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RESENHAS De Raposas e Reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64) - de Lúcia Hippolito, Ed. Paz e Terra, 1985, 340 págs. por Maria Victoria Benevides* Em 1964, segundo Lúcia Hippolito, "o comando pessedista assistiu, perplexo", a tomada do poder pelos militares. "Fragmentado, abúlico, disfuncional", o Partido Social Democrático deixava o palco iluminado da cena política. Como isso foi possível com o sólido PSD, o todo-poderoso partido da "república populista"? Aquele partido que soubera, com tanta habilidade, "administrar" e superar as crises dramáticas de 54, 55 e 61? Este livro coloca e responde essas questões, embora a autora adiante que não pretendeu "escrever a história do PSD, tarefa por demais ambiciosa" (1). Mas seu estudo é, sem dúvida, uma contribuição valiosa e polêmica para a compreensão do que foi o partido, a meu ver de muitas "raposas" para poucos reformistas. As imagens correntes são recuperadas numa análise precisa - o "pessedismo mineiro", a conciliação e a tolerância, o cálculo político - que se completa com o primoroso "manual do bom pessedista". O perfil do PSD se identifica, ainda, na força eleitoral, na competência administrativa, na socialização das lideranças e... na falta de democracia interna. Alguns pontos se destacam para a análise de todo o sistema, como as relações potencialmente conflitivas entre Executivo e Legislativo; a importância decisória do poder regional e local, bem como as exigências de alianças e coligações (partido nacional seria mesmo uma "ficção legal"?) e as condições para o equilíbrio de um pacto conservador. A tese central aponta o PSD como o fiador da estabilidade do regime, num sistema partidário pluralista, e que se mantém moderado até o final da década de 50. Até então o PSD encarna o centro, forte e por todos reconhecido, atuando ou omitindo-se (a tal "omissão preventiva") para preservar-se como o principal negociador político. A UDN esperneia, o PTB cresce, mas é o PSD que dá o tom. Apresentado originalmente como uma dissertação de mestrado no IUPERJ, este livro revela, de saída, uma qualidade nem sempre presente nas teses acadêmicas a breve introdução teórica é pertinente à pesquisa! Isto é, concordando ou discordando, em momento algum a "teoria" nos entendia como a tradicional "muleta" ou, em versão mais generosa, como uma digressão, sofisticada e inútil. A abordagem do esquema desenvolvido por Giovanni Sartori para a análise de sistemas partidários permanece diretamente vinculada ao objeto em estudo. De forma crítica e inovadora, Lúcia Hippolito reavalia o modelo sartoriano, apresentando a hipótese de que a tendência centrípeta do pluralismo moderado se dá justamente a partir da existência de um centro ocupado por um partido sólido - no caso o PSD e sua formidável política de arranjos e compromissos. Creio ser esta a primeira vez que o instigante trabalho de Sartori (1976) é aplicado a um estudo concreto sobre partidos no Brasil. Dentre as questões levantadas, gostaria de retomar a argumentação em torno do PSD como "administrador das crises", e a maneira como a variável "radicalização" é incluída no esquema teórico. Em decorrência, destacaria, na parte mais específica da análise histórica, minha discordância com o enfoque (não) dado ao papel dos militares, que aparecem fugazmente como atores secundários. O PSD é apresentado, convincentemente aliás, como o fiador da estabilidade, por conseguir administrar as crises com eficiência(2). Seria interessante avançar um pouco a análise, certamente sedutora para todos - e não apenas para os pessedistas históricos - que sempre admiraram a sabedoria, a moderação e o equilíbrio do velho partido. Mas, o que vem a ser "administrar a crise"? Para responder a pergunta, em qualquer caso concreto, trata-se de definir a natureza da crise e explicitar como, politicamente, se contornam, adiam ou abrandam suas conseqüências. No exemplo em questão, mesmo admitindo-se a conciliação como a virtude por excelência do PSD, o que teria significado, na prática esse "conciliar" no plano econômico e político? Administrar ou gerir a crise indica, sempre, uma ação organizada para minorar os efeitos da crise, e não para atuar sobre suas causas; significa aceitar a manutenção das regras do jogo, a permanência do regime político e do sistema econômico. Nesse sentido, toda ação de administração da crise é conservadora, nunca inovadora, seja para a direita seja para a esquerda (já que lidamos com noções de centro e polarizações, justifica-se, como no livro, falar em esquerda e direita). Nessa perspectiva fica evidente, e Lúcia tem toda razão, a compreensão do PSD como partido de centro. No entanto, partindo-se apenas dessa constatação não se responde à pergunta crucial: seria possível evitar o colapso do regime pela simples continuidade da administração da

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  • RESENHASDe Raposas e Reformistas: o PSD e a experincia democrtica brasileira (1945-64) - de Lcia Hippolito, Ed. Paze Terra, 1985, 340 pgs.por Maria Victoria Benevides*

    Em 1964, segundo Lcia Hippolito, "o comando pessedista assistiu, perplexo", a tomada do poder pelos militares."Fragmentado, ablico, disfuncional", o Partido Social Democrtico deixava o palco iluminado da cena poltica. Comoisso foi possvel com o slido PSD, o todo-poderoso partido da "repblica populista"? Aquele partido que soubera,com tanta habilidade, "administrar" e superar as crises dramticas de 54, 55 e 61?

    Este livro coloca e responde essas questes, embora a autora adiante que no pretendeu "escrever a histria do PSD,tarefa por demais ambiciosa" (1). Mas seu estudo , sem dvida, uma contribuio valiosa e polmica para acompreenso do que foi o partido, a meu ver de muitas "raposas" para poucos reformistas. As imagens correntes sorecuperadas numa anlise precisa - o "pessedismo mineiro", a conciliao e a tolerncia, o clculo poltico - que secompleta com o primoroso "manual do bom pessedista". O perfil do PSD se identifica, ainda, na fora eleitoral, nacompetncia administrativa, na socializao das lideranas e... na falta de democracia interna.

