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PÚBLICO, DOMINGO 10 NOVEMBRO 2013 MARIA FILOMENA MOLDER NÃO SE PARECE COM NINGUÉM

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PÚBL

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2013

MARIA FILOMENA MOLDER NÃO SE PARECE COM NINGUÉM

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 3

ROBIN VAN LONKHUIJSEN/AFP

ILUSTRAÇÃO DE JOÃO FAZENDA

ENRIC VIVES-RUBIO

Relato de um junkie: diz que tem “um Ferrari nas veias”. Consumiu e traficou mesmo quando estava preso. A sua história também é a história das drogas em Portugal — dentro e fora das cadeias

Fotografia de capa: Enric Vives-Rubio

A crise na Holanda chama-se “Pedro Preto” e não tem nada que ver com dinheiro. Uma discussão racial está a ensombrar a maior festa do país

Prémio Secil 2012, José Neves acredita na luz e no tempo como ingredientes fundamentais na arquitectura. Alimenta-se de música, de cinema e de frases que o inspiram para pensar cidades abertas

REVIS

TA 2

ÍNDI

CE26

32

12

Directora Bárbara Reis Editoras Francisca Gorjão

Henriques [email protected], Paula Barreiros paula.

[email protected] Copydesk Rita Pimenta

Design Mark Porter e Simon Esterson Directora

de Arte Sónia Matos Designers Helena Fernandes,

Sandra Silva Email [email protected]

Este suplemento faz parte integrante

do Público e não pode ser vendido separadamente

FICHA TÉCNICA

04 IMAGEM/PALAVRA Miguel Gaspar

Espaço — A nave do desenrasca

Rita Pimenta

Medo — Receio de algo “sem nome e sem

rosto”, como um rapto

08 ESCOLHAS Elvis At Stax é uma compilação que nos

leva aos estúdios da mítica editora que

fez, ao lado da Motown, a história da soul

— e dá-nos 17 canções de King. A Reel Art

Press prepara-se para lançar Dennis Stock:

American Cool, com o conjunto da obra

fotográfi ca de Stock e onde encontramos

generosamente James Dean. A revista

Relâmpago lançou um número duplo

consagrado à escritora Irene Lisboa (1892-

1958) e, em particular, à sua poesia. A

Chocolataria Equador nasceu no Porto e

acaba de abrir a primeira loja em Lisboa,

no Chiado

18 DE ONDE VEM MARIA FILOMENA MOLDER?

Foi uma professora que em miúda odiou

a escola. Agora, acabou de se reformar da

Universidade Nova. Esperou mais de 20

anos para compreender textos de Eduardo

Chillida ou para reler Wittgenstein.

Entrevista com a fi lósofa que fala como

quem levita. Por Anabela Mota Ribeiro

41 PERSONAGENS DE FICÇÃOAntónio Pires Sumo de Lima, por Rui

Cardoso Martins

42 CRÓNICA URBANA Ai, as castanhas, as castanhas, em vários

locais no Porto

CRÓNICASJosé Diogo Quintela

Museu custa mais do que um coche 6

Jorge Figueira

As indústrias criativas 8

Vítor Belanciano

Não há inocentes 9

Isabel Coutinho

Sobreviver ao mito 10

Alexandra Prado Coelho

O Estado e a comida que damos aos fi lhos 11

Alexandra Lucas Coelho

Modernismo mágico 38

Daniel Sampaio

Desespero nas escolas 40

Nuno Pacheco

A música no túnel do tempo 40

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4 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Nome masculino que significa “sentimento de inquietação que se sente com a ideia de um perigo, real ou aparente”. “Medo” também significa “receio”, “temor”, “terror”. Será esta a atmosfera em que vivem por estes dias as famílias residentes em Moçambique. Por receio de sequestros, “dezenas de crianças de famílias portuguesas já saíram do país”, segundo o secretário de Estado das Comunidades, José Cesário.

Da Escola Portuguesa de Maputo chegou a informação de que, “desde Setembro, 40 crianças deixaram a escola, que tem 1600 alunos de 14 nacionalidades”. E supõe-se que outras crianças e jovens terão deixado vários estabelecimentos de ensino. Uma criança raptada só recuperou a liberdade depois de a família pagar meio milhão de dólares, mas um rapaz de 13 anos foi morto em cativeiro, apesar de a mãe

ter comunicado o sequestro à Polícia de Investigação Criminal.“Medo” também se regista como “fenómeno de inquietação súbita e violenta, provocado pela consciência de ameaça ou perigo” e “alma do outro mundo”. Mas o que ameaça Moçambique é bem deste mundo e junta polícias e ladrões, como se revelou na quarta-feira: “Foram condenados três polícias que integravam uma

rede de sequestradores que chegavam a exigir 165 mil dólares de resgate. Um dos condenados era membro da guarda do Presidente.”Na acepção popular, “fantasma” é sinónimo de “medo”. E em fantasma se está a transformar a cidade de Maputo, com as ruas desertas à noite. Como expressou poeticamente Mia Couto, as pessoas receiam algo “sem nome e sem rosto”. Rita Pimenta

MEDORECEIO DE ALGO “SEM NOME E SEM ROSTO”, COMO UM RAPTO

IMAG

EMPA

LAVR

A

ESPAÇO Na terça-feira, a Índia tornou-se o quinto

país do mundo a entrar na corrida a Marte.

Mas os indianos deram esse passo de uma

maneira muito diferente das nações que

os precederam. Ao colocarem em órbita a

sonda Mangalyaan (o nome signifi ca “veí-

culo de Marte”, em hindi), os indianos lançaram

para o espaço um conceito: a jugaad. Mais do que

um objecto físico, em 2014, os indianos terão co-

locado essa ideia (a jugaad) na órbita de Marte, ou

seja, num ponto onde ela será particularmente vi-

sível da Terra.

O que é então a jugaad? Nada de particularmente

espiritual ou esotérico. Jugaad signifi ca a capacida-

de de resolver um problema depressa e por pouco

dinheiro. A Mangalyaan custa “apenas” 55 milhões

de dólares e o orgulho dos cientistas indianos é con-

seguirem chegar tão longe por esse preço. Chamam-

lhe a sonda low cost, uma espécie de Ryanair do

cosmos. Mas o jugaad é muito mais do que o low

cost.Não é preciso sair da atmosfera terrestre para

explicar a um português o que é jugaad, porque

todos os portugueses sabem do que estamos a falar:

jugaad é desenrascar. Na Índia, como em Portugal,

o desenrascanço tornou-se praticamente uma ide-

ologia nacional. É isso que é interessante.

Trata-se de uma palavra comum na Índia ou no

Paquistão. Refere-se, por exemplo, a um veículo

rudimentar usado nas zonas rurais da Índia, uma

espécie de miniautocarro de caixa aberta, propul-

sionado por um motor de uma bomba de água e

cujos travões também são jugaad: muitas vezes, o

remédio é os passageiros porem os pés no chão.

Uma tecnologia interessante de transpor para o

espaço.

Mas jugaad não tem apenas que ver com inventar

coisas práticas por muito pouco dinheiro, uma ideia

potencialmente de esquerda e anticapitalista. Na

Índia, jugaad tornou-se também uma ideologia de

gestão, nos antípodas das culturas de gestão oci-

dentais — Portugal excluído. Em vez de planear,

improvisa-se, muda-se de rumo, assume-se que

tudo é imprevisível. É a gestão combinada com a

mente de um músico de jazz. Os defensores desta

ideia dizem que esta é a única forma de uma empre-

sa se adaptar ao universo caótico de uma economia

emergente, como a indiana.

Em nome desta forma de pensar — barato se vai

longe —, a Mangalyaan está a dar voltas à Terra pa-

ra ganhar balanço e voar até Marte, em vez de ser

empurrada por um foguetão potente, mas caro. No

meio de tudo isto, porém, há quem diga que esta

sonda nada trará de novo à investigação sobre Marte

e que a sua única razão de existir é o prestígio da

Índia. Neste caso, portanto, o jugaad conduziria ao

desperdício: seria um problema, não uma respos-

ta. Nada que um bom desenrascado não saiba de

ginjeira. Miguel Gaspar

MANJUNATH KIRAN/AFP

Uma rica poupança ou um desperdício low cost?

A NAVE DO DESENRASCA

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AF McSORRISO2013 Publico2 286x346.ai 1 10/28/13 3:19 PM

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6 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

JOSÉ DIOGO QUINTELAÉ MUITO ISTO

MUSEU CUSTA MAIS DO QUE UM COCHE

E a selecção de Parques de Estacionamento

em Lisboa, que está soberba? A oferta de

espaços e preços é de tal modo variada

que põe a cabeça a andar à roda a qual-

quer amante do acondicionamento de

viaturas em edifícios próprios para o efei-

to. Com apenas 41 euros por mês, pode-se esta-

cionar no Campo Grande. Por 135 euros e com

vista para o rio, há as Portas do Sol. No Chiado,

arruma-se com 175 euros. E, num patamar um

bocadinho mais luxuoso, há o novo Museu dos

Coches, com mensalidades de 3645 euros. São

os 3,5 milhões de euros ao ano que o custa man-

ter, a dividir por cada um dos 80 coches que vão

fi car parqueados naquela que é, sem dúvida, a

mais bonita garagem que há em Lisboa — e a que

tem maior pé-direito.

Mas nota-se ali falta de ambição. Construir uma

garagem tão monumental e fi car-se por umas char-

retes que se trazem do outro lado da rua amesqui-

nha a grandeza do projecto. Não, o edifício pede

mais do que meras carruagens. Há que actualizar

a colecção. E mudar o nome. Do bafi ento “Museu

dos Coches” para o contemporâneo “Museu das

Viaturas em que o Estado Português tem Esbanja-

do Dinheiro”. Não se limitar à exibição de coches,

mas mostrar outros veículos adquiridos pelo Es-

tado. Por exemplo, eu gostava de ver exposto o

magnífi co BMW série 5 em que Cavaco Silva vai

passar férias à Coelha. Ou o Mercedes S350 em que

Mário Soares foi apanhado no ano passado a 200

km/h e onde dorme algumas das suas lendárias

sestas — marcado com uma lendária mancha de

baba no estofo de pele. E até carros usados por

fi guras secundárias, como o Alfa Romeo ofi cial que

o ministro Aguiar Branco estacionou no passeio

em frente ao seu escritório de advogados. Podia-se

trasladar a própria calçada onde foi parqueado,

para adornar.

Fica uma visita muito mais rica. Enquanto eram

só coches, uma pessoa dava uma volta, via aquilo,

sim senhora, é giro, o passado é um país estran-

geiro e, realmente, as coisas lá são feitas de ou-

tra maneira e tudo em talha dourada. Mas basta

acrescentar viaturas modernas e ganha-se logo

outra dimensão. O visitante continua a achar que

o passado é outro país, com outros costumes, mas

percebe que as contas acabam por ser pagas neste

país. E agora.

O edifício é parte fulcral da experiência peda-

gógica. Podia-se ter alargado o velho museu, ocu-

pando parte dos jardins do Palácio de Belém, mas

assim fazia-se um uso ponderado do dinheiro e

não se gastavam 35 milhões de euros desnecessa-

riamente numa construção megalómana. Nessa

altura, deixava de ser um museu em que não só

se mostra como se desbaratava dinheiro no séc.

XVIII, como se o faz desbaratando dinheiro no séc.

XXI. Um museu que expõe a delapidação ainda

antes de se lá entrar. Um museu que é edifício e

também acervo. No fundo, mais do que um museu,

um metamuseu. O que agrada imenso aos nossos

intelectuais pós-modernos (que, segundo os últi-

mos censos, são cerca de todos). Talvez não agrade

tanto aos contribuintes pós-sustentabilidade da se-

gurança social, mas é impossível contentar gregos

e troianos. Se se tiver de escolher, deve optar-se

por agradar a quem percebe a referência dos gre-

gos e dos troianos.

O povo não há-de levar a mal a exibição de

despesismo. Se bem que, passados dois anos

de a Rainha D. Amélia ter inaugurado o Museu

dos Coches, houve elementos do povo que lhe

entraram no carro aos tiros. Só por acaso é que

falharam nela. Acertaram no marido e no fi lho.

Mas, apesar da tragédia, a Rainha fi cou com um

carro histórico para juntar à colecção. É preciso

é pensamento positivo.

IMAG

EMPA

LAVR

A

Rui Gaudêncio

38° 45’ 53.268”N 9° 12’ 47.592”WBrandoa

38° 45’ 51.858”N 9° 12’ 48.57”WBrandoa

GPS iPHONEBD NA AMADORA

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KENNEDY50 ANOSDEPOIS

DOMINGO

Siga os passos de Lee Harvey Oswald, o homem que a 22 de Novembro de 1963 disparou contra JFK

17 DE NOVEMBROReportagem em Dallas

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Page 8: Revista-20131110

8 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Fui convidado a participar numa jornada dedi-

cada à Estratégia Nacional de Investigação e

Inovação para uma Especialização Inteligen-

te, promovida pela Fundação para a Ciência

e Tecnologia. Aceitei com gosto. O tema que

propuseram para a minha apresentação foi

Indústrias Culturais e Criativas em 2020 — Cená-

rios, Tendências, Barreiras e Desafi os.

Este é o jargão corrente na União Europeia, não

vale a pena disfarçar. A questão é saber se vamos

a jogo ou não. Comecei por mencionar as habitu-

ais reticências quanto à correlação entre cultura

e produtividade económica que defi ne o conceito

de “indústrias culturais e criativas”. Falei da auto-

nomia da cultura, e da sua parcimónia, para não

dizer resistência, face às transformações ditadas

por valores económicos.

Faz todo o sentido que o conceito de “indús-

trias criativas” seja proveniente da Inglaterra, e

do mundo anglo-saxónico, porque aí a relação en-

tre cultura e economia é fl uente e aparentemente

não problemática. Os exemplos do cinema e da

música pop são eloquentes: são simultaneamente

produtos comerciais e culturais, sem reservas ou

dicotomia.

A sul da Europa, para simplifi car muito, essa di-

cotomia existe. A cultura é entendida como tendo

uma componente adversarial, que a coloca para

lá do desenvolvimento eco-

nómico, em paralelo, ou até

contra. “Criatividade” tam-

bém não é simples. Poderia

dizer que a produção artísti-

ca acontece quando a criati-

vidade não chega ou não se

intromete.

O ponto de ruptura dá-se

quando falamos de “marcas”

a propósito de fenómenos ar-

tísticos ou culturais. Raros se-

rão os artistas, ou até os pro-

dutores culturais, que acei-

tam que o seu trabalho seja

defi nido nesses termos.

Na arquitectura, assistimos

hoje a uma cisão entre a tra-

dição “cultural” e a sedução

das “indústrias criativas”. De

um lado, estão os planos e os

projectos urbanos, muitas

vezes ligados a “expos”, ou

eventos culturais (numa ló-

gica top down); do outro, ini-

ciativas onde a informalidade, a processualidade e

a “criatividade”, permitem criar pequenos nichos

de intervenção tipicamente bottom up.

A Trienal de Arquitectura de Lisboa, que está ac-

tualmente a decorrer, refere-se essencialmente à

arquitectura como “indústria criativa”.

Tudo somado, com os temas que propus, pu-

de concluir provisoriamente que a “produção de

memória” pode criar uma “indústria criativa”,

reinventando aspectos da identidade portugue-

sa, sendo crítico e interpelando as expectativas

que o “norte” tem sobre nós. E, principalmente,

escapando a qualquer tentativa de normalização e

homogeneização de uma marca portuguesa.

Nós somos, por direito próprio, uma realidade

complexa, antiga, multifacetada. Especialização,

sim, mas não país-parque-temático.

JORGE FIGUEIRAVIDA FUTURA

AS INDÚSTRIAS CRIATIVAS

Pude concluir provisoria-mente que a “produção de memória” pode criar uma “indústria criativa”, reinventando aspectos da identidade portuguesa

Várias gerações de adolescentes serviram-se dela para forrar a parede dos seus quartos — James Dean a caminhar à chuva pela Times Square de Nova Iorque, numa atitude contraída, de casaco de gola subida e cigarro ao canto da boca. Essa foto

VEJA

ISTO

Dennis Stock: American CoolReel Art Press45€, Amazon

LIVROO MEU GRANDE AMIGO JAMES DEAN

DR

foi tirada pela objectiva de Dennis Stock, que ao longo de mais de 50 anos contribuiu com imagens fundamentais para a cultura popular. Era amigo de James Dean. O fotógrafo e realizador de cinema Anton Corbijn prepara um filme sobre essa relação. Mas já esta semana vai ser lançado o livro Dennis Stock: American Cool (Reel Art Press), que abarca o conjunto da sua obra fotográfica, com grande relevo para as fotos que tirou a Dean a meio dos anos 1950. Algumas foram captadas ao acompanhar Dean na sua última grande viagem — até Fairmount, Indiana, onde está enterrado. Ao que parece, a foto de Dean em Times Square não era do agrado de Dennis, mas o actor gostava muito

dela. Foi publicada em Março de 1955 na revista Life. Seis meses depois, Dean morreu, e a foto foi reproduzida milhares de vezes. Tornou-se parte da lenda. Agora Corbijn, realizador de Control ou O Americano, prepara-se para dirigir um filme onde essa relação é abordada. O actor Dane DeHaan fará de Dean e Robert Pattinson de Stock. Não espanta que Corbijn se tenha deixado seduzir pela história. Ele também é fotógrafo de celebridades — Tom Waits ou os U2 são alguns dos seus clientes regulares — e sabe que o reconhecimento mútuo é imprescindível para fazer funcionar a vertente artística. Stock partilhava essa forma de estar. O fotógrafo, que morreu aos 81 anos em 2010, e que fez quase toda a sua

carreira na agência Magnum, captou algumas das figuras mais emblemáticas do século XX americano — Marilyn Monroe, Marlon Brando, Grace Kelly ou Audrey Hepburn foram algumas dessas personalidades. Ou grandes figuras do jazz — outra paixão —, como Miles Davis, Charlie Parker, Armstrong, Billie Holiday, Duke Ellington. Os movimentos de contestação que varreram a América dos anos 1960 ou os detalhes das paisagens naturais da América foram igualmente temas que ficaram registados na sua longa carreira. Ainda que no centro da sua actividade haveria de ficar para sempre os célebres retratos feitos com James Dean, pouco tempo antes de este morrer, para se tornar um ícone. Vítor Belanciano

Page 9: Revista-20131110

2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 9

Elvis PresleyElvis At Stax Legacy;

distri. Sony Music15,90€

Estava apenas escondido. E assim continuou, de resto, até ao fim dos seus dias, no Verão de 1977, quando era uma caricatura de si mesmo, gordo de demasiados comprimidos e demasiados hambúrgueres e preso no circo de horrores de Las Vegas. Ocasionalmente, porém, o velho Elvis Presley foi reaparecendo. Aconteceu no glorioso Comeback Special de 1968 (cabedal negro de cool impossível e Presley a dominar a multidão e o rock como o mundo ansiava há uma década). Aconteceu nos singles In the ghetto e Suspicious minds ou no álbum de simbólico regresso a casa, From Elvis to Memphis, editado em 1969. Podia ter reaparecido também quatro anos depois. É o que percebemos ao ouvir Elvis At Stax, a compilação agora editada que nos leva aos estúdios da mítica editora que fez, ao lado da Motown, a

CDELVIS RENASCIDO

Quando John Lennon afirmou que Elvis Presley morrera quando o enviaram para cumprir serviço militar, entre 1958 e 1960, estava genericamente correcto. A frase era obviamente exagerada, mas é certo que o furacão que varrera os Estados Unidos e depois o mundo começou a diminuir de intensidade à medida que a década de 1960 foi avançando, enfraquecido pela incapacidade em compreender um mundo em mudança constante e diminuído na sua intensidade e chama rock’n’roll ao dedicar-se a uma aparentemente interminável e sofrível carreira cinematográfica com banda sonora (a sua) de gosto discutível.Mas Elvis, o homem do movimento de anca que escandalizou o mundo, o dono de uma voz imensa e de carisma, não se fora embora.

história da soul, casa de Otis Redding, Isaac Hayes, Sam & Dave, Wilson Pickett, Carla Thomas ou Booker T & The MGs.Em 1973, depois de gozar o sucesso da transmissão televisiva global do muito kitsch Elvis: Aloha From Hawaii, Elvis regressou novamente (mas longe dos holofotes). Na sua Memphis natal, reservou tempo nos estúdios da Stax e, com os experientes e muito sábios músicos da editora, conhecedores de tudo o que a soul, o country, o gospel ou o blues tinham para ensinar, gravou uma série de sessões que, tratadas correctamente, teriam originado um álbum de destaque da sua discografia. É o que percebemos ao ouvir o rock’n’roll infernizado de Raised on rock, o groove de Find out what’s happening, o funk impressionante de I got a feeling ou a lição de sedução que é a balada It’s

Idealizemos um estádio de futebol, com vários pi-

sos de celas, nenhuma com porta. O único carce-

reiro, situado na construção circular, inspecciona

sozinho o movimento de centenas de prisioneiros.

O modelo panóptico de Bentham, descrito por

Foucault em Vigiar e Punir, foi adoptado por mui-

tos presídios. Hoje vivemos assim, numa sociedade

panóptica onde, em qualquer lugar, há sempre um

olho a ver-nos. Somos vistos e não vemos quem nos

vê. E não é apenas as câmaras ocultas. É também o

poderoso olho do controlo social (vivemos em socie-

dades de controle diria Deleuze) onde esvaziamos

o espaço público, para exercer nele a vigilância.

Cada um, com receio do outro, averigua o compor-

tamento de quem lhe está próximo.

Já lá vai também o tempo em que navegávamos

pela Internet com a ilusão de liberdade e anonimato.

De vez em quando, sofríamos com a intromissão de

mensagens não solicitadas e anúncios relacionados

com os nossos hábitos de consumo, mas a românti-

ca vida no espaço virtual continuava alegre.

Depois fomos percebendo que a Internet não era

apenas examinada por vendedores, mas também

por agentes secretos. À medida que nos íamos en-

tretendo com o Google Earth e dávamos a volta ao

mundo em 80 cliques, interrogávamo-nos sobre o

que poderia então a NASA, o Pentágono, a CIA, o

KGB ou a Mossad?

Nas redes sociais, deixá-

mo-nos de ilusões. Os me-

canismos de protecção da

privacidade são inefi cazes. A

única solução é não publicar

nada que ponha em causa a

privacidade. Por um lado, a

universalização do uso das

tecnologias permite o exer-

cício da cidadania, mas ao

mesmo tempo as ferramen-

tas electrónicas oferecem

aos governos uma capaci-

dade sem precedentes para

vigiar os cidadãos. E se dúvi-

das ainda existissem surgiu

depois Edward Snowden a

dizer que não queria viver

num mundo em que tudo o

que expomos e fazemos é

gravado. “Uma pessoa nun-

ca está a salvo, por mais que se proteja”, disse.

Resultado? Estamos desconfi ados. Estamos como

quando tiramos moedas, cintos e sapatos para pas-

sar pelo detector de metais antes do embarque no

avião e ainda assim o mecanismo automático toca

e somos revistados perante olhares desconfi ados.

Sabemos que não fi zemos nada, mas mecanicamen-

te quando alguém desconfi a de nós sentimo-nos

incriminados. A condição de investigado faz-nos

sentir alívio quando o segurança nos diz, somente,

para seguirmos.

Vivemos em estado de defesa, como se fôssemos

culpados, só por aparentarmos inocência. O fac-

to é que já ninguém acredita em aparências ou na

inocência. Temos medo de abrir a porta e receber

alguém apenas ansioso por apoio. Fazemos do con-

domínio uma prisão de luxo. Fugimos de quem não

se compara a nós na classe social, na cultura ou na

cor da pele. Fugimos do abraço com medo de uma

faca nas costas. Mete medo viver numa sociedade

assim com tanto medo.

VÍTOR BELANCIANOAPARTES

NÃO HÁ INOCENTES

Fugimos do abraço com medo de uma faca nas costas. Mete medo viver numa sociedade assim com tanto medo

midnight. Infelizmente, o manager de Elvis, o para sempre provinciano Colonel Tom Parker, e a editora com que acabara de assinar, a RCA, tinham ideias diferentes. As sessões foram então esquartejadas numa infinitude de álbuns em que se misturava o novo som de Elvis com canções antigas ou sobras de outras sessões, embaladas sem qualquer cuidado (sempre as mesmas fotos de Elvis em palco e, muitas vezes, nada mais por título que o nome do cantor), que diluíram toda a vitalidade que sobressaíra do tempo passado nos estúdios da editora de Memphis. Quarenta anos depois, temos as 17 canções de Elvis at Stax para recordar o que podia ter sido. Para nos recordarmos que, apesar de Elvis ter morrido na tropa, ainda viveu umas breves ressurreições depois de cumprido o serviço militar. Mário Lopes

OUÇA

ISTO DR

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10 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Christiane F. acredita que se nunca tivesse

publicado, em 1978, o livro Wir Kinder vom

Bahnhof Zoo (Nós, as Crianças de Bahnhof

Zoo, que em português foi traduzido por

Os Filhos da Droga) teria conseguido tomar

a sua vida em mãos. Não teria voltado à he-

roína, não teria perdido a custódia do fi lho que hoje

tem 17 anos, não teria sido presa, estaria divorciada,

mais gorda e seria mãe de vários fi lhos maravilho-

sos. Aos 51 anos, a alemã que contou ao mundo

a história da sua vida nas ruas de Berlim — “Eu,

Christiane F., 13 anos, drogada, prostituta…”, que

viu o seu livro ser traduzido em 18 línguas vender 5

milhões de exemplares e ser adaptado ao cinema,

sobreviveu. Mas lida com as cicatrizes deixadas pela

época em que, ainda adolescente, se viu transfor-

mada em junkie-star e não aguentou a pressão. Os

leitores que se tornaram seus fãs por causa de ter

conseguido deixar a heroína eram os mesmos que

lhe diziam, quando voltava à droga, que tinha tido

todas as oportunidades para se safar (aos 18 anos,

quando recebeu os direitos de autor, a conta ban-

cária era a de quem tinha recebido a lotaria) e por

egoísmo tinha recaído. Por isso passou a escolher

para amigos quem nunca tinha lido a sua história.

Desde há dez anos que todos os dias Christiane se

dirige a um centro para tomar metadona. Convive

com uma cirrose no fígado, com a hepatite C e com

o remorso de ter desiludido

milhões de leitores por esse

mundo fora. Mas, se ela acha

que não se salvou, a verdade

é que ajudou gerações e gera-

ções de adolescentes a deci-

dir: eu não vou por aí!

