

    homogeneidade entre os termos de um silogismo para que uma demonstrao seja

    satisfeita. Em outras palavras, em um silogismo com os extremos A e C e o

    intermediador B, A, B e C devem necessariamente pertencer ao mesmo gnero, caso

    contrrio, no ser possvel se extrair da uma demonstrao. Esta assero pode ser

    entendida consoante s consideraes de Aristteles em relao aos elementos de uma

    demonstrao: So trs os itens nas demonstraes: um aquilo que se demonstra, a

    concluso [...]; outros, por sua vez, so os axiomas [...]; em terceiro lugar, o gnero

    subjacente [...] (75a 38-75b 2). Deste modo, uma vez que cada gnero possui

    princpios necessrios distintos, uma demonstrao no pode abranger termos de

    gneros distintos. Caso isto acontea, o silogismo no ser uma demonstrao, mas

    apenas uma atribuio por algo em comum.

    Torna-se claro, portanto, que uma demonstrao deve ser dada em forma de um

    silogismo, visto que, para que seja encontrada a relao necessria entre um termo A e

    um termo C, necessrio que haja um termo intermediador B que seja atribudo

    necessariamente tanto a A quanto a C, de modo que a causa (ou o por que) do que se

    procura explicar deve ser dada a partir da deduo da relao necessria entre os termos

    extremos partindo da relao igualmente necessria entre os extremos e o

    intermediador.

    Uma possvel sugesto aqui que podemos encontrar a causa ou o por que em

    uma explicao olhando para a totalidade de indivduos da classe ao qual esta causa

    atribuda. Em outras palavras, poderamos dizer que para explicar por que x seria

    suficiente aduzirmos classe dos indivduos que possuem x. Para Aristteles, no

    entanto, tal sugesto no plausvel. Ele procura explicitar ao longo do captulo V dos

    Segundos Analticos I que a satisfao do princpio de coextensionalidade no

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    condio suficiente para captar a causa ou o por que de algo. Para compreendermos isto,

    tomemos como exemplo o seguinte silogismo:

    Todos os equilteros, escalenos e issceles possuem seus ngulos internos igual a 2R

    Todo tringulo ou equiltero, ou escaleno, ou issceles

    Portanto, todo tringulo tem a soma de seus ngulos internos igual a 2R

    possvel observarmos neste caso que ainda que as premissas e a concluso

    sejam verdadeiras e, portanto, que o argumento seja vlido, no podemos conhecer a

    partir desta inferncia por que um tringulo tem 2R. somente possvel extrair deste

    argumento que todos os elementos da classe dos tringulos possuem 2R, mas no

    podemos saber a causa primeira pela qual 2R atribudo ao tringulo. Conforme afirma

    Aristteles, neste caso conhecemos apenas por contagem (74a 30), isto , mesmo que

    toda a extenso do termo tringulo seja conhecida (equiltero, escaleno e issceles), no

    possvel conhecermos a partir da por que 2R se atribui ao tringulo. Como explicita

    Angioni (2007), preciso conhecer a forma essencial de tringulo alm de sua mera

    coextensionalidade: no se tem conhecimento cientfico, se essa co-extenso obtida

    por mera contagem, sem referncia forma essencial do tringulo enquanto tringulo

    (ANGIONI, 2007, p. 16). Com efeito, s possvel explicar por que 2R se atribui ao

    tringulo a partir da prpria definio de tringulo, isto , dado uma figura de trs lados

    desenhada, se se traar uma reta paralela a partir de um lado da figura, o valor do ngulo

    suplementar a um ngulo interno ser sempre a soma dos outros dois ngulos internos

    da figura, o que corresponde a dois ngulos retos (2R).

    A exposio at aqui apresentada permite-nos atentarmos para um primeiro

    aspecto importante da comparao proposta entre os modelos contemporneos e o

    modelo aristotlico: a teoria aristotlica da demonstrao capta, assim como o modelo

    estatstico de Salmon (1971, 1989), os aspectos relevantes de uma explicao cientfica.