    Alguns pontos se destacam para a anlise de todo o sistema, como as relaes potencialmente conflitivas entreExecutivo e Legislativo; a importncia decisria do poder regional e local, bem como as exigncias de alianas ecoligaes (partido nacional seria mesmo uma "fico legal"?) e as condies para o equilbrio de um pactoconservador. A tese central aponta o PSD como o fiador da estabilidade do regime, num sistema partidrio pluralista, eque se mantm moderado at o final da dcada de 50. At ento o PSD encarna o centro, forte e por todosreconhecido, atuando ou omitindo-se (a tal "omisso preventiva") para preservar-se como o principal negociadorpoltico. A UDN esperneia, o PTB cresce, mas o PSD que d o tom. Apresentado originalmente como umadissertao de mestrado no IUPERJ, este livro revela, de sada, uma qualidade nem sempre presente nas tesesacadmicas a breve introduo terica pertinente pesquisa! Isto , concordando ou discordando, em momentoalgum a "teoria" nos entendia como a tradicional "muleta" ou, em verso mais generosa, como uma digresso,sofisticada e intil. A abordagem do esquema desenvolvido por Giovanni Sartori para a anlise de sistemas partidriospermanece diretamente vinculada ao objeto em estudo. De forma crtica e inovadora, Lcia Hippolito reavalia omodelo sartoriano, apresentando a hiptese de que a tendncia centrpeta do pluralismo moderado se d justamente apartir da existncia de um centro ocupado por um partido slido - no caso o PSD e sua formidvel poltica de arranjose compromissos. Creio ser esta a primeira vez que o instigante trabalho de Sartori (1976) aplicado a um estudoconcreto sobre partidos no Brasil. Dentre as questes levantadas, gostaria de retomar a argumentao em torno do PSDcomo "administrador das crises", e a maneira como a varivel "radicalizao" includa no esquema terico. Emdecorrncia, destacaria, na parte mais especfica da anlise histrica, minha discordncia com o enfoque (no) dado aopapel dos militares, que aparecem fugazmente como atores secundrios.

    O PSD apresentado, convincentemente alis, como o fiador da estabilidade, por conseguir administrar as crises comeficincia(2). Seria interessante avanar um pouco a anlise, certamente sedutora para todos - e no apenas para ospessedistas histricos - que sempre admiraram a sabedoria, a moderao e o equilbrio do velho partido. Mas, o quevem a ser "administrar a crise"? Para responder a pergunta, em qualquer caso concreto, trata-se de definir a naturezada crise e explicitar como, politicamente, se contornam, adiam ou abrandam suas conseqncias. No exemplo emquesto, mesmo admitindo-se a conciliao como a virtude por excelncia do PSD, o que teria significado, na prticaesse "conciliar" no plano econmico e poltico? Administrar ou gerir a crise indica, sempre, uma ao organizada paraminorar os efeitos da crise, e no para atuar sobre suas causas; significa aceitar a manuteno das regras do jogo, apermanncia do regime poltico e do sistema econmico. Nesse sentido, toda ao de administrao da crise conservadora, nunca inovadora, seja para a direita seja para a esquerda (j que lidamos com noes de centro epolarizaes, justifica-se, como no livro, falar em esquerda e direita). Nessa perspectiva fica evidente, e Lcia tem todarazo, a compreenso do PSD como partido de centro. No entanto, partindo-se apenas dessa constatao no seresponde pergunta crucial: seria possvel evitar o colapso do regime pela simples continuidade da administrao da

  • crise, hiptese implcita no livro? Qual a verdadeira natureza da crise em 1964? No se tratava, a meu ver - emborapresente e aguda na conjuntura - de uma crise de representao popular ou do sistema partidrio, mas,primordialmente, do funcionamento do sistema econmico e da legitimidade do poltico, contestado esquerda e direita. A atuao do PSD deve ser entendida nesse contexto. A desocupao do centro - de que fala a autora - ocorriacomo uma conseqncia inevitvel, pois nas crises graves o centro, seja qual for, desaparece. Alis, a fragmentao e odeclnio eleitoral do PSD atingiram tambm o outro grande partido conservador, a UDN.(3)

    Quanto "radicalizao", questiono a hiptese de Lcia Hippolito sobre o sistema pluralista que se mantm"moderado" at o final dos anos 50. No teria havido uma forte radicalizao, j no incio da dcada, na polarizaopr e contra Getlio? Lembro, como smbolo, as palavras do velho liberal Otvio Mangabeira, a lastimar a eleio doarquiinimigo: "O que se instalou no Catete com a volta do ex-ditador no foi propriamente um governo. Foi umaconspirao". E a "Banda de Msica" da UDN, e o envolvimento dos militares com a faco lacerdista? Por outrolado, as oscilaes do PTB e o desinteresse do prprio PSD que, como afirma a autora, preferia "no defender ogoverno", no indicariam que a radicalizao florescia em terreno frtil, ferindo de morte a "conciliao" no segundogoverno Vargas? (4)

    Quanto ao papel dos militares, discordo radicalmente da "omisso" de Lcia Hippolito. Em todas as crises do perodo(e desde o Manifesto dos Coronis!), os militares tiveram ao to marcante que seria impensvel apresent-los comocoadjuvantes. Foram atores polticos de primeiro plano (lembro a definio de Afonso Arinos: "o grande partido nashoras de crise, o Exrcito"). Em 1954 no me parece que foi o PSD quem "resolveu" a crise, mas o prprio Getlio,com sua trgica opo pelo suicdio como arma poltica. Em 1961, se a emenda parlamentarista foi uma soluo, "civile poltica", no h como diminuir a eficiente presso dos militares para "forar o consenso". No me pareceigualmente razovel negligenciar o papel das Foras Armadas na crise de novembro de 1955, que definiria o poder doPSD e seus aliados. Como se sabe, a posse de Juscelino e Jango s foi resolvida na "administrao da crise" pelosmilitares - a seu modo, claro, com o famoso "contragolpe preventivo" do General Lott. Nesse ponto so dignos denota os depoimentos de Juscelino - "meu governo se apoiava num trip: o general ministro da Guerra, o coronel chefede Polcia e o ministro da Justia" - e de Tancredo Neves, que se referia aos militares como "co-responsveis e agentesfiscalizadores junto ao governo" (5). A sabedoria maior do PSD, naquelas crises, estaria em perceber claramente deque lado sopravam os ventos da diviso entre os militares e dela se beneficiar. Ainda Afonso Arinos - udenistamineiro, mas por isso mesmo identificado com o estilo pessedista - quem afirma: "a diviso das Foras Armadas garantia do poder civil". As crises de 54 e 55, beneficirias daquela diviso, adiaram a fatdica unio de empresrioscom militares, receita infalvel para o sucesso do golpe de 64.