Em Outubro, Christiane

Felscherinow esteve na Feira

do Livro de Frankfurt a lançar

o seu novo livro Mein Zweites

Leben, a minha segunda vida,

que em França tem por título

Moi, Christiane F., la vie mal-

gré tout (Flammarion).

O primeiro livro tinha sido

escrito com a ajuda do jorna-

lista alemão Horst Rieck da

revista Stern e do seu colega

Kai Hermann, este foi escrito

com a ajuda da jovem jorna-

lista Sonja Vukovic, que há

três anos lhe bateu à porta para fazer uma entre-

vista para a universidade. Quando, no fi nal dos anos

1970, Christiane contou a sua história, não tinha

noção de que a sua vida nunca mais voltaria a ser a

mesma. Para ela, era mais um livro que iria para as

prateleiras de uma biblioteca. Perdeu a privacida-

de, a sua fotografi a estava na capa da revista Stern

e em todas as livrarias. Em Frankfurt, o seu editor

francês lembrou que Os Filhos da Droga na época

da sua publicação, nos anos 1970, representou uma

revolução. “Deves lembrar-te que no fi nal do livro

dizias que apesar de os teus professores acharem

que se tratava de material pornográfi co, acredita-

vas que o livro devia ser lido nas escolas. O mundo

deu-te ouvidos. Desde há décadas que este livro é

estudado nas escolas francesas e em outros países.

E conheço muitos pais que o recomendam e que

o compraram para os seus fi lhos”, disse. “Este teu

novo livro requer muita coragem, porque 35 anos

depois continuas a lutar contra o mito.”

ISABEL COUTINHOPORQUE HOJE É DOMINGO

SOBREVIVER AO MITO

Se ela acha que não se salvou, a verdade é que ajudou gerações e gerações de adolescentes a decidir: eu não vou por aí!

LEIA

ISTO

A revista Relâmpago, da Fundação Luís Miguel Nava, lançou recentemente o número duplo 31/32, consagrado à escritora Irene Lisboa (1892-1958) e, em particular, à poesia da autora de Um Dia e Outro Dia… e Outono Havias de Vir, títulos publicados respectivamente em 1936 e 1937 sob o pseudónimo masculino João Falco.

Relâmpago, n.º 31/32Coordenação: Gastão CruzFundação Luís Miguel Nava266 págs., 14€

REVISTAUMA IRENE LISBOA PARA GUARDAR

Desde que foi criada, a Relâmpago tem quase sempre oscilado entre números temáticos, como os dedicados à relação da poesia com as artes visuais, a música ou o cinema — mas também a tópicos como a revolução, o ensino ou a tradução — e edições de homenagem a poetas portugueses. Neste número, dirigido por Gastão Cruz, a escolha recaiu em Irene Lisboa, que, além de poeta e ficcionista — escreveu novelas, contos, crónicas, memórias e vários outros textos de classificação menos óbvia —, foi ainda uma autora importante no domínio da pedagogia. A sua qualidade bastaria para justificar a evocação, mas a escolha torna-se ainda mais pertinente pela desatenção a que esta obra continua a ser votada, não obstante os esforços de admiradores de várias gerações, de José Gomes Ferreira, que a

considerou mesmo “a maior escritora de todos os tempos portugueses”, passando por Jorge de Sena, que a incluiu na antologia Líricas Portuguesas e lhe dedicou um dos seus fulgurantes verbetes, até Paula Morão, a grande especialista actual em Irene Lisboa, que ao longo dos anos 1990 coordenou a reedição dos seus livros na Presença. Se já nos anos 1930, os leitores mais atentos perceberam o quanto havia de novo nesta poesia que não receava a contaminação da prosa, recusava todo o ornamento formal e respirava uma evidente e pungente autenticidade, estas mesmas qualidades emprestam à escrita de Irene Lisboa um tom surpreendentemente actual neste princípio do século XXI. Motivo suplementar para se saudar (e guardar) este número da Relâmpago, que inclui um

extenso e relevante poema inédito de Irene Lisboa, com alusões expressas a Pessoa e ao seu amado Camilo Pessanha, ensaios de Carina Infante do Carmo, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz e Joana Matos Frias, e ainda vários testemunhos, entre os quais se salientam os de Luís Amaro, com a sua proverbial memória de elefante e invejáveis arquivos, e o de Maria Velho da Costa, pela sinceridade com que explica de que modos Irene Lisboa é e não é a protagonista do seu romance Irene ou O Contrato Social.Um conjunto de fotografias de Irene Lisboa, cedido por uma afilhada da escritora, e uma cronologia e bibliografia, organizadas por Paula Morão, completam o dossier. Como é habitual, a revista inclui ainda uma secção de poesia inédita e um espaço dedicado à crítica literária. Luís Miguel Queirós

DR

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Um mundo de chocolate, uma aldeia de chocolate, um conforto à antiga, feito de meninos de meias, cachecóis e gorros de lã, de paisagens com neve. É assim a vida na Chocolataria Equador, nascida no Porto, e que acaba de abrir a primeira loja em Lisboa, no Chiado. São chocolates 100% artesanais e de fabrico nacional — um projecto criado em 2008 por Teresa Almeida e Celestino Fonseca, que abriram a primeira loja no Porto (Rua Sá da Bandeira) em 2010 e a segunda, na mesma cidade, na Rua das Flores, em 2012.O mundo da Equador conquistou Isabel Rodrigues e Luís, proprietários da nova loja de Lisboa. “Éramos fãs da marca”, conta Isabel, pelo chocolate, claro, mas também pelo ambiente das lojas do Porto e pela “recuperação de algumas referências de Portugal, nas cores, no mobiliário, no grafismo dos papéis”. Para perceber do que estamos a falar, é preciso visitar a Equador e descobrir os magníficos papéis que envolvem os chocolates (as sombrinhas de chocolate, por exemplo, parecem vindas dos longínquos anos 1940). Há uma explicação para isto: Celestino Fonseca é formado em design gráfico e é ele quem ilustra as histórias passadas na Vila do Lago (e que vão mudando consoante as alturas do ano), a tal aldeia idílica deste mundo de chocolate, que se materializa em cartazes, postais, e até em chocolate propriamente dito (pela mão do escultor Pascal Ferreira). Isabel e Luís propuseram a Teresa e Celestino a abertura de uma loja em Lisboa e tudo se passou em pouco mais de meio ano. “Foi preciso encontrar o espaço ideal”, conta Isabel, que queriam

PROV

EISTO

com porta para a rua. Encontraram-no numa antiga loja de decoração do Chiado fechada há meses. Agora, invadido pelo cheiro a chocolate, este espaço é a montra de grandes tabletes, bombons, trufas, sombrinhas, macarrons, tudo saído das oficinas dos mestres chocolateiros Miguel Tendim e Rui Costa. Os

LOJAUM MUNDO DE CHOCOLATE NO CHIADO

O blogue El Comidista do jornal El País cha-

mou a atenção para um documentário que

passava este fi m-de-semana no festival de

cinema e gastronomia Film&Cook: chama-

se Rawer e conta a história de Tom Wat-

kins, um adolescente holandês que, por

convicção da mãe, se alimenta apenas de fruta e

legumes crus desde os cinco anos de idade. A mãe

considera que alimentos cozinhados ou de origem

animal são prejudiciais à saúde.

Imagino que por esta altura grande parte dos

leitores desta crónica já tenha tomado uma posi-

ção sobre o caso. Mas há mais. Os médicos que

observaram Tom alertam para o facto de o cresci-

mento do rapaz estar a ser afectado por esta dieta

e os serviços sociais holandeses querem retirá-lo

à mãe por causa disso. Mais um detalhe: Tom é

adepto da dieta e concorda com as ideias da mãe.

Por esta altura, os leitores que ainda não tinham

opinião já terão certamente — uns contra a mãe,

outros contra os serviços sociais.

É por isso que o documentário realizado por

Anneloek Sollart (e que é já a segunda parte da his-

tória, sendo a primeira contada em Raw, da mesma

realizadora) me parece interessante, como aliás

o post do El Comidista tam-

bém explica (e os comen-

tários ao post elaboram). É

um caso que levanta uma sé-

rie de questões. Devem os

pais, por convicção de que

estão a fazer o melhor para

os fi lhos, ser autorizados a

alimentá-lo de uma forma

que os poderá prejudicar?

Será legítimo o Estado inter-

vir nestes casos? Tom será

mais feliz a viver separado

da mãe e a comer comida

com a qual não concorda?

Terá o rapaz sofrido uma

lavagem ao cérebro desde

pequeno ou terá capacida-

de para ter opinião própria

neste assunto? E os pais que

alimentam os fi lhos exclu-

sivamente com junk food,

devem ver-se também pri-

vados do poder paternal?

Não se trata aqui de uma

mãe negligente, segundo mostra o documentário,

mas de uma mulher que se preocupa verdadei-

ramente com o fi lho, e que, muito infl uenciada

pelo guru da alimentação crua, David Wolfe, está

convencida de que outro tipo de alimentação te-

rá efeitos piores nele. É relevante também saber

que o pai de Tom não concorda com a atitude da

ex-mulher e que o outro fi lho do casal optou por

viver com o pai.

A realizadora, citada no El Comidista, diz es-

perar que quem vê o fi lme perceba que “não é

fácil resolver este problema” e que o seu traba-

lho é também sobre “a próxima e asfi xiante, mas

também amorosa, relação entre uma mãe e o seu

fi lho”. As opiniões dividir-se-ão, certamente.

a blogues.publico.pt/olhos-barriga/

ALEXANDRA PRADO COELHOMAIS OLHOS QUE BARRIGA

O ESTADO E A COMIDA QUE DAMOS AOS FILHOS

Devem os pais, por convicção de que estão a fazer o melhor para os filhos, ser autorizados a alimentá-los de uma forma que os poderá prejudicar?

DR

Chocolataria Equador. Rua da Misericórdia, 72, Lisboa (Chiado), equadorlisboa@ chocolatariaequador.com

dois trabalham misturas de sabores, algumas das quais “desafiam o paladar para novas experiências”, como acontece com o chocolate negro com caril, o chocolate branco com maracujá, ou — uma criação feita para a loja de Lisboa — o chocolate negro com ginja. Entre os exóticos, há ainda a pimenta rosa, o chili ou

o goji, e entre os clássicos há o vinho do Porto. Mas há também os mais tradicionais, com sabores de frutas. E os cacos, pedaços de chocolate com alecrim, gengibre, pistácios ou café (resultado de uma parceria com a marca portuguesa Torrié). Fiquem atentos, porque é quase Natal na aldeia do chocolate. Alexandra Prado Coelho

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12 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

A CRISE NA HOLANDA CHAMA-SE “PEDRO PRETO” E NÃO TEM NADA QUE VER COM DINHEIRO

A discussão está por todo o lado. Em casa, na rua, no metro, nos cafés e sobretudo nas redes sociais. Zwarte Piet, o ajudante negro de São Nicolau (o Pai Natal dos Países Baixos), é acusado de ser uma caricatura que re-corda a época colonial, quando os negros eram escravos dos brancos. Os holandeses estão furiosos e juram a pés juntos a inocência da tradição. Mas a maior festa do país já está ensombrada e são cada vez mais as ameaças de morte aos que se manifestam publicamente contra Piet

SOFIA DA PALMA RODRIGUES, EM AMESTERDÃO

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 13

ROBIN VAN LONKHUIJSEN/AFP

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14 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Já ouviram falar da crise na Holan-

da?”, pergunta com um sorriso

maroto, num tom alarmista e ao

mesmo tempo sarcástico. “A bomba

explodiu, ninguém comenta outra

coisa, e não se sabe onde isto vai

parar...” Emma Lesuis tem 25 anos

e nasceu em Leida, uma cidade do

Sul. A mãe é negra, o pai branco.

Ela, orgulhosa do seu cabelo black

power (poder negro), autodefi ne-se como “cas-

tanha”, uma mistura entre o Suriname e os

Países Baixos. Nunca se sentiu discriminada,

também nunca pensou muito nisso. “Todos

os anos, nesta altura, oiço a mesma piada: ‘Tu

não precisas de te pintar, és preta ao natural.’

Já nem ligo, mas será que isto é racismo ou

não? Havia crianças que se mascaravam de

São Nicolau, outras de Zwarte Piet [Pedro Pre-

to]. Eu nunca tive escolha: era sempre o Piet,

claro!”, conta, enquanto se olha ao espelho

para pintar os lábios com um gloss vermelho.

É formada em media e representação, o que

talvez faça com que todos os seus gestos te-

nham algo de teatral.

A “crise” a que se refere não tem nada que

ver com a crise económica que abala os países

do Sul da Europa: chama-se Zwarte Piet, o aju-

dante negro de São Nicolau, e está a incendiar

a Holanda. A maior festa do país celebra-se a

5 de Dezembro, mas este ano ninguém sabe o

que vai acontecer. De um lado, uma minoria

que pede o fi m do escudeiro, acusando-o de

promover o “estereótipo da supremacia dos

brancos sobre os negros”. Do outro, quase

toda a população holandesa, que sente a sua

tradição ameaçada e repete sem se cansar que

o São Nicolau é uma festa para as crianças e

é “absurdo” ensombrá-la com a palavra “ra-

cismo”. A discussão é antiga — foi no fi nal da

década de 1960 que vários jornais e revistas co-

meçaram a criticar a celebração — e nuns anos

torna-se mais, noutros menos, efervescente.

Mas nunca tinha chegado a este nível.

Agora, Emma dá por ela a esgaravatar no

passado, a tentar recuperar memórias, epi-

sódios arquivados. Como quando, na festa do

seu 18.º aniversário, um homem a convidou a

sair do bar onde comemorava com os amigos

e a mandou “para a terra dela”. Na altura não

ligou, disse-lhe que era “tão holandesa como

ele” e continuou a divertir-se. “Mas será que

estar a reavivar estas cenas, de que já nem

tenho bem a certeza se aconteceram assim, é

saudável?”, questiona-se. Sente-se a empolar

histórias às quais não deu qualquer importân-

cia, sente que o facto de ser mulata faz com

que as pessoas lhe exijam uma posição, a em-

purrem para o debate.

Recusa-se a fazer uma análise simplista e

garante não ter uma opinião formada, mas,

conversa aqui, conversa ali, lá vai deixando

escapar que “é óbvio que Zwarte Piet é uma

fi gura racista”, que “os holandeses estão a re-

jeitar refl ectir sobre si próprios porque não

gostam de ver os seus dogmas questionados”,

“que as tradições se mudam ou a História seria

sempre a mesma” e que “por detrás de uma

discussão doida há temas sérios como o racis-

mo, a discriminação e a liberdade de expres-

são que devem ser explorados”. “As pessoas

são tão tolas que é inevitável não rir”, critica

enquanto aponta para uma fotografi a com um

hambúrguer chamuscado que aparece no seu

mural do Facebook. “Queimei o hambúrguer

e chamei-lhe Hamburguer Zwarte Piet, ou será

que isso também é proibido?”, escreveu uma

das suas amigas virtuais. Emma confessa já

ter eliminado pessoas do seu perfi l devido a

comentários que considerou ofensivos.

Desde 1934 que, em Novembro, São Nicolau

e os seus escudeiros negros (nesse ano repre-

sentados por marinheiros do Suriname — uma

ex-colónia holandesa) chegam de barco aos

Países Baixos e têm à sua espera uma multidão

em êxtase. O espectáculo é transmitido em

directo na televisão e, durante quase um mês,

miúdos e graúdos não falam de outra coisa (é

inclusive emitido um telejornal diário, de dez

minutos, com notícias fi ccionadas sobre as

aventuras de São Nicolau para entreter os mais

pequenos). Dita a história que as crianças que

se portaram bem durante o ano têm direito

aos doces e presentes que Zwarte Piet carrega

aos ombros; os meninos malcomportados são

levados para Espanha, dentro do seu saco,

como castigo. A festa é celebrada também na

Bélgica, Luxemburgo e em algumas zonas da

Alemanha e da Suíça.

O São Nicolau é o equivalente à fi gura do

Pai Natal. As suas origens remontam a 1850,

quando foi publicado o livro Sint Nicolaas en

zijn knecht (São Nicolau e o seu escudeiro),

escrito por um professor primário, 13 anos

antes da abolição da escravatura na Holanda

— feita contra vontade, a mando da Coroa bri-

tânica. Os factos estão do lado dos que dizem

ver na fi gura serviçal de Zwarte Piet um refl exo

dos escravos do tempo colonial. Durante mui-

to tempo, as semelhanças foram evidentes:

além do rosto pintado de preto e dos lábios

carnudos carregados de bâton vermelho, o

ajudante de São Nicolau usava argolas de ouro

nas duas orelhas, tinha o cabelo encaracolado

tipo carapinha, vestia roupas semelhantes às

dos escravos negros dos séculos XVII e XVIII

e falava de uma forma pouco articulada, com

sotaque do Caribe. Era um personagem meio

tonto. A história que actualmente se conta às

crianças — que o seu rosto está preto porque

passou pela chaminé antes de entregar os pre-

sentes — nada tem de racista, mas é impossível

negar as suas origens. Em 1937, referindo-se

às vagas migratórias das ex-colónias, o depu-

tado do Parlamento holandês Arie Ijzerman

fez uma declaração pública em que dizia: “No

nosso país, quase não existe trabalho para os

negros, excepto talvez na primeira semana

de Dezembro, quando há uma procura por

negros puros para fazerem de pagens e ser-

virem São Nicolau.”

A primeira fagulha deste debate

saltou em 2011, quando Quinsy

Gario apareceu no desfi le de São

Nicolau com uma T-shirt onde se

lia “Zwarte Piet is racisme [Zwar-

te Piet é racismo]”. Nessa altura,

o artista de 29 anos nascido em

Curaçau — a maior ilha do arqui-

pélago das Antilhas Holandesas

— foi preso porque a polícia con-

siderou que “podia estar em causa a ordem

pública”, conta. Mas o barril de pólvora só

explodiu neste Outubro, com a participação

de Quinsy num dos mais populares programas

de debate holandeses, Pauw en Witteman,

emitido todos os dias às 22 horas. Voltou a

defender que a fi gura do boneco com a cara

pintada de preto é uma herança do colonia-

lismo e as pessoas deveriam ter consciência

disso. Sempre que tentou falar, o artista ca-

ribenho foi ridicularizado, com quase toda

a plateia a rir-se à gargalhada dos seus argu-

mentos. “Também quis provocar a situação.

Mantive a calma porque esse tipo de atitudes

só me dão mais força”, considera.

Depois disso, uma consultora das Nações

Unidas, a jaimaicana Verene Shepherd, abriu

uma investigação para avaliar o possível carác-

ter racista da festa de São Nicolau. Algumas

vozes dissonantes dentro da ONU acusaram-

na de não ter o direito de usar o nome da ins-

tituição dessa forma, mas a acusação nunca

foi provada. “Prefi ro banir as Nações Unidas

a banir o Zwarte Piet”, escreveu na sua pági-

É óbvio que Zwarte Piet é uma figura racista... Os holandeses estão a rejeitar reflectir sobre si próprios porque não gostam de ver os seus dogmas questionados”, diz Emma Lesuis

na do Twitter o líder do Partido para a Liber-

dade, Geert Wilders, que nos últimos anos

encabeçou uma verdadeira cruzada contra a

imigração islâmica.

A extrema-direita ganha cada vez mais ex-

pressão nos países do Norte da Europa. O par-

tido liderado por Wilders, que se assume de

centro-direita mas todos identifi cam como

sendo de extrema-direita, é o quarto maior

dos Países Baixos e nos últimos anos tem en-

cabeçado uma verdadeira cruzada contra a

imigração islâmica.

Na Áustria, o líder do Partido da Liberdade

(FPO), Heinz Christian Strache, foi o rosto de

uma campanha de extrema-direita onde, com

um sorriso Pepsodent, aparecia estampado

em vários outdoors a prometer “oportunida-

des a sério” para os “nossos jovens”. Há al-

guns anos, Strache processou alguns media

austríacos por terem escrito que ele mantinha

“contactos com neonazis”. O tribunal decidiu

contra ele, considerando que havia “uma base

factual adequada para demonstrar uma certa

proximidade com ideias nacional-socialistas”.

O mês passado, na Bélgica, o estilista Christian

Louboutin processou a campanha “Mulheres

Contra a Islamização” do partido de extrema-

direita Vlaams-Belang. Uma fi gura feminina

aparecia calçada com uns sapatos altos de sola

vermelha (imagem de marca do estilista) num

cartaz que pretendia representar os níveis de

nudez aceites pelos muçulmanos: uma saia até

RICARDO VENANCIO LOPES

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aos pés está “de acordo com a sharia” (lei islâ-

mica); a bater no tornozelo é ainda “aceitável”;

acima do joelho refere-se a uma “prostituta”; e

se subir até perto das nádegas tem a indicação

de “lapidação”.

“Esta escalada da extrema-direita só aconte-

ce porque os holandeses não têm capacidade

de auto-refl exão. Vivem presos na imagem que

fazem deles próprios: ‘Somos um país bom,

tolerante, com uma mente aberta e nada do

que fazemos pode estar errado.’ Mas no mo-

mento em que perguntas, mas afi nal porque

és a favor do Zwarte Piet? Ninguém consegue

explicar”, explica Quinsy Gario, que está agora

a fazer um mestrado em Estudos de Género

e Pós-coloniais. Para o artista, a liberdade de

expressão está ameaçada: “Sempre que falas

contra a ordem estabelecida, és silenciado.

Temos um ditado que diz algo como ‘ser nor-

mal já é loucura sufi ciente’ e os holandeses

seguem-no à letra. No estúdio da rádio onde

tem um programa, a Multicultural Amsterdam

Radio and Television, encontrou em cima da

sua secretária um boneco de Zwarte Piet com

uma seta a atravessar o pescoço. “Foi muito

estranho porque não sei como aquilo foi ali

parar, era totalmente anónimo”, conta. Mes-

mo assim, reforça que não tem medo, “isso é

o que querem de mim, que deixe de falar, de

andar na rua”.

Há promessas por parte do executivo de

Amesterdão de que a 16 de Novembro, dia

Emma Lesuis é filha de mãe negra e pai branco. Ao lado, Dret Vyhcivert, de 27 anos: “As pessoas dizem que a tradição tem anos, mas o que se celebra é um tempo em que os negros não tinham direitos”

RICARDO VENANCIO LOPES

RICARDO VENANCIO LOPES

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16 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

em que São Nicolau chega aos Países Baixos,

a festa será diferente, mas ninguém sabe co-

mo. Este ano, a cidade que o vai receber é

Groninberg, no Norte do país, e quanto mais

se fala em mudança, mais cresce o ódio. A

página Pietitie, uma petição no Facebook a

favor de Zwarte Piet, conta com 2,1 milhões

de assinantes, o que num país com 17 milhões

de habitantes é bastante signifi cativo.

Grupos conservadores e de extrema-direita

ganham força entre uma população expectan-

te e revoltada, que não percebe bem como

é que, de repente, a discussão atingiu estes

contornos. Um colectivo de artistas do Nor-

te do país que planeava vestir-se de Zwarte

Piet e pintar o rosto com as cores do arco-

íris para celebrar o São Nicolau começou a

receber ameaças de morte e teve de cancelar

a iniciativa.

A cantora Anouk, representante da Holan-

da no Festival Eurovisão deste ano, também

tem sido advertida. É mãe de quatro crianças

mulatas e considera a fi gura de Zwarte Piet um

elemento desnecessário na festa. Por se mani-

festar publicamente contra, recebe diariamente

dezenas de mensagens insultuosas, com nomes

e fotografi as falsas: “Sua prostituta defenso-

ra dos negros, como é que podes ser contra o

Zwarte Piet. És uma desgraça para as nossas

crianças, estás suja de esperma negro.”

Ao jantar, em torno de uma mesa

redonda, entre carne de vaca, ar-

roz de ervilhas e legumes cozidos,

Emma e o pai estão sentados fren-

te a frente e a discussão aquece.

Marcél Lesuis, um médico de 60

anos, sente que estão a “atacar” a

sua identidade, a acusá-lo de uma

coisa que nunca foi: racista. Ad-

mite que o debate seja necessá-

rio, mas não neste “tom estúpido em que as

pessoas parecem fora delas”. Acusa Quinsy de

não apresentar soluções, de não estar cons-

ciente do poder que tem nas mãos, de como

pode estar a gerar um confl ito racial. “Agora

sim corremos o risco de começarem a existir

manifestações discriminatórias: ‘Se não gostas

da minha cultura, então volta para a tua terra e

celebra lá os teus costumes.’ Acham que isto é

certo? Não é... Mas é o que se começa a ouvir”,

argumenta, com uma voz pausada, de quem já

refl ectiu sobre o assunto e diz temer que algo

mais grave esteja para vir. Marcél conta que

também ele já se vestiu de Zwarte Piet, quan-

do os seus três fi lhos eram mais pequenos. De

certa forma, até percebe a escolha pelo rosto

negro: “O preto é a cor que melhor esconde,

que melhor serve a fantasia, para que as pes-

soas fi quem irreconhecíveis.”

“Pai?”, Emma lança um grito incrédulo.

“Não acredito que estejas a usar motivos tão

fracos, isso não faz sentido nenhum”, contra-

põe enquanto se congratula a ela própria por,

pela primeira vez, sentir que tem melhores

argumentos do que o progenitor. “Eu ganhei,

é isso? Não dizes mais nada?”, desafi a. “Admito

que as minhas justifi cações sejam fracas, é que

estão a mexer com a minha tradição, com o

meu sentido de pertença, há muitas emoções

misturadas que acabam por comprometer a

razão”, confessa Marcél. Para ele, o “pior de

tudo” é que a refl exão esteja a ser imposta de

fora, “é um tradição nossa, a crítica tem de par-

tir de dentro”, diz, referindo-se inquérito le-

vantado pela consultora das Nações Unidas.

Foi Marcél quem cozinhou a refeição e

prepara-se para começar a levantar a mesa:

“Estão a ver quem é o escravo aqui nesta ca-

sa?”, brinca, enquanto a mulher o olha com

deleite. Lilian Deimveld Lesuis, 59 anos, não

participa na discussão e tenta de tudo para

que esta termine o mais depressa possível. É

JOHN VAN HASSELT/CORBIS

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 17

marroquinos”, geralmente relacionados com

notícias de assaltos. É interrompido por dois

amigos holandeses, sentados no banco ao la-

do: “Qualquer dia também vão dizer que o

chocolate preto é racismo. É que é uma dis-

cussão absolutamente ridícula.”

“A controvérsia sobre o eventual racismo do

Zwarte Piet é daquelas que dá para ter pena

que pessoas em seu juízo, como a outra senho-

ra das Nações Unidas, arranjem tempo para

a palhaçada. O São Nicolau e os escudeiros

negros nada têm, nem tiveram, de racistas.