    Quando Aristteles atenta para o fato de que a coextensionalidade no fator suficiente

    para se explicar por que uma caracterstica atribuda a algo, ele afirma no somente

    que uma explicao deve buscar pela causa adequada ou por informaes relevantes,

    mas antes, Aristteles demonstra justamente que a mera correlao necessria entre

    fatos organizados na forma de um argumento vlido no garante que haja uma

    explicao satisfatria da coisa ou fenmeno investigado.

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    possvel observar tambm, ainda nos Segundos Analticos I, exemplos

    fornecidos por Aristteles que tornam clara a sua ateno para as distines das teorias

    contemporneas, como o caso da distino entre as sentenas descritivas e as

    sentenas explicativas s quais os modelos de Salmon (1971, 1989) e Hempel (1974)

    procuram se adequar:

    Esteja C para planetas, B para o no cintilar, e A para o estar prximo. Ora, verdadeiro

    afirmar B de C: os planetas no cintilam. Mas tambm verdadeiro afirmar A de B: o que no

    cintila est prximo (admita-se que isso se assume atravs da induo ou atravs da sensao).

    Ora, necessrio, ento, que A seja atribudo a C, de modo que se encontra demonstrado que os

    planetas esto prximos. Assim, este silogismo no do por que, mas sim do que; pois no por no cintilar que esto prximos, mas, antes, por estarem prximos que no cintilam. (76a 32-

    37)

    [S]eja C planetas, B, o estar prximo, A, o no cintilar. Ora, B se atribui a C, como

    tambm A se atribui a B, de modo que tambm A se atribui a C. E tal silogismo do por que,

    pois encontra-se apreendida a causa primeira. (78a 39-78b 3)

    Nesse sentido, o modelo aristotlico, a partir de suas consideraes em relao

    relevncia explicativa, permite-nos concluir que a demonstrao enquanto modelo de

    explicao cientfica capaz de evitar objees feitas aos modelos contemporneos,

    como o caso da assimetria explicativa apresentada contra o modelo dedutivo-

    nomolgico.

    Para compreendermos este ponto, considere um caso no qual se pretende

    explicar a altura de um mastro a partir de tamanho de sua sombra. Para este intento, o

    modelo dedutivo-nomolgico parece ser suficiente para fornecer condies para uma

    explicao eficaz, visto que, se o tamanho da sombra conhecido, junto com o ngulo

    de incidncia dos raios solares sobre a Terra no momento em que se pretende realizar o

    clculo, e sendo estes fatos organizados sob os preceitos de leis gerais, como as leis da

    fsica, possvel explicar satisfatoriamente a altura do mastro a partir do tamanho de

    sua sombra. Mas, caso resolvamos explicar o motivo pelo qual o mastro possui uma

    altura H, no possvel, a partir do tamanho da sombra, deduzir por que o mastro tem

    este tamanho H, ainda que o critrio de leis gerais (as leis da fsica), o contedo

    emprico (tamanho da sombra e posicionamento do Sol) e a validade da deduo sejam

    satisfeitos.

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    Nesse sentido, a teoria aristotlica sensvel s peculiaridades das teorias

    contemporneas assim como consegue abarcar contraexemplos frgeis a estas teorias,

    como atesta o exemplo dos planetas apresentado acima, isto , explicar por que os

    planetas esto prximos aduzindo ao fato de que no cintilam no constitui realmente

    uma demonstrao, mas apenas um silogismo do que, uma vez que o silogismo do por

    que (ou a demonstrao)s satisfeito quando a verdadeira causa apresentada, ou seja,

    somente quando se afirma que os planetas no cintilam porque esto prximos. Neste

    caso, evidente que a teoria da demonstrao sensvel distino entre sentenas

    descritivas e explicativas.