    A leitura desse livro provoca uma reflexo, das mais oportunas, sobre aquelas "heranas" que refletem, at hoje, afragilidade de nosso sistema partidrio. A "democracia controlada", sob a hegemonia do PSD, expe as limitaes dosistema de representao no populismo. Se a valorizao da competio partidria e eleitoral garantia um mnimo derepresentatividade, o sistema permanecia bloqueado para a efetiva participao poltica das massas, ento reconhecidasatravs do voto. Nesse sentido, uma anlise mais interessante deste livro se refere ao conflito, dentro do partido, entreas "raposas" e a "ala moa", no incio dos anos sessenta. Os dissidentes colocavam em risco os pilares da tradiopoltica das elites, como o coronelismo, o clientelismo e a "oligarquizao das chefias". Foram esmagados. LciaHippolito conclui (e, felizmente, com frieza de analista, apesar de sua ntida admirao pela competncia pessedista)que a "fuga do PSD do centro", descambando para a direita, contribuiu para a fragmentao do partido e para ocolapso do sistema em 64. O que nos leva a refletir - com o devido "realismo", to justificado por "eles" mesmos - seno seria esta a tendncia natural dos partidos que se dizem "de centro", quando no tm a coragem de se afirmaremclaramente conservadores de direita. J que se fala, hoje, em "volta do populismo", em "retrocesso", em "radicalizaopara a direita", seria bom tentar entender como um "partido de centro", acuado pelas crescentes reivindicaes dacidadania, poderia sobreviver sem "descambar" para a direita. Basta observar, por exemplo, os rumos do atual PFL esuas inclinaes janistas. A morte de Tancredo Neves liquidou com seu velho sonho de forjar uma democratizao moda de 45, mas com o "PSD" no lugar da "UDN". No deu certo. Talvez nos tenha sobrado, como lembrouRaymundo Faoro, (6) a perspectiva tragicmica de um "Estado Novo do PMDB". NOTAS

  • * Maria Victoria de Mesquita Benevides pesquisadora do CEDEC e professora da Faculdade de Educao da USP.

    1 - O primeiro trabalho sobre o PSD nacional o de Lcia Lippi (1973). Uma interessante pesquisa sobre o PSD de Pernambuco feita por DulcePandolfi (1984). Sobre a UDN ver as teses de Otvio Dulci (1977), Isabel Picaluga (1980) e M.V. Benevides (1981). Sobre o PSP ver ReginaSampaio (1982). Sobre o PTB, alm do trabalho de Andra Loyola (1980), aguardamos a publicao das pesquisas de Miguel Bodea (1986), deAngela Castro Gomes e M. Celina d'Araujo, e a tese, em andamento, de Lucila de Almeida Neves.

    2 - Discuti a estabilidade do governo Kubitschek e o papel da aliana PSD-PTB em O Governo Kubitschek (1976). Neste livro Lcia Hippolitoretoma o tema da estabilidade e dos partidos, porm adotando a abordagem de Wanderley Guilherme dos Santos (1979).

    3 - Vrios autores discutem o declnio dos partidos conservadores, no perodo 45-64; sobretudo a partir do livro de Glaucio Dillon Soares (1973);Olavo Brasil reavalia tal tese em Partidos Polticos Brasileiros (1983).

    4 - Ver, a respeito, o excelente livro de M. Celina Soares d' Arajo (1982).

    5 - Os depoimentos citados, assim como a discusso sobre as crises militares nesse perodo, esto em M.V. Benevides (1976, p. 185 e passim ) .

    6 - Entrevista de Raymundo Faoro. Revista Senhor n. 250/251, dez. 85.

    Bibliografia

    ARAJO, M. Celina Soares d'. Osegundo governo Vargas, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

    BENEVIDES, M. V. A UDN e o udenismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

    ____.. O governo Kubitschek, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

    BODEA, Miguel. O PTB e o populismo: o caso Rio Grande do Sul, USP, 1986.

    BRASIL, Olavo. Partidos polticos brasileiros, Rio de Janeiro, Graal, 1983.

    DULCI, Otvio. A UDN e o antipopulismo, UFMG, 1977.

    LIPPI, Lucia. O Partido Social Democrtico, IUPERJ (mimeo), 1973.

    LOYOLA, Andra. Os sindicatos e o PTB, Rio de Janeiro/So Paulo, Vozes/CEBRAP, 1980.

    PANDOLFI, Dulce. Pernambuco de Agamenon Magalhes, FUNDAJ/Ed. Massangana, Recife, 1984.

    PICALUGA, Isabel. Partidos polticos e classes sociais - a UDN na Guanabara, Rio de Janeiro, 1980.

    SAMPAIO, Regina. Ademar de Barros e o PSP, So Paulo, Global; 1982.

    SANTOS, Wanderley Guilherme dos. The cauculus of conflict, Stanford, 1979.

    SARTORI, Giovanni. Parties and Party Systems, Cambridge University Press, 1976. (Traduo brasileira Zahar/Universidade de Braslia, 1982.)

    SOARES, Glaucio Dillon. Sociedade e poltica no Brasil, So Paulo, Difel, 1973. A Antropologia de Grupos Urbanos - de Ruben George Oliven, Editora Vozes, Petrpolis, 1985.

  • por Maria do Rosrio R. Salles*

    Na anlise das contribuies recentes que a Antropologia tem dispensado ao estudo da chamada "problemticaurbana", no suficiente reconhecermos que a pesquisa de reas urbanas sempre foi relevante na tradioantropolgica, especialmente aquela que se identifica com os "estudos comunidade". Realmente se esses trabalhosrepresentam contribuio importante no desvendamento de determinados fenmenos, no chegam a constituir umaAntropologia Urbana propriamente dita que se caracteriza pela utilizao sistemtica de teorias e mtodos prprios Antropologia, no estudo de sociedades complexas visando a compreenso da dinmica da sociedade urbano-indstrialcontempornea.

    Assim, nas contribuies recentes da Antropologia que vai se centrar a presente anlise de Ruben G. Oliven. Valelembrar, no Brasil, as demais Cincias Sociais muito se tm valido dos resultados da pesquisa antropolgica para oconhecimento da realidade urbana. Nada mais oportuno, portanto, do que um balano desta contribuio.

    Discutindo, em dois captulos iniciais os desafios contidos na transposio para as sociedades complexas, daabordagem antropolgica, o autor reconhece que dentro de determinados limites prprios anlise que reside ariqueza da interpretao - " talvez atravs da observao participante (ou da participao observante) que se tem apossibilidade de analisar, por exemplo, a dimenso da dominao no cotidiano e perceber como a cultura reflete emedeia as contradies de uma sociedade complexa, procurando estudar a cultura no como algo externo mas comoum fenmeno que produzido pelos homens nas suas relaes sociais. justamente por se preocupar em estudar osreflexos das grandes transformaes do dia a dia e como elas so vivenciadas e reelaboradas por diferentes camadassociais, que a Antropologia vem desempenhando um papel to relevante na compreenso da dinmica de sociedadescomplexas" (p. 11 e 12).

    Num terceiro captulo intitulado "A cidade e as Teorias Sociais", o autor passa a empreender um balano das principaisteorias que encaram a cidade como uma varivel independente alm de entend-la como possuindo a propriedade decriar um modo de vida marcado fundamentalmente por foras desagregadoras e caracterizado pela desorganizaosocial e cultural. A idia de que as cidades desencadeariam uma "nova forma de cultura caracterizada por papisaltamente fragmentados, predominncia dos contactos secundrios sobre os primrios, isolamento, superficialidade,anonimato, relaes sociais transitrias e com fins instrumentais, inexistncia de um controle social direto, diversidadee fugacidade dos envolvimentos sociais, etc." (p. 14), encontrou na chamada Escola de Chicago e, especialmente emRobert Redfield (1947) e Louis Wirth (1938), seus principais representantes.