Sempre foi uma festa infantil e familiar, uma

espécie de noite de Natal protestante”, criti-

ca Rentes de Carvalho. “Por mais racistas e

hipócritas que sejam — e são —, os holande-

ses gostam de demonstrar carinho pela raça

negra. A festividade tem o seu equivalente no

Santa Claus americano, embora este dispense

ajudantes”, acrescenta.

Um inquérito realizado no ano passado em

Amesterdão revelou que 75% dos habitantes

da capital com origens no Suriname, Antilhas

Holandesas e Gana consideravam o retrato

de Zwarte Piet discriminatório e mais de 30%

achavam mesmo que a personagem nem se-

quer deveria aparecer nas escolas. Entre os

nativos, as opiniões são opostas: 73% não con-

sideravam Piet uma fi gura racista.

Para o sociólogo Sahil Achah, fi lho de pais

marroquinos, “este é um debate muito ne-

cessário”. “Os holandeses não estão habitua-

dos a ser questionados, nem gostam que isso

aconteça. Desde 2001 [ano do ataque às Torres

Gémeas em Nova Iorque] que sinto que sou

acusado, que vejo fecharem-se portas, por

causa de uma coisa que eu não fi z. É óbvio

que as oportunidades não são as mesmas para

brancos e não brancos, não é preciso ser um

especialista para ver isso”, denuncia.

Max Konijn abre a porta do seu apartamento

no centro de Amesterdão, paredes meias com

o Red Light District, uma conhecida zona de

comércio sexual. O jovem de 25 anos é um

conhecido de Emma dos tempos da escola se-

cundária. Recebe-nos na cozinha, onde as gar-

rafas vazias de whisky, vodka e gin denunciam

a festa da noite anterior. Senta-se no banco de

“madeira natural” que faz questão de frisar ter

sido desenhado por “um designer holandês

famoso”. Está rodeado de electrodomésticos

com luzes que piscam e oferece “água fres-

ca” do seu frigorífi co americano. Só depois,

começa a falar sobre Zwarte Piet: “Hoje, os

negros dizem que ele é um insulto, amanhã os

muçulmanos vão dizer que celebrar com um

santo é um insulto, quando é que isto pára?”

A pergunta é retórica, uns segundos de pausa

e prossegue: “Sentimos que nos últimos 20

anos estamos a perder a identidade, que tudo

aquilo que é só nosso nos está a ser rouba-

do. Esta terra ainda é a Holanda e quem aqui

vive deve fazê-lo com respeito pelas nossas

regras e pelas nossas tradições”, diz de forma

inquisitória.

À saída, cruzamo-nos com um dos seu ami-

gos, que chega com a namorada. Cabelo cor

de cenoura, kispo da Porshe, sapatos de vela.

“O Zwarte Piet? Querem mesmo saber a minha

opinião? A classe alta holandesa, e a média

também, é muito racista. Eu também faço

comentários racistas, apesar de a minha na-

morada ser marroquina [na verdade é judia].

Tentamos sempre transparecer que somos

liberais, muito à frente, os primeiros a per-

mitir a legalização das drogas, do casamento

entre homossexuais... Mas as coisas não são

assim e toda a gente sabe disso, só que não

diz alto”, revela. Remata a conversa com um

sorriso irónico, de dedo indicador em riste: “O

meu nome não é para usar, só digo isto porque

estamos aqui, nunca assinaria um documento,

ou falaria na rua, com estas palavras.”

[Destin, de quatro anos] cresça a pensar que

tem de ser criado dos brancos”, argumenta.

Para o surinamês, o que mais o assusta é o

facto de as crianças sorverem tudo “como uma

esponja” e de este ser “um ensinamento que

aprendem desde muito pequeninos”.

É neste ponto que James Kennedy encontra

um dos “principais problemas”. “Os holan-

deses não consideram estar a correr esse ris-

co porque não vêem maldade na tradição. O

problema existe a partir do momento em que

os indivíduos de raça negra a viver nos Países

Baixos se sentem caricaturados”, analisa. Yo-

landa Rigters, 31 anos, é educadora de infância

e relata já ter visto crianças brancas a chamar

Zwarte Piet aos meninos negros: “Obrigam-

nos a carregar as suas mochilas”, conta. Veio

do Suriname, está na Holanda há três anos

e diz não ter nada contra a festa, desde que

situações como essa não aconteçam. “Se o

meu fi lho [Didier, de três anos] fosse vítima de

um episódio assim, nem pensava duas vezes,

metia-me logo ao barulho”, imagina.

Emma recorda-se de alguns dos seus profes-

sores se recusarem a cantar as músicas do São

Nicolau na sala de aula. “Alguém está a bater à

porta/ Não te assustes meu menino, eu sou um

bom amigo/ Embora seja preto como a cinza,

só quero fazer o bem”, é um dos versos mais

conhecidos, cantado por toda a gente. Uma

mulher da Papua-Nova Guiné que participou

no fi nal de Outubro numa manifestação a fa-

vor de Zwarte Piet em frente à sede da ONU

ouviu-o vezes sem conta. Enquanto centenas

de pessoas se revoltavam contra a investigação

aberta pela consultora jamaicana, Tilly Kai-

siepo estava ali, com a bandeira do seu país

erguida, para reivindicar uma intervenção das

Nações Unidas na Papua-Nova Guiné, onde já

morreram mais de 400 mil pessoas desde que

o Oeste do país foi anexado à Indonésia em

1969. Os manifestantes pensaram que, por ser

negra, era contra o ajudante de São Nicolau

e começaram a agredi-la. Sempre que tentou

explicar o seus verdadeiros motivos, foi cala-

da por centenas de pessoas que entoavam os

conhecidos cânticos infantis.

Quando se ouve a falar alto, a tentar explicar

em inglês todos os rituais em torno do São

Nicolau, Stan van Doggenaar confessa que o

que diz não lhe soa nada bem. “Mas a verdade

é que não há maldade nenhuma por detrás

disto. Mudar a cor do Zwarte Piet signifi ca

mudar todos os cânticos, uma descaracteri-

zação da nossa maior festa. Concordo que se

há minorias que se sentem feridas, algo tem

de ser feito, no entanto, os holandeses nunca

pensaram nisto como racismo”, garante. Este

holandês de 29 anos diz que a discussão atin-

giu tal nível que de repente olha para pessoas

que sempre fi zeram parte da sua vida, como

pais, tios, amigos e vê-os fora de controlo, não

os reconhece. “Só penso: ‘Mas o que é que tu

estás para aí a dizer?’”

Este comboio vai para Amesterdão?”

“Não, vai para Paris... Claro que

vai para Amesterdão, a minha cida-

de, a cidade mais bonita do mun-

do!”, brinca Mohamed Tangawi, 32

anos. Filho de pais marroquinos, é

um Allochton de 2ª geração e não

se sente nem mais nem menos ho-

landês por isso. “Os holandeses às

vezes têm estas coisas estranhas”,

autojustifi ca-se. Abana a cabeça quando co-

meça a falar de Zwarte Piet: “As pessoas não

podem levar isto a sério, é só uma festa pa-

ra as crianças, para as preparar para serem

boas durante a vida adulta.” Por outro lado,

fi ca contente que “agora seja a vez de os ne-

gros serem falados nos media, para darem

um bocadinho de descanso aos turcos e aos

um exemplo do que os holandeses chamam

um Allochton não Ocidental de 2ª geração. O

Instituto Central de Estatística (CBS) separa a

população imigrante, ou com origem no es-

trangeiro, em quatro categorias: o Allochton

de 1ª geração (que nasceu fora da Holanda) e

2ª geração (que nasceu na Holanda mas tem

pai ou mãe estrangeiros); e o Allochton Oci-

dental (que nasceu na Europa — com excepção

para a Turquia —, na América do Norte, no

Japão, na Oceânia ou na Indonésia) e não Oci-

dental (oriundo de África, da América Latina,

da Ásia — excluindo Indonésia e Japão — ou

da Turquia). O que mais causa estranheza é

que cidadãos nascidos no mesmo país tenham

denominações diferentes, dependendo da ori-

gem dos seus progenitores.

“É um selo, com conotação negativa, para

classifi car as pessoas. A distinção feita desta

forma só existe na Holanda, mas não tenho a

certeza se os holandeses são piores do que os

alemães ou os suíços. Vejo muitos países do

Norte da Europa com difi culdades em reco-

nhecer como iguais pessoas com pais ou avós

oriundos de fora”, diz o professor de História

Moderna da Universidade de Amesterdão, o

americano James Kennedy. “Allocthon” vem

do grego allokhthon que signfi ca “encontra-

do num lugar diferente onde foi formado”.

“Uma denominação usada à falta de melhor.

Embora quando há notícias de crimes, assal-

tos que envolvem Allocthon, as autoridades e

os media cuidadosamente evitam referências

à origem ou cor de pele dos autores”, refere

José Rentes de Carvalho, jornalista e escritor

que trabalhou na embaixada do Brasil em

Amesterdão.

Ao contrário do que acontece no

centro da capital, em Bjilmer não

encontrámos ninguém com es-

pecial simpatia por Zwarte Piet.

O “bairro dos negros”, como é

conhecido, é outra Amesterdão

dentro de Amesterdão. À saída

do metro, os edifícios empresa-

riais, uma rua cheia de lojas, um

cinema e o estádio do AFC Ajax

como pano de fundo, escondem um encla-

ve que mistura africanos e caribenhos num

território bem delimitado, onde habitação,

serviços e restauração têm preços muito mais

baixos. “Nasci neste bairro, por isso, nunca

me senti discriminado. Os holandeses é que

se sentem à parte, têm medo de se chegar

perto dos pretos, mas quando sangramos,

sangramos da mesma maneira; quando mor-

remos, morremos da mesma maneira”, atira

Milles, 20 anos, fi lho de pai brasileiro e mãe

surinamesa.

Boné de pala, casaco com capuz, ténis Nike,

pretos e largueirões, donde saltam à vista uns

atacadores vermelhos, e muito ouro pelo cor-

po: dois anéis na mão direita, três na esquerda;

dois dentes dourados, um em cima, outro em

baixo. Dret Vyhcivert, 27 anos, tem um estilo

dread e ninguém imaginaria que, quando se

enerva, começa a gaguejar como uma criança

assustada. É isso que acontece quando fala de

Zwarte Piet: “As pessoas dizem que a tradição

tem anos, mas o que se celebra é um tempo

em que os negros não tinham direitos, em que

o branco era a autoridade e o preto tinha de

obedecer. Antigamente, sabiam muito bem o

que comemoravam, agora é apenas uma festa

para as crianças, o Piet deixou de ser estúpido,

de falar como um parvo, mas continua a ser

preto”, argumenta. Também não acredita na

total inocência dos holandeses: “Se não vêem

mal nenhum na festa porque não a promovem

em cartazes no aeroporto, por exemplo? Por-

que é que quase ninguém no estrangeiro sabe

que isto se passa? Não quero que o meu fi lho

As pessoas não podem levar isto a sério, é só uma festa para as crianças, para as preparar para serem boas durante a vida adulta... Agora é a vez de os negros serem falados nos media, para darem um bocadinho de descanso aos turcos e aos marroquinos”, diz Mohamed Tangawi

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 19

DE ONDE VEM ?MARIA

FILOMENA MOLDER

Maria Filomena Molder usa recorrentemente palavras como “espanto”, “choque”, “ódio”. Que palavras se espera ouvir de um fi lósofo? Para que serve a imperfeita Filosofi a (para ir ao encontro do título de um livro seu, A Imperfeição da Filosofi a)? Outro dos seus livros: O Absoluto Que Pertence à Terra. Na adolescência, ela não quis pertencer a lado ne-nhum, quis nascer de si própria. Nasceu em 1950. Não foi bailarina. Fala como quem levita e ao mesmo tempo tem peso. Desencadeia o choque. Demoramos a recompor-nos

ANABELA MOTA RIBEIRO TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA

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20 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Talvez seja boa ideia começar

por dizer que fui três vezes

aluna de Maria Filomena

Molder (duas na licenciatu-

ra, uma no mestrado). E que

precisei de tempo para fazer

esta entrevista. Nem sempre

estamos preparados para

certos encontros, autores,

compreensões. Ela esperou

mais de 20 anos para com-

preender textos do artista

Eduardo Chillida ou para reler Wittgens-

tein, por exemplo. Temia que a admiração

me toldasse.

Esta entrevista é uma surpresa para mim

também. Eu não conhecia esta pessoa que

ultrapassou a sua mudez, que recorda a es-

cola no Portugal de Salazar ou a voz das suas

avós. Reencontrei-a quando fala de Dante,

que nunca conheceu a mãe — o que impres-

siona muito — ou quando cita Santo Agostinho

para dizer que até os corações bons têm em

si um abismo.

Deu-se a coincidência de esta entrevista

acontecer no último dia em que foi profes-

sora da Faculdade de Ciências Sociais e Hu-

manas da Universidade Nova. Maria Filome-

na Molder reformou-se a 31 de Outubro. Foi

uma professora que odiou a escola. É por

vezes uma pessoa agreste que ri como uma

criança.

Em termos formais, esta é provavelmente a

mais estranha das entrevistas que fi z. Os ex-

cursos são longos e todas as portas vão dar a

todo o lado. Na aparência é descosida. Optei

por transcrevê-la tal qual ela fl uiu. Muito pou-

co fi cou de fora. Em todo o caso, as próximas

páginas resumem três horas de gravação. Não

fi quem surpreendidos se chegarem ao fi m

com uma sensação de espanto e alienação.

Pode falar-me dos encontros que foram

decisivos na sua vida? Com autores,

com pessoas. Pergunto pelo que é

defi nidor.

Não vou falar dos íntimos.

Porquê?

Porque, como são íntimos, quando falamos

deles estamos a comunicar um segredo. A

pessoa decisiva, da qual não vou falar, é o

Jorge [Molder, o marido]. As pessoas que apa-

receram na minha vida, e que são as estrelas

da minha vida, são as minhas fi lhas [Catarina

e Adriana]. Os meus netos [Vicente e Benja-

mim] são “a criança eterna”. Foi uma coisa

que o Jorge disse quando nasceu o Vicente,

mas que se aplica aos dois. Percebemos que

os netos estão tão adiante de nós... Com os

fi lhos, não vivemos a criança eterna. É es-

tranho.

Explique melhor isso.

A criança eterna é: a infância retorna. Não

só retorna em cada um de nós como retorna

porque alguém nasce. Mas quando os fi lhos

nascem, para nós — falo por mim —, não é

a criança que retorna. É o mistério daque-

le aparecimento. É uma dádiva. Não temos

maneiras de dar conta do preenchimento,

da plenitude que isso é. Os netos: é como se

estivessem num mundo que já não nos pode

pertencer. Eles são os nossos guias; e ao mes-

mo tempo fazem retornar qualquer coisa que

desde sempre existiu, que estava connosco,

e que é a nossa infância sem preocupação.

Com os fi lhos, há a preocupação.

A preocupação em relação ao seu

destino? Fala da responsabilidade.

Exactamente.

Foi espantosa (no sentido de causar

espanto) essa regressão à infância por

via dos seus netos? Há quanto tempo

não se olhava na sua infância?

Acho que cada vez mais, e desde há alguns

anos, talvez desde sempre — mas não na ju-

ventude... Sempre pensei que morria com 20

anos e que depois disso era quase indecente

estar vivo. Acho que já disse isto, até, numa

entrevista à Maria João Seixas. Era uma coisa

tão consciente, quando tinha 15, 16 anos...

pensava: “Ir viver mais do que até aos 20 é

ir viver como eles.”

“Como eles”?

Eu tinha um desprezo entranhado pelos adul-

tos. Que perdi. Ainda bem. Não me lembro

de esse desprezo ter continuado depois dos

20 anos.

Depois do Jorge.

Conheci o Jorge quando tinha 18 anos. Tal-

vez tenha sido o Jorge a provocar essa alte-

ração.

É o amor que nos dá uma ideia de

futuro.

Sim. Se bem que eu não pensasse em futuro.

Na relação amorosa, não há nenhum futuro.

É sempre agora. Mas certamente que havia,

sem estar a dar por isso, a ideia de continua-

ção e a ideia de dia seguinte, e do dia seguinte

ao dia seguinte.

Isto era a propósito da sua infância.

E juventude. A juventude é uma espécie de

amnésia da infância. Queremos não ter pai

nem mãe. Queremos não ter nascido de nin-

guém. Queremos ter nascido de nós próprios.

Sempre pensei que isto tinha que ver com a

Filosofi a. Na Filosofi a, há uma intuição equi-

valente a poder começar do vazio, do nada;

ou poder começar fazendo um intervalo em

relação a tudo o resto. Tenho a ideia de que

na juventude, ao contrário do que diz o Qo-

hélet (o livro do Eclesiastes), é “tudo de novo

sob o sol”. Mas implica momentos destrutivos

tremendos. A amnésia da infância é um acto

destrutivo. Para poder fi nalmente nascer. Não

tendo dívidas para com ninguém. O exercí-

cio crítico desenvolve-se tremendamente,

em relação a pais, a amigos, ao mundo, e

pode ter, quase sempre tem, elementos au-

todestrutivos – como por exemplo, duvidar

da existência do mundo. Só na juventude

podemos perguntar-nos se a nossa vida não

é um sonho.

Na infância, não fazemos essa

pergunta?

A criança não pode fazer essa pergunta por-

que a distinção entre o sonho e a realidade

na infância não está dada, e quando começa a

fazer-se não se estabiliza senão no momento

em que se dá o eclodir da juventude. Para a

criança, é tudo real.

E é tudo possível.

É. Um bocado de madeira pode ser um ami-

go. Na juventude, também se criam proce-

dimentos desse tipo, quase mágicos, mas

acompanhados de forças que desarticulam

e desmancham tudo aquilo em que acredi-

távamos.

Mas, se a infância não retornar de qualquer

maneira, essas forças vão devorar-nos. É co-

mo um pessimista ou um céptico radical a

engolir-se a si próprio.

Muitas pessoas experimentam esse

recuo à infância na infância dos seus

fi lhos. No seu caso, o hiato foi maior e

fez-se com o nascimento dos seus netos.

Na vida das minhas fi lhas, também vi a in-

fância retornar. Mas acho que compreendi

menos do que no caso dos meus netos. Agora

relembro e estou muito próxima da infância

delas. Enquanto estavam infantes, não estava

tão próxima. Se bem que estivesse sempre a

olhar para elas como essa sensação de mila-

gre que tinha acontecido. Sempre, sempre,

sempre. Claro que um nascimento é sempre

um milagre, mas no caso dos netos..., não

sei se é só a desresponsabilização. É como

lhe disse: eles estavam adiante de nós num

mundo que já não nos pode pertencer. É que

os avós já não estão tão novos, já começa-

ram a cortar vínculos. A entrada na velhice

é cortar esses vínculos. É diferente do corte

da juventude.

É diferente, mas não deixa de ser

cortar vínculos.

Sim. Por isso há pessoas que na velhice fi -

cam jovens e crianças. Talvez esse corte dê

origem a uma nova espécie de liberdade. Por

exemplo, ser mais indiferente às vozes do

mundo.

Isso signifi ca, também, ter menos

medo? Uma das coisas que

caracterizam a infância e a descoberta

sem limites é a ausência de medo.

O jovem é destemido. O jovem não quer ter

medo. A criança é outra coisa.

O adulto está cheio de medos.

O adulto está cheio de medo.

Da rejeição, mais do que tudo?

Não é só isso. Estar vivo implica ter medo. Vi

um fi lme sobre o Fellini, Sono un Gran Bugiar-

do, [O Grande Mentiroso], em que ele diz que

o medo é uma força animal. Dizendo tudo: é

uma força da vida. E que sem medo ele não

teria feito nada. Que o medo é uma espécie

de aguilhão. Posso ler-lhe uma coisa?

Claro.

É uma letra de um fado, que é mesmo muito

importante para mim.

Nunca a ouvi falar de fado ou de

interesse pelo fado.

É surpreendente, sim. Fui uma jovem que re-

cusava tudo o que lhe tinham dado. Incluindo

a língua portuguesa. Era uma época em que

só ouvia cantar rock inglês e americano. É

assim: “Medo da morte, não consigo ter/ mas

outros mais humanos e banais/ medos que a

gente tem mesmo sem querer/ como o medo

que eu tenho de morrer/ só por querer viver

um pouco mais.” É o fado Já não Estar, da Ma-

nuela de Freitas e do José Mário Branco, que

ouvi cantar pelo Camané. Isto é a descrição

da vida humana. De uma vida humana que

já está muito compreendida.

Dissecamos alguns versos?

“Medo da morte não consigo ter”: é estra-

nhíssimo, porque do que toda a gente tem

medo é da morte. Na verdade, eu tenho medo

da morte. Acho que a Agustina [Bessa-Luís]

não tinha medo da morte. Ou talvez tivesse

medo da morte desta maneira que está aqui

descrita. No último romance que escreveu, A

Ronda da Noite, um adolescente acompanha

a avó àquele maravilhoso cemitério de Agra-

monte [no Porto]. Tinha sido uma criança

com aspectos invulgares. A primeira palavra

que aprendeu foi “merda”. Antes da palavra

“mãe”. Acho que a Agustina estava muito irri-

tada com a velhice. A velhice pode tornar-se

uma devastação irrespirável e isso envenena

a vida toda. Aquele é um texto de alguém

que sabe isso. Depois de o ler, pensei que a

Agustina não poderia escrever mais.

A palavra que Agustina usa na primeira

entrevista que lhe fi z, e falando da

velhice, é “repugnante”. E fala de Sara,

a personagem bíblica, que, velha, dá à

luz.

É isso, é repugnante. Claude Lévi-Strauss diz

que a velhice é uma devastação. Ele fala de

uma distinção entre um eu virtual e um eu

real. O eu virtual tem uma ideia do todo, o

eu real só diz: “Não consigo fazer.” Na velhi-

ce, tudo se passa nesta conversa, entre o eu

virtual e o eu real.

Voltando aos versos do fado: eu gostava de ter

medo de morrer por querer viver um pouco

mais. Por amor à vida.

Desde quando tem noção de que tem

medo de morrer?

Desde que as minhas fi lhas nasceram.

Ou seja, desde que tem medo de não

viver um pouco mais.

Talvez seja isso. Comecei com o medo de an-

dar de avião justamente nessa altura. Agora

também tenho pouco, por acaso. Gosto de

estar na terra, com os pés assentes na terra.

Mas sempre sonhei voar. Sempre sonhei ser

pára-quedista. Era cega como uma toupeira,

como é que podia ser pára-quedista? [riso]

Era impossível.

Era o prazer da dança, da levitação, do

movimento?

Talvez. O meu sonho era atirar-me do ar. Eu

dava saltos, quando era criança..., se a minha

mãe soubesse que dava saltos daquela altura,

fi caria doente. Saltava dos pontos mais altos.

Muito pequena, com cinco anos.

Já com a ideia de um dia saltar de um

avião?

Nunca tentei. Agora já é tarde. Duas reacções

possíveis: “Que desastre.” Ou então dizer:

“É assim.” Ou ainda: “Se calhar, eu nunca

quis saltar.”

Se tivesse de facto querido, teria

saltado mesmo.

Não acha? Mas eu via tão mal. Com nove anos,

já via tão mal que não faz ideia.

Medo de cegar, teve?

Agora tenho medo de cegar. Li há poucos

anos uma coisa que não vou esquecer sobre

um homem que cegou quando era pequeni-

no. Estava deitado na cama, acordou e disse:

“Avó, não abriste a janela.” Estava simples-

mente cego. Desde essa criança que tenho

medo de cegar.

Antes disso, não?

Não. Quando ia à igreja com os meus pais,

olhava para as velas e fazia brincadeiras. A luz

crescia, decrescia. Eu achava que tinha um

poder mágico com os olhos, ainda antes de

saber que tinha a miopia. Via muito mal, fi cou

pesado. Pesado, mas fazia parte de mim.

Goethe disse no leito da morte

“mehr Licht, mehr Licht”, “mais luz,

mais luz”. Para já, há a imagem da

luz por oposição à escuridão e ao

apagamento. Por outro, há o desejo

de viver mais um pouco para ver essa

luz. Goethe foi também um encontro

fundamental?

Foi. Não foi directo. (O Jorge comprava os

livros todos ou quase todos. A mim, os livros

vinham-me cair às mãos. Claro que quando

fi z a tese [de doutoramento] sobre Goethe

procurei muita coisa, mas as coisas mais va-

liosas caíram-me todas nas mãos.) Conhecia a

poesia de Goethe, traduzida pelo Paulo Quin-

tela. Tive imensa curiosidade pelo Fausto.

No entanto, só comecei a interessar-me pelo

Goethe através do Lévi-Strauss, que no Fi-

nale de l’Homme Nu traça uma arqueologia

do estruturalismo e aponta textos que foram

importantíssimos para ele. Entre eles, a Me-

tamorfose das Plantas de Goethe.

Que está no coração da sua tese,

intitulada O Pensamento Morfológico de

Goethe.

Decidi estudar melhor Goethe por causa dis-

to, o que é estranho tratando-se de um dou-

toramento em Filosofi a. Tive a sorte de ter

como orientador o Fernando Gil, que com-

preendeu muito bem a minha escolha porque

também tinha interesses profundíssimos nas

questões morfológicas. Escreveu textos ma-

ravilhosos que têm que ver com uma manei-

ra de considerar a realidade a partir de um

princípio de crescimento formal.

Comecemos pelo princípio. Em que

circunstâncias foi aluna de Fernando

Gil?

No primeiro mestrado que houve em Portu-

gal, em Filosofi a, na Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas. Chamava-se pós-gradu-

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 21

à sorte uma tirinha de papel. “Kierkegaard,

Diário de Um Sedutor. Muito bem. Vamos falar

do Diário de um Sedutor.”

Parece um exercício muito livre.

É a liberdade universitária no seu sentido

mais elevado. Nunca mais voltei a encontrar,

nem acho que seja possível encontrar. A ca-

deira chamava-se História da Cultura Portu-

guesa. E era. Em 1969/70.

Estou ainda a pensar no espanto de

ouvir “não sei”. Uma das vezes em que

fui sua aluna, ouvi-a dizer que ia tratar

um texto de um artista basco, Eduardo

Chillida (Escritos), que tinha lido pela

primeira vez há mais de 20 anos. Ouvi-a

dizer que precisou de mais de 20 anos

para estar preparada para o ensinar.

Foi uma amiga que me passou o texto. Achei-

o maravilhoso e não o compreendi.

Como é que são precisos mais de 20

anos para pegar num texto que nos

impressiona? Ainda mais quando temos

a impressão de que os fi lósofos mais

rapidamente chegam a compreender

as coisas indecifráveis, impenetráveis.