    Similarmente, podemos observar que casos de assimetria explicativa tais como o

    caso do mastro no so considerados explicaes pela teoria da demonstrao, j que

    nestes casos a causa do mastro possuir altura H no explicitada. Podemos concluir,

    deste modo, que o modelo aristotlico sensvel s peculiaridades s quais os modelos

    contemporneos aqui tratados tentam se adequar, o que explicita a importncia das

    consideraes aristotlicas acerca das explicaes cientficas.

    Referncias:

    ANGIONI, L. O conhecimento cientfico no livro I dos Segundos Analticos de

    Aristteles. In: Journal of Ancient Philosophy, vol. I, 2007. Disponvel em:

    http://www.filosofiaantiga.com/documents/Lucas-2007-2.pdf. Acesso em: 23 nov.

    2011.

    ARISTTELES. Segundos Analticos, Livro I. Traduo, introduo e notas de Lucas

    Angioni. In: Clssicos da Filosofia: Cadernos de Traduo n 7. Campinas:

    IFCH/Unicamp, 2004.

    ______. Metaphysics. In: BARNES, J. (Org.). The Complete Works of Aristotle. Vol.

    II. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1991.

    HEMPEL, C. Filosofia da Cincia Natural. Trad. Plnio Sussekind Rocha. 2. ed. Rio

    de Janeiro: Zahar Editores, 1974.

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    SALMON, W. (1971). Statistical Explanation. In: SALMON, W. (Org.). Statistical

    Explanation and Statistical Relevance. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press,

    1971.

    ______. (1989). Four Decades of Scientific Explanation. Pittsburgh: University of

    Pittsburgh Press, 2006.

    SMITH, R. (2009). Aristotles Theory of Demonstration. In: ANAGNOSTOPOULOS,

    G. (Org.). A Companion to Aristotle. In: Blackwell Companions to Philosophy.

    Malden: Blackwell Publishing, 2009.

    WOODWARD, J. Scientific Explanation, 2010. Disponvel em:

    http://plato.stanford.edu/archives/spr2010/entries/scientific-explanation/. Acesso em: 09

    out. 2011.

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    A DEFESA DA ADAEQUATIO COMO CRITRIO NICO PARA A

    PERCEPO DA IDEIA VERDADEIRA EM SPINOZA

    Carmel da Silva Ramos

    Graduanda em Filosofia pela UFRJ

    Resumo: Pretendo apresentar neste artigo dois argumentos a favor da tese da verdade

    como coerncia no sistema filosfico de Spinoza. Para isso, ser necessrio dividir o

    texto em dois momentos: um primeiro momento em que faremos uma anlise

    concentrada nas teses da tica e um segundo em que partiremos para a discusso de

    pargrafos do Tratado da Reforma da Inteligncia. Assim, contemplando duas obras

    distintas do autor, ser possvel entrever sua teoria do conhecimento no a partir de uma

    via conflituosa, mas em unidade de teses. Alm desta possibilidade de leitura que

    agrega as duas obras, tenciono demonstrar que a tese da verdade como coerncia

    apresenta determinadas vantagens conceituais internas ao pensamento de Spinoza,

    intensificando sua crtica ao cartesianismo e mostrando uma sada mais econmica e

    congruente com o modelo de exposio da tica.

    Palavras-chave: Spinoza. Teoria do conhecimento. Descartes. Filosofia moderna.

    Abstract: My aim in this article is to show two arguments in favor of Spinozas

    coherence theory of truth. For this, it will be necessary to divide the text in two

    moments: first, we intend to analyze the second part of the Ethics; and second, in which

    we will discuss some paragraphs of the Treatise on the Emendation of the Intellect.

    Thus, investigating two different works of the author, it will be possible to read his

    epistemology not in a confused way, but from a specific unity. In addition to this

    interpretation putting together two different works, I intend to demonstrate that the

    coherence theory of truth presents some conceptual advantages inside of Spinozas

    philosophical system, that is, the introducing of his critique of cartesianism and the

    more consistent view with Ethicss model of exposure.

    Keywords: Spinoza. Theory of knowledge. Descartes. Modern philosophy.