    De R. Redfield a Antropologia e a Sociologia Urbana da primeira metade deste sculo, herdaram principalmente aidia do "continuum folk-urbano" provocado pelo processo de. mudana e aumento da heterogeneidade social que,transposta para a anlise dos fenmenos de desenvolvimento e subdesenvolvimento, desencadeou a "teoria damodernizao" que tende a explicar a transformao da sociedade como resultado da cultura e no o contrrio.

    bom lembrar tambm a influncia de G. Simmel (1950), que, numa perspectiva psicossocial, enfatiza, de umaperspectiva de patologia social, a funo desagregadora da cidade. Mais recentemente coube a Oscar Lewis (1966), ascrticas ao modelo do continuum folk-urbano e a criao da idia de uma cultura da pobreza.

    Podemos dizer que as teorias sobre a marginalidade social que tanto impregnaram as interpretaes sobre osubdesenvolvimento latino-americano na dcada de 70, foram tambm fortemente influenciadas por toda essa tradioque via a cidade como uma varivel independente, em que noes como falta de participao e integrao nasinstituies principais da sociedade aparecem como o eixo de explicao da desorganizao social e do"subdesenvolvimento".

    A nosso ver, seria necessrio que trabalho semelhante ao estudo de Ruben G. Oliven fosse desenvolvido para aSociologia, especialmente no que se refere aos estudos recentes do que se tem convencionado chamar de SociologiaUrbana no Brasil. necessrio resgatar a trajetria da chamada Sociologia Urbana que, assim como a AntropologiaUrbana tem sido criticada por "carecer de objeto prprio". necessrio resgatar a trajetria da produo em que se

  • proceda a uma atualizao do conhecimento que signifique um avano na anlise da especificidade dos problemasurbanos latino-americanos e brasileiros em particular. Neste sentido, h que relativizar a influncia de autores que,como M. Castells, Jean Lojkine, C. Topalov, F. Godard, E. Preteceille, por exemplo, esto preocupadospreferencialmente com "o urbano" de pases capitalistas avanados. E talvez resgatar a contribuio de H. Lfbvre nasua anlise sobre as relaes sociais no contexto da urbanizao contempornea luz de uma reflexo da relao sobreo pensamento marxista e a cidade

    Voltando entretanto ao livro de Ruben G. Oliven, num 4. captulo intitulado "Pesquisas Antropolgicas no ContextoUrbano", o autor rene, segundo seus principais temas, as pesquisas mais significativas da produo antropolgicasobre as cidades no Brasil.

    Assim, sob o tema: "Migrao e Trabalho", os estudos tm privilegiado a migrao rural-urbana e a progressivaadaptao dos migrantes vida urbana. Neste sentido, j Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Cndido, estudopioneiro sobre o tema, afasta-se da teoria do continuum rural-urbano por suas concluses: a tendncia do mundo rural a incorporao de padres culturais que se originam e so difundidos a partir das cidades. No h porque postular aexistncia de uma cultura rural e de uma cultura urbana.

    Na verdade, os trabalhos posteriores, igualmente importantes, de Eunice R. Durham (1973), de Luiz Antonio Machadoda Silva (1978), Cludia Menezes (1976), entre outros analisados pelo autor, discutem inmeros aspectos da vida dosmigrantes rurais na cidade, que evidenciam a no-ruptura com o mundo rural, mas o desenvolvimento, atravs de uma"reserva cultural" anterior, de formas e estratgias inovadoras na vivncia dos problemas urbanos.

    Uma dessas formas o mutiro, ou a rede de trocas de ajuda, de informaes, de trabalho, etc.

    Esta gama variada de relaes de reciprocidade, solidariedade, e competio tem sido amplamente analisada pelosestudiosos e apreendida pelo autor sob o tema "Formas de sociabilidade no contexto urbano".

    Os trabalhos desenvolvidos nesta linha indicam que podemos rechaar a idia de que a urbanizao traz comoconseqncia a desorganizao social e cultural, assim como a viso da teoria da modernizao segundo a qual osurgimento de novos comportamentos e orientaes culturais nas elites e nas massas so precondies para o arrancodo desenvolvimento econmico, numa perspectiva linear da passagem das sociedades tradicionais para as sociedadesmodernas. Ou seja, em sociedades com urbanizao acelerada, fenmenos como o clientelismo e o paternalismoencontram formas variadas de sobrevivncia. Da que se encontre uma gama variada de redes de relaes sociais que,como aponta L. Lommitz (1975), vo desde a reciprocidade de grupos de vizinhos, redes em geral baseadas emunidades familiares e no em indivduos, at redes assimtricas do tipo patro-cliente que diferem das primeiras pelaexistncia de um chefe, fenmeno que no se restringe s classes mais baixas. Realmente, os estudos sobre as classesmdias urbanas revelam a utilizao do compadrio como sistema de reciprocidade de favores ou de formasdiferenciadas de relacionamentos informais.

    Assim, diz o autor, os estudos esto a indicar que, "ao contrrio da previso de que a urbanizao implicaria noenfraquecimento dos laos de parentesco e no declnio do significado social da famlia (cf. L. Wirth, 1938), ela umainstituio de grande relevncia no meio urbano da Amrica Latina" (p. 38), evidncia j colocada pelos estudos de O.Lewis sobre o Mxico.

    Em seguida o autor relaciona as pesquisas sobre "Religio" no meio urbano.

    Realmente, ressalta Ruben G. Oliven, autores com posies tericas bem diferentes como Durkheim, Freud, Weber eMarx, enfatizam o distanciamento ou a tendncia ao distanciamento da religio e o desenvolvimento de um processode secularizao e racionalizao que estaria em curso nas sociedades modernas. A secularizao aparece comoconseqncia da urbanizao para diversos autores.

    Os estudos antropolgicos com relao ao Brasil, entretanto, estariam mostrando que, se h uma diminuio da adeso

  • ou freqncia ao catolicismo nas grandes cidades, h tambm um enorme crescimento da Umbanda e Pentecostalismo.

    Questiona-se assim, a suposta racionalidade da vida nas cidades. Veja-se a esse respeito, por exemplo, Gilberto Velhoe L. Antonio Machado da Silva (1977).

    Finalmente, Ruben G. Oliven aponta o tema "Lazer" como uma rea relativamente negligenciada pelos cientistassociais que tm privilegiado em suas anlises a categoria trabalho.