Há textos para os quais não estamos

prontos? Há encontros para os quais

não estamos prontos?

Não estamos prontos, mas esperamos um dia

estar prontos. Sabemos que não podemos

largar aquilo. Eu queria perceber o que ele

estava a dizer e não conseguia – “O espaço é

uma matéria rápida. A matéria é um espaço

lento.” Guardei esse texto. Guardo muitas

coisas para melhores dias.

Houve um instantâneo reconhecimento

de que aquilo a perturbava, de que

aquilo era seminal, mas a terra ainda

não estava pronta. É uma boa imagem?

É, completamente. Precisava de me preparar.

Preparar-me era de vez em quando pensar

naquilo sem saber. Chillida impressiona-me

muito. Só vi as esculturas pequenas. Tenho

esperança de ver as de arte pública. Hou-

ve uma exposição na Gulbenkian há muitos

anos, que o Jorge organizou [ Jorge Molder

foi director do CAM]. Até o conheceu pes-

soalmente. Eu não tive essa oportunidade.

Reli o texto e disse: “Tenho de tentar não

o largar. Como o cão não larga o osso.” Fiz

uma conferência a partir daí. E o seminário

Problemas de Arte Contemporânea foi sobre

Chillida e o vento, por causa dele e do fi lme

do Joris Ivens [Uma História do Vento]. O ven-

to tornou-se muito, muito, muito importante

para mim.

Goethe guardava textos para desenvolver

30, 40, 60 anos mais tarde. É muito impres-

sionante. Sobretudo porque é um poeta.

E os “poetas sabem ver na escuridão”,

diz um verso do Choro Bandido de

Chico Buarque.

É verdade, sabem ver na escuridão. E Goethe

é o poeta da circunstância. Os poemas não

nascem do nada. Nascem de uma coisa que

esteve aqui. Acho que não foi por mimese

[que esperei 20 anos para trabalhar Chilli-

da]. Acho que é um género meu – uma coisa

infantil e que na idade jovem fi cou – gostar da

estranheza, fi car apanhada por uma coisa da

qual não estava à espera. Na juventude li duas

ou três obras de Nietzsche, o Nascimento da

Tragédia, o Zaratustra, muito depressa. Ou-

tra coisa infantil. É como comer avidamente.

Lia sem parar e não compreendia nada. E

não desistia. Só voltei a ler verdadeiramen-

te Nietzsche muito tarde. Foi um autor que

não procurei.

A atitude habitual é a da rejeição da

estranheza, a procura do conforto.

A sua atitude desde a infância era a

oposta.

Sabe porquê? Porque era uma criança mui-

to solitária. Até aos cinco anos, não. Depois

pus-me a fazer perguntas muito irritantes

para a minha mãe, as minhas irmãs mais ve-

lhas. “Porque é que a colher se chama co-

lher?” Não encontrava que entre a palavra

“colher” e a colher houvesse uma relação

evidente. Claro que esta pergunta não tem

resposta imediata, a não ser dizer que é uma

convenção – o que não chega para nada. A vi-

da humana é toda convenção. E fi camos com

a batata quente nas mãos. Sempre tive uma

sensibilidade muito grande, talvez por ver

mal, à voz, ao som. Ouço muito bem. Adorava

a voz da minha mãe. A voz das minhas avós,

em particular a voz de uma delas.

Como é que é as descreveria? Estou a

pedir uma descrição delas a partir da

voz.

A voz da minha avó Luzia era a voz da com-

preensão total. Avó materna. A voz da minha

avó Zé era uma voz muito atenta, preocupa-

da, e que tinha qualquer coisa (estou agora a

ver isso...) de infantil. A voz da minha mãe é

uma voz muito bonita. Podia ter uma doçura

enorme. Também podia ser agreste. A minha

mãe era muito bonita e ainda é. E quando era

pequena achava o meu pai o homem mais

bonito do mundo. A voz do meu pai também

era muito bonita. Era uma voz discreta, silen-

ciosa, que não se queria dar a conhecer.

A voz da sua mãe mudou muito com o

passar dos anos?

Não. A voz da minha mãe soa sempre com

graça, sobretudo se está bem-disposta, e está

quase sempre bem-disposta [riso]... Canta-

va muito bem. Cantava canções muito anti-

gas, que eram da juventude dela, dos fi lmes

portugueses. D’ A Canção de Lisboa, sabia-as

todas. Havia uma que a Beatriz Costa can-

ta, sozinha, que é linda, muito nostálgica.

Percebia que a minha mãe fi cava muito co-

movida quando a cantava. Costurava e can-

tava quando costurava. Tem umas mãos de

ouro. O meu pai também tinha umas mãos

de ouro. Duas pessoas com mãos de ouro, e

eu não as tenho.

Tem um gosto particular no vestir. Um

gosto que me parece estar ligado aos

tecidos, às formas...

É instintivo. Em criança, como sempre acon-

tece nas famílias em que há muitas irmãs,

vestia os vestidos das minhas irmãs. Sou a

terceira. Somos quatro raparigas. A minha

irmã mais velha tem mais nove anos do que

eu, a minha irmã segunda tem mais seis e a

minha irmã mais nova tem quase menos dois.

Os vestidos eram lindos de morrer. A minha

mãe sempre teve muito gosto em se vestir.

Inconscientemente, devo imitá-la. Agora.

Enquanto adolescente, não queria que sou-

bessem que eu existia. Vestia-me de maneira

a que ninguém desse por nada.

A que ninguém desse por si.

Eu não queria que soubessem que eu existia,

que era rapariga, coisa nenhuma. As rapari-

gas vestiam saias, usavam pouco calças. Eu

usava saias um pouco envergonhada. Porque

não queria ser ninguém em particular.

Não queria ser rapaz? Era uma rejeição

da feminilidade?

Eu era uma maria-rapaz. Antes de fi car uma

menina solitária, subia às árvores com os ra-

pazes, brincava com rapazes. Solitária e leito-

ra. Era muito atleta, magrinha, um aranhiço

autêntico. Muito leve. A minha mãe também

se tornou levíssima.

Que idade tem a sua mãe agora?

Vai fazer 93 no dia 23 de Novembro. Quando

anda na rua, de costas, parece uma rapariga.

Anda sempre de calças. Quando vai comigo,

como sou muito protectora, quero que me

dê o braço. Mas vai todos os dias sozinha ao

café, muito ligeira.

A juventude é uma espécie de amnésia da infância. Queremos não ter pai nem mãe. Queremos não ter nascido de ninguém. Queremos ter nascido de nós próprios. Sempre pensei que isto tinha que ver com a Filosofia

ação, aliás. A primeira reacção foi de desilu-

são. Mas essa reacção foi-se transformando

em entusiasmo porque os temas que Fernan-

do Gil tratava e a maneira menos cosida de os

tratar abriram perspectivas surpreendentes

das quais não estava à espera. Se bem que

eu tivesse tido, na licenciatura, um professor,

que não era de Filosofi a, que me ensinou o

que era o sábio livre, o Vitorino Nemésio. E

numa cadeira de opção, no quarto ano, fui

aluna do David Mourão Ferreira (professor

admirável, uma das pessoas mais afáveis que

conheci, sem nunca deixar de ser crítico).

Teve a sorte de ter óptimos mestres.

Uma fortuna.

Não tenha dúvida. Também tive no primeiro

ano o Borges de Macedo, outra fi gura ines-

quecível. Era o professor severo, implacável,

um fi sionomista da História; compreendia

tão bem uma época como se a desenhasse

com traços de pena. Lembrei-me da pena

porque ele tinha um ar de poder ter nascido

no século XVIII.

Agora usa-se a palavra “interactividade”

como uma varinha de condão. É feitiçaria

de quarta qualidade. Um puro logro. O estu-

dante está ávido de ouvir. Ouvir o que ainda

não ouviu. E depois, se puder, se for capaz,

dizer: “Tenho uma dúvida.” Às vezes, esta-

mos a receber um choque que vai mudar a

nossa vida e não temos dúvidas. Estamos só

a tentar não soçobrar.

Ainda não estamos preparados para a

dúvida, é isso? Ainda não conseguimos

organizar os efeitos do choque?

Ainda não temos palavras. Só queremos con-

tinuar a ouvir, absorver o mais possível. Para

digerir aquilo, é preciso tempo. A treta da

interactividade, é preciso destruí-la.

O Borges de Macedo: uma vez chamou uma

colega que eu achava muito inteligente e

perguntou-lhe: “Porque é que veio para es-

ta disciplina?” “Foi para ter uma ideia mais

exacta sobre a medida do homem.” Sabe o

que é que ele respondeu? “Mais lhe valia ter

comprado uma fi ta métrica.”

Resposta gelada.

Foi uma grande lição. Porque aquilo era uma

frase feita. Ficámos petrifi cados. A pessoa em

questão fi cou petrifi cada. Mas também não

lhe aconteceu mais nada. Essas petrifi cações

momentâneas, se não se transformavam em

actos de punição, eram treinos para perder

o medo, para enfrentar o outro.

Eram treinos à paulada.

Não à paulada. Mas eram treinos que nos dei-

xavam sem pinga de sangue. Tínhamos 17

anos. Nessa aula podíamos fazer perguntas.

Um colega fez uma pergunta muito longa so-

bre estruturalismo. O Borges de Macedo não

interrompeu e depois respondeu: “Lamento,

mas nunca estudei o estruturalismo.” Alto lá.

Estava ali a passar-se uma coisa a que nunca

pensei assistir.

O professor dizer “não sei”?

Sim.

Isso passou-se antes do 25 de Abril,

quando o professor sabia tudo. Imagino

o espanto.

Era mais espantoso. Mas ainda hoje um pro-

fessor dizer “eu não sei” pode causar surpre-

sa num aluno. Em geral, o professor fi ca com

medo de não saber e disfarça.

O maravilhoso Vitorino Nemésio, que é um

dos poetas mais extraordinários em língua

portuguesa, e que li pela mão do David Mou-

rão Ferreira, tinha programas na televisão –

imagine como era a televisão. Como é que ele

dava as aulas? “Escrevam num papel um tema

do qual gostavam que falasse.” Nós próprios

púnhamos os papéis dentro dos bolsos, que

eram cambados, como os sapatos, porque pu-

nha muitas coisas dentro deles. Depois tirava

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22 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Esse fechamento em relação ao mundo,

de que fala, na adolescência, tinha

consigo uma zanga?

Não, não era uma zanga. Era descobrir que

eu tinha deixado uma zona, um lugar, onde

as distinções não estavam muito bem esta-

belecidas. Éramos todos miúdos e miúdas.

Também brincava com as meninas, mas ado-

rava brincar com os rapazes. Correr, fazer

coisas perigosas. As crianças fazem imensos

exercícios de limites. Eu andava à roda até

cair para o chão. A partir da segunda classe,

comecei a ser uma criança solitária. Odiei

a escola.

Aprendeu a ler na escola ou já sabia?

Não sabia ler. Aprendi na escola. O meu pai

comprava o Cavaleiro Andante [revista de

BD], que eu devorava. Não sabia ler, mas

percebia tudo o que lá estava. Não imagi-

na como são importantes as imagens que vi

quando era pequena. Imagens poderosas,

que me acompanham e alimentam muitas

coisas que escrevo e que digo. Vêm daí, de

eu não saber ler.

Porque é que odiou a escola?

Porque a escola, na primeira classe, era um

lugar de crueldade. Para saber como viviam

as crianças naquele tempo... Era uma escola

ofi cial. Só não tinha fome porque ia almoçar

a casa e a minha mãe me mandava um lan-

chinho. Chovia na escola. A sala de aulas era

gelada. A professora não deixava as crian-

ças ir à casa de banho quando precisavam.

Crianças de seis anos. Só me lembro de uma

colega, Isabel, a fi lha mais velha de Jorge de

Sena. Foi minha colega nesta escola.

Na segunda classe, fui para um colégio fi no

de freiras irlandesas. É melhor nem falarmos

delas... Mas tive uma professora maravilhosa,

a da quarta classe. O que fez com que acabas-

se a escola primária reconciliada.

Nunca se adaptou completamente à

escola?

Nunca. E as minhas fi lhas também não.

É espantoso que mais tarde tenha sido

professora e que a sua vida tenha sido

na escola.

É verdade. Nunca pensei ser professora. [ri-

so] Odiei grande parte das professoras.

Porquê esse ódio? Palavra forte que

repetiu?

Não leve tanto a sério essa palavra. É uma

maneira de dizer, como adorar. Em criança

não podia dizer “adorar” porque só se podia

adorar Deus. Eu achava que a profi ssão de

professora embatia na rebeldia que era eu.

E na liberdade que almejava?

Sim. Reconciliei-me com esta sensação atra-

vés de algumas professoras. Isabel Leonor.

Sem eu ter sido aluna dela, foi quem me ini-

ciou nos segredos da arte. Georgete, profes-

sora de Português. Tenho uma dívida para

com ela. Clara Nunes, professora de História,

um encontro inesperado.

Rebelde e arisca: contra quê e porquê?

Eu não queria que me domassem. Só queria

aprender aquilo que eu queria. Lembro-me

de estar no fi nal de Setembro em casa da

minha avó materna, na rua de Campo de

Ourique onde passavam os eléctricos. Pen-

sar que ia voltar à escola..., fi quei presa de

angústia.

Ao mesmo tempo, o que é que

representou para si aprender a ler?

Não sei o que é que representou. Sei que ler

é aquilo que gosto mais de fazer. Para além

de dançar! [gargalhada] No liceu, andei no

Rainha Dona Leonor. Mudou de nome e pas-

sou a ser Rainha Dona Amélia quando tinha

12 anos. Não gostava de estar sentada na sa-

la de aula, não gostava de responder, não

gostava de dizer o meu nome. Nunca gostei

muito que me perguntassem: “Como é que

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 23

se chama?”, e que eu tivesse de responder,

por obrigação. Adorava que nos tratássemos

por “coisa” ou “coisinha”.

“Ó coisinha?”

Sim. “Ó coisinha, empresta-me a caneta.”

Coisinha era muito afectuoso.

Era uma negação da individualidade,

do nome.

Era uma senha secreta de entendimento. Uma

vez uma disse: “Não me chamo coisinha.”

Pensei: “Que pessoa tão estúpida.” [garga-

lhada] Pensando agora nisso: não há essa ne-

gação. Porque as coisas e as coisinhas eram

todas diferentes. “Coisinha” era nosso.

Era um mundo mágico?

Era.

Uma recordação feliz da infância, que é

que lhe ocorre?

Com quatro anos, já ia ao cinema. A minha

mãe também. O meu pai não. Os meus avós

maternos iam todos os dias ao cinema. Para

mim, a isso chamava-se “uma vida de sonho”.

Mas só ia aos sábados. Tínhamos de levar a

cédula para provar que tínhamos seis anos.

Eu queria ir de qualquer maneira; com quatro

anos, tinha de ir com cédula emprestada. E

a minha mãe achava muito bem.

Via que fi lmes?

Eram fi lmes pensados para crianças. Ou

eram fi lmes que as pessoas pensavam que

as crianças podiam ver. Filmes que não es-

queci, como A Família dos Malucos, que o

Jorge já procurou por todo o lado.

Como é que era o fi lme?

O que me lembro: chegava o pai [a casa]. Era

uma casa cheia de coisas modernas. Carre-

gava-se não sei onde e a porta abria. Como

por milagre, os fi lhos saltavam lá de dentro.

A telefonia não funcionava bem. O [pai] dava

um grande salto no sofá e a telefonia come-

çava a funcionar. Só sei que não sonhei por-

que o Jorge também se lembra deste fi lme.

Também vi fi lmes passados e repassados, nos

quais estava sempre a chover. Pensava para

comigo: “Porque é que no cinema está sem-

pre a chover?”

A sua fi lha Adriana disse-me numa

entrevista que o Jorge pegava nela e

na irmã e as levava a ver fi lmes a preto

e branco. Iam ver Sunset Boulevard de

Billy Wilder e outros fi lmes que não

eram para crianças. Ela falava disso

com grande encantamento.

Viam tudo. As minhas fi lhas sempre adora-

ram cinema.

Quis ser alguma vez actriz ou cineasta?

E artista?

Eu quis ser escultora. Para imitar a Isabel Le-

onor, que também tinha o curso de Escultura.

Até fi z uma pequena peça.

Como é que era?

Era um homem que está preso. Que tem as

mãos presas atrás das costas. Moldei-a em

barro e cozi-a e pintei com tinta preta. Tinha

uns dez centímetros. Não fi z mais nada. Ten-

tei partir pedras sem qualquer saber. Tenho

um grande defeito: não quero aprender atra-

vés de alguém que me diga: “Faz-se assim.”

Queria descobrir. Por isso é que posso espe-

rar 20 anos. Não quero que me digam: “Não

percebes, mas é isto.” É uma machadada em

mim... Não tem nada que ver com orgulho.

Nada, nada, nada. Tem que ver com uma au-

todescoberta que acabava de perder.

Porque é que não foi artista? Seria

expectável que fosse artista.

Talvez, talvez. Escolhi Filosofi a, sabe porquê?

Porque não sabia o que era. Não é que eu

soubesse o que era a arte. Tive um grande

choque com a exposição de 1965 100 Anos

de Arte Francesa (que incluía imensos artis-

tas que não eram franceses, mas a França é

que os acolheu), organizada pela Gulbenkian.

Pela primeira vez, vi arte abstracta. Antes

disso, num museu de arte contemporânea,

que se chama agora do Chiado, exibiu Canto

da Maia. Fiquei imensamente impressionada.

Para uma miúda de 15 anos, aquelas escultu-

ras correspondiam a uma compreensão do

fundo da vida. Tinham uma delicadeza que

essa rapariga não encontrava facilmente.

Foi professora de Estética. Nas aulas,

partia frequentemente de artistas e

poetas que punha em relação com

fi lósofos como Walter Benjamin e Kant.

“Observar”, “olhar” parecem verbos

fundamentais.

Tenho um espírito muito observador, mesmo

quando não dou por isso. Observação dis-

traída. Mas a captar imensa coisa. Além das

coisas que leio, é isso que dá lastro às aulas

e ao que escrevo. Falar é muito importante.

Para uma pessoa que começou a juventude

tão fechada, é estranho que agora goste tan-

to de falar.

Há uma longa metamorfose.

Há. Essa metamorfose aconteceu com as

minhas fi lhas. Comecei a falar quando elas

nasceram. (Tendo conhecido o Jorge, houve

uma mudez que desapareceu. Mas também

havia uma mudez no Jorge que se ligava com

a minha mudez.) Fui professora logo a seguir

à Catarina nascer.

As primeiras experiências de ser professora

no liceu não foram felizes. Fui obrigada a

falar. No segundo ano, já foram felizes. Acho

que foi a minha fi lha ter nascido. E depois a

minha segunda fi lha ter nascido.

A Catarina nasceu em que ano? Tinha

quantos anos?

O que posso dizer é que a Catarina é mais

velha dois anos e meio que a Adriana. [gar-

galhada] Digo que as minhas fi lhas são as es-

trelas da minha vida e é a maior das verda-

des. Tenho um lado muito infantil de viver

noutro mundo. Há uns meses, disse assim:

“Naquele momento, parecia-me mesmo que

estava noutro mundo.” A Adriana perguntou:

“Naquele momento?” [riso] Tenho aprendido

tanto com as minhas fi lhas...

Tendemos a confundir admiração e

amor.

Não faz ideia do que elas me ensinam. Em re-

lação ao que faço, em relação à vida. Eu tenho

um lado inadaptado que nunca venci.

Que foi sendo menos agreste.

Menos reactivo. E mais armado. Tenho apren-

dido a armar-me em relação à vida, em rela-

ção aos outros. Este mundo [com elas] não

é fechado. As minhas fi lhas são as pessoas

mais ligadas à vida em tantos sentidos. Isso

é um grande dom que me foi dado. Porque

eu não sou assim. Só talvez tenha sido assim

nesses anos em que era maria-rapaz. Só então

estava à solta.

Voltemos ao que queria ser. E porquê

a Filosofi a e não a arte quando a

arte seria um caminho evidente de

comunicação com o mundo.

Eu queria era dançar. Os meus pais não me

deixavam aprender a dançar. As bailarinas

tinham má fama. A dança não era uma acti-

vidade que eles gostariam que eu tivesse. Mas

desde pequena eu adorava dançar e cantar.

Este desejo tem que ver com uma imagem do

Cavaleiro Andante. De uma mulher rebelde,

irlandesa, que está vestida com um vestido

comprido e que tem sapatinhos com fi tinhas.

Essa imagem está sempre dentro de mim. A

minha irmã mais velha arranjou uns sapatos

desses. E os sapatos não me serviam.

Aos 15 anos foi aprender.

Muito tarde. E com 17 fi quei doente.

Uma doença nos pulmões. Parece uma

passagem de um livro do século XIX.

É verdade. Chamava-se “primo infecção”

Tenho um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga: “Faz-se assim.” Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos. Não quero que me digam: “Não percebes, mas é isto.” É uma machadada em mim... Não tem nada que ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem que ver com uma autodescoberta que acabava de perder

[tuberculose]. Tive de passar todas as tardes

desse ano deitada na cama, quando vinha da

faculdade, e tinha de tomar uns medicamen-

tos que me fi zeram buracos na língua e na

garganta. Depois fui a um médico, ainda não

tinha casado (casei muito cedo), que me dis-

se: “É um medicamento que está proibido.”

Davam-nos isso nos serviços médico-sociais

da universidade, em grandes saquinhos,

transparentes... Além disso, fi z dezenas de

radiografi as e tomografi as no sanatório D.

Carlos I (actual hospital Pulido Valente). Te-

nho disso uma memória traumática. Depois

os buracos desapareceram, deixei de tomar

os medicamentos.

Nunca pensou escrever um romance?

Ser escritora era um caminho?

Romance, não sei. Posso escrever muito. Mas

a minha escrita pertence a uma zona em que

o rigor do conceito e a musicalidade da língua

conhecem formas várias de fusão.

No fundo, estou sempre a perguntar

porque é que não foi uma artista, como

o Jorge é um artista, a sua fi lha Adriana

é uma artista; a Catarina é cantora

lírica. A Filosofi a não é o mesmo que a

arte ou a poesia.

Não tem nada a ver. A Filosofi a é muito des-

trutiva, mas acho que quase consegui passar

incólume.

A arte é construção?

É, como a escrita. Voltando atrás, só aprendo

o que consigo aprender, o que me deixa ser

livre, o que descubro que me pertence e eu

não sabia. Tudo o que me é adverso, tudo o

que me quer negar não aceito. Só tenho cons-

ciência disto agora que falo consigo. Quer

dizer, às vezes tenho uma grande resistência

que ignoro. Tenho armas que não são as ar-

mas habituais. Não quis estudar certos fi ló-

sofos, ou comecei a estudar e abandonei-os.

Mesmo que os ache excepcionais, não quero

conhecê-los bem.

Uma vez, numa aula, referindo-se a

Heidegger, disse: “Ele não é da minha

família.” Alguns autores e artistas, fala

deles com uma proximidade que se usa

para falar de pessoas da família.

É um bocadinho isso. Da minha família fazem

parte Nietzsche, um mestre tardio. Goethe

é o primeiro. Walter Benjamin vem logo a

seguir, quase ao mesmo tempo. Quando o

comecei a ler, achei que eu era da família

dele, que ele era da minha família. Como a

Hannah Arendt. A Hannah Arendt a fumar no

fi lme [homónimo]... É como eu a imagino. E

pensar é como ela faz.

Como é que é?

Pensar é um acto solitário. Não se está a dizer

nada a ninguém. Está-se deitada na cama ou

sentada a olhar para nada. Isso tem de ser

transmitido de alguma maneira quando se

ensina. Ela é um ser livre. Os medievais di-

ziam uma coisa maravilhosa: diziam que o ar

da cidade torna os homens livres. No campo,

na verdade, eram só corveias [trabalho gra-

tuito que os camponeses deviam prestar ao

senhor feudal]. Claro que na cidade também

havia outras formas de domínio [do senhor

sobre o servo], mas o ar era livre. A univer-

sidade era o lugar da liberdade. Ainda soube

um bocadinho o que era a vida universitária.

Hoje alguns alunos ainda sabem. Alguns pro-

fessores também. Poucos.

E com isto voltamos aos professores

que a marcaram.

Tive um mestre: Oswaldo Market. Provocava

nos alunos uma grande admiração pelo do-

mínio que tinha dos autores que estudava

(quase todos do idealismo alemão e também

gregos). Organizava as aulas com um modelo

policial. Havia um enigma a desvendar, um

crime a resolver. Era assim que eu o via, e o

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24 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

Jorge também. Sentava-se como um profes-

sor alemão. Lia as aulas que tinha escrito. Os

alemães em geral fazem assim. Punha sobre

a mesa sete pacotes de cigarros de marcas

diferentes e fumava deles todos durante a

aula. Coisa que sempre adorei.

Também tenho de falar do padre Cerquei-

ra Gonçalves, uma pessoa muito livre. Per-

guntou-nos qual era o fi lósofo de que mais

gostávamos, logo no segundo ano. A minha

resposta foi Heraclito. “Heraclito?” E olhou-

me com muita atenção. Corrigia as provas,

punha um comentário e devolvia-as. Eu, a

partir de certa altura, na faculdade, devolvia

as provas. Depois percebi que havia regras

sobre isso. A vida universitária tornou-se um

espaço de tacanhez. Descobri cedo que o ex-

cesso de regulamentação é um sintoma de

medo ou angústia. Medo do risco.

A primeira vez que fui sua aluna

ensinou Dante em Filosofi a Medieval

frisando que não se tratava de um texto

fi losófi co mas poético. Isto ocorre-me

na sequência do que disse sobre o risco

e a formatação da universidade hoje em

dia. Como é que chegou a esta escolha?

Dante é uma descoberta muito tardia. Há mui-

tos anos que leio [o poeta Osip] Mandelstam

que escreveu um texto sobre Dante. Li-o e

interroguei-me: “Então e eu nunca li Dante?”

Apareceu uma tradução portuguesa que era

bilingue e com a rima seguindo a regra da ter-

cina do Dante. O primeiro verso rima com o

terceiro da primeira estrofe, o segundo verso

da primeira estrofe rima com o primeiro da

segunda estrofe. Sempre! Catorze mil versos.

Que o Vasco Graça Moura tenha conseguido

fazer isso..., só posso fazer uma saudação

de admiração.

Substituí um colega, que é um grande pro-

fessor de Filosofi a Medieval, num semestre

sabático. Comecei por não me sentir capaz

de o substituir.

Já tinha dado aulas de Filosofi a

Medieval.

