recensão
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Recensão da Obra «O Segredo de Compostela»TRANSCRIPT
Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Teologia
Recensão
Alberto S. SANTOS, O Segredo de Compostela, Porto:
Porto Editora, 2013.
Duarte da Costa
Trabalho realizado para a
disciplina de História da
Igreja em Portugal do Prof.
Dr. Adélio Fernando Abreu
Porto
2014/2015
Semestres de Inverno-Verão
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto: Porto Editora, 2013.
Século quarto da era cristã. Império Romano. Hispânia. Um espírito acutilante,
aristocrata de nascimento, pagão desde o berço materno, uma formação esmerada, uma
iniciação na Ars Amatoria condizente com a sua condição de cidadão romano. Duas almas
enamoradas desde a infância. Viagens pelo mundo do saber de então. Conversão.
Baptismo. Adesão a um ascetismo rigoroso. Génese de um movimento rigorista. Suspeitas
de heresia. Fama de santidade. Ascensão ao episcopado. Congeminações contra o
movimento. Perseguição. Processo canónico. Tortura. Pena capital. Eis os fios que tecem
uma trama que, assim expostos, quase apelam para um romance ao jeito de Calista: A
Escultora Grega de John Henry Newman, onde o cardeal inglês procura descrever o
cristianismo do século III.
Contudo, os tempos são outros e os leitmotivs de Alberto S. Santos, no seu romance
O Segredo de Compostela, distintos: os restos mortais que repousam na Catedral de
Santiago de Compostela e o sentido das peregrinações. Por isso, a história principal é
emoldurada pela descoberta do túmulo em finais de Janeiro de 1879, na sequência das
escavações levadas a cabo por López Ferreiro a mando de Dom Miguel Payá e Rico,
arcebispo de Compostela (Prólogo, cf. pp.13-22). A perplexidade perante a inscrição na
lápide só é esclarecida no final, no Epílogo, em que, no contexto da comunicação final
sobre os resultados dos estudos feitos pela Universidade de Santiago de Compostela, é
insinuada uma ardilosa argumentação para autentificar os restos mortais como sendo de
São Tiago Maior e seus discípulos Santo Anastácio e São Teodoro (cf. pp.451-457). Desta
forma, o autor sustenta a tese segundo a qual os restos mortais pertencem a Prisciliano e
seus discípulos. Todo o desenvolvimento do romance procurará assim sustentar-se na tese
priscilianista, aventada pela primeira vez em 1900 por Louis Duchesne.
A testemunhar estes acontecimentos surge uma personagem prosopopaica, «um
homem sem idade, franzino, com uma verruga no queixo» (p.13), acompanhado por um
rafeiro, de seu nome Diógenes. Esta personagem, que vai surgindo no desenrolar da
história principal para esclarecer o sentido dos acontecimentos, dá-nos conta do que o
nosso autor entende por peregrinação: «A peregrinação a estes lugares é intemporal e
ecuménica. Um peregrino vem a esta terra sagrada para se encontrar com o Uno e consigo
mesmo, através do Santo Espírito que aqui habita…» (p.457).
No decorrer da história, o leitor depara-se com a caracterização de uma época em
que o cristianismo assumia uma nova configuração, depois de 3 séculos de existência
remetida geralmente à marginalidade social e ao perigo eminente da perseguição. Sendo
agora tolerada, a Igreja iniciava um processo de secularização e de identificação com os
poderes políticos, redundando muitas vezes no afrouxamento da fé. Além disso, no
território da Hispânia, o cristianismo desenvolvia-se num contexto de sincretismo
religioso, presente tanto na infância de Prisciliano, o personagem principal, como na sua
acção pastoral depois da conversão.
Se Sulpício Severo nada diz sobre a sua terra natal, A. Santos explora a hipótese de
ter nascido na Galécia. Mas, por outro lado, segue de perto a Crónica do escritor aquitano,
ao descrever os dotes pessoais de Prisciliano, a sua formação, a índole rigorista do
movimento que fundou, a perseguição e a campanha difamatória promovidas por Idácio de
Mérida e Itácio de Ossónoba, o desenrolar das acusações, o processo judicial, a fuga de
Itácio a meio do julgamento e as penas infligidas aos arguidos. Aliás, Sulpício Severo
considera Idácio e Itácio os inimigos mais declarados, sublinhando a mediocridade deste
último, permitindo assim a A. Santos construir a personagem do bispo de Ossónoba com
uma índole mesquinha e gananciosa, herdada de família e conhecida por Prisciliano desde
a infância.
Sobre o movimento priscilianista, seu desenvolvimento, expansão e perseguição, o
nosso autor também procura seguir de perto as fontes históricas da época. Obviamente
centrado na figura de Prisciliano, o movimento priscilianista é aqui bem caracterizado
enquanto movimento eminentemente rural e ascético, com práticas e posições um tanto ou
quanto extremadas, constituído por pessoas que se consideram eleitas por Deus, cujo
modus vivendi punha em causa a hierarquia que se começava a acomodar. Neste sentido, a
carta de Higino, bispo de Córdova, a Idácio, bispo de Mérida, é bem ilustrativa (cf. pp.244-
245). Desta acção de Higino junto do metropolita seria convocado um sínodo em Saragoça
(cf. pp.256-273). As oito breve resoluções surgem-nos na obra por entre as intrigas, bem
como a acusação velada feita ao movimento, suspeito agora de heresia. Por outro lado,
alguns bispos também simpatizam com Prisciliano, como é o caso de Simpósio e de
Instâncio, que acabam por consagrar Prisciliano como bispo de Ávila (cf. p.287ss.).