    Na anlise deste tema, o autor faz um paralelo entre duas vertentes opostas nas cincias sociais, uma conservadora,como a representada pela Escola de Chicago e uma "progressista", representada pelas teorias sobre a indstria culturalda Escola de Frankfurt - ambas postulam que a "sociedade urbano-industrial tender a destruir nos migrantes ehabitantes das cidades suas razes e tradies culturais, impondo-lhes uma cultura padronizada pelos meios decomunicaes de massa que seriam responsveis por um processo de homogeneizao de comportamentos, valores,prticas e orientaes" (p. 45).

    Ao contrrio, diz o autor, trabalhos como os de Jos Guilherme C. Magnani (1980) e de Francisco Weffort (1979),mostram que "a dinmica cultural em cidades como as brasileiras bem mais complexa, havendo uma rica articulaoentre expresses da cultura popular e da indstria cultural" (p. 46).

    Assim, atravs da trajetria terica desenvolvida nos primeiros captulos e pelo balano da produo realizada nocaptulo IV, observam-se os avanos que os estudos antropolgicos no meio urbano brasileiro significam no apenaspara a Antropologia, mas para toda uma teoria social que pretende dar conta das transformaes das sociedadescontemporneas. O resultado das pesquisas em sociedades como as latino-americanas e especialmente dasdesenvolvidas no Brasil, aponta para a superao das teorias que privilegiam o estudo das cidades isolando-as docontexto global da transformao das sociedades. NOTAS * Maria do Rosrio Rolfsen Salles do Departamento de Sociologia (Programa de Mestrado em Sociologia Rural e Urbana),ILCSE/UNESP/Araraquara, S.P. Bibliografia

    DURHAM, Eunice. A caminho da cidade, So Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.

    LEWIS, Oscar. "The culture of poverty". Scientific American, vol. 215, n. 4; 1966.

    LOMMITZ, L. Como sobreviven los marginados, Mxico, Siglo XXI, 1975.

    MAGNANI, Jos Guilherme C. "Ideologia, Lazer e Cultura Popular". Dados, vol. 23, n. 2, 1980

    MENEZES, Cludia. A. mudana, Rio de Janeiro, Imago, 1976.

    REDFIELD, Robert. "The folk society". American Journal of Sociology, vol. 25; n. 4, 1947.

    SILVA, Luiz Antonio Machado da. "O significado do botequim". In: Cidade: usos e abusos. So Paulo, Brasiliense, 1978

    SIMMEL, G. "The Metropolis and mental life". In: Wolf, Kurt H. (ed.) The Sociology of G. Simmel, Glencoe, III, The Free Press, 1950.(Copyright by The University of Chicago, publicado pela primeira vez em 1902.)

    VELHO, Gilberto & SILVA, Luiz Antonio Machado da. "A organizao social no meio urbano". Anurio Antropolgico 76, Rio de Janeiro,Tempo Brasileiro, 1977.

  • WEFFORT, Francisco. "Nordestinos em So Paulo". In: Valle, Ednio & Queiroz, J. J. (orgs.) A cultura do povo, So Paulo, Cortez e Morais,1979.

    WIRTH, Louir. "Urbanism a way of life". American Journal of Sociology, vol. XLIV, n 1, jan. 1938. Olga - de Fernando Morais, So Paulo, editora Alfa-mega, 1985, 314 p.por Marco Aurlio Garcia*

    H mais de seis meses a biografia de Olga Benrio, escrita pelo jornalista Fernando Morais figura nas listas dos livrosmais vendidos no Brasil, ocupando invariavelmente o primeiro lugar. O impacto que a vida desta alem, judia ecomunista tem sobre os leitores brasileiros no surpreendente. Sua histria explica.

    Refugiada em Moscou durante os anos trinta, depois de uma precoce e atribulada militncia no Partido ComunistaAlemo, Olga, j ento dirigente da Internacional Comunista Jovem e, ao que tudo indica, trabalhando em tarefasconspirativas, viria a conhecer Luis Carlos Prestes, a lendria figura das lutas tenentistas que havia recusado a direomilitar da revoluo de 1930 e se aprestava para voltar a seu pas a fim de dirigir uma outra revoluo. Todos oscondimentos de um bom feuilleton parecem estar reunidos. O entrecruzamento de duas trajetrias de vida marcadaspela aventura que acaba por desembocar em uma relao amorosa. A clandestinidade, a conspirao e a insurreiofracassada seguidos da brusca separao do casal pela represso. Olga finalmente deportada para a Alemanha nazista;grvida, d luz uma filha de Prestes no campo de concentrao. Tempos depois executada sem saber do destino desua filha j a salvo pela ao da me do dirigente comunista, Dona Anita Leocdia.

    Quando se fala em feuilleton, no se est querendo em nada desmerecer o livro de Fernando Morais. Pelo contrrio.Que mais se pode pedir a uma pesquisa histrica, do que o envolvimento que Olga tem produzido em seus leitores?Das mais de trinta teses publicadas nos ltimos anos sobre a esquerda brasileira, seguramente nenhuma teve umpblico to apaixonado como o do livro de Fernando. No se pode mais fazer o culto do sociologus ou outros jargesdo gnero detrs dos quais se oculta uma pretenso de cientificismo e rigor terico de resultados no raro duvidosos.Alm do que a pesquisa realizada pelo autor de fazer inveja a qualquer acadmico pela amplitude e ineditismo deinformaes obtidas, permitindo esclarecer de forma original vrios aspectos dos acontecimentos de 1935 no Brasil,at agora pouco explorados ou simplesmente no revelados. Cite-se, por exemplo, mas no o nico caso, areconstituio do grupo da Internacional Comunista enviado ao Brasil e de seu papel na insurreio de novembro quea histria oficial registra sob o nome de "intentona".

    O livro de Fernando Morais suscita para a academia - os historiadores e analistas das esquerdas, em especial - ainteressante questo da relao entre os pesquisadores universitrios e de jornalistas que se dedicam sobre um mesmotema. Reflexo tanto mais complicada de fazer se se leva em conta que o trabalho de Fernando Morais - no caso, umabiografia - tem sido at agora estigmatizado como "gnero menor", talvez pela tradio brasileira onde proliferam OImperador Galante e outros textos que vo do frvolo ao apologtico, aparecendo a vida de Stephan Zweig, Morte noParaso, de Alberto Dines, como um dos raros momentos de inspirao em meio a um oceano de mediocridade.

    Diferentemente de outros pases, no h uma tradio biogrfica na literatura brasileira, acadmica ou jornalstica. Lfora jornalistas como Lacouture foram capazes de produzir estudos da envergadura das biografias sobre Malraux, LeonBlum, Mends-France, Maurois e o recente De Gaulle. Dos meios acadmicos todos sabero valorizar pelaabrangncia e/ou profundidade as vidas de John Reed (Rosenstone) e Maurice Thorez (Philippe Robrieux) para nofalar nos monumentais e indispensveis Karl Marx-Friedrich Engels (Auguste Coreu) e a trilogia inacabada sobreStlin, Trotsky e Lenin (Issac Deutscher). No Brasil h muito pouco a registrar e de se esperar que o xito deFernando Morais empurre jornalistas e pesquisadores universitrios na mesma direo.