Sim, nos primeiros anos em que dei aulas. Au-

las práticas. Lia textos de autores que eu admi-

rava e admirarei até ao fi m dos meus tempos.

De Plotino, dado a importância que o pensa-

mento neoplatónico tem na Filosofi a Medie-

val. De Santo Agostinho. De Santo Anselmo.

Leu Plotino e outros autores no original,

em grego, em latim?

Eu tinha umas lambidelas de latim. Também

tinha aprendido grego no liceu. Até tive 20.

[riso] Mas não sei grego para ler Plotino sem

uma edição bilingue. Voltei ao grego e ao la-

tim na faculdade. Mas aquilo exige muita de-

dicação e eu estava a ler também a Hannah

Arendt e Walter Benjamin, e Wittgenstein

vinha a caminho. Decidi-me a aprofundar o

alemão. Sou como o Rainer Maria Rilke que

queria aprender latim, e à segunda ou ter-

ceira lição desistiu e disse: “Sou como um

homem cheio de fome, que tem um prato su-

culento à frente e não tem colher para comer.

Acham que vai começar a fabricar a colher?

Não, vai engolir a sopa como puder.”

Sabe falar bem alemão?

Não. Mas para ler os autores que eu quero

ler, mesmo a poesia, consigo.

Dante escreve em italiano, e não em

latim, o que é novo. E pede a um

poeta que admira muito, Virgílio,

que o acompanhe no Inferno e no

Purgatório. Virgílio não chega a

entrar no Paraíso. De certa maneira,

quando lhe perguntei pelos encontros

decisivos, estava a perguntar-lhe pelas

pessoas que lhe deram a mão, que a

acompanharam na viagem.

Pessoas que foram guias... Que me salvaram,

em certos momentos, dos perigos... O Nietzs-

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 25

che ensinou-me que há uma coisa que é muito

fácil fazer, que é caluniar as aparências. É um

mestre. Li Wittgenstein quando estava grá-

vida da Catarina, com 22 anos. Li o Caderno

Castanho e o Caderno Azul. Li-os inteirinhos

sem saber nada de Wittgenstein. [em surdina]

E também não percebi nada. Mas não parava

de ler. Queria perceber, por isso é que conti-

nuava. Só recomecei com Wittgenstein nos

anos 90. Pela primeira vez li o Tratactus. Foi

um choque sem igual. O Dante foi uma des-

coberta das mais extraordinárias. É um ser

muito secreto, nem se conhece a letra dele.

Nunca conheceu a mãe. Impressionou-me

também que se interessasse tanto por polí-

tica, chegando a governar Florença. Desde

criança que conhece os exílios, as matanças

entre famílias, o sangue a correr na rua. Ele

próprio foi proscrito, nunca mais regressou

a Florença. Conheceu a cidade humana co-

mo um inferno. Isso aproxima-se tanto da

nossa vida...

E Dante é do século XIII.

Agora parece tudo fi ltrado. [O fi lósofo Gior-

gio] Colli diz que pomos uma máscara na vio-

lência. O artista é aquele que tira a máscara.

Mais vale a violência nua do que a máscara

que converte a violência em muitos progra-

mas. Como diz Santo Agostinho, o abismo

existe em todos os corações. O abismo chama

por muita coisa, mesmo nos corações bons.

Chama pela crueldade, pela vergonha que

estamos a infl igir aos outros e que Nietzsche

diz que é o pior que podemos fazer.

Kafka também diz que a vergonha é o

pior dos sentimentos.

É. Infl igir aos outros esse sentimento é im-

perdoável. Não tenho nada a ideia do perdão

sem limites e acho que há uma distinção en-

tre bem e mal. Temos de procurá-la todos

os dias. Aí sou arendtiana. A faculdade de

julgar à maneira kantiana é a grande força da

nossa existência pensante. Kant foi um autor

decisivo desde sempre. Nas minhas aulas, e

até às últimas, era difícil não o referir. O meu

próximo livro chama-se As Nuvens e o Vaso

Sagrado — Estudos sobre Kant e Goethe.

Surpreendeu-me também a liberdade de

Dante. Que um cristão como ele tenha posto

o Siger de Brabante [fi lósofo medieval] no

Paraíso... deve ter sido uma das razões por

que passagens da Divina Comédia estiveram

no Índex. Era um averroísta, contrário aos

ensinamentos da Igreja católica. Lembra-se

do princípio da Divina Comédia?

Lembro-me de Dante perdido na selva escura, sim.

“No meio do caminho da minha vida, senti-

me perdido numa selva escura.” Dante ama o

sexo. É claro como água. É atacado do pecado

da luxúria. E quando está diante de Beatriz

pela primeira vez é como um menino enver-

gonhado diante da mãe. Não ousa olhar para

ela. E quer voltar à Terra. Isto é tudo tão for-

te, tão poderoso...

Aceitei substituir o meu colega [em Filoso-

fi a Medieval] com a condição de trabalhar a

Divina Comédia. Foi um privilégio para mim.

E foi um privilégio saber que os meus alunos

leram Dante em italiano. As provas só tinham

os versos em italiano (que me perdoe o Vasco

Graça Moura).

Quem foi o seu Virgílio? Já falámos de

imensas pessoas que a tocaram.

Ah, não sei. Não sei escolher. Alguns esta-

rão em primeiro lugar, mas não sei o nome

do primeiro dos primeiros. Também lhe di-

go que sou muito rebelde. [riso] Sou como

uma criança que não quer obedecer — à sua

pergunta.

A sua maior insegurança foi sempre

qual?

Dar-me a conhecer.

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26 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

RELATO DE UM JUNKIE

Diz que tem “um Ferrari nas veias”. Consumiu e trafi cou

mesmo quando estava preso. A sua história também é a história das drogas em Portugal — dentro

e fora das cadeias. Fomos fi éis à sua forma de se expressar,

mesmo quando utiliza palavrões

ANA CRISTINA PEREIRA TEXTO JOÃO FAZENDA ILUSTRAÇÃO

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 27

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28 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

A cela era demasiado pequena

para o convívio de tantos chei-

ros. Cheirava a suor, a vómito,

a urina. Tóino contorcia-se no

colchão humedecido pelo que

o seu corpo expulsava. Doía-lhe

tudo e, como tudo lhe doía, ge-

mia. Doía-lhe tudo e, como tudo

lhe doía, gritou:

— Seu fi lho da puta! Hás-de ser

sempre o mesmo morcão!

Ao ouvi-lo, o guarda precipitou-se para o

olho-de-boi da porta:

— Estás a falar para quem?!

— Para mim, caralho!

O guarda virou-lhe as costas. E a voz, den-

tro da cabeça de Tóino, voltou a atacá-lo:

— Esta conversinha já devia ter acontecido

há muito tempo! Agora é tarde! Já desgra-

çaste tudo!

Estava no “manco”, a prisão dentro da

prisão, o lugar pensado para quem comete

grave ofensa dentro da prisão. A vida inteira

passava-lhe à frente, como se naquela divi-

são fedorenta um fi lme fosse projectado. Não

desaparecia nem quando fechava os olhos

com força.

Metera-se cedo naquilo. Procurava anfe-

taminas na farmácia ou na rua. Comprava-

as em forma de comprimidos ou cápsulas, a

500 escudos a caixa, e injectava-as nas veias

dos braços. Pupilas dilatadas, calor. Não se

calava. Quando o efeito se extinguia: apatia,

nervosismo, fadiga.

Era o mais novo de seis fi lhos de uma do-

méstica e de um operário da indústria da con-

serva. Cresceu numa casa de pedra, virada

para uma rua calcetada, que desemboca no

largo da Igreja de Santa Cruz do Bispo, em

Matosinhos. A família mudara-se para ali nos

anos 1950. Ocupava o primeiro andar inteiro

e as traseiras do rés-do-chão — um tio ocu-

pava a frente.

Ia nos 16 anos. Portugal acabara de sair da

ditadura. Embalado pela sensação de liber-

dade, experimentava tudo. A folha de can-

nabis popularizava-se graças aos retornados

do Ultramar. Tóino preferia haxixe, a resina

seca extraída do tricoma, das fl ores e das in-

fl orescências da planta, mas não abandonava

anfetaminas como o Preludim, na rua conhe-

cido por “prelo”.

— Cada vez precisavas de mais drogas! Cada

vez gastavas mais dinheiro em drogas, seu

fi lho da puta!

Fora montador de móveis e candeeiros

numa loja da especialidade. Perdera o lu-

gar. Desde então, saltava de emprego pa-

ra desemprego, de desemprego para em-

prego, de emprego para desemprego. Ora

sentia-se mal e não aparecia. Ora sentia-se

mal e desaparecia. Ora era despedido. Ora

despedia-se.

— Podias ser um senhor e não és!

O Estabelecimento Prisional do

Porto tem a forma de uma espi-

nha. Engloba quatro pavilhões

celulares, paralelos, com re-

creio próprio; a uni-los, um

corredor perpendicular, que

também dá para os serviços si-

tuados do lado esquerdo: uni-

dade de saúde, unidade livre de

drogas, salas de trabalho e estu-

do. As ofi cinas fi cam à direita, lá atrás.

Tóino trabalhava como vidraceiro. Uma

manhã, estava absorto, a cortar vidros trans-

parentes — era só riscar o vidro com um corta-

dor de roda de aço frio e pressionar no verso

—, quando ouviu chamar pelo seu número.

Ele, o recluso 657, tinha de se dirigir à se-

cretaria.

As ofi cinas sucediam-se umas às outras,

numa mistura de barulhos e pós: carpintaria,

serralharia civil, mecânica, artes e ofícios,

electricidade, padaria, tipografi a, encader-

nação. Era forçoso passar por um detector

de metais, não fosse alguém roubar ferra-

mentas e usá-las, por exemplo, para fazer

buracos nas paredes das celas e neles escon-

der produto.

A máquina apitou. O guarda tratou de re-

vistar Tóino, que naquele momento — e só

naquele momento — se apercebeu do seu

erro. Tinha 28 doses de heroína nos bolsos

das calças.

— Ei! Não me tires essa merda!

Não podia ser pior. Desatinava com aquele

guarda. E ele sabia-se olhado de lado por ser

Testemunha de Jeová.

— Podias perdoar essa merda!

— Só se mudares para a minha religião é

que te perdoo.

Não abriu a boca. Nem sabia quem trouxera

aquilo para a cadeia e em que moldes: saber

de mais só traz encrenca. O trafi cante-patrão

passava-lhe produto, prontinho, e ele passa-

va-o a outros reclusos, que o passavam a ou-

tros. Por cada dez pacotes, ganhava dois.

O dono evitava expor-se. Os donos evitam

sempre expor-se. Recorrem a outros reclu-

sos que usam o chão, o televisor, o rádio, a

sanita, o corpo, o que for, para esconder a

droga. Tóino conhecia quem a introduzisse

no ânus e quem a escondesse nos balneários,

nas cozinhas, nos gabinetes dos guardas —

ele servia-se da ofi cina. E agora estava ali, já

sem nada no estômago para vomitar, só um

ácido biliar que lhe deixava um gosto horrí-

vel na boca.

Como se esquecera da droga — da sua pre-

ciosa droga — nos bolsos? Perderia o trabalho

por causa daquilo?

O seu trabalho era uma espécie de passa-

porte para a prisão inteira. Andar pela prisão

inteira tinha sabor a liberdade, embora nunca

conseguisse ver mais do que umas dezenas de

metros, já que a cada instante o espaço prisio-

nal se interrompe com muros ou grades.

Há muitos vidros partidos na prisão. Po-

dem exprimir uma revolta (pela falta de

uma visita, a recusa de uma saída precária,

a discussão com um guarda ou com um co-

lega) ou servir uma estratégia (um homem

tem um credor à perna, parte um vidro à

vista dos guardas e sujeita-se a isolamento

disciplinar, sempre ganha algum tempo para

pagar a dívida).

Uma vez, conta um guarda, um preso par-

tiu as lâmpadas de halogéneo de um corre-

dor inteiro. Pegou no cabo de uma vassoura

e com a escova de fi bra rija despedaçou as

lâmpadas de uma ponta à outra. Traz-traz-

traz. Num abrir e fechar de olhos, parecia

que a noite tinha caído ali dentro.

Sobram agiotas intramuros. As dívidas

saldam-se com alimentos, tabaco, roupa,

calçado, relógios ou outros bens ou servi-

ços, o que inclui sexo, limpeza de celas,

participar no negócio das drogas. Uns as-

sumem o papel de cobradores. Alguém tem

de pagar a droga, nem precisa de ser ali.

Um familiar pode entregar o dinheiro num

sítio qualquer.

Quem não paga arrisca-se a levar uma va-

lente tareia. Alguns devedores pedem para fi -

car fechados. Implorando mudança de ala ou

de estabelecimento prisional, já houve quem

pegasse fogo ao colchão, atestam os trabalhos

de investigação de Nuno Costa Moreira (ver

Suicídios nas Prisões, Legis Editora, 2010).

Tóino deu com os costados na cela disci-

plinar: dez dias.

— Foda-se! Não hei-de ser sempre o mesmo

morcão!

No início da ressaca, a dor não é

dor. É como fazer uma longuís-

sima viagem de moto. Depois de

300 quilómetros, as mãos recla-

mam vida própria. O motociclista

já nem sabe até que ponto pode

confi ar nelas. Sente cãibras. Só

lhe apetece tirar as mãos do vo-

lante. Esticar os músculos é des-

carregar.

Talvez o problema tenha sido não aceitar

a ressaca como parte da experiência de con-

sumo. Só pensava em calar a voz.

Tóino esfregava a cara. Tóino esfregava a

cabeça. A cara já estava vermelha de tanta

esfrega, a cabeça já ardia de tanta esfrega. A

voz não se calava.

— Filho reles!

O pai trabalhara na conserveira Adão Po-

lónia & Companhia Limitada, na Avenida

Menéres, em Matosinhos. Orgulhava-se do

patrão, que estivera emigrado nos Estados

Unidos e comprara a fábrica em 1941. Só que

a empresa não resistiu à crise que se abateu

sobre o sector: fechou nos anos 1960. O pai

passou para a Conservas Alfa, Limitada, na

Rua de Santo Amaro.

A indústria de conserva de peixe com mo-

lhos fi xara-se no concelho no fi nal do século

XIX: a primeira fora a Lopes, Coelho Dias &

Companhia Limitada, em 1899. Das 54 unida-

des fabris, já só um punhado sobrevive, mas

nalguns dos que ali viviam resiste ainda a me-

mória dos silvos agudos que, havendo peixe,

chamavam os operários para as fábricas.

Ao soar o silvo, o pai pedalava, veloz. Ape-

sar de só saber assinar o nome, orgulhava-se

da educação dispensada aos fi lhos. E a mãe

esforçava-se para criá-los, tratar da casa e da

horta. Ali, todos iam à missa, ao fi m da rua,

e ninguém comia enquanto alguém faltasse

em torno da mesa.

Muito pensou Tóino neles na cela disci-

plinar.

— Dei-lhes os piores momentos da vida

deles…

O fumo acinzentara as paredes da cela.

Alguns presos metem os haveres numa saca

antes de pegar fogo ao colchão, saem mal os

guardas destrancam as portas, mas há notí-

cia de morte por asfi xia. O “manco” desata

angústia. Na parede, junto à cama, sangue

seco segurava cabelos fi nos.

Nem queria pensar nos dias que ainda teria

de suportar. Nada tinha para se distrair. E a

voz não se calava. A voz não se cansava.

— Filho insurrecto!

Às vezes, o pai pedia-lhe:

— Não te metas nisso, sabes que isso é um

problema sério.

Às vezes, a mãe implorava-lhe:

— Larga essa porcaria!

Prometia-lhes que sim. Sempre foi assim.

Sempre lhes prometeu que faria o que que-

riam e sempre fez o que quis.

Deixaram de confi ar nele. Roubava o di-

nheiro que encontrava. As ferramentas guar-

dadas nas traseiras desapareciam uma a uma,

como se na arrecadação houvesse um bura-

co invisível. Num dia, evaporou-se o colar

de ouro da mãe. Noutro, o vale de reforma

do pai.

O pai expulsou-o umas vezes de casa sem

deixar de lhe abrir a porta mal reaparecia: se

tardasse, a mãe procurava-o, consumida de

preocupação, até o encontrar. Nem saberia

dizer quantas vezes esgotou a paciência de-

les. Consola-o saber que nunca lhes bateu.

Essa ofensa suprema nunca.

— Tudo menos isso! Tudo…

Os cinco irmãos cedo saíram de casa. Com

os pais, só tinham fi cado Tóino e a sobrinha

mais velha. O quarto dele era em frente ao

quarto dela: incendiaram-se sem se protege-

rem. Ele ia nos 16 anos, ela nos 15 — nunca al-

gum deles ouvira falar em contraceptivos.

Já havia pílula. Entrara em Portugal em

1962 pelas mãos da farmacêutica Schering

Lusitana. Só naquele ano — 1974 — seria apro-

vada como anticoncepcional. Poucos a co-

nheciam. E que médico a receitaria a uma

miúda de 15 anos?

Ele dispôs-se a casar-se com ela pela Igreja

católica. O padre da paróquia anuiu: havia

que salvar a honra da moça. Não o faria sem

autorização especial do bispo do Porto. Ora,

Dom António Ferreira Gomes não era fi gura

estranha. A sua estância de repouso fi cava a

uns minutos de casa. Zé, o irmão mais velho,

ainda se lembra de lhe ir pedir a autorização

e de a trazer.

O casamento durou quatro anos.

Tiveram duas fi lhas. A mais ve-

lha morreu aos 12 anos com he-

patite. Zé foi buscar o corpo ao

Porto, ao Hospital de São João.

Trouxe-o nos braços: o agente

funerário aguardava-o em casa

para tirar as medidas e fazer o

caixão. De Tóino nem sinal.

Nos primeiros tempos, não

existiam os chamados “bairros de uso”. Tói-

no ia comprar droga à Baixa do Porto. Por

causa dela, amontoava-se rapaziada junto

ao Embaixador, grande café de dois andares,

na esquina da Rua de Sampaio Bruno com a

Avenida dos Aliados.

Punha-se à conversa com os amigos jun-

to à Igreja de Santa Cruz do Bispo, na pra-

ça mais religiosa da freguesia: nos séculos

XVI e XVII, com a estância de repouso dos

bispos, edifi caram-se algumas ermidas. De

súbito, aparecia a polícia e dispersava-os à

bastonada.

Consumir drogas era crime. Só em 2001, a

aquisição, a posse e o consumo deixariam de

o ser. Tóino vendia algum haxixe e desatara a

consumir heroína. “Tudo o que ganhava era

para consumir”, diz ele. “Havia dias em que

consumia seis, havia dias em que consumia

dois pacotes.”

Nem imaginava os efeitos. Ninguém, na-

quela época, os imaginava. Eram jovens,

saudáveis, cheios de futuro. Ninguém lhes

serviu de espelho ao arrumar carros nas ruas.

Espelhos haveriam de ser eles. A heroína, a

“castanha”, começara a circular. Tóino qui-

sera experimentá-la.

Recorria a sanitários públicos, casas de

amigos ou ruas escuras e sem gente. Mais

queria injectá-la do que fumá-la. O fl ash era

maior e mais rápido. Sentia-se solto. Fala nis-

so como se isso fosse um orgasmo de corpo

inteiro. Perdia a sensação de dor. Pupilas con-

traídas, só arengava frases feitas:

— Ei, ouve lá, estou com uma moca do ca-

ralho!

Depois, chegou a cocaína, a “branca”. E

a “branca” é um estalo. Tóino sentia-se o

maior na rua que na sua infância era só uma

dúzia de casas de pedra para um lado e uma

dúzia de casas de pedra para outro e que

agora é uma sucessão de casas rebocadas

que acolhem muitos rostos que ele já nem

conhece.

Aumentava, a olhos vistos, o número de

presos por droga. Quase insignifi cante até

1978, tal realidade ganhou expressividade

a partir de 1993, ano em que o país decidiu

colocar o tráfi co ao nível do terrorismo — o

que autorizava quem fazia investigação crimi-

nal a recorrer a meios de obtenção de prova

excepcionais e tornava a prisão preventiva

regra.

Refl exo do medo que então se vivia: em

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no dia-a-dia. A desproporção era excessiva.

Chegaram a estar três a guardar 300 — dois

à hora do almoço. Só lá iam, em grupo, abrir

e fechar celas. Quando vinha um guarda ins-

truendo, avisavam-no logo para andar sob os

parapeitos. Mesmo assim, não se livraram de

levar com cuspidelas e lixos atirados pelos

presos.

Os presos, esses, andavam à vontade. “Se

entrasse um chibo, era logo atacado”, afi ança

Tóino. “Uma vez, vi um gajo a entrar e a sair

quase morto. Deram-lhe com um ferro na ca-

beça. Em Custóias, havia ferros, facas, tudo:

só não havia pistolas. Então! O gajo chibou!

A cadeia é um martírio para chibos e viola-

dores.”

Vigora o chamado “código dos presos”, um

regulamento não escrito transmitido de uns

para os outros. Regras de ouro: conservar a

boca fechada, não demonstrar fraqueza, não

se meter na vida dos outros presos, não de-

nunciá-los, manter alguma hostilidade para

com os guardas. Se um recluso se põe a falar

com um guarda, há logo alguém que grita:

“Chiboooooooo!”

Na primeira vez que o atiraram

para trás das grades, Tóino não

tinha dinheiro para investir no

tráfi co. Se tivesse, arriscaria.

A mãe trazia-lhe dinheiro e ta-

baco. E ele ia logo comprar hero-

ína. Para a avolumar, os trafi can-

tes usam substâncias de aspecto

idêntico, como talco, glucose,

barbitúricos. Atrás das grades,

pior. Até por isso, alguns reclusos arriscam-se

a comprá-la nas saídas curtas e outros per-

suadem ou coagem familiares a entregar-lha

nas visitas ou nas encomendas.

Tóino pedia dinheiro até à companheira,

Manuela, com quem partilhou mais de dez

anos da sua vida. E, sem ele a trazer algum

dinheiro, ela afl igia-se para alimentar o fi -

lho dela e a fi lha dele. Custava-lhe arranjar

trabalho. Estava convencida de que as pes-

soas não gostavam de olhar para ela. Sofrera

uma violenta queimadura — tinha cicatrizes

impressionáveis no pescoço e nos braços e

faltavam-lhe três dedos na mão direita.

Os irmãos não apareceram na prisão. Es-

tavam zangados. “Está preso, deixa-o estar”,

dizia um. “Não merece que o vá visitar”, dizia

outro. “Tem de aprender, tem de sentir que

tem de mudar.” Isso é, pelo menos, o que re-

corda Zé, o irmão mais velho, das conversas

tidas em família.

O pai também não apareceu. O pai gostava

de pegar na navalha e de desfazer a barba

sem vergonha de se olhar ao espelho. Não

gostava de ter o nome da família nas bocas

do mundo e o fi lho mais novo pusera o nome

da família nas bocas do mundo.

Não conseguia engolir a afronta, o pai. As

suas mãos provavam que sempre fora um

homem de trabalho. Trabalhou até aos 78

anos. Perdera as pontas de três dedos da mão

esquerda na prensa da máquina de moldar

latas de conserva de sardinhas ou de atum.

Tóino estava longe das suas vistas, arruma-

do numa cela malcheirosa. Para não dormir

com o cheiro a excrementos, alguns presos

davam novo uso aos sacos de plástico trazidos

pelas famílias com comida: defecavam den-

tro deles e atiravam-nos pela janela fora. De

manhã, os sacos salpicavam o recreio.

O novo director da prisão estava decidi-

do a acabar com aquilo. Equipas formadas

por reclusos, supervisionadas por guardas,

tinham começado pelo pavilhão A, que fora

dividido a meio com um tabique: num lado,

os reclusos engalfi nhavam-se; no outro, de-

corriam os trabalhos.

1993, o tráfi co de droga dava quatro a 12 anos

de prisão, enquanto o homicídio consumado

dava oito a 16; em 1996, o tráfi co passou a

pesar cinco anos e meio a 16 anos. Era como

se um trafi cante fosse um homicida.

A estatística ofi cial não podia ser mais ex-

plícita. No fi nal da década de 1990, os crimes

relacionados com drogas tornaram-se a prin-

cipal razão de pena de prisão efectiva. Só em

2003 os crimes contra o património voltaram

a assumir a liderança. No fi nal de 2012, ha-

via nas prisões 2252 condenados por crimes

relativos a estupefacientes num universo de

10.953 sentenciados.

Um par de sapatilhas. Sim, a pri-

meira coisa que Tóino furtou

foi um par de sapatilhas numa

loja. Já nem se recorda bem

desse episódio. Um armazém.

Sim, o primeiro furto memorá-

vel foi a um armazém repleto

de material pronto a exportar

— vestuário e calçado. Gastava

100 contos num ápice. E como

havia de juntar tanto dinheiro? “Esvaziava

lojas como quem esvazia um carrinho de su-

permercado”, responde. “Um gajo ia à caixa.

Se tinha dinheiro, tinha. Se não tinha, ‘ia às

compras’. Havia sempre quem fi casse com

as ‘compras’.”

Não era por isso que estava ali. Não era.

Porto, 11 de Junho de 2002: imagine um

Renault Clio estacionado numa rua mal ilu-

minada, junto a um prédio de qualidade du-

vidosa; Tóino a olhar em volta, a tirar um

arame fi ninho do bolso do casaco, a abrir

a porta, a entrar, a sentar-se, a fazer uma

ligação directa.

O carro pertencia a um electricista do

Bairro do Viso, situado rente à Estrada da

Circunvalação. Tóino até esfregou as mãos

ao ver o que estava lá dentro: uma mala de

ferramentas, um compressor, inúmeras telas

e interruptores. Acelerou, contente, até casa

do receptador.

Devia ter suspeitado. A mãe sempre lhe

dissera: “Quando a esmola é muita, o pobre

desconfi a.” Dias depois, o trânsito forçou-o a

parar na Rua das Condominhas — mesmo nas

traseiras do Bairro do Aleixo. Dois polícias

reconheceram a matrícula, aproximaram-se

a pé, mostram a carteira profi ssional:

— Polícia!

Tóino fechou o vidro, carregou no acele-

rador, bateu no carro que o antecedia. Fez

marcha-atrás, bateu no carro que o sucedia.

Tornou a meter primeira. Subiu o passeio. Uns

50 metros adiante, um poste de iluminação

pública impediu-o de continuar. Olhou para o

retrovisor, viu os polícias, ouviu a ordem:

— Parem!