    O problema

    A questo da percepo da ideia verdadeira assume caracteres problemticos na

    filosofia de Spinoza. Muitas de suas formulaes sugerem interpretaes divergentes

    em seus comentadores, isso em muito por conta de uma anlise que soa contraditria

    entre as teses, por um lado, da tica, por outro, do Tratado da Reforma da Inteligncia.

    Alguns dos intrpretes de sua filosofia, a partir do axioma 6 da parte I da tica - a saber,

    uma ideia verdadeira deve concordar com seu ideado - seguem para a leitura de que

    Spinoza aceita a tese da verdade como correspondncia como integrante essencial de

    sua teoria do conhecimento. Outros assumem posio de que a verdade como

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    coerncia que constitui a soluo spinozista para a percepo da ideia verdadeira. Por

    ltimo, h aqueles que definem uma tese complementar entre correspondncia e

    coerncia, como dois aspectos inseparveis da ideia adequada1. Pretendo demonstrar

    neste artigo uma sada para esta aparente confuso, defendendo um nico tipo de

    caracterizao dos contedos adequados no intelecto que case as teses levantadas nestas

    duas obras de Spinoza particularmente voltadas questo do conhecimento (segunda

    parte da tica e Tratado da Reforma da Inteligncia), que a teoria coerentista da

    verdade.

    Para tal empreendimento, apresentarei dois argumentos, cada um deles situado

    em uma obra especfica de Spinoza. Deste modo, a correspondncia da ideia com o

    objeto aparecer como desnecessria com a noo de verdade no sistema do autor. Com

    um primeiro argumento, demonstrarei como o movimento nico do processo cognitivo

    exclui a necessidade de uma ideia verdadeira recorrer a uma inferncia ao mundo

    exterior para afirmar sua condio de veraz, tornando a correspondncia uma tese intil.

    Com um segundo, enfatizarei um dos aspectos essenciais da ideia verdadeira, a saber,

    sua certeza intrnseca, a partir da noo de que veritas norma sui et falsi est.2

    guisa de introduo necessrio tecer pequena definio destes dois modelos

    aparentemente opostos, que so o da tese da verdade como correspondncia

    (convenientia) e da verdade como coerncia ou adequao (adaequatio). A primeira

    espcie de teoria padro sustentada no perodo medieval, apesar de tambm figurar na

    modernidade (com Descartes3, por exemplo). O fato de tal tese ter se tornado um padro

    de pensamento pode ser creditado influncia aristotlica, que no livro IV de sua

    Metafsica apresenta a formulao Dizer do que o que no , ou do que no o que ,

    dizer o falso; enquanto que dizer do que o que e do que no o que no , dizer a

    verdade4, trecho que pode ser considerado uma expresso da correspondncia. A

    1 Para o caso de tericos que sustentam a tese da verdade como correspondncia em Spinoza, ver Bennet

    e Curley. Para os da coerncia, Walker e Hampshire. Para os defensores de uma tese complementar entre

    as duas noes, ver Gleizer e Landim. 2 EII, P. 43, Esc. Exatamente da mesma maneira que a luz revela a si prpria e as trevas, a verdade

    norma de si prpria e do falso. 3 Ora, o principal erro e mais comum que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as ideias que

    esto em mim so semelhantes ou conformes s coisas que esto fora de mim. DESCARTES, R.

    Meditaes Metafsicas. Meditao Terceira, pg. 109, 9 pargrafo. Os Pensadores, Abril Cultural, So

    Paulo, 1973. 4ARISTTELES, Metafsica. 1011b, 25. Traduo de Vincenzo Cocco e notas de Joaquim Carvalho.

    Abril, S.A. Cultural, So Paulo: 1984

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    convenientia apresenta como critrio de verdade, como significado da prpria verdade

    igualmente, a noo de que a ideia deve concordar com o objeto no mundo exterior que

    ela mesma vem exprimir. Temos, ento, que a correspondncia eleva um aspecto

    extrnseco da ideia verdadeira, ou seja, sua conformidade com um objeto que pode ser

    dado tanto em sentido fsico como em sentido formal - tal como uma ideia do intelecto

    entendida enquanto objeto de outra ideia (noo de ideia da ideia).