    Fica no entanto a pergunta: qual a especificidade do trabalho biogrfico de um jornalista em relao ao de umacadmico? Esta no poder obviamente residir na "ligeireza" do primeiro versus "profundidade" do segundo, menosainda se esta diferena recobrir questes de estilo, pois de se desejar que os estudos universitrios (biogrficos ouno) libertem-se da rida linguagem que parecia dar-lhe estatuto cientfico. claro que no h especificidades

  • literrias nas duas abordagens que podem, de resto, ser observadas em Olga. Fernando Morais antes de tudo umreprter e isto se reflete no tom descritivo de seu texto que, no raro, aparece como um roteiro cinematogrfico (o quefacilitar o trabalho de Slvio Tendler que j anunciou sua inteno de filmar Olga). Opera em certos momentos comoum ficcionista, quando atribui a seus personagens certos tats d'me, reconstitui situaes e dilogos em formadramtica que no esto analisados (e seria ridculo e pesado se o estivessem) por notas-ao-p-da-pgina.

    Talvez a separao em relao ao acadmico aparea mais na contextualizao de certas situaes e na forma pelaqual utiliza suas fontes. A contextualizao do jornalista, sobretudo quando trabalha na forma de um ficcionista comoFernando o faz, busca mais captar os elementos que configuram o "clima" dentro do qual a trama se desenvolveu e,neste particular, a escolha dever necessariamente ser presidida por critrios de natureza subjetiva que insistam sobre oelemento dramtico da situao. Um acadmico no ficaria insensvel a certos detalhes da histria. Simplesmente dar-lhes-ia um outro lugar. Eventualmente, se se constitusse em elemento fundamental de convico de uma tese qualquer,apareceria como pea probatria; caso contrrio, seria resgatado apenas como elemento de estilo sem ter a mesmaprincipalidade que ter no outro texto.

    A contextualizao de um universitrio exploraria sem dvida alguma de forma distinta o envolvimento dospersonagens principais - Olga e Prestes - com a Internacional Comunista e desta com os acontecimentos de 1935 noBrasil e o faria a partir dos prprios elementos que Morais pesquisou e que esto presentes em seu livro. bvio queOlga Benrio mais do que uma mulher que d uma "fachada" matrimonial para Prestes em seu clandestino priplopelo mundo, antes de chegar ao Brasil, e, posteriormente, aqui mesmo, enquanto se tramava-a insurreio. Um estudocomparativo dos grupos da IC enviados a outros pases em situaes semelhantes, e sobre os quais h literatura,permitiria desvendar melhor a natureza de seu papel e, conseqentemente, avaliar mais claramente o envolvimento doComintern nos acontecimentos brasileiros. Fernando Morais no esconde elementos, ao contrrio, deixa-os expostos,no estabelecendo, no entanto as conexes que no poderiam escapar a um outro tipo de trabalho.

    Pela mesma razo seguramente, ainda que neste ponto se possa somar algum parti-pris do autor, o leitor fica privadodo conhecimento do grave conflito que sacudia a Internacional Comunista e que teve mais de uma repercusso nahistria mesma que Fernando narra. Nas pginas 276-277, por exemplo, o autor revela como Olga cruzou no campo deconcentrao de Ravensbrck com a militante comunista alem Margarete Bber-Neumanri que l estava comoprisioneira. O episdio, em realidade consta do livro de Margarete, La Rvolution Mondiale (traduo do originalalemo, Paris, Castermann, 1971) no qual ela relata, como Morais menciona, que esteve a ponto de viajarclandestinamente para o Brasil em 35, juntamente com seu marido o dirigente do PC alemo Heinz Neumann. A certaaltura diz Morais: "A divergncia dos Neumann com alguns dirigentes dirigentes do Comintern, explicou Margarete,impediram que eles embarcassem - o que provavelmente acabou por lhes salvar a vida." (p. 277)

    Ora, o que no dito, mas extremamente relevante para configurar o clima de pugna poltica na IC e a repressoexistente na URSS, que Margarete se encontrava em Ravensbrck porque foi entregue a Hitler pelo governosovitico, depois de haver passado uma temporada nos campos de concentrao na Sibria. Se certo que ela teveefetivamente a sorte de sobreviver a priso, o que no aconteceu com Olga Benrio, o mesmo no ocorreu com seucompanheiro Heinz Neumann, executado, sem processo, na URSS em 1937, presumivelmente, na esteira dos grandesprocessos abertos a partir do ano anterior.

    As fronteiras, por vezes tnues, entre o jornalista e o historiador (ou cientista social em geral) passam sem dvida pelotipo especfico de relao com as fontes. Se no bigrafo-reprter est presente a preocupao em reconstituir "o queefetivamente ocorreu na histria", no historiador deve estar presente o sentimento de que o passado efetivamente esteterritrio longquo cuja plena e total reconstituio recobre uma iluso positivista, na medida em que ele ganhasucessivamente novas configuraes em funo das luzes que lhe so lanadas pelo presente. A relao do cientistasocial e do historiador com as fontes transcende a preocupao probatria, (ainda que esta no possa ser de formaalguma evacuada) na medida mesma em que no h "fatos" que falem por si prprios como se pretendeu durantemuito tempo.

    Do ponto de vista da dmarche intelectual, o historiador dever dedicar ao fato histrico uma ateno no mnimo

  • idntica, a que dedicar a sua "verso". A reflexo histrica inseparvel da reflexo historiogrfica. Neste particular,Olga alm de uma apaixonante reconstituio de um tempo e de seus protagonistas, quase todos perdidos no passado, tambm um depoimento sobre o presente em que foi escrito. Reunindo fontes para os historiadores e analistas doperodo, o livro de Fernando ele prprio um objeto de anlise sobre o estado em que se encontra no Brasil a reflexosobre questes relacionadas com a histria de nossa esquerda Mrito adicional de um livro que provoca e provocarpor muito tempo a paixo pela histria. NOTAS*Marco Aurlio Garcia professor do Departamento de Histria da Universidade Estadual de Campinas. Green Politics. The Global Promise - de Fritjof Capra e Charlene Spretnak, New York, E. P. Dutton, Inc., 1984, 244p.por Eduardo J. Viola*

    Este livro constitui a mais completa anlise, at agora publicada, do significado do Partido Verde na Repblica FederalAlem e sua repercusso na poltica mundial. Os autores, Fritjof Capra e Charlene Spretnak (professores da Universityof California, Berkeley), j tinham escrito previamente sobre o paradigma filosfico-poltico que agora expressa-se napoltica verde. Capra autor de dois livros de profunda repercusso internacional nos ltimos anos (The Tao of Physicse The Turning Point) que tratam sobre as implicaes filosficas, sociais e polticas da cincia contempornea.Spretnak, especialista em estudos sobre a mulher, autora de Lost Goddesses of Early Greece, The Politics of Women'sSpirituality e Naming the Cultural Forces that Push Us Toward War".