Fez marcha-atrás. Dois polícias deram um

salto. Um terceiro bateu com o bastão no vi-

dro e imobilizou Tóino. No passeio, caminha-

vam sete pessoas — teriam sido atropeladas

se não se tivessem desviado a tempo. Houve

feridos. Dois foram parar às urgências do

Hospital de Santo António: um agente sofreu

escoriações nas pernas; outro, traumatismos

num braço.

A cena foi dessa forma descrita pelos polí-

cias no julgamento que decorreu nas Varas

Criminais do Porto. Está exposto no proces-

so judicial. Longe do banco dos réus, Tóino

não se faz de desentendido a contar aquele

episódio. Amplia-o até, como se se orgulhas-

se dele.

“‘Fiz’ uma residência em Aveiro”, relata.

“O carro era furtado. Eu furtei para aí 50

carros. Ai, Jesus! Para carregar o que furtava

nas casas, tinha de ser assim. Fui à Gafanha

da Nazaré ter com uma miúda que eu tinha

engatado. Uma miúda de 27 anitos, muito

gira! Andava com essa miúda há um ano e

tal. E fomos lá. Ela queria ir lá pôr fl ores na

campa do pai dela. Enquanto ela andava nis-

so, eu dei lá uma volta e decidi ‘fazer’ uma

residência. Tivemos dois dias em Aveiro. No

último dia, ‘fi z’ a residência. Vínhamos de

carro e resolvi ir ao Aleixo comprar um boca-

do de ‘branca’ e um bocado de ‘castanha’. O

carro tinha sido furtado no Porto. Foi através

do carro que me descobriram. Fizeram uma

perseguição policial. Foi à saída do Aleixo.

Sabes, aquela igreja ali? Abalroei para aí 20

carros. Estava muito trânsito e só havia uma

vielazinha para passar com o carro e eu pen-

sei: ‘É para ali que vou.’ Imagina os carros

que não abalroei por ali acima!”

Fechado 23 horas por dia, não se orgulhava

das suas proezas. Remoía-as.

Só tinha uma hora para esticar as pernas,

telefonar. As duas celas disciplinares fi cam

no primeiro andar do Pavilhão D. Descia pe-

las escadas até ao rés-do-chão e seguia, pelo

corredor com gradões amarelos e intenso

cheiro a lixívia, até ao recreio, pequeno, de

20 metros por 20 metros. Tentava aguentar

o máximo de tempo em pé, a respirar pelo

nariz, de rosto virado para o céu.

As horas passavam demasiado devagar no

“manco”. De dia, entrava luz natural. De noi-

te, havia apenas a luz fraca que o olho-de-boi

deixava entrar. Ali dentro, apenas uma cama,

uma sanita à caçador, um lavatório em inox,

um duche, Tóino e a sua memória torcida.

Não, aquela não era a primeira

estadia de Tóino no Estabeleci-

mento Prisional do Porto — as-

sente na freguesia de Custóias,

a meia dúzia de quilómetros de

casa. A 2 de Setembro de 1995,

entrara numa cela que já acolhia

dois toxicodependentes suspei-

tos de furto.

Em 1995, Custóias rebenta-

va pelas costuras. Nessa altura, chegaram

a acomodar-se mais de 1300 reclusos onde

deviam estar 500, a maior parte toxicode-

pendentes. Em cada cela individual, três; em

cada camarata, até 13, em vez de sete ou oito

regulamentares.

Era a mais sobrelotada prisão de um país

que investia no aumento de vagas sem travar

o crescimento da população prisional. Enche-

ra-se de pequenos trafi cantes, consumidores

trafi cantes e autores de crimes relacionados

com a necessidade de arranjar dinheiro para

as drogas.

Hernâni Vieira tornara-se director em

Maio e um mês depois lançara um “plano

de emergência” destinado a dotar as celas

de luz, água corrente e sanitas. E era com

a sobrelotação que então, em entrevista ao

Semanário, justifi cava “epifenómenos como

o aumento de droga dentro das prisões”.

Naqueles primeiros tempos — haveria de

contar ao PÚBLICO em 2007 —, Hernâni Viei-

ra dormia “muito mal”: “Tinha de ir lá dentro

todos os dias acalmar as desavenças.” Tan-

tas vezes saltava da cama de madrugada e ia

a correr para a prisão. Alguém incendiara

o colchão, alguém tentara enforcar-se com

um lençol…

Intramuros circulavam drogas de efeitos

diversos, como nos “bairros de uso”, que en-

tretanto tinham aparecido, sobretudo, nas

áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e em

Setúbal. E, havendo uma rusga, até pela jane-

la fora as atiravam. Os guardas começavam a

vasculhar num lado e a palavra propagava-se

até ao outro, lesta — camarata a camarata,

cela a cela.

Os guardas nem sequer andavam pelas alas

Depois, chegou a cocaína, a “branca”. E a “branca” é um estalo. Tóino sentia--se o maior na rua, que na sua infância era só uma dúzia de casas de pedra para um lado e uma dúzia de casas de pedra para outro e que agora é uma sucessão de casas rebocadas que acolhem muitos rostos que ele já nem conhece

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A imprensa registou a mudança. A 16 de

Setembro de 1996, o Jornal de Notícias mos-

trou o antes e o depois: numa fotografi a, um

beliche e uma cama rasa, paredes descas-

cadas, armários abertos; na outra, além das

camas, sanita, lavatório, espelho, armários-

prateleira, cabides, botão de chamada com

sinal luminoso e sonoro, fi cha eléctrica para

rádio e TV.

Alheio ao decorrer dos trabalhos, Tóino

vivia a intermitência da ressaca. Sentia o cor-

rimento no nariz, a irritação crescente. Sentia

os calafrios, os espirros. Sentia a dor, a náu-

sea. Até que uma ideia ganhou força: prolon-

gar aquela agonia mais uns dias era calá-la,

quem sabe se para sempre, mas calá-la já era

prolongá-la, quem sabe se para sempre.

Decidiu parar. Até dava cabeçadas na pare-

de. Os companheiros chegavam-lhe o balde

higiénico, a ver se não vomitava na cama,

no chão, onde calhasse. Não havia dentro

daquela cela quem não soubesse o que era

aquilo. Tentava respirar fundo, pelo nariz,

para que o estômago parasse de ter espas-

mos, mas vomitava como um rapazinho num

barco embalado pela tempestade.

Não era ainda fácil articular respostas. A

medicação de foro psiquiátrico, contudo, já

circulava na prisão. Era um método de ge-

rir confl itos, de reduzir agressividade num

lugar sobrelotado, infl amado pelas ressacas

dos reclusos, fragilizado pela saturação dos

funcionários, segundo um artigo de Adelino

Vale Ferreira, Margarida Nunes Vicente e Raul

Melo, que integra uma colectânea de textos

publicada pelo Centro das Taipas em 1994.

O pouco que havia em matéria de toxico-

dependência destinava-se, precisamente, a

quem queria libertar-se. Em 1992, nascera

uma comunidade terapêutica no Estabeleci-

mento Prisional de Lisboa e a partir daí alas li-

vres de drogas em diversas prisões do país.

Só em 1997 cadeias e centros de atendi-

mento a toxicodependentes tiveram luz verde

para se organizar e garantir a continuidade

nos tratamentos. Os primeiros programas

de substituição opiácea chegariam aos es-

tabelecimentos prisionais de Lisboa, Porto

e Tires em 1999. A história está contada no

livro O Que a Droga Fez à Prisão, de Luís Fer-

nandes e Maria do Rosário Silva, editado pelo

Instituto da Droga e da Toxicodependência

(IDT) em 2007.

A sobrelotação desequilibrava a relação

entre oferta e procura de trabalho. Tóino

passava horas no recreio. Quando saiu, a 29

de Fevereiro de 1996, com uma pena sus-

pensa, não consumia há um mês e pouco.

Não era excepção. Grande parte dos que en-

tram a consumir deixa de o fazer, pelo que

se pode ler em Drogas e Prisões: Portugal

2001-2007, coordenado por Anália Cardoso

Torres (IDT).

“Tenho a cabeça todo queimada”, lamenta

Tóino. “Quando dou fé, está tudo igual.”

Ficou “tudo igual”. Tanto fi cou “tudo igual”

que regressou a Custóias. Nem um euro trazia

no bolso, quanto mais dinheiro que se visse

para iniciar um negócio de tráfi co. Sobravam-

lhe, todavia, amizades forjadas fora a mo-

rar dentro. E tinha um extenso currículo de

passador-consumidor.

“Trafi quei quase todas as drogas”, diz. “Ga-

nhei muito dinheiro. Três mil contos que re-

cebi por um acidente de moto? Gastei-os num

mês e meio! Tenho um Ferrari nas veias!”

Custóias melhorara durante a sua ausência.

A sobrelotação persistia, porém. Na unidade

de saúde, fi las para consultas. Na enferma-

ria, aperto. Mais de metade ainda entrava ali

por crimes de droga, dois terços eram consu-

midores, mas a metadona trouxera alguma

tranquilidade. “Já não andam à procura de

droga mal saem das celas”, assegurava então

o director.

As drogas continuavam a entrar, embora

menos.

Os trafi cantes não as transportam: tendem

a usar reclusos insuspeitos, que denunciam

quando lhes dá jeito.

Alguns arriscam trazê-la no regresso de

uma saída precária. Alguns recebem-na via vi-

sitas e encomendas. Acontece estar escondi-

da em cabelo comprido e mudar de dono com

um abraço ou dentro de uma boca fechada e

passar no curto momento de um beijo. Houve

quem tivesse sido apanhado com droga dis-

simulada em cadeiras de rodas, televisores,

rádios, isqueiros, sapatos, pensos higiénicos,

fraldas, iogurtes, bolos, pão…

Com base em suspeitas, revistavam-se visi-

tas, reclusos, celas ou encomendas. Mas só a

partir de 2011, além de passar pelo detector

de metais, as visitas passariam a fi car sujeitas

a palpação de vestuário e cabelo, observação

de boca, inspecção de calçado, e as enco-

mendas semanais a ter até um quilo. À barra

dos tribunais chegam também processos que

remetem para o transporte de reclusos até

sessões judiciais ou trabalho em regime aber-

to — uma ocasião, no Funchal, uma rapariga

foi apanhada a passar haxixe ao namorado

que estava a pintar o tribunal. E processos

que desembocam em embrulhos lançados

por cima dos muros ou no envolvimento de

funcionários.

A estatística fi gura nos relatórios anuais so-

bre a situação do país em matéria de drogas.

As apreensões são quase sempre diminutas.

Na maior parte dos casos, uma ou duas doses

de heroína, uma ou duas de haxixe. Juntando

as prisões do país inteiro, naquele ano, 376

gramas de heroína, 536 gramas de cocaína,

4012 gramas de cannabis, três unidades de

ecstasy.

Aqueles 28 “pacotes” não dariam só dez

dias de “manco”, não senhor. Tóino não se

livraria de uma pena, apesar de aquilo ter

pouco mais de dois gramas. O tráfi co intramu-

ros é agravado. Naquele espaço exíguo, com

aquele ar infestado, com aquela luz ténue,

nem queria pensar nisso.

Saiu carrancudo. E não disfarçou.

Dias duros. Noites duríssimas.

O psiquiatra Carlos Magalhães

atendia na unidade de saúde da

prisão.

— Não durmo. Sempre a pensar

nas mesmas merdas. Toda a noite

acordado — queixou-se.

— Tenha calma, vai dormir —

ter-lhe-á retorquido o médico.

— Não é tanto a pensar no que foi mau. É

mais a pensar no que podia ter sido bom e

não foi; no que eu podia ter feito e não fi z;

no que eu podia ser hoje e não sou por causa

desta merda!

O psiquiatra receitou-lhe comprimidos.

Tóino sentou-se na cela. Sentia-se só, com-

pletamente só.

A mãe, que nunca o abandonara, caíra,

partira o fémur, não recuperara. Não era mu-

lher para fi car parada, numa cama ou num

sofá, apesar dos seus 76 anos. Ter gente a

ocupar-se dela, a cuidá-la, atormentava-a.

Era como se fosse contranatura. Retirara-se

deste mundo.

O pai morrera pouco depois. Estivera a

trabalhar no campo, transpirara e fi cara

com a roupa molhada no corpo. No hospi-

tal diagnosticaram-lhe gripe. Tóino encon-

trara-o de manhã, morto, deitado no chão,

ao lado da cama. Um pulmão rebentara já.

Pneumonia.

A antiga companheira, Manuela, saíra há

Ninguém o “chibou”. E ele continuou na

ofi cina. Pouco a pouco, os outros voltaram a

brincar à sua frente, mas paravam a um gesto

seu. Ele percebia-lhes os cuidados e pensava:

“Têm medo de mim, claro! Quem é que não

tem medo de um gajo que é capaz de cortar

o pescoço a alguém?”

Alegrou-o a falta de consequência. O tem-

po de encarceramento já lhe parecia infin-

do sem isso. Até temia atrofiar os ouvidos

por estar tanto tempo sujeito àquele ruído

imutável, retumbante, feito de abrir e fechar

de portas e gradões. Só de noite o silêncio

se apodera da cadeia. Um silêncio denso,

pesado, entrecortado por gritos vindos de

cela incerta.

Estivera preso seis meses em 1995,

já se disse. E um mês e pouco, a

título preventivo, em 2000, no Es-

tabelecimento Regional de Viana

do Castelo — tentara entrar num

pronto-a-vestir, com um amigo, o

alarme soara e a polícia ia mesmo

a passar. E ali estava de novo.

Não fi cou provado que furtou

o Renault Clio com ferramentas

dentro. As Varas Criminais do Porto conde-

naram-no a 16 meses de prisão por um crime

de receptação dolosa e por um crime de con-

dução sem carta. Só que ele já somava umas

quantas condenações.

A 18 de Junho de 2001, o Tribunal de Matosi-

nhos condenara-o a multa por furto na forma

tentada: passava pouco da meia-noite, entrara

numa casa e fora surpreendido pelo casal que

lá morava. A 26 de Fevereiro de 2002, o mes-

mo tribunal condenara-o por conduzir sem

carta: 46 dias de prisão. E a 17 de Dezembro

por furto simples: sete meses de prisão.

A procissão ia no adro. Ainda apanhou

cinco meses por falso testemunho; 34 por

furto qualifi cado; nove por furto simples e

condução ilegal; 36 por furto qualifi cado;

outros nove por furto qualifi cado, oito por

tráfi co de drogas. O tráfi co dentro da cadeia

rendeu-lhe 28.

A avaliar pelo acórdão, o Tribunal de Exe-

cução de Penas considerou a sua “situação de

consumidor”. A 27 de Maio de 2004, fi xou-lhe

uma pena única de cinco anos e seis meses

de prisão efectiva. Terminaria de a cumprir

a 27 de Maio de 2009. Sairia antes, se andas-

se direito.

Andou “direito”. Seguiu a onda, no fundo.

Os consumos estavam a diminuir dentro das

cadeias. Provam-no os já referidos estudos

coordenados por Anália Torres: entre 2001

e 2007, o consumo de cannabis caiu de 30%

para 29%; o de heroína de 27% para 13%.

Quando saiu, a 27 de Julho de 2007, a sua

morada era uma ruína. E a irmã não o queria

por perto. Tóino refugiou-se numa camioneta

inactiva. Apresentando-se como pintor de

construção civil, serralheiro, electricista.

Reaproximou-se da família. Foi fazendo uns

trabalhitos, inclusive para um sobrinho, que

construía casa, até que o irmão mais velho,

Zé, cedeu: podia fi car num anexo da sua casa,

desde que se livrasse das drogas.

As novas drogas galgavam terreno, muito

associadas às smartshops, mas essas não o

atraíam. Não são feitas a pensar num junkie

que já está nos 50. A heroína e a cocaína, es-

sas, continuavam a chamá-lo. “O corpo não

pede, mas a cabeça…” A cabeça parecia viver

em permanente ressaca.

“Isto é difícil”, lamenta. “É uma coisa que

fi ca sempre. Isto é a última coisa a sair do

cérebro. É preciso ter muita força para não

voltar ao mesmo caminho. Não quero voltar.

Se entrasse por esse caminho agora, era a ru-

ína total… Nem é bom pensar!”

muito de casa e a fi lha que tivera com a pri-

meira mulher, com um nome igual ao da se-

gunda, fora acolhida num lar da Associação

Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Defi -

ciente. Manuela deixara-o e a “miúda gira de

27 anitos”, a que estava com ele quando ele

fora preso, nunca mais dera notícias.

A técnica de Reinserção Social procurou

retaguarda familiar. Ficou-se pela irmã, que

se dizia disposta a apoiá-lo: pagava-lhe os

63 cêntimos de renda, mas nunca o visitava

na prisão. Alegava que não lhe dava jeito:

trabalhava por turnos num hipermercado,

na freguesia vizinha. Apenas uma sobrinha

aparecia de tempos a tempos. Ia por pena.

Só por pena.

Não era só solidão. Era toda uma sensação

de desastre. A magreza e a falta de dentes

cavaram-lhe o rosto. Alto, cabelo muito escu-

ro, cresceu a achar-se o mais bonito da famí-

lia. A sua imagem principiara a deformar-se

nos anos 1980. Viciara-se em anfetaminas.

Viciara-se em heroína. Viciara-se em cocaína.

Iria viciar-se em ansiolíticos?

Tornou ao médico.

— Senhor doutor, não quero mais medi-

cação.

— Não pode interromper o tratamento.

— Senhor doutor, estou a tomar 20 com-

primidos por dia e não durmo! Tripo com

tudo!

— Tenha calma.

À hora certa, traziam-lhe os comprimidos

para tomar. Ele engolia-os. Até que tomou

uma decisão.

— Não quero! A partir de hoje, não quero

mais medicação!

O médico mandou-o chamar.

— Você não pode cortar a medicação assim.

— Não quero mais. Já deixei a droga. Hei-de

deixar esta porcaria.

A noite caía e não trazia sono a Tóino. Ador-

mecia tarde, muito tarde. E dormia pouco,

muito pouco. Tinha os olhos vermelhos, pe-

sados. Tudo o irritava — tudo. Às vezes, per-

guntavam-lhe: “Estás a fi car tolo?”

Pediu para continuar a trabalhar.

Sentia que precisava disso.

Uma ocupação é uma fonte de

equilíbrio. A longo prazo, a inac-

tividade acentua o isolamento. E

isso pode trazer perturbações de

vária ordem, confl itos, até suicí-

dio, explica Rui Abrunhosa Gon-

çalves no livro Delinquência, Cri-

me e Adaptação à Prisão (Quarteto

Editora, 2008).

Mesmo a trabalhar, Tóino pensava em con-

sumir. Por vezes, era como se algo se apode-

rasse dele. Perdia o controlo.

Um dia, estava um grupo de reclusos na

ofi cina, cada qual alheado na sua pequena

tarefa. De repente, um atirou um pequeno

papel. Outros repetiram-lhe o gesto. Um fez

pontaria para Tónio.

— Quem foi o caralho?!

Silêncio.

— Se torno a ver mais um papel no ar, pego

num vidro e corpo o pescoço a um!

O grupo riu-se. A reacção dele era tão exa-

gerada que soava a brincadeira. Um recluso

mais atrevido atirou-lhe outro papel. Tóino

pegou num vidro e lançou-o na sua direcção.

O vidro quase lhe tocou no pescoço. “Foi Deus!

Se lhe tocava, cortava logo! Ficava sem cabe-

ça!” Espantou-se consigo, com a força da res-

saca. “Um gajo nem pensa. Fica alucinado,

tão forte que é. Podia ter matado um gajo!”

O outro fi cou branco como a cal. “Então a ver

aquele disco enorme! Aquela merda parecia

um disco voador! Ora aquilo num pescoço!

Uma lâmina autêntica!”

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A AL

DEIA

DO A

RQUIT

ECTO

Prémio Secil 2012 pela requalifi cação e ampliação de uma escola básica em Lisboa, José Neves acredita na luz e no tempo como ingredientes fundamentais na arquitectura. Alimenta-se de música, de cinema e de frases que o inspiram para pensar cidades abertas

JOANA AMARAL CARDOSO TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA

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A conversa é cadenciada por toques

de campainha, grandes silêncios

ou turbas de gritos e risos numa

escola de Lisboa que muitos re-

conheceriam em todo o país. Por

Portugal, existem cerca de cem

com esta tipologia, construídas

durante o Estado Novo. Muitos

reconheceriam aqui o ambiente

e a geometria dos edifícios anti-

gos, o soalho de madeira nas salas, os corre-

dores longos perfurados por salas de ambos

os lados, as escadas de mármore com degraus

a resvalar nas extremidades por tantos anos

de miúdos a correr por eles abaixo. Mas esta

não é uma escola qualquer. Aqui, estuda-se

dentro de um prémio.

O arquitecto José Neves aponta-nos essas

marcas nas escadas no edifício principal da

Escola Básica do 2.º e 3.º ciclo Francisco de

Arruda, em Alcântara, e afaga os corrimões de

madeira que agora têm pequenas peças metá-

licas para evitar o que durante anos acontecia

— serem escorregas para os alunos. Mas este é

apenas um espaço entre vários nesta escola-

jardim, cheia de percursos, transbordante de

possibilidades. Depois de parecer que voltá-

mos à “nossa” escola, é tudo novo — caminhos,

atalhos, equipamentos, rampas, um edifício

branquinho e rectilíneo com brise soleil (pára-

sol) à la Corbusier, uma biblioteca que cheira

a livros e a madeiras novas, laboratórios com

mesas altas e mobiliário tipifi cado pela Parque

Escolar, grandes janelas cinematográfi cas.

José Neves é um adulto que conhece os can-

tos à casa e que caminha pelos corredores com

a autoridade de quem ali passou muito, muito

tempo — mas não é ali professor, como podiam

supor alguns olhares inquisitivos de alunos

em princípio de ano lectivo. É professor, sim,

mas agora como convidado no ISCTE, depois

de ter leccionado mais de duas décadas na

Faculdade de Arquitectura da Universidade

Técnica de Lisboa, entre outras universidades

portuguesas. Abriu o seu atelier de arquitectu-

ra em Lisboa em 1991, é casado com a pintora

Maria Capelo e tem duas fi lhas.

Mas este espaço é um pouco seu porque foi

ele que projectou a requalifi cação e ampliação

da Francisco de Arruda entre 2008 e 2011. Está

curioso, quando chega com a Revista 2 em ple-

no recreio grande da manhã, para “ver como é

que eles ocupam esta parte”, dirigindo-se para

um pátio superior, mais recatado. Meninos e

meninas, dos mais jovens que a escola tem (as

idades dos alunos vão dos dez aos 15 anos),

brincam por ali em pequenos grupos. Lá em

baixo, na Praça, como lhe chama José Neves,

são largas dezenas de alunos que se puxam,

empurram, namoriscam, esparramam, saltam

ou cochicham. Para eles, aquela grande ágora

pontuada por bancos de jardim e árvores no-

vas e mais antigas é só o recreio — o recreio da

Chica, a alcunha da escola no bairro.

Mais perto do almoço, José Neves há con-

fessar-nos como lhe agrada a apropriação

também toponímica que alunos e professo-

res fazem de algumas das partes novas do seu

projecto. Como o salão nobre que a escola

muito queria para poder fazer reuniões ou

concertos, “um pavilhão de jardim” aos seus

olhos, mas que para quem vive a escola todos

os dias é “o cubo mágico”.

Cumprimenta quem vai passando e se lem-

bra dele dos anos em que chefi ou a equipa que

projectou a requalifi cação que lhe deu o Pré-

mio Secil 2012. Também se lembram dele de

visitas como esta, exactamente porque ganhou

o Secil e os jornalistas voltaram a olhar para

esta obra, resultado do programa Parque Es-

colar, mais conhecido pelas suas derrapagens

fi nanceiras do que por êxitos arquitectónicos

e funcionais. Lá iremos.

É recebido efusivamente na biblioteca que

desenhou e onde às vezes a professora-biblio-

tecária ultrapassa as janelas de peitoril muito

baixo para levar os alunos para ler na relva,

com mantas e vista para as hortas da escola

e para a Lisboa que se desenrola pela Tapada

da Ajuda abaixo, rumo ao rio e à Ponte 25 de

Abril. “Esta biblioteca podia ser fechada se

eu acreditasse que a cultura, ou a literatura,

é uma coisa fechada, mas agrada-me imenso

a ideia de uma criança estar aqui a ler e le-

vantar os olhos do livro e ver o mundo lá fora

a acontecer.”

José Neves completa 50 anos nos últimos

dias deste ano em que recebeu 50 mil euros

do mais importante prémio de arquitectura

português, depois de já ter sido nomeado para

o Secil em 1998 e 2004, respectivamente pela

sua Casa do Moinho e pelo Edifício C6 e Alame-

da da Faculdade de Ciências da Universidade

de Lisboa. A Francisco de Arruda não foi a

primeira escola que trabalhou ou projectou e

foi a segunda para a qual foi convidado a traba-

lhar no âmbito da Parque Escolar — a primeira

foi a Básica Marquesa de Alorna, também em

Lisboa. Também não foi o primeiro prémio

que recebeu: a Casa do Moinho foi premiada

pela Câmara de Torres Vedras e orgulha-se de

ter ganho vários projectos como o do C6, a Fa-

culdade de Arquitectura da Universidade do

Minho, a Reitoria da Universidade de Lisboa

ou o Centro de Artes do Carnaval, em Torres

Vedras, em concursos públicos. São marcos de

uma carreira que começou porque José Neves

“gostava de desenhar. É — ou pelo menos era,

nesse tempo — o costume”.

Mas também porque “a maior parte dos

meus amigos foi para Arquitectura. Ao mes-

mo tempo, tinha visto a exposição do Alvar

Aalto na Gulbenkian [no início de 1983] e ti-

nha percebido que se podia brincar a fazer

arquitectura. E também por a arquitectura

não ser um trabalho solitário, por ser um tra-

balho colectivo e poder fazê-lo com colegas-

amigos, como os Beatles”. Ao segundo ano,

estava algo desiludido, mas encontrou dois

professores-chave, Daciano da Costa e Duarte

Cabral de Mello, que lhe mostraram que sim,

a arquitectura podia mesmo ser tal como a

imaginava.

Esta é uma escola-jardim, mas também uma

escola-aldeia. Foi assim que a pensou e depois

projectou, e talvez seja assim que ela se torna

numa espécie de súmula do seu trabalho, ou

da sua visão da arquitectura. Também é assim

que o seu discurso passa do singular para o

plural. Daquilo que o move e inspira para aqui-

lo que, no que antes era a Escola Francisco

de Arruda, ele e a sua equipa de dez pessoas

pensaram sobre o projecto original de António

José Pedroso, de 1956.