    Por outro lado, a verdade como coerncia (adaequatio) indica apenas um

    aspecto intrnseco da ideia verdadeira, que diz respeito a seu prprio contedo. Uma

    ideia adequada possui aspectos internos, como clareza e distino e certeza, os quais

    fazem com que a mesma ideia se expresse como verdadeira a partir de sua prpria

    natureza. Veremos adiante que, no caso da filosofia de Spinoza, todo um conjunto de

    ideias adequadas no intelecto necessrio para obter a verdade como adaequatio, a

    ttulo de um sistema coerente de ideias que o constitui.

    importante ressaltar que, por mais que a formulao pela qual optamos, de

    apresentar a definio da teoria da verdade como correspondncia e logo aps a da

    coerncia sugira uma oposio de teses, esta no uma relao necessariamente

    implicada. Para supor uma tese que negue a verdade como correspondncia preciso

    apresentar outra noo que exclua, em sua prpria definio, a mxima de que a ideia

    corresponde ao objeto: o que no est explcito na definio de adaequatio. Isso, no

    entanto, no nos encaminhar a uma aceitao dupla da correspondncia e coerncia

    como critrios que funcionam de maneira harmnica na percepo da ideia verdadeira.

    Ainda que os critrios no se oponham termo a termo, parece-nos que o objetivo de

    Spinoza mostrar que a coerncia um critrio necessrio e suficiente por si mesmo

    para o reconhecimento da verdade. No eliminaremos, no entanto, a possibilidade da

    ideia corresponder a um contedo qualquer no mundo: essa concordncia ser apenas

    um caractere secundrio para sua existncia enquanto adequada.

    De posse destas informaes acerca dos dois critrios de verdade em jogo,

    analisemos trechos da segunda parte tica, dedicada a discusses de cunho

    epistemolgico, de modo a entrever um argumento sustentvel a favor da verdade como

    coerncia.

    1. Primeiro argumento: a inseparabilidade entre as faculdades da vontade e do

    intelecto

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    O ttulo deste artigo nos oferece uma pequena dificuldade se considerarmos a

    posio que pretendemos explicitar. Isso porque percepo, numa leitura desavisada,

    pode sugerir que uma ideia dada primeiramente sem julgamento algum mente, para

    aps sua fabricao nesta obter o ttulo de verdadeira ou falsa. Tal movimento no

    acontece em Spinoza, justamente porque no podemos supor espcie de movimento

    posterior de julgamento. Por ora, porm, preciso esclarecer alguns pontos da

    epistemologia do autor antes da elucidao da problemtica do ttulo. Mantenhamos este

    alerta como questo relevante para o prprio desenrolar do argumento que esta seo do

    texto visa defender.

    As duas teorias da verdade apresentadas acima fornecem noes aplicveis s

    ideias verdadeiras, que por sua vez subsistem na mente. Uma caracterizao da mente e

    do modo como o conhecimento engendrado no intelecto so teses fundamentais que

    necessitam ser esclarecidas se quisermos nos comprometer em apresentar algum critrio

    de verdade especfico, uma teoria da verdade em sentido forte.

    Spinoza compreender a mente humana, do ponto de vista de uma ontologia

    imanentista, como uma modificao finita do atributo pensamento que constitui a

    essncia da substncia divina5. Do ponto de vista da constituio particular humana,

    enquanto ideia do corpo, garantindo um paralelismo total entre estas duas modificaes