    Green Politics composto de trs partes: a primeira e fundamental trata sobre os verdes e a emergncia duma culturapoltica ps-materialista na Alemanha; a segunda analisa a poltica verde em diversas regies do mundo (resto daEuropa, Canad, Austrlia, Nova Zelndia, Japo); e a terceira discute os dilemas e perspectivas da alternativa verdenos EUA.

    Os autores percorreram extensamente o mapa verde alemo em 1983, convivendo com os coletivos, realizandoentrevistas em profundidade com dezenas de militantes e dirigentes e acompanhando os primeiros meses de atuaodos deputados verdes no Parlamento em Bonn. Enfatizando o impacto dos verdes na cultura poltica alem os autoresconsideram que: "Poucos alemes ocidentais sentem-se neutros em relao aos verdes. Os dois milhes de pessoas quevotaram neles na eleio federal de maro de 1983... acreditam que os verdes so uma voz necessria no sistemapoltico, que eles so a m conscincia personificada do governo e os guardies ecolgicos do futuro. Outros cidadossentem que os verdes esto corretos em algumas questes, mas so excessivamente radicais em geral. Outros vem osverdes como disruptores do status quo a quem falta uma compreenso das leis bsicas da economia. Finalmente,grande parte da esquerda radical percebe os verdes como no sendo suficientemente radicais e disruptivos..." (p. 143).

    Primeiramente os autores contrapem, ao paradigma materialista dominante nas sociedades capitalistas e socialistas, oparadigma ps-materialista que est emergindo na ltima dcada, e do qual os verdes so expressivos portadores,transcendendo o marco de referncia esquerda-direita.

    Segundo Capra-Spretnak "O novo paradigma enfatiza a interconexo e interdependncia de todos os fenmenos, assimcomo a insero de indivduos e sociedades no processo cclico da natureza. Ataca a dinmica injusta e destrutiva dopatriarcado. O novo paradigma assenta-se na justia social e num sistema econmico sustentvel, ecolgico,descentralizado e eqitativo - composto de instituies flexveis, nas quais as pessoas tenham significativo controlesobre suas vidas. Advogando por uma ordem mundial cooperativa, a poltica verde rejeita todas as formas deexplorao: da natureza, dos indivduos, dos grupos e dos pases. Est comprometida com a no-violncia em todos osnveis. A poltica verde encoraja uma vida cultural rica que respeita o pluralismo dentro da sociedade e estimula ocrescimento interior que leva sabedoria e compaixo" (p. XIX-XX).

    Uma vez introduzidas as caractersticas do novo paradigma, os autores analisam as condies scio-polticas da

  • emergncia dos verdes. Depois dos anos de retrao que seguiram ao fracasso do movimento contestatrio de 1968,novos movimentos sociais emergiram; entre os quais quatro so fundamentais na constituio do tronco verde, em finsda dcada de 70: ecologismo, pacifismo, feminismo e movimento contra as usinas atmicas. Depois da apresentaode listas verdes em vrias eleies municipais e estaduais, nas quais no atingiram o limite mnimo de 5%, os verdesreuniram-se pela primeira vez nacionalmente e lanaram uma lista para as eleies ao parlamento europeu em 1979,obtendo 3,2 % dos votos. Este sucesso eleitoral precipitou a fundao do Partido Verde (Karlsruhe, janeiro de 1980) noqual confluram tambm setores marxistas heterodoxos que passaram a constituir a minoria esquerdista radical dopartido. Depois de conseguir eleger deputados estaduais em sucessivas eleies em Badem-Wurttemberg, Berlim,Baixa Saxnia e Hesse, em maro de 1983 os verdes obtiveram 5,6% dos votos, elegendo 27 deputados ao ParlamentoFederal.

    Depois de analisado o processo de emergncia do movimento verde, os autores discutem extensamente os cinco pilaresda poltica verde: ecologia, no-violncia ativa, justia social, descentralizao e democracia participativa.

    Em relao ao primeiro pilar Capra-Spretnak mostram como, bem mais do que proteger o meio ambiente - meta doambientalismo -, os verdes defendem a "ecologia profunda" que explica os desequilbrios na relao sociedade-natureza em funo dos desequilbrios no interior da sociedade. A grande maioria dos verdes (excetuando uma minoriaromntica) so favorveis a um desenvolvimento ecologicamente equilibrado que inclui a utilizao prudente damaioria das tecnologias contemporneas, rejeitando somente aquelas intrinsecamente predatrias. Neste sentido, aspropostas mais difundidas entre os verdes - e que se referem ao desenvolvimento de tecnologias apropriadas quereflitam a interdependncia da humanidade com a Terra - so, entre outras, as seguintes: produo de energia flexvelque trabalha com os ciclos do sol, da gua, do vento e da corrente dos rios; agricultura de regenerao que reabasteceo solo e incorpora meios naturais de controle das pragas; fim da devastao das fontes de recursos naturais (renovveise no-renovveis); parada do envenenamento da biosfera pelos descarregamentos de lixo txico; drstico controle dapoluio do ar efetuada pelas indstrias e meios de transporte; reduo dos "nveis aceitveis" de exposio radioativa.

    Capra-Spretnak analisam extensamente a plataforma verde referente construo duma economia baseada emprincpios ecolgicos e o debate que se d no interior do partido em torno desta questo. Porm, os autores subestimamo carter ainda precrio da plataforma econmica verde. Acredito que este carter precrio deve-se ao fato de no sealicerar numa teoria econmica ecologista alternativa ao paradigma dominante keynesiano e s crticasneoconservadora e marxista. Uma teoria econmica ecologista requer um profundo trabalho de elaborao e omovimento verde ainda no reconheceu suficientemente a prioridade desta tarefa. Capra-Spretnak subvalorizam osignificado da elaborao duma teoria econmica ecologista, apostando excessivamente na vitalidade contestatria daexpanso duma nova conscincia ecolgica.

    Para os autores, o segundo pilar, a no-violncia ativa, tem para os verdes o sentido duma paralisao tanto daviolncia pessoal quanto da violncia estrutural. Eles mostram a influncia decisiva que exercem sobre os verdesThoreau, Gandhi, Martin Luther King e Gene Sharp, tanto na elaborao da doutrina da defesa social ou civil emcontraposio doutrina da defesa militar, quanto na estratgia e ttica, essencialmente pacfica da luta contra omilitarismo e a indstria de armamentos.