À medida que o movimento se vai expandindo, as suspeitas de maniqueísmo e
gnosticismo vão aumentando. Neste ponto as fontes históricas não são claras quanto à
doutrina priscilianista e sua relação com tais heresias. Por um lado, muitos textos
priscilianistas são posteriores à morte de Prisciliano. Por outro lado, Prisciliano não foi
autor de tais doutrinas, tendo-as recebido provavelmente por intermédio de Elpídio e
Ágape. Estes elementos historiográficos dão o mote a A. Santos para elaborar a viagem de
Prisciliano a Alexandria, onde contacta com Marcos de Mênfis, ao mesmo tempo que
conhece uma cidade que aglutina diversas tradições religiosas, de entre as quais figura o
cristianismo em tempos de controvérsia entre nicenos e arianos (cf. pp.145-169). Nesta
cidade, cruza-se com Atanásio (cf. p.149), conhece o ascetismo cristão (cf. p.163) e ouve
falar de Orígenes (cf. p.166).
No desenrolar da história principal, a situação política do Império não é descurada
(cf. pp. 23, 109, 176, 237). Neste sentido, destacamos particularmente o assassínio de
Graciano e a ascensão do usurpador Magno Máximo (cf. pp. 355-356), mudança política
que se revelaria favorável aos inimigos de Prisciliano. A partir daqui, os acontecimentos
direcionam-se para as cidades de Bordéus (Burdigala) e de Tréveris (Augusta
Treverorum). Na primeira, decorre um sínodo eclesiástico convocado por Magno Máximo,
que redunda num julgamento civil. Este continuaria na cidade alemã, onde o imperador
usurpador instalara a sua corte. De facto, Prisciliano recusou ser julgado pelos bispos,
apelando malogradamente para o imperador. Sob a orientação do perfeito Evódio, cuja
severidade é transmitida pelas fontes e explorada pelo nosso autor, o processo terminaria
com a sentença de morte para Prisciliano e alguns dos seus companheiros, acusados de
maleficium (magia). Durante o processo, destaca-se o papel de Martinho de Tours e de
Ambrósio de Milão. A presença e acção do primeiro atrasaram a processo, enquanto o
segundo opôs-se aos bispos, que pediam a pena capital, enquanto aplacava os intentos
políticos sobre Itália do imperador usurpador. Assim, saltam à vista as quezílias políticas e
pessoais, que se escondem por detrás das questões doutrinais e que levarão à destituição de
Itácio e de Idácio.
A adocicar toda a acção, Prisciliano vive uma relação amorosa com Egéria, com
quem trava amizade na infância, a quem desflora na juventude e cujo amor acaba
consagrado ao Uno. Ora, no que toca à figura de Egéria, quanto a nós, A. Santos permite-
se soltar “a louca da casa”, a imaginação, inserindo-a no movimento priscilianista, quando
tal tese se apoia apenas na proveniência da escritora galega e na sua personalidade
independente. A referência de Gala como esposa de Prisciliano, feita por Jerónimo, é posta
de lado, apesar de a suposta irmã de Egéria surgir como terceiro vértice de um triângulo
amoroso com laivos de Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco. Consequentemente,
as motivações e a concretização da viagem de Egéria aos lugares santos da cristandade que
emergia são extrapoladas para o contexto priscilianista, quando o que nos chegou do
Itinerarium Egeriae não nos permite em absoluto tal adjudicação.
Concluindo, para um leitor veraneante, menos advertido quanto às questões
históricas, a obra recenseada poderá induzir a uma descrença na tradição jacobeia e no
sentido da peregrinação a Santiago de Compostela, ao mesmo tempo que a figura de
Prisciliano surge com resplendores de santidade injustiçada. Contudo, sendo um romance,
tais conclusões seriam precipitadas.
Não obstante, toca questões históricas prementes, pois a própria tradição jacobeia
apoia-se em lendas e sonhos, enquanto a chamada tese priscilianista apresenta um ou outro
elemento historicamente mais sólido. Porém, quanto a nós, isto não significa que a própria
tradição vivida durante séculos possa ser sem mais destronada. A questão permanece em
aberto. Além disso, teologicamente não deverá levantar grandes problemas, pois os santos
não valem por si mesmos, mas por Aquele a quem seguiram e de Quem deram testemunho.
Se as dores e canseiras dos trilhos e veredas palmilhados conduziram e conduzem até
Cristo, pois que haja mais Santiagos a desbravar caminhos!
Sendo um romance, a fidelidade histórica deve ser aplaudida, pois o retrato do
século quarto é fiel, bem como os principais acontecimentos da vida de Prisciliano e da
controvérsia priscilianista. Por sua vez, o preenchimento das lacunas históricas é
justificável pelo desenvolvimento da trama decorrente do próprio teor da obra.