    (mente e corpo) dos atributos (pensamento e extenso) de Deus.6 Qualquer afeco

    corporal ter uma expresso necessria na mente sob a categoria de ideia. Sendo o corpo

    um agregado complexo e podendo ser afetado de diversas maneiras7, a mente tambm

    dever obedecer mesma regra, se expressando por mltiplas categorias de ideias em

    seus diferentes contedos e em suas diversas aparies formais (como ideias simples,

    complexas, afetos, etc.).8 Quando a mente forma ideias, a partir das afeces que o

    corpo sofre, no est apenas recebendo contedos que so como que a ela inseridos de

    maneira puramente representacional. As ideias expressam determinado conceito que

    tem o intelecto como faculdade criativa e afirmativa de contedos. Ter ideias uma

    ao especfica da mente, tomando ao em sentido forte, oposto a uma recepo

    meramente passiva de exibio de essncias. A definio de ideia apresentada por

    Spinoza esclarecer esse ponto:

    5 EI, P.14, Cor. 2; EI, P. 31.

    6 Ver, sobretudo, o Pequeno Tratado de Fsica da tica II, P. 13.

    7EII, Postulado 4; EII, P. 14 e P. 15.

    8Ver: EII, P.13, 14 e 15.

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    Por ideia compreendo um conceito da mente, que a mente forma porque uma coisa pensante.

    Digo conceito e no percepo porque a palavra percepo parece indicar que a mente passiva

    relativamente ao objeto, enquanto conceito parece exprimir uma ao da mente. (SPINOZA,

    2009, tica II, Definio 3)

    No caso do sistema cartesiano, contrariamente, as ideias possuem natureza

    passiva, semelhantes a pinturas mudas sobre um quadro9 que apenas exprimem na

    mente um caractere da realidade. Assim, Entre meus pensamentos, alguns so como as

    imagens das coisas, e s queles convm propriamente o nome de ideia.10

    No entanto,

    para aceitar a ideia como passiva, parece necessrio igualmente encarar o prprio

    intelecto sob esta tica, pois s um intelecto no ativo seria capaz de receber tais

    percepes sem mediao alguma. Descartes opera a partir de uma caracterizao de

    faculdades para a razo, definindo funes especficas para as mesmas. O entendimento

    a faculdade responsvel pela representao de contedos, de maneira que estes o

    alcanam sem afirmar qualquer compromisso judicativo com a realidade. As diversas

    outras funes da mente como querer, amar, julgar, etc. so como que variaes da

    representao mais primitiva de ideias feita por este entendimento finito. A vontade, por

    outro lado, uma faculdade da mente que, alm de outras funes ativas da razo, julga

    estas representaes, i.e., adiciona a elas o predicado de verdadeiras ou falsas mediante

    a correspondncia destes contedos com o mundo exterior. Desse modo, para Descartes,

    a questo da verdade surge no nvel de comunho entre duas faculdades: o

    entendimento, por um lado, ao exibir contedos de maneira neutra; e a vontade, por

    outro, ao julgar estes contedos de acordo com o que est expresso nos objetos do

    mundo exterior.

    As teses que apresentamos acima se excluem mutuamente, de modo que h uma

    crtica ao cartesianismo imbuda na definio de ideia de Spinoza. na proposio 49

    9 Ver SPINOZA, Benedictus de. tica, Livro II, Proposio 49, Esclio. Trad. de Tomaz Tadeu - Belo

    Horizonte: Autntica Editora, 2009. Esta a formulao utilizada por Spinoza em referncia teoria das

    ideias cartesiana. Vale lembrar que desejamos apenas apresentar a leitura de Spinoza para a epistemologia

    de Descartes, que parece ignorar o problema dos dois nveis de verdade introduzidos no autor: a verdade das ideias por sua essncia, que assume critrios intrnsecos de reconhecimento por sua clareza, distino

    e certeza; e a verdade ou erro dos juzos, que supe a verdade de primeiro nvel das essncias das ideias.

    10 DESCARTES, R. Meditaes Metafsicas. Meditao III, p. 109, 6 pargrafo. Os Pensadores, Abril

    Cultural, So Paulo, 1973. Vale lembrar que Descartes no est aqui levantando uma tese figurativa das

    ideias, isto , no est identificando uma equivalncia das mesmas com imagens. Justamente, o trecho

    realiza uma espcie de comparao com o funcionamento das imagens (como imagens das coisas), ou

    seja, as ideias, para Descartes, representam e exibem um contedo na mente, da mesma maneira que as

    imagens das coisas so capazes de representar sua essncia.