    O terceiro pilar da poltica verde, a justia social, discutido pelos autores de um modo menos sistemtico que osanteriores. Segundo eles o significado principal da justia social consiste em estender a democratizao scio-econmica atingida no Estado de Bem-Estar: afirmao salarial das mulheres e dos estrangeiros, quebra do oligoplioda comunicao de massas, promoo de formas cooperativas na produo e comercializao. Mas o problema dascomplexas relaes entre as diversas formas de propriedade (estatal, cooperativa, privada) e as acirradas polmicas queproduz no interior do movimento verde tratado superficialmente.

    O quarto pilar, a descentralizao, tratado rapidamente pelos autores. Eles mostram como os verdes defendem umadrstica desburocratizao das unidades administrativas e uma forte realocao do gasto pblico em favor dosmunicpios, das microrregies e dos Estados. Os verdes propem tambm a constituio, a longo prazo, de uma novaordem mundial baseada nas biorregies (determinadas segundo critrios ecolgicos e culturais) que seriam as unidades

  • duma ONU profundamente reformada.

    O quinto pilar da poltica verde, a democracia participativa de base, tratado mais extensamente e desde uma ticacrtica sem concesses. Este o lugar em que os autores encontram maior defasagem entre os princpios e a prticaverde: o machismo atenuado que predomina, em quase todos os coletivos, o estrelismo como um componente semprepresente em debates que por isso alongam-se at a exausto; o excessivo personalismo dos parlamentares federais quedificulta a atuao coletiva do bloco; os impasses do princpio da rotatividade nos rgos legislativos devido perda deeficincia implicada na rotao; a constituio de algumas lideranas carismticas a nvel nacional contrariando oprincpio da liderana limitada.

    Finalmente, os autores discutem a principal clivagem no movimento verde, entre fundamentalistas e realistas. Osprimeiros mais preocupados com a pureza do movimento, com a criao duma economia alternativa perifrica efortemente relutantes a qualquer aproximao com a social-democracia. Os realistas preocupados com a extenso domovimento verde, a formulao de um programa econmico de transio vivel, capaz de ecologizar paulatinamente asociedade desenvolvimentista, e interessados numa aproximao com vastos setores da social-democracia que semostram sensveis plataforma verde, incluindo a perspectiva de governos de coalizo social-democrata-verde tantono nvel estadual quanto no federal. Apesar de Capra-Spretnak ter respeitado no fundamental o princpio da pesquisaacadmica - segundo o qual um pesquisador engajado valorativa e emocionalmente com seu objeto de estudo deveexercitar um distanciamento sistemtico em relao ao mesmo - h uma questo crucial na qual foram cegos: opotencial messinico-autoritrio presente nos fundamentalistas. Acredito que estes, enfatizando pureza do movimento,tendem a adotar uma viso maniquesta da realidade social segundo a qual "todo o bem est em ns e todo o mal estnos outros" com o conseqente bloqueio do dilogo com a sociedade e o perigo onipresente da sectarizao. Acreditoser fundamental para a dinmica futura do movimento verde que os fundamentalistas no dem a tnica ao conjunto domovimento. Isto sem prejuzo de reconhecer o papel positivo que os fundamentalistas cumprem no processopermanente de construo da identidade poltica dos verdes, desde que contidos ao lugar de um ator secundrio.

    Na segunda parte, sobre o movimento verde no mundo, os autores discutem casos nacionais especficos, detendo-separticularmente nos casos neozelands e belga. O primeiro, por ter sido o pioneiro: o Partido dos Valores foi fundadoem 1969 e muitas de suas propostas foram posteriormente absorvidas pelos partidos dominantes. O segundo, por ser omais desenvolvido: foram os primeiros a ter representao parlamentar e j conseguiram ser muito respeitados peloresto da sociedade e pelas agncias estatais. Apesar de no tratarem especificamente de nenhum caso latino-americano, os autores assinalam o surgimento de interesse pela poltica verde em alguns destes pases. PosteriormenteCapra-Spretnak discutem a formao e desenvolvimento de redes globais verdes: Ecoropa, Friends of the Earth,Greenpeace, Planetary Iniciative.

    Na terceira parte os autores discutem a dinmica e perspectivas do movimento verde norte-americano, do qual eles soautores. Mostram como as idias verdes emergiram antes nos EUA do que na Europa e como o sistema derepresentao distrital dificulta a emergncia de um Partido Verde nos EUA. Eles discutem os diversos movimentosque confluem para o tronco verde nos EUA: ecologistas, pacifistas, antiusinas nucleares, feministas, de direitos civis,de medicina e educao holstica e de psicologia humanista. Finalmente, os autores discutem a importncia estratgicaque o movimento verde norte-americano tem na perspectiva de uma reforma "verdificante" da ordem internacional.

    Dos quatro movimentos sociais fundamentais que constituram o Partido Verde na Alemanha, somente dois tm tidocerta expressividade no Brasil: o feminismo e o ecologismo. O primeiro desenvolveu-se significativamente desdemeados dos 70, chegando a influenciar a cultura poltica e o mundo acadmico das cincias sociais desde o incio dadcada de 80.

    Depois de quatro dcadas de desenvolvimento econmico acelerado, concentrador e predatrio foi somente na ltimadcada que deu-se um paulatino despertar duma conscincia ecolgica difusa nas populaes urbanas do sul-sudeste.Junto com esta conscincia veio um proliferar de frgeis entidades ambientalistas, geralmente restritas a atacar os maisgraves sintomas de desequilbrio nas suas cidades e carecendo de uma viso global em termos de ecologia poltica.

  • A crtica do modelo econmico vigente tem se restringido at agora profunda injustia social que ele gera. Embora aproblemtica dominante na opinio pblica seja a dos custos sociais do desenvolvimento, h indicadores de que aproblemtica dos custos ecolgicos do desenvolvimento tornar-se- um componente significativo do debate pblico eda agenda estatal nos prximos anos. O movimento ecolgico politizou-se aceleradamente nos ltimos dois anos,procurando coordenar esforos a nvel estadual e nacional, chegando-se recentemente emergncia do debate sobre adesejabilidade e viabilidade da constituio de um Partido Verde no Brasil.

    A repercusso da problemtica ecolgica no meio acadmico das cincias sociais no Brasil tem sido at agora muitoreduzida. O errneo suposto de que "ecologia problema de pas desenvolvido" est por trs deste desinteresse. Adifuso do livro de Capra-Spretnak, incluindo sua eventual traduo, poderia contribuir para dissolver algunspreconceitos que ainda bloqueiam a aproximao problemtica da ecologia poltica por parte de nossos cientistassociais. NOTAS: * Eduardo J. Viola doutor em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo e professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina

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