A Francisco de Arruda “representa já uma

certa maturidade” no trabalho de José Ne-

ves, que a atingiu “já há algum tempo”, diz à

Revista 2 o presidente do júri do Secil 2012,

Manuel Graça Dias. Lembra que Neves “tem

um pensamento seguro e trabalhou com o ar-

quitecto Vítor Figueiredo , o que o terá leva-

do a encontrar-se neste registo de uma certa

sobriedade e de uma modernidade discreta,

mas também no respeito pelo construído pe-

los outros”.

“Há uma frase do [escritor e psicanalista]

João dos Santos que tenho pendurada no

atelier, é uma coisa que me serve muito: ‘Se

não tens uma aldeia, meu fi lho, tens de ir em

busca dela! Um menino não pode viver sem

ter a sua aldeia.’ Primeiro como cidadão,

depois como arquitecto, serviu-me imenso

para pensar nesta escola porque esta frase

contém muitas coisas fundamentais sobre

a possibilidade da nossa participação como

arquitectos no mundo. A escola é um espaço

que tem de ser protegido, mas não pode ser

um panóptico”, entusiasma-se, referindo-se

à ideia do jurista e fi lósofo Jeremy Bentham

de um edifício circular de cujo centro a popu-

lação prisional ou internada pode ser vigiada

de todos os ângulos, a toda a hora. “As prisões

também têm pátios, não é? Um preso também

tem de se recrear”, exemplifi ca, para explicar

que sim, a noção de amplitude de espaço, mas

também da sua diversifi cação, ao criar novos

percursos através de escadas nos sítios certos,

acabar com cul-de-sacs ou criar recantos con-

templativos junto a campos desportivos, foi

essencial como ponto de partida. “Fizemos

tudo para evitar o lado repressivo que os es-

paços das escolas muitas vezes representam

ou carregam. Até porque se aprende tanto

na rua como em casa, nos recreios como na

sala de aula.”

E do recreio damos um pulo ao edi-

fício novo que plantou na única

lateral da praça que estava vazia,

e olhamos pelas grandes janelas e

vemos um pinheiro, noutra a pra-

ça, e voltamo-nos para o outro la-

do e ali está Alcântara. “Este é um

ambiente protegido porque é uma

escola, mas a relação com a cida-

de está sempre presente. Sempre.

Não é uma coisa ensimesmada, não é criar

uma espécie de oásis, isolado. É uma parte

da cidade.”

Passemos ao plural, porque quando tudo

começou e foram feitas as primeiras de “inú-

meras visitas”, “imaginámos uma história, que

estes edifícios tinham sido feitos um de cada

vez, como se fosse uma cidade e tentámos

continuar esse processo”. Depois, “criámos

um percurso pelo jardim”, diz José Neves so-

bre o trabalho da equipa. Porque “a primeira

impressão que tivemos foi deste jardim que

queria abraçar a escola, que vem na conti-

nuidade da Tapada e que é uma coisa muito

rara numa escola pública. Achámos logo que

iria ser um dos temas, dos estímulos e das

coisas mais importantes” neste projecto para

a Parque Escolar, que não só requalifi cou o

edifi cado existente, mas aumentou uma escola

que já era construída em plataformas, quase

em escadinha, a respeitar o relevo, mas com

edifícios de volumetrias muito diferentes.

Agora, além do novo edifício que alberga

biblioteca, serviços administrativos e labo-

ratórios, há também o “cubo mágico” onde

antigamente fi cava o átrio principal da esco-

la — virado para uma rua que estava prevista

nos anos 1950 mas que nunca chegou a sul-

car aquela parte da freguesia de Alcântara — e

foram criados novos balneários e um campo

desportivo coberto.

Manuel Graça Dias considera que “a obra

interpreta o existente de uma maneira mui-

to positiva, discreta e sem qualquer tipo de

alarme, não recusa o que lá estava. Agora,

chegamos lá e parece que sempre foi, ou que

devia ser, assim”. Complementado também

pelo trabalho no paisagismo de Catarina Assis

Pacheco, “passa a ser um espaço de grande

integridade”. “Sentimo-nos bem” no conjunto

do antigo edifi cado e das novas adições, com-

pleta Graça Dias.

Numa manhã soalheira do fi nal de Outubro,

José Neves congratula-se pelo facto de a escola

não apresentar sinais de descontentamento

— os bancos do jardim têm rabiscos e graffi ti

mínimos, há alguma bricolage improvisada

numa ou outra porta mas o arquitecto sen-

te que os utentes têm por ela “um carinho

grande”. Neves tem um apreço fundamental

pela memória. Recorda uma frase do seu an-

tigo professor e depois colega, o arquitecto e

designer Daciano da Costa: “Quando falava

Este é um ambiente protegido porque é uma escola, mas a relação com a cidade está sempre presente. Sempre. Não é uma coisa ensimesmada, não é criar uma espécie de oásis, isolado. É uma parte da cidade”

Da biblioteca, avistam-se as hortas da escola, a Tapada da Ajuda e a cidade que se desenrola até ao rio. Às vezes, como o peitoril das janelas é baixo, a professora--bibliotecária convida os alunos a “saltar” para estenderem mantas na relva. Como diz José Neves, “esta biblioteca podia ser fechada se eu acreditasse que a cultura, ou a literatura, é uma coisa fechada, mas agrada-me a ideia de uma criança estar aqui a ler e levantar os olhos do livro e ver o mundo lá fora a acontecer”. Em baixo, o pátio a que o arquitecto se refere como a praça e os miúdos como o recreio da Chica, a alcunha da escola no bairro

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do mundo construído, falava ‘da vassoura à

catedral’. Não fazemos só catedrais, também

não fazemos só vassouras.” Os edifícios pre-

existentes, os tais em que várias gerações de

portugueses se reconhecerão a cada passo,

“estão um bocadinho entre isso, têm uma ar-

quitectura muito trivial, muito pragmática”.

Ao requalifi car, não quis amputar, muito me-

nos aculturar.

“São edifícios que nos apeteceu imedia-

tamente salvar. E isso tem que ver com um

princípio que transporto comigo e que é fun-

damental: só se deve destruir ou substituir

aquilo que somos capazes de fazer melhor. E

neste caso não havia circunstâncias que nos

levassem a querer destruir o que encontrá-

mos — e uma delas é sempre, claro, o dinheiro

disponível — até porque havia uma memória

que tinha de se salvar”, diz.

Manuel Graça Dias contextualiza: “Estamos

perante uma obra que corresponde a um gé-

nero, a um tipo que vai começar a ser cada

vez mais frequente: são obras de recupera-

ção e conversão de estruturas já existentes,

são as obras do século XXI nas cidades eu-

ropeias, que já têm a maior parte dos seus

equipamentos resolvida, que têm o problema

da habitação quase resolvido. É interessante

que o prémio Secil expresse essa nova atitude

perante o património construído.”

E, acrescenta Graça Dias, “também coincide

com um tipo de obra feita nos últimos quatro,

cinco anos em Portugal devido ao impulso

dado pela Parque Escolar”, sendo que esta edi-

ção do Secil, prémio atribuído anualmente de

forma alternada à arquitectura e à engenharia,

tinha este ano mais alguns projectos no âmbito

da Parque Escolar a concurso. Uma das polé-

micas que envolvem o programa de moder-

nização de escolas Parque Escolar prende-se

com as suas derrapagens fi nanceiras — até ao

fi nal de 2012, o programa já tinha ultrapassado

em mais de 400% as verbas previstas quando

do seu lançamento, em 2007. O valor de adju-

dicação da obra na Escola Básica Francisco de

Arruda foi de 8,3 milhões de euros e, no fi nal,

as contas saldaram-se em 8,8 milhões.

José Neves frisa que é importante ter con-

texto, saber em que foi gasto o dinheiro — “É

uma parte muito importante do trabalho de

um arquitecto tomar essas circunstâncias,

não como obstáculos, mas como dados para

trabalhar que se transformam em estímulos

para o projecto. Não faz sentido qualquer

queixume sobre isso.” Foram 8,8 milhões para

“8000m2 de construção reabilitada, 5000m2

de construção nova, cerca de 1000m2 de

espaços e recreios cobertos e 18.000m2 de

espaços exteriores”, enumera, acreditando

que os custos das obras públicas devem ser

abordados com “ponderação e conhecimen-

to de facto”. “Por exemplo, no que toca às

chamadas ‘derrapagens’ fi nanceiras, é muito

importante compreender-se claramente a di-

ferença entre estimativa, orçamento, valor de

adjudicação, valor fi nal da obra, adicionais,

erros, omissões, trabalhos a mais, trabalhos

imprevistos, etc. É que diferenças entre os va-

lores adjudicados e os valores fi nais das obras

existem sempre, na realidade, em qualquer

situação e em qualquer parte do mundo, so-

bretudo tratando-se de obras de reabilitação

de edifícios existentes. E é precisamente por

isso que existem limites legais estabelecidos

pelo CCP para essas diferenças justifi cáveis.

A obra da Escola Francisco de Arruda fi cou,

felizmente, muito abaixo desses limites.”

A Parque Escolar bateu-lhe à porta duas ve-

zes, convidando o arquitecto directamente

para um projecto. Esse modo de funciona-

mento foi uma das principais críticas à Parque

Escolar e José Neves reitera-se como defensor

dos concursos públicos: “O Alvar Aalto costu-

mava dizer que os concursos, além do mais,

são uma espécie de prática desportiva — ca-

ríssima e extenuante! — para os arquitectos se

manterem em forma.” Acredita que “são uma

das modalidades mais indicadas, de uma for-

ma geral, para seleccionar um projecto”, mas

ressalva: “Quando bem feitos, é claro, já que,

nos últimos anos, a esmagadora maioria dos

poucos concursos públicos que tem havido

tem sido lançada em termos completamente

inaceitáveis — digo mesmo degradantes —, o

que difi cilmente poderá deixar de se refl ectir

nos resultados fi nais”, diz.

Gosta de escolher palavras, subli-

nhando quando lhe agradam ou

corrigindo-se para que só lhe ou-

çamos aquilo que quer mesmo,

mesmo dizer. Também gosta

de assinalar aquelas de que não

gosta mesmo nada ou que foram

estragadas pelo uso corrente —

“agora, usa-se muito a palavra

‘conceito’, serve para tudo; os

meus alunos estão proibidos de a usar nas

aulas”. Ou frases feitas. “Há uns dias vinha a

ouvir um governante nosso na rádio que na

mesma frase repetiu ‘tempo é dinheiro’ cinco

vezes”, exaspera-se, sorridente. “É a maior

mentira que pode existir, porque dizer que

tempo é dinheiro é dizer que a vida é dinheiro,

que é só dinheiro. O tempo em arquitectura é

fundamental para se conseguir fazer um tra-

balho ponderado, intenso, que acerte — para

conseguir identifi car os problemas.”

À nossa volta, os alunos da educação espe-

cial apanham sol e brincam, e outros, man-

dados sair da sala de aula pelos professores,

amuam rumo às ofi cinas. Aparecem de todos

os lados. Há hoje uma continuidade na esco-

la Chica, inspirada numa característica das

cidades que José Neves considera fundamen-

tal: “Ter várias alternativas para se ir de um

sítio para outro ou para se estar num sítio ou

noutro. Fizemos tudo por tudo para enfatizar

algumas dessas sugestões que já existiam nes-

ta escola. E agora há articulações, caminhos,

pequenas escadas, que passam a permitir uma

deambulação por este espaço. ‘Deambulação’.

Gosto muito desta palavra. É que sem possibi-

lidade de deambulação não há cidade.”

E essa continuidade, de memória e de per-

cursos, é um termo caro ao arquitecto. Tanto

que, apesar de também estar desgastado — “se

ligarmos agora a TSF, algum político estará a

dizê-la” —, é o tema da tese de doutoramento

em que está a trabalhar. Nem lhe lembramos

que esses abusos são tais que a “evolução na

continuidade” de Marcello Caetano há muito

se tornou um dichote do futebolês.

A tese “A Arquitectura como trabalho de

continuidade: refl exões a partir de uma prá-

tica do projecto” fá-lo falar do arquitecto Fer-

nando Távora e do seu livro Organização do

Espaço. “Os arquitectos trabalham imenso

com os mortos, como trabalham com e para

os vivos, como para aqueles que vão nascer.

Grande parte do que está aqui, este chão, es-

tes edifícios, a Tapada, foi feito por pessoas

que hoje estão mortas. Esta ideia a que Távo-

ra chama ‘colaboração vertical’ para mim é

uma evidência absoluta”, diz, acrescentando

que a ideia de continuidade no que toca ao

ambiente construído é também perceber que

“os limites de um projecto são muito maiores

do que ele. Porque ele passa a fazer parte de

uma outra coisa”.

O tema que lhe é tão caro na carreira e numa

futura dissertação parece jogar directamen-

te com o projecto da Francisco de Arruda.

Integrar, dar dois passos atrás para ver a big

picture. Uma continuidade que não é só reve-

rência ao já feito e que também pode ser rup-

MARGARIDA DIAS/ CORTESIA JOSÉ NEVES

LAURA CASTRO CALDAS E PAULO CINTRA/ CORTESIA JOSÉ NEVES

LAURA CASTRO CALDAS E PAULO CINTRA/ CORTESIA JOSÉ NEVES

Page 37: Revista-20131110

2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 37

Prémio Pessoa 2008, opinou há um par de

semanas que “as pessoas estão fartas de espec-

tacularidade na arquitectura”. O star system

dos arquitectos é hoje um dado adquirido, os

grandes nomes são celebridades e as grandes

obras persistem, mas parecem nascer cada

vez mais onde há ainda dinheiro, a oriente,

médio ou extremo, por exemplo. José Neves

percebe a reacção a tal tendência forte e opu-

lenta, mas “há lugar para tudo”. Porque “há

situações em que não há nada mais bonito do

que o espectáculo urbano”. Mas se sublinha

que “a arquitectura não é um espectáculo,

é ela o próprio palco”, por outro lado hoje

“as pessoas estão desejosas de fazer parte de

um espectáculo que seja de facto uma festa

e em que sejam simultaneamente protago-

nistas e espectadoras — as cidades na melhor

das hipóteses são isso, não são coisas tristes

e ensimesmadas”.

É hora de almoço e já há adolescentes à

porta das salas, sentados no chão ou empo-

leirados nos varandins do edifício novo. Esta

escola tem esquilos, ruivos por sinal, que an-

dam a roer pelas copas das árvores do pátio

e que são orgulho de funcionários e alunos.

Nunca os chegamos a ver. Lá em baixo, fi cam

as ofi cinas, que antes tinham baixos-relevos

de cenas “de façanhas colonialistas, de terror

gore”, lembra o arquitecto, que até apoiava

que se mantivessem para poderem ser discu-

tidos de forma crítica, mas a escola decidiu

removê-los. Ao longe, ouvem-se bolas e cor-

ridas. Vêm do pavilhão desportivo coberto,

“a que chamámos pomposamente Templo”,

diz José Neves.

Falamos do lado lúdico e infantil da des-

coberta de caminhos e carreiros, das acessi-

bilidades e labirintos nas cidades. Descemos

um desses caminhos. Os cerca de 700 alunos

da escola fi cam para trás. Fica a suspeita de

um esquilo ruivo e um caminho que desce

para a cidade que se volta a fazer ouvir. “Às

vezes custa voltar às obras, é preciso largá-

las”, sorri.

tura. Uma escola enquanto espaço protegido,

de aprendizagem e segurança, mas também

uma peça do grande e vivo puzzle que é uma

povoação, uma aldeia, uma cidade, um jar-

dim. “Mas isto é muito difícil hoje, porque é

a ordem do dia, na política como em tudo, a

dispersão é uma espécie de convite que nos

é feito todos os dias.” Lamenta a dispersão,

a especialização, a circunscrição das coisas.

“Brecht costumava dizer: ‘Comecem pelas

bad new things, não comecem pelas good old

ones’.” Penso que o trabalho do arquitecto

passa muito por saber, em cada instante, por

qual delas começar.”

E depois levantamo-nos para conhecer o

novo átrio, que baptizou de Stoa (o nome na

arquitectura grega antiga dado às passagens

cobertas ou pórticos) — “chamámo-lo assim

com a máxima pretensão”, sorri. É a nova en-

trada da escola que se oferece à praça (o re-

creio) e “tenta dar suporte ao que uma escola

é, ao que a vida é, ao que a condição humana

é, que é estarmos sozinhos e em colectivo”.

Fica no edifício novo, onde uma funcionária

o cumprimenta e a luz que entra pelos vãos

abertos e fechados vai dando espectáculo ao

longo do dia. “Sem as variações da luz como

passagem do tempo, não há arquitectura. Só

há arquitectura em caves por relação com essa

luz ausente.”

Lá de cima, de uma das pontes de estadia

que marcam o primeiro piso do edifício, feitas

para convívio dos alunos, espreitam cabeças.

São demasiado grandes, coloridas e fazem

caretas. São cabeçudos, representações de

bonecos algures entre as fi guras populares e

a cultura pop, sentados nas pontes que ter-

minam em enormes janelas onde, “à medida

que vamos andando — talvez isto tenha que

ver com o cinema — vamos tendo uma série

de quadros: um pinheiro, a praça” e, do outro

lado, “a ponte sobre o Tejo, os carros, o rio”.

Um travelling.

Aí está a continuidade outra vez, porque

esta escola cuja “transfi guração é total” man-

teve memória e virtudes que já pertenciam

ao espaço. “Acho que é sempre isso que os

arquitectos estão a tentar fazer. As coisas têm

raízes, estão agarradas a sítios. Há muitos ca-

sos em que a própria situação fi ca no nome

da obra, como a Casa da Cascata do Frank

Lloyd Wright. Mesmo uma obra supostamente

menos ligada ao sítio, como a Casa da Música,

no Porto — a sua infl uência na Rotunda da

Boavista e na cidade é muito maior do que o

objecto que aparece nas revistas.”

Em caso de dúvida, José Neves faz-nos um

desenho. Num caderno preto onde há notas e

muitos outros esboços, delineia o que é agora

esta escola. Tornou-se arquitecto por isto e

ainda hoje é um arquitecto disto — “continuo a

desenhar imenso e não só para a arquitectura.

Não trabalho em computador. A equipa sim,

mas eu não sei sequer desenhar em compu-

tador. É uma questão de tempo e de necessi-

dade, não vou pensar para o computador. O

desenho dá-nos esse tempo”.

Da equipa que trabalhou no seu projecto pa-

ra a Francisco de Arruda, muitos emigraram.

“Receber um prémio nesta altura [do país]…

sinto-me a receber um prémio no meio de um

monte de escombros e isso cria sentimentos

diferentes.” O reconhecimento, ainda que

no meio de ruínas e de rádios que parecem

dar sempre Beatles a menos e políticos com

bengalas de linguagem a mais, “faz-me querer

trabalhar mais e melhor… apesar do absurdo

de muitos dos regulamentos e da legislação

que hoje existem e que fazem com que só com

uma grande dose de inconsciência é que um

arquitecto possa querer continuar a arriscar

trabalhar, se tiver trabalho, é claro... ”

Ainda assim, é claro que o Secil foi um

Actualmente, José Neves, um apai-

xonado pelo cinema de Buñuel,

está também a construir uma co-

lecção de textos saídos de confe-

rências que reuniram arquitectos

e cineastas portugueses na Cine-

mateca em 2007, do seu amigo

Pedro Costa a Manoel de Olivei-

ra, passando por Paulo Rocha

ou Souto Moura. O tema eram os

ricos e os pobres no cinema e na arquitectu-

ra portuguesa e esse ponto de união, o fazer

omeletes com poucos ovos, fá-lo concluir que

o que une o que há de português nestas duas

actividades tem que ver com “uma espécie de

relação com o real que permite que se trans-

formem abóboras em carruagens de princesa,

para usar uma imagem que o arquitecto Vítor

Figueiredo gostava de usar”.

A forma como consome cinema, arquitec-

tura, livros ou música não lhe permite fazer

escolhas de grandes infl uências ou gostos. Só

a memória mais imediata e o fl uxo da con-

versa. “Há pouco tempo, revisitei a obra do

Borromini em Roma, que não tem nada a ver

com o que eu faço, mas depois talvez tenha

tudo a ver. Uma igreja pequenininha numa

esquina, San Carlo alle Quattro Fontane. É

feita com coisas simples — os elementos clás-

sicos —, colunas, arcos, frontões, mas tem uma

complexidade incrível, e estava a lembrar-me

que o John Ford, de que gosto imenso, faz a

mesma coisa no cinema. Pega em coisas muito

simples, a paisagem, o cavalo, as palavras, as

personagens… e depois há uma complexidade

muito grande.”

A par dos Beatles, os Kinks “fi zeram canções

que ouço muitas vezes logo de manhã para ter

o tal optimismo na vontade — os Kinks são isso,

o pessimismo na inteligência e o optimismo

na vontade”, diz.

Na era em que o espectáculo é invasivo e

omnipresente, feito de realidade mais ou me-

nos televisiva e contaminando quase todos os

sectores, o arquitecto João Carrilho da Graça,

O arquitecto a desenhar. Na página ao lado, de cima para baixo, concurso público para o Conservatório de Música de Coimbra, 2004 (c/ arq. João Pernão); Centro de Artes do Carnaval em Torres Vedras em maqueta com vista da praça e vista geral; desenho de viagem feito por José Neves em 2000: a Piazza dell’Anfiteatro em Lucca, construída sobre as ruínas de um anfiteatro romano, serviu como referência para o projecto, em curso, do Centro de Artes do Carnaval, em Torres Vedras

momento “maravilhoso”, lembrando-lhe os

grandes nomes que o antecedem, como o seu

mestre Vítor Figueiredo, e outros grandes ar-

quitectos como o vencedor de 2010, Eduardo

Souto Moura, com o projecto para a Casa das

Histórias, em Cascais. Este é o país do surpreen-

dente rácio Pritzker: dois Nobel da arquitectura

para menos de dez milhões de habitantes. É a

conta do costume, que valida que se diga que

a arquitectura é uma área de excelência em

Portugal. Mas não embandeiremos em arco —

“Há muito boa arquitectura em Portugal, mas

todos sabemos que nas últimas dezenas de anos

é uma excepção — uma excepção magnífi ca

mas muito pontual. A maior parte do que se

constrói é pavoroso.” E hoje há desemprego, e

muito, na arquitectura, há paralisia nas obras

públicas e consequente contracção nos ateliers

e os jovens arquitectos são os que mais sofrem.

Manuel Graça Dias disse mesmo, quando da

entrega do Secil 2012 em Julho, “que na pró-

xima edição se notará um menor número de

candidatos” porque se “não há trabalho, não

se constrói e isso vai começar-se a notar”. José

Neves, preocupado, inspira-se citando o fi ló-

sofo e fundador do Partido Comunista italiano

Antonio Gramsci: “Temos de ser pessimistas na

inteligência mas optimistas na vontade.”

Page 38: Revista-20131110

38 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

ALEXANDRA LUCAS COELHOATLÂNTICO-SUL

MODERNISMO MÁGICO 1

A minha última manhã na Califórnia foi um

vislumbre do que o século XX sonhou algures:

a Casa Eames, esta que se vê na fotografi a, com

os seus dois habitantes dentro, Charles e Ray

Eames. Ele morreu em 1978, ela exactamente

dez anos depois, dia por dia.

2Mais de um mês passado sobre essa visita,

leio um livro extraordinário que aparente-

mente não tem que ver com os Eames mas

tem tudo a ver com a experiência do que

nos rodeia, natural ou construído: O Verão

de 2012, de Paulo Varela Gomes. Há uma

passagem em que o narrador aponta a possível

“existência de três estádios” na evolução da ma-

nufactura: “um estádio ainda camponês”, em que

“as pessoas não conhecem o valor da exactidão

excepto no fabrico de objectos de tipo tradicional”

(como o protagonista do livro observa na Jamai-

ca); “um estádio semi-industrial ou semi-urbano

caracterizado pela mediocridade conceptual mas

também pelo requinte de execução” (como nos

balaústres do Jardim Botânico da Ajuda observa-

dos pelo viajante inglês William Beckford em fi ns

do século XVIII); “e um estádio fi nal, plenamente

manufactureiro, em que a concepção e a execu-

JIM SUGAR/CORBIS

O extraor-dinário acontecia através do que está inteiramente livre da servidão do útil. Se Charles vinha do modernismo, Ray trouxe a magia

com o alemão Hans Hofmann, mestre do expres-

sionismo abstracto. Charles era um ambicioso re-

solvedor de problemas que ainda não conseguira

descolar como arquitecto, autor (e co-autor, ao

lado do fi nlandês Eero Saarinen) de ousados mas

inconcretizáveis projectos de cadeiras e casas. Ray

era uma artista com um domínio notável da cor

e da forma, e uma ligação natural aos universos

arcaicos. A fusão dos dois num quotidiano em que

trabalho foi prazer e prazer foi trabalho alterou a

percepção das formas que nos rodeiam até hoje.

Levar o prazer a sério era um lema dos Eames, e

isso vê-se na colina de Pacifi c Palisades, em Los

Angeles, para onde os Eames se mudaram na noite

de Natal de 1949.

6Vindos ao longo da praia de Santa Mónica,

subimos por uma estradinha sinuosa cheia

de árvores. Era uma manhã azul, na vira-

gem do Verão para o Outono. Tínhamos

marcado a visita por mail, como o site da

Casa Eames aconselha. Não é uma casa-mu-

seu, os visitantes não podem percorrer o interior,

essa possibilidade está reservada à angariação de

fundos, é excepcional e muito cara. Mas não deixa

de estar acessível: a maior parte das fachadas é de

vidro, o que permite ver quase tudo para dentro,

incluindo a forma como as árvores e o céu alastram

pelo interior, numa composição mista de natural e

construído. Os únicos espaços invisíveis são quarto

e casa de banho, na mezanine de onde foi tirada a

fotografi a que aqui vemos. De resto, a grande sala

comunica com a cozinha e a copa, e ao longo deste

espaço aberto cabem várias atmosferas, individu-

ais e colectivas, recolhidas e expostas. Olhando de

fora, a Casa Eames é possível imaginar tudo nela:

leituras a sós, conversas a dois, mesas de amigos,

grandes festas. E nada nela parece uma montra ou

uma demonstração, é uma casa totalmente habi-

tada, em que a herança modernista (austeridade

da estrutura, clareza dos materiais, respiração da

escala) é compatível com milhares de objectos, por

vezes quase pequenos altares, totens, presenças

indígenas, pré-coloniais ou pré-adultas, que abrem

o tempo em várias direcções e o espaço em várias

geografi as (não apenas nos padrões orientais, mas

na própria lógica oriental de sala de estar, com

sofás baixos, almofadas, panos, tapeçarias). Os

Eames, que também fi zeram fi lmes, tanto fi zeram

os fi lminhos que a América optimista da IBM pe-

dia, refl exos da curiosidade científi ca inesgotável

de Charles, como fi zeram fi lminhos com a festa

mexicana dos mortos ou a chegada do circo à cida-

de. Juntos, tudo lhes podia interessar. Nada podia

acontecer sem trabalho, trabalho, trabalho. Mas o

extraordinário acontecia através do que está intei-

ramente livre da servidão do útil. Se Charles vinha

do modernismo, Ray trouxe a magia.

7A casa encosta à colina e o jardim em frente

nem é bem jardim: árvores crescendo num

declive, tempo alterando luz e sombra, den-

sidade e leveza. Em 1949, o Pacífi co estava

todo à vista, hoje é um relance. Na manhã

em que lá estivemos, havia um baloiço pen-

durado num tronco de onde era possível contem-

plar a fachada, toda feita de partes pré-fabricadas

industriais, com um rectângulo laranja e outro

azul, espécie de tela de Mondrian. E fi cámos o

tempo que nos apeteceu.

a [email protected]

http://blogues.publico.pt/atlantico-sul/

ção qualifi cadas se banalizam, ao ponto de a es-

magadora maioria dos objectos deixarem de ter

qualquer interesse, fi cando confi nados ao mundo,

tristíssimo, do design”.

3Esta passagem fez com que me viesse parar

às mãos uma colectânea de Hal Foster, De-

sign e Crime, título devedor do arquitecto

austríaco Adolf Loos, que em 1908 escre-

veu Ornamento e Crime. Loos era “para a

arquitectura o que Schönberg era para a

música, Wittgenstein para a fi losofi a e Karl Kraus

para o jornalismo, a purga do impuro e do supér-

fl uo na sua própria disciplina”, resume Foster. O

ornamento, a infl ação do design, segundo Loos,

era uma espécie de degeneração, de crime, que a

evolução da cultura devia remover. E este manda-

mento modernista projectou-se sobre o século XX

até o festim pós-moderno vingar a austeridade.

4Então, pensando na Casa Eames, vejo nela

a superação da tese modernista e da antíte-

se pós-moderna, ou seja, uma síntese que

antecipava o próprio confronto. Quando

o projecto acabou de ser construído, os

pós-modernos ainda nem tinham levan-

tado a cabeça mas Charles

e Ray Eames já estavam

numa espécie de pós-pós-

modernismo. Um nome

possível para esse estádio

é modernismo mágico.

5O documentário

Eames: The Archi-

tect and the Pain-

ter (que vi por um

envio providencial

do crítico de design

Frederico Duarte e passou

recentemente na televisão

portuguesa) reúne imagens

deslumbrantes do universo

Eames mas talvez nenhuma

me tenha impressionado

como a carta em que Char-

les pede a sua ex-aluna Ray

Kaiser em casamento, nu-

ma letra infantil e trunca-

da: “Dear miss Kaiser, I am

34 (almost) years old, singel

[sic] (again) and broke. I lo-

ve you very much and would

like to marry you very very

soon.” Nesse ponto há um

asterisco para o desenho

ao lado, de uma mão com

uma aliança e as frases:

“Soon means very soon” e

“What is the size of this fi n-

ger?”, com uma seta para

o anelar. O conjunto é tão

pueril como um ímpeto de

primeiro amor, mas Char-

les já estava casado há mais

de uma década e tinha uma

fi lha pré-adolescente quan-

do em 1940 conheceu Ray,

na Cranbrook Academy of

Art, perto de Detroit. E ela,

sendo sua aluna, tinha ape-

nas menos cinco anos que

ele, já estudara pintura

Page 39: Revista-20131110

88,90€,90€

Todas as5.ª por maisTodas as5.ª por mais

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BRAINIAC

AS QUINTAS-FEIRAS VÃO PASSAR A SER UM DIA MUITO TRISTEPARA TODOS OS VILÕES. EXCEPTO ESTA.

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19.º LIVRO “SUPER-HOMEM: Legião dos super-heróis”, quinta, 14 de novembro, POR MAIS 8,90€ com o Público.

Esta edição leva-o ao futuro. E ao Super-Homem também. Os maiores heróis do século XXX estão ameaçados por um movimento xenófobo,o que os leva a chamar o Homem de Aço. Será que os consegue ajudar, ou sofrerá o mesmo destino que a Legião dos Super-Heróis? Geoff Johns e Gary Frankconstroem esta ponte entre o presente e o futuro, onde a Legião enfrenta a crise da sua super-identidade. Uma edição em capa dura, por um preço bem acessível.A pedido dos leitores, eis a colecção que todos esperavam. Ou melhor, quase todos.

as quintas-feiras vão passar a ser um dia muito tristepara todos os vilões. excepto esta.

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Page 40: Revista-20131110

40 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2

criança de seis(!) anos, em

Amarante, fez fechar a es-

cola por agressividade des-

controlada, sem que hou-

vesse um adulto capaz de

a conter. Noutras escolas,

as lutas entre os alunos são

frequentes e acabam com a

intervenção da PSP.

A professora tem razão

em lembrar as “equipas

multidisciplinares”, pre-

vistas no Estatuto do Alu-

no, anunciado com pom-

pa pelo actual Governo.

Prometiam “acompanhar

em permanência” os alu-

nos com difi culdades, mas

todos sabemos que quase

não existem!

É cada vez mais urgente

criar “corredores verdes”

de acesso rápido a estru-

turas da Saúde ou da Se-

gurança Social, de modo a

que comportamentos de indisciplina, de risco ou

de violência encontrem resposta adequada. Sem

isso, o desespero vai continuar a aumentar nas

nossas escolas.

DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM

DESESPERO NAS ESCOLAS T

ranscrevo email enviado por professora do

3º ciclo: “Medidas disciplinares? Não são

a solução... A minha preocupação é real,

vivida no dia-a-dia. Sou uma professora que

não pode continuar calada. Até quando va-

mos continuar a ver alunos em sofrimento,

resultado de causas diversas… famílias desestru-

turadas, abandono, alcoolismo, violência domés-

tica, pobreza, fome…, agravadas pela situação de

austeridade que afecta cada vez mais famílias,

sem se encontrarem as respostas mais adequadas

ou esperar por elas, tempo de mais?

“Muitos destes alunos devido aos seus com-

portamentos e atitudes acabam por ser alvo de

medidas disciplinares... mas são crianças e jo-

vens que precisam urgentemente de respostas

adequadas, de uma forma continuada, até que

os seus problemas sejam resolvidos… a solução

para os seus problemas não são as medidas dis-

ciplinares, previstas no actual Estatuto do aluno

e ética escolar!

“As equipas multidisciplinares previstas nesse

Estatuto precisam de recursos humanos especia-

lizados, que pertençam à escola ou que trabalhem

em entidades/instituições e façam com estas um

verdadeiro trabalho de articulação, que dêem res-

postas adequadas para cada caso, contextualizadas

e em tempo útil.

É urgente a prevenção, o acompanhamento

Sem “corredores verdes” de acesso rápido a estruturas da Saúde ou da Segurança Social, o desespero vai continuar a aumentar nas nossas escolas

e tratamento dos problemas que afectam mui-

tos dos nossos alunos, para que às suas difíceis

histórias de vida não se somem mais casos de

insucesso escolar (…)”

Esta professora não está sozinha no seu protes-

to. Todas as semanas me chegam cartas semelhan-

tes, pedindo que não esqueça a questão da escola.

Procuro não desiludir, mas sobretudo não cesso

de incentivar a que também escrevam e tomem

posição sobre o que se passa em todo o país.

A realidade é preocupante. A indisciplina tor-

nou-se (infelizmente) um signo desta geração: estar

desatento na sala de aula é a regra e quem pres-

ta atenção é muitas vezes apelidado de “cromo”.

Os professores, sem apoio e sem formação para

lidar com alunos problemáticos, desdobram-se

em gritos, faltas e participações disciplinares, sem

que a escola promova medidas adequadas para

melhorar a situação. Alguns docentes fogem das

metodologias activas (trabalho de grupo, pesquisa

na Net, exposição oral de trabalhos efectuados por

alunos, leitura partilhada de textos) e falam sem

parar durante a aula inteira, provocando bocejos

e mais turbulência por parte dos estudantes. Os

directores da escola aparecem de vez em quando

e oscilam entre recomendações paternalistas e

ameaças de suspensão. Os alunos submissos so-

frem em silêncio e não sabem a quem pedir ajuda.

Depois dos graves incidentes em Massamá, uma

NUNO PACHECOEM PÚBLICO

A MÚSICA NO TÚNEL DO TEMPO A

gora que chegámos a Novembro, sabem

quem tem discos novos para lançar? Os Be-

atles. Jimi Hendrix. Os Doors. Janis Joplin

está no Lyceum Theatre, na Broadway, e

Joni Mitchell no CCB. Não, não voltámos

aos anos 60, estamos em 2013, a música é

que entrou no túnel do tempo, por obra e graça das

editoras que não param de revolver os baús.

É possível um disco novo dos Beatles? É. Vai ser

lançado amanhã, 11 de Novembro, e contém num

CD duplo seis dezenas de canções registadas nos

estúdios da BBC e até agora inéditas. Quem ouviu

o primeiro CD da série sabe do que se trata: re-

gistos ao vivo, nos estúdios londrinos, de canções

próprias ou alheias (há versões de Budy Holly, The

Marvelettes ou das Shirelles, como no volume ante-

rior havia de Carl Perkins, Chuck Berry ou Smokey

Robinson) com conversas pelo meio, uma festa. Live

at the BBC-2 traz-nos os Beatles como se tivessem

tocado ontem e alguém viesse, a correr, trazer-nos a

gravação. Não são restos, é uma escolha. Até porque

o baú ainda está cheio: o primeiro volume (agora

também remasterizado) tinha 69 faixas, o segundo

tem 63 mas, ao todo, os Beatles gravaram 275 actu-

ações para a BBC entre 1962 e 1965. Um fi lão.

No que toca a Jimi Hendrix, o disco que se anun-

cia é também integralmente novo (embora já andas-

se por aí, esmaecido em registos piratas) e acaba

de chegar ao mercado mundial com o título Miami

Pop Festival. Tem o registo sonoro da actuação do

genial guitarrista em Miami, a 18 de Maio de 1968,

mas não vem só. A par do CD é editado um DVD

com (mais) um documentário (o título, Hear My

Train a Comin’, foram buscá-lo a uma das canções

tocadas no festival) que traz, nos extras, 13 temas

em vídeos inéditos: do Miami Pop Festival, mas

também do New York Pop Festival (1970), do Love &

Peace Festival (este gravado em 1970 na Alemanha,

12 dias antes de ele morrer) e um registo de Purple

Haze no Top of The Pops britânico, em 1967.

Dos Doors de Jim Morrison, cujo baú tem vindo a

ser metodicamente remexido nas últimas décadas,

foi descoberto mais um punhado de vídeos inéditos

que vão ser lançados a 25 de Novembro em DVD e

Bluray intitulados R-Evolution. Promete 17 temas,

em parte gravados para televisão. E, dizem os edi-

tores, terá um livrinho de 40 páginas a explicar tu-

do. Para os fãs dos Doors,

agora que Manzarek tam-

bém morreu, já terá lugar

marcado na estante.

O caso de Janis Joplin é

mais surpreendente. Não

há nenhum disco novo (o

fi lão da cantora texana já

foi muito gasto) mas sim

um espectáculo na Bro-

adway, no Lyceum The-

atre, intitulado A Night

With Janis Joplin. E é, na

verdade, uma noite com

ela. Por inexplicável passe

de mágica, Mary Bridget Davies (34 anos, nascida

em Cleveland), cantora de blues de voz límpida nos

seus próprios discos, transfi gura-se quando sobe

ao palco para dar corpo à personagem de Janis.

Como se pode ver pelos vídeos no YouTube ou no

site da Broadway (onde o espectáculo, estreado em

Outubro, continua), a transfi guração de Davies é

espantosa. Leva a arte de representar do corpo e à

voz (que ali soa enrouquecida) e cria a ilusão de que

Janis Joplin renasceu. Confi ram, vale a pena.

Joni Mitchell é outro caso. A genial cantora e

compositora canadiana, agora com 70 anos, vai ser

cantada a várias vozes no CCB, no âmbito do Misty

Fest, na noite de 14 de Novembro. Joining Mitchell,

assim se chama o espectáculo (excelente, a ideia

do título), partiu de uma ideia de Carmo Cruz, da

Uguru, e junta as cantoras Amélia Muge (direcção

artística, a direcção musical é de Filipe Raposo),

Aline Frazão, Mafalda Veiga, Ana Bacalhau, Luísa

Sobral, Cati Freitas, Fábia Rebordão, Sara Tavares,

Márcia e Manuela Azevedo. António Jorge Gonçal-

ves fará desenhos digitais, ao vivo.

E já que passámos do universo musical anglo-

saxónico ao português, outra boa notícia: vai sair

este mês uma caixa com os sete álbuns da Banda do

Casaco, remasterizados por José Fortes, com faixas

inéditas, um CD extra (com gravações dos Musica

Novarum, Daphne e Family Fair, nas raízes do gru-

po) e um DVD com gravações ao vivo entre 1975 e

1984. Como se vê, a memória musical está viva e

recomenda-se. Assim estivesse tudo o resto.

Novidades? Beatles, Hendrix, Janis Joplin, Doors. Há ainda Joni Mitchell. E a Banda do Casaco

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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 41

UM MILAGRE SEXYGuião do pacote da reforma do Estado do néctar de fruta, por Pires de Lima: “Seja o que for que não vai comer, este é o acompanhamento ideal. Um governo líquido e sem açúcar adicionado que combina bem com qualquer austeridade. Teor de sumo de troika de 99%. Um vez aberto, guarde no frigorífi co”

António Pires de Lima (no meio, é

Magalhães como o computador do

Sócrates, do Hugo Chávez, e também do

presidente Maduro da Venezuela que an-

tecipou o Natal para Novembro, mas es-

queçam, vamos tratar de milagres e de fe-

licidade a sério) é um linguista português que já

cá fazia falta, sem dúvida.

O principal contributo de António Magalhães

Pires de Lima para a língua portuguesa foi o rigo-

roso “programa de ajustamento” e o “choque de

expectativas” que aplicou nalgumas palavras. Por

exemplo, a fenómenos só explicáveis por interven-

ção sobrenatural, chamados “milagres”, tornou-os

acessíveis a qualquer desempregado com curso su-

perior que durma debaixo da ponte. Ou a alguém

(um dos 100 mil portugueses que emigraram num

ano) que vá atravessar os Pirenéus até encontrar

um café onde se coma uma sandes de afi ambrado

sem pagar 23% de IVA.

Pires de Lima (Lisboa, 7 de Abril de 1962) foi

sucessivamente administrador de empresas, po-

lítico, vendedor de cafés, de sumos, de cervejas e

de promessas de ministro. Tomou posse da pasta

da Economia a 24 de Julho de 2013. Precisamente

180 anos depois de Lisboa ter sido tomada pelas

tropas liberais do Duque da Terceira, um ultrali-

beral que se diz “bom soldado” tomava em mãos

uma economia de terceira ordem. Pouco depois,

decretava que já estava tudo conquistado.

Portugal vive um “milagre económico”. E o ver-

bo se fez carne (ou osso) e a divina prova é um

ministro da Economia que aceita como bom tudo

aquilo que mais atacou — brutal subida de impos-

tos, corte cego de salários e pensões, austeridade

sem investimento, etc. — antes de lhe darem o lugar

e a honra de “servir a pátria”.

Assim será até recuperarmos a “soberania fi -

nanceira”. Um milagre económico que é fruto do

“esforço dos empresários”. Sem dúvida, está na

cara, reconhecemos este tipo de milagres à pri-

meira vista, lembram-se da Alemanha e do Japão

todos escaqueirados pela II Guerra? E de repen-

te… tcharan! Este milagre é português, mas tem o

mesmo nariz, a tal expressão próspera nos olhos,

sem tirar nem pôr. Passou por aqui a correr, conti-

nuou, continuou… estão a ver aquela esquina?, foi

ali a última vez que o vimos. Esperemos que passe

outro igual, que não nos deixa mentir.

Para a biografi a ser justa, 2013/2014 é o corolário

de quem muito cedo se iniciou na carreira miracu-

losa. Pires de Lima, quando andava na 4.ª classe

e estava de calções, teve a primeira experiência

no recreio da escola. Assim reza o evangelho do

seu caderno escolar: “Hoje estive quase, quase a

perder na partida dos berlindes, mas quando o

Tonan Mello ia partir-me o bilas vermelho com

o abafador, o vidro dele rachou-se e eu, sem nin-

guém estar à espera, fi quei-lhe com tudo! Foi o

milagre do berlindes, quando for grande, vou es-

tudar Economia.”

No liceu, registou-se outro fenómeno espanto-

so: “Hoje, quando cheguei à sala de aula, o meu

colega de carteira, o Paulo Portas, já lá estava. Não

chegou atrasado! É um milagre horário (não sei

se se vai repetir, mas…). Quando for grande e o

Paulo mandar num partido giro de direita, serei o

presidente do Conselho Nacional. E se algum dia

o Paulo se afastar para ir para lá outro, tipo um

Ribeiro e Castro sem graça nenhuma, vou dizer

alto e bom som que o nosso partido precisa de

ser sedutor e sexy.”

A profecia cumpriu-se até hoje e usa fatos in-

gleses às riscas. Os anos seguintes, aliás, vieram

confi rmar os poderes de António Magalhães Pires

de Lima y sus muchachos empresários. Uma vez,

num teste da Faculdade de Economia da Universi-

dade Católica, o professor enganou-se a contar os

pontos das respostas do seu aluno. Só no fi m reviu

a soma e Pires de Lima afi nal tinha uma décima

a mais, provando-se que era possível um grande

milagre quando os cínicos colegas cheios de cris-

pação não o admitiam.

O mesmo se deu quando Pires de Lima trabalhou

numa empresa do sector dos cafés. Uma interven-

ção molecular e mecânica foi introduzida na fase

de fabrico, permitindo, doravante, que possamos

tomar café à meia-noite e dormir na mesma, é o

famoso milagre do descafeinado.

São tantos os exemplos, tantos, para quê tanta

descrença, a crispação é que é a maior inimiga de

Portugal. Pois não sabeis que hoje em dia, se nos

debruçarmos sobre a área dos néctares de fruta,

outro negócio em que o ministro da Economia

se destacou, há agora sumos com um mínimo de

55% de pêra rocha e maçã nacionais, obtendo-se o

mesmo sabor (e até uma consistência mais líquida)

sem adição de açúcares, ideal para toda a família,

ainda dizem que não há milagres!

Por último, as cervejas (mais um sector em que

a competência do ministro é, por assim dizer, de

líquida solidez). Cerveja, essa coisa que é quase só

água e está cada vez mais apetitosa mesmo com

0% de álcool. Hoje, um homem (por que não uma

senhora?) pode ir à marisqueira e beber e comer

sem perder sabor (desde que ganhe para o cama-

rão), podendo guiar a seguir para casa sem per-

der a carta. Um milagre devido ao malte e lúpu-

los seleccionados, a quem devemos agradecer.

Uma intervenção divina que compensa o facto de

a baixa do IVA da restauração ter sido mais uma

aldrabice.

Tenhamos pois confi ança em nós, no país, no

Governo. Paremos a crispação que faz subir os ju-

ros dos mercados, tenhamos atitudes construtivas.

O ministro da Economia tem em mãos a comple-

ta reabilitação da imagem externa de Portugal.

Trata-se de fazer o vice-primeiro-ministro Paulo

Portas chegar a horas a encontros com autoridades

e empresários chineses. Eles são dados a minho-

quices com atrasos e ainda não somos um Estado

soberano, só em Julho.

Este milagre horário de Portas será celebrado

com a construção de um santuário em Macau. O

parceiro comercial de Pires de Lima neste negócio

é Nossa Senhora.

PERSONAGENS DE FICÇÃO ANTÓNIO PIRES DE SUMO DE LIMARUI CARDOSO MARTINS

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Amanhã é dia de S. Martinho e os vendedo-

res de castanhas devem andar a torcer as

mãos, pedindo a todos os santos em que

acreditam e àqueles em que talvez não

acreditem para que não chova e esteja

um daqueles dourados dias de Outono,

levemente gelados. Para que apeteça ainda mais

comprar um pacote de castanhas assadas. Leve

lá uma dúzia, se faz favor.

Os carrinhos dos vendedores de castanhas es-

tão diferentes. Já é difícil encontrar carros velhos

e negros, seja em Santa Catarina, junto à Estação

de S. Bento, na Boavista ou ao pé do Hospital de

S. João. Agora, as máquinas fumegantes de onde

saem as mesmas castanhas de sempre, de pele

enegrecida, com uma cinza que se agarra aos de-

dos, mas não faz mal, reluzem no seu inox de ar

moderno. A modernidade chegou às castanhas,

mas felizmente não lhes roubou o sabor.

No Verão, bem podem vir carros para a rua ven-

der gelados. Não é a mesma coisa. Para já, porque

os gelados não têm cheiro. Não nos acontece come-

çar a sentir ao longe um leve perfume adocicado,

que nos é trazido por uma nuvem fumegante e nos

faz salivar ainda antes de termos decidido que va-

mos comprar castanhas escondidas em cartuchos

de papel. Era uma dúzia, se faz favor. E veja lá se

não vêm podres. “Vou pôr mais uma para o caso

de estar alguma estragada”, responde a vendedora.

CRÓNICA URBANAVÁRIOS LOCAIS DO PORTO

Os carrinhos dos vendedores de castanhas estão diferentes. Já é difícil encontrar carros velhos e negros. Agora, as máquinas fumegantes reluzem no seu inox de ar moderno

Dizem nos jornais e na televisão que os vendedores de castanhas do Porto andam ilegais, por causa de uma mudança das regras municipais. Mas, este ano, parece que Santa Catarina tem ainda mais vendedores do que de costume. Texto de Patrícia Carvalho e Ilustração de Mário Bismarck

AI, AS CASTANHAS, AS CASTANHAS

na televisão que os vendedores de castanhas do

Porto andam ilegais, por causa de uma mudança

das regras municipais. Que até podem ser multa-

dos. Mas, este ano, parece-me que Santa Catarina

tem ainda mais vendedores do que de costume.

Quase todos com os seus reluzentes carros novos.

Eles queixam-se, claro, da crise. Dizem que se não

fossem os turistas, não faziam negócio que se vis-

se. Mas continuam a assar as castanhas quentes

e boas. E eu, se passar por eles, não vou resistir

a comprá-las.

Um destes dias, num sábado, andava por ali a

passear e passei por um, dois, três vendedores de

castanhas. Estava calor, apesar de o Outono já ir a

meio e eu acredito que as castanhas precisam de

um bocadinho de frio para saberem melhor. Por

isso, não estava a pensar seriamente comprá-las,

apesar do cheiro quase irresistível que invadia a

rua, mas então o tempo mudou. Pelas 17h, sem

aviso, o ar esfriou, como se o Outono tivesse de-

sembarcado ali mesmo, talvez numa das compo-

sições de metro que param na estação do Bolhão.

Arrepiei-me e pensei que estava na hora de ir para

casa. Parei num carrinho, no primeiro com que me

cruzei. A rapariga nova estendeu-me o cartucho de

papel, já não feito das Páginas Amarelas, com a tal

castanha a mais. Foi na medida certa, só encontrei

uma podre. Estavam quentes. E boas. Não sei se já

tinha dito, mas gosto muito de castanhas.

E isto também não acontece com os gelados… Se

eles forem do ano anterior e estiverem já cober-

tos por cristais de gelo, pelo tempo excessivo que

passaram na arca frigorífi ca, o vendedor não vos

diz: “Leve lá mais um geladinho, para o caso de

este já estar mole e ser uma desilusão.” Depois,

porque se pode entrar na maior parte dos cafés ou

até mercearias e comprar os mesmíssimos gelados

que nos vendem nas ruas. Mas, onde, digam lá,

onde, é que se sentam à mesa de um restaurante

e as castanhas que vos servem à sobremesa (e é

preciso que elas constem do menu, o que não é

fácil) têm aquele sabor único das que saem dos

carrinhos dos vendedores de rua?

Na Rua de Santa Catarina, havia uma senhora a

quem eu gostava de comprar castanhas, pelo sim-

ples motivo que me fazia lembrar a minha mãe.

Era uma mulher larga, com o cabelo cinzento e

liso apanhado num puxo, envolto numa rede, e

que tinha um certo tom de melancolia em toda a

sua postura. Como se estivesse ali e não estivesse.

Às vezes, andava para cima e para baixo na rua

comercial, fi ngindo que ia resistir à tentação de

comprar um pacote de castanhas assadas, quando

na verdade estava apenas à espera de chegar ao pé

dela, para que a dúzia, a um euro e meio ou dois

euros, saísse do seu carrinho. E ainda era um dos

velhos carros, o dela.

Este ano não a encontrei. Dizem nos jornais e

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o mundo está louco! desde 50 a.c.

“astérix

entre os

bretões”, SEXTA, 15DE NOVEMBRO

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TE.

ninguém bate nos romanos

como os bretões.

mas nunca depois das 5.

ASTÉRIX ATRAVESSA O MARE BRITANNICUM COM OBÉLIX E UM BARRIL CHEIO DE “MÁGICA POÇÃO” PARA AJUDAR O SEU PRIMO BRETÃO NA SUA LUTA CONTRA AS LEGIÕES ROMANAS. COMEÇA ENTÃO PARA OS DOIS AMIGOS UM PÉRIPLO PELO

PAÍS ONDE FALAM AO CONTRÁRIO, BEBEM CERVEJA QUENTE, SERVEM JAVALI COZIDOE JOGAM RÂGUEBI (PARA SATISFAÇÃO DE OBÉLIX)!

É MAIS UM TÍTULO DESTA COLECÇÃO DE 16 INESQUECÍVEIS AVENTURAS, INCLUINDO A NOVÍSSIMA HISTÓRIA LANÇADAEM 2013, QUE O VÃO FAZER VIAJAR PELO MUNDO TODAS AS SEXTAS. DIVIRTA-SE COM A DESCRIÇÃO DOS USOSE COSTUMES DOS DIVERSOS POVOS REPRESENTADOS NOS VÁRIOS ÁLBUNS E DESCUBRA QUE, AFINAL, O MUNDO

EM 2013 D.C. NÃO DIFERE ASSIM TANTO DO MUNDO EM 50 A.C. COMO DIRIAM ASTÉRIX E OBÉLIX, “ESTÁ TUDO LOUCO!”.

ninguém bate nos romanos

como os bretões.

mas nunca depois dassssssssss

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