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    da parte II da tica que encontraremos essa crtica demonstrada, movida por um duplo

    aspecto: em primeiro lugar, quanto ao entender de Descartes da ideia e da mente como

    passivas11

    ; em segundo, quanto a sua diviso entre as faculdades da vontade e do

    entendimento.12

    A aceitao integral do princpio de causalidade por parte de Spinoza13

    o leva a

    incorrer num necessitarismo causal e suprimir qualquer noo de vontade livre. Um

    desejo que a mente exprimir ter uma causa determinada, que por sua vez ser efeito de

    outra causa anterior e assim formar-se- um nexo causal que se estender ao infinito.

    Isto posto, no h na mente espcies de volies livres do querer, apenas expresses

    singulares desta vontade: esta ou aquela volio especfica determinada por uma causa

    anterior. O que Spinoza est entendendo aqui por vontade no um livre querer,

    portanto, mas a faculdade de afirmao ou negao de um contedo qualquer na mente.

    E, mais ainda, se um contedo qualquer no intelecto no pode existir seno enquanto

    ideia, dada sua gnese enquanto afeco corporal consciente no intelecto, uma volio

    qualquer tambm uma ideia. Deste modo, volio e ideia so apenas termos

    distintos para se referir a uma nica atividade mental.

    Descartes entende o julgamento de uma ideia na mente subdividido em dois

    momentos principais. Um primeiro dedicado ao do entendimento que, dada sua

    abrangncia finita, ser capaz de representar em si uma srie de contedos de maneira

    neutra. E um segundo momento, posterior percepo, no qual a vontade, em sua

    extenso infinita, definir um valor de verdade a este contedo que apenas exibia algo

    do mundo exterior, como se fosse uma imagem dele.14

    A crtica de Spinoza a estas

    concepes cartesianas residir no seguinte ponto: por mais que o sistema de Spinoza e

    o de Descartes situem juzo e percepo sob uma mesma categoria na mente (a de uma

    apario qualquer, com uma essncia formal especfica), Spinoza elimina qualquer

    noo de livre querer, ou seja, a de que um juzo possa provir de uma faculdade volitiva

    expressa em tamanho infinito no sujeito e, portanto, que o juzo uma ideia diferente da

    ideia de uma representao. A tese que Spinoza prope colocar tanto representao e

    juzo, quanto entendimento e vontade sob um mesmo nvel, no enxergando qualquer

    11

    EII, P. 49, Esc. 12

    EII, P.49, Cor. 13

    EI, Ax. 3. 14

    Para uma anlise mais completa das faculdades da vontade e do entendimento ver DESCARTES, R.

    Quarta Meditao. Meditaes Metafsicas. Os Pensadores, Abril Cultural, So Paulo, 1973.

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    distino entre essas duas modalidades. Seria at incorreto se referir vontade e ao

    entendimento15

    no sistema de Spinoza: tem-se apenas o intelecto puro que tanto

    percebe ideias quanto afirma seus contedos de maneira equivalente. Afirma, de acordo

    com as ideias verdadeiras que compem o intelecto divino; e por outro lado tambm

    nega, se comparado ao sistema adequado de ideias que o intelecto, pois ao mesmo

    tempo em que afirma um contedo determinado, nega todos os outros que no exprime

    o teor enquanto ideia. nesse sentido que o alerta a respeito do ttulo do artigo surge, j

    que a percepo da ideia verdadeira em Spinoza no pressupe sua afirmao enquanto

    veraz, como o ttulo poderia sugerir: temos aqui um movimento nico, uma mesma

    atividade na mente que conhece. Assim, a concluso de Spinoza de que:

    A vontade e o intelecto nada mais so do que as prprias volies e ideias singulares. Ora, uma

    volio singular e uma ideia singular so uma s e mesma coisa. Logo, a vontade e o intelecto

    so uma s e mesma coisa. (SPINOZA, 2009, tica II, Proposio 49, Demonstrao)

    Se o processo de formao de uma ideia no intelecto conjunto ao de assero

    da mesma, a questo da verdade ser dada no interior da prpria percepo. Neste

    momento perceptivo, no qual a ideia ser afirmada no intelecto, vir, ao mesmo tempo,

    o judicativo, e a aceitao por parte da mente desta como verdadeira mediante seu

    contedo. Assim, uma ideia se expressar como verdadeira se for capaz de dar conta de

    determinado dispositivo causal de um dado; se obtiver uma expresso clara e distinta e

    indubitvel de seu contedo; se, em suma, der conta de um conjunto de propriedades

    intrnsecas a si prpria e a mente. por isso que pela negao da separao entre

    vontade e intelecto, Spinoza poder, igualmente, negar a necessidade da convenientia

    como critrio de reconhecimento de ideias verdadeiras: a verdade da ideia ser dada

    apenas por sua adaequatio, por seu aspecto puramente intrnseco ao domnio mental e

    no mediante uma inferncia necessria ao mundo exterior para o estabelecimento de tal

    contedo como adequado.

    2. Segundo argumento: a certeza intrnseca de um contedo verdadeiro na mente

    No Tratado da Reforma da Inteligncia, Spinoza apresenta, no pargrafo 34, um

    exemplo particularmente elucidativo a respeito de suas teses sobre a percepo da ideia

    15

    A traduo que utilizamos para a tica (2009) aponta o uso do termo intelecto para caracterizar a

    mente. J na edio que consultamos as Meditaes (1973) de Descartes, observamos o uso do termo

    entendimento. Embora Espinosa no use o ltimo vocabulrio, identificamos, em nossa leitura, uma

    equivalncia entre os termos, de modo que julgamos interessante, para fins de melhor compreenso do

    argumento em questo, tomar ambos com um mesmo referente.

  • Revista Aproximao 1 semestre de 2013 N 4

    http://ifcs.ufrj.br/~aproximacao 35

    verdadeira. No pargrafo anterior (33), o autor defende uma relao de independncia

    entre objeto (ideado), ideia de tal objeto, ideia da ideia e assim sucessivamente.

    Segundo ele, deve-se tomar o objeto e as respectivas ideias subsequentes enquanto

    entidades distintas entre si, o que implicar na afirmao de que elas sero, igualmente,

    inteligveis por si mesmas. Uma coisa o crculo - algo que possui periferia e centro - e

    outra completamente diferente a ideia do crculo, que no possui diretamente tais

    caractersticas. O mesmo pode ser aplicado ao corpo: a ideia do corpo no deve ser

    entendida enquanto o corpo propriamente, o ente mundano e extramental - mas algo

    completamente desligado dele (como a essncia do tringulo distinta e independente

    da essncia do crculo) e que se restringe aos domnios do intelecto.

    Tomemos um determinado ente Pedro. Este ente configura um objeto real no

    mundo que totalmente distinto e independente da ideia do mesmo, ou seja, da ideia de

    Pedro. No caso, a ideia de Pedro possui a essncia objetiva de Pedro, ela mesma

    contendo sua prpria inteligibilidade. A ideia de Pedro pode ser objeto de outra ideia,

    que por sua vez conter objetivamente tudo que a ideia de Pedro possui em sentido de

    essncia formal. Ou seja, Spinoza sustenta aqui a noo de ideia da ideia, conferindo

    para cada uma delas uma realidade e inteligibilidade prprias e autnomas. Esse papel

    relegado s essncias objetivas (contedo das ideias) e s ideias (essas duas ltimas que

    significam uma s e mesma coisa) permitir que o autor afirme o seguinte, que ser

    interessante ao nosso intento:

    , pois, evidente